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Ministério da Educação
CAPES

Volume 19, Número 3, Jul/Set - 2015



DOI: 10.5935/1414-8145.20150061

PESQUISA

Cuidados paliativos na assistência de alta complexidade em oncologia: percepção de enfermeiros

Marcelle Miranda da Silva 1
Nathália Gabriella Meliano de Santanda 2
Monique Casartelli Santos 1
Juliana Dias Cirilo 1
Desirée Lessa Rodrigues Barrocas 1
Marléa Chagas Moreira 1


1 Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro - RJ, Brasil
2 Universidade Federal Fluminense. Niterói - RJ, Brasil

Recebido em 07/06/2014
Aprovado em 07/04/2015

Autor correspondente:
Marcelle Miranda da Silva
E-mail: mmarcelle@ig.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Identificar as dificuldades enfrentadas na prestação da assistência à pessoa hospitalizada no contexto dos cuidados paliativos em um Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia do estado do Rio de Janeiro, na percepção dos enfermeiros; e discutir estratégias para melhor qualificar a assistência de enfermagem nesse contexto.
MÉTODOS: Pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa. Obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição. Foram entrevistadas 13 enfermeiras. Os dados foram submetidos à análise temática.
RESULTADOS: Emergiram duas categorias: O lidar cotidiano do enfermeiro na presença de pessoas hospitalizadas em cuidados paliativos oncológicos; e Pensando em estratégias para melhor qualificar a assistência de enfermagem. Destacam-se a falta de conhecimento em cuidados paliativos; a necessária criação de leitos diferenciados; e formação de redes institucionais.
CONCLUSÃO: O estudo alerta sobre a necessidade de mudanças efetivas para atendimento dessas pessoas, que dependem de esforço coletivo para qualificar a prática e da realização de novas pesquisas.


Palavras-chave: Cuidados Paliativos; Enfermagem Oncológica; Assistência Hospitalar.

INTRODUÇÃO

A problemática que envolve a deficiência no ensino da oncologia e dos cuidados paliativos nos cursos de graduação da área da saúde, incluindo a enfermagem, vem sendo discutida nos últimos anos em decorrência do crescente número de casos novos de câncer; das elevadas taxas de morbi-mortalidade pela doença; consequente exigência do mercado de trabalho por mão de obra qualificada; e desenvolvimento de práticas coerentes com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e com as políticas públicas1-3.

De acordo com as estimativas divulgadas pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA) para o ano de 2014, válidas também para 2015, são esperados, aproximadamente, 576 mil casos novos de câncer, incluindo os casos de pele não melanoma. O câncer, configurando-se como uma condição crônica de saúde, tem contribuído para geração de mudanças na evolução da mortalidade no Brasil, uma vez que, dentre tais condições, representa a segunda causa de óbito por doença bem definida, sendo superado apenas pelas doenças cardiovasculares1.

O diagnóstico tardio do câncer dificulta o tratamento com o objetivo curativo, reduzindo o tempo de sobrevida e a qualidade de vida das pessoas. Diante da impossibilidade de cura da doença devem ser implementadas medidas de cuidado que visem à manutenção do conforto e da qualidade de vida, a partir da prática dos cuidados paliativos.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define cuidados paliativos como cuidados ativos e totais promovidos por uma equipe de saúde multidisciplinar que objetiva melhorar a qualidade de vida da pessoa e dos seus familiares diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento e da dor, bem como de outros problemas físicos, sociais, psicológicos e espirituais. A premissa é que tais cuidados sejam iniciados no momento do diagnóstico da doença, de modo a acompanhar as medidas terapêuticas com objetivo de cura; e diante da falha destas, que as medidas paliativas sejam implementadas com exclusividade, e que o cuidado passe a ser o foco principal em detrimento da cura3.

Diante da emergente necessidade de investimentos nos cuidados paliativos no Brasil, alguns movimentos que integram profissionais da área da saúde, serviços e entidades, como por exemplo, a Academia Nacional de Cuidados Paliativos, estão buscando ganhar notoriedade e força política. Tais movimentos visam contribuir para: consolidar uma política pública que trate, especificamente, dos cuidados paliativos; estabelecer uma rede integrada, de modo a vincular a atenção básica para fomentar a assistência domiciliar como principal modalidade de atendimento, bem como para criar a oferta de leitos diferenciados nos muitos hospitais gerais que atendem pessoas com câncer avançado; gerar mecanismos de acesso a medicamentos, materiais e serviços; e adaptar os currículos de graduação e pós-graduação, incluindo conteúdo específico de cuidados paliativos na formação de profissionais da área da saúde4.

No que se refere ao campo político, embora ainda não trate de uma política pública específica, a Portaria nº 876 do Ministério da Saúde, lançada em maio de 2013, garante à pessoa com diagnóstico de câncer sem indicação das terapêuticas antitumorais o acesso aos cuidados paliativos5.

Com base nessa Portaria, compete aos Estados, Distrito Federal e Municípios organizarem a assistência oncológica e definir fluxos de referência para o atendimento das pessoas com câncer. A rede de atendimento nessa especialidade é estabelecida na Portaria nº 62, de março de 2009, que é composta principalmente por: Unidades de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (UNACON), compreendendo os hospitais com condições técnicas, instalações físicas, equipamentos e recursos humanos adequados à prestação de assistência para o diagnóstico e tratamento dos cânceres mais prevalentes no Brasil; e Centros de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (CACON), que se referem aos hospitais que possuam tais condições para o diagnóstico e tratamento de todos os tipos de câncer6. Contudo, é comum evidenciar a carência na oferta dos cuidados paliativos oncológicos nos serviços, sendo muitas vezes, vinculados apenas à clínica da dor nos contextos ambulatoriais.

Pode-se afirmar que, na atualidade, o prolongamento da vida em detrimento da sua qualidade e o isolamento no ambiente hospitalar são fatores que comprometem a dignidade da pessoa em seu processo de morrer, fazendo com que essa experiência seja marcada pelo sofrimento. De modo geral, os serviços no Brasil não estão preparados para ofertar uma assistência que garanta bons índices de qualidade de morte, sendo fundamental o desenvolvimento e aperfeiçoamento de programas de cuidados paliativos7.

Diante de tal problemática, a partir da experiência prática das autoras em um hospital universitário credenciado como CACON, e considerando que a equipe de enfermagem é a que mais se dedica ao cuidado das pessoas e familiares no contexto da internação hospitalar, por permanecer presente 24 horas, incluindo o período noturno, o estudo apresenta as seguintes questões norteadoras: Quais são as dificuldades enfrentadas na prestação da assistência à pessoa hospitalizada no contexto dos cuidados paliativos em um CACON, na percepção dos enfermeiros? Quais estratégias podem ser implementadas diante de tais dificuldades?

Assim, o estudo objetivou: identificar as dificuldades enfrentadas na prestação da assistência à pessoa hospitalizada no contexto dos cuidados paliativos em um CACON do estado do Rio de Janeiro, na percepção dos enfermeiros; e discutir estratégias para melhor qualificar a assistência de enfermagem nesse contexto.

O estudo justifica-se pela necessidade de contribuir para discussão da temática dos cuidados paliativos, considerando a situação emergente relacionada à epidemiologia do câncer, bem como às outras condições crônicas de saúde, e ao aumento do número de idosos na população. Dessa forma, os cuidados paliativos devem ser tratados como uma necessidade imperiosa, em defesa da sociedade8. Estudos que objetivam identificar as dificuldades encontradas na prática dos cuidados paliativos e que propõem estratégias para minimizá-las podem contribuir para a qualificação do cuidado de enfermagem na atenção oncológica e para a qualidade de vida dos pacientes e seus familiares.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa descritiva com abordagem qualitativa. Optou-se pela escolha da abordagem qualitativa, uma vez que o objetivo principal do estudo buscou obter conhecimento a partir de percepções individuais de profissionais. Assim, as características do objeto de estudo configuram-se pela natureza subjetiva, envolvendo as percepções, opiniões, crenças e valores atribuídos pelos participantes do estudo9.

A pesquisa foi desenvolvida em um hospital universitário, localizado no Município do Rio de Janeiro - Brasil. A instituição é um CACON de importante representatividade no atendimento das pessoas com câncer.

A coleta de dados foi realizada no período entre dezembro de 2011 a abril de 2012, em duas das enfermarias clínicas do hospital, que apresentam a disponibilidade flutuante de aproximadamente 40 leitos. Fazem parte da equipe de enfermagem 18 enfermeiros, em diferentes escalas de trabalho.

Foram participantes da pesquisa 13 enfermeiros, atendendo aos critérios de inclusão: ter vínculo empregatício com a instituição e estar atuando na enfermaria clínica no momento da coleta de dados por mais de 06 meses. Foram excluídos os cinco enfermeiros que estavam de licença médica ou de férias no período da coleta de dados.

A técnica de coleta de dados utilizada foi a entrevista semiestruturada, guiada pelo roteiro: Quais são as dificuldades enfrentadas na prestação da assistência à pessoa com câncer avançado no contexto do CACON, na sua percepção? Quais estratégias poderiam ser implementadas para melhor qualificar a assistência de enfermagem? No decorrer da entrevista, também, se investigaram as seguintes variáveis: sexo, idade, tempo de trabalho na Instituição, tempo e local de graduação.

Para registro dos dados coletados em cada entrevista foi utilizado um gravador digital, em consonância com os participantes. Posteriormente, as entrevistas foram transcritas e analisadas a partir do método da análise temática, que favorece o destaque das principais percepções dos participantes, de acordo com o que surge de mais frequente nos discursos, sendo possível caracterizar os temas, que foram base para construção das categorias. Assim, nesse método, os dados brutos a partir de pesquisa empírica foram submetidos às etapas de pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados obtidos e interpretação9.

Foi mantido o anonimato dos participantes, e os recortes das falas dos mesmos foram identificados pela letra "E" de enfermeiro e por um número arábico, de acordo com a ordem cronológica do desenvolvimento das entrevistas (Ex: E1, E2, E3...).

A discussão dos dados foi conduzida a partir da revisão de literatura e bases conceituais que discutem a temática, bem como de acordo com a visão crítica das autoras.

O projeto da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, sob o protocolo nº 942/11, sendo respeitados os aspectos legais e éticos da pesquisa com seres humanos, de acordo com a Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde.

RESULTADOS

Participaram da pesquisa 13 enfermeiros, sendo todos do sexo feminino. A faixa etária de maior prevalência foi entre 20 a 30 anos de idade, com 42,8%. O tempo de trabalho no hospital variou de 02 a 15 anos, com intervalo de maior prevalência de 06 meses a 05 anos, com 46%. Todas as enfermeiras relataram ter tido experiência de cuidar de pessoas em cuidados paliativos oncológicos nas enfermarias, durante este período.

Sobre o tempo de graduação, a maioria das participantes relatou ter mais de 16 anos de graduada, ou seja, 39%. Do restante do grupo, 23% das enfermeiras possuíam o tempo de graduação entre 06 meses a 05 anos; outras 23% de 06 a 10 anos; e 15% de 11 a 15 anos. Quanto às instituições de formação, a Universidade do Grande Rio, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e a Universidade Estácio de Sá formaram duas enfermeiras cada. Enquanto que a Universidade Gama Filho, a Universidade Souza Marques, a Universidade Federal do Piauí, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Faculdade de Enfermagem Luiza de Marillac contribuíram para a formação de uma enfermeira cada.

Da análise dos dados, foram geradas duas categorias, a saber: O lidar cotidiano do enfermeiro na presença de pessoas hospitalizadas em cuidados paliativos oncológicos; e Pensando em estratégias para melhor qualificar a assistência de enfermagem em um CACON.

O lidar cotidiano do enfermeiro na presença de pessoas hospitalizadas em cuidados paliativos oncológicos

Dentre as dificuldades relatadas pelas enfermeiras destacaram-se aspectos relacionados com a formação profissional, diante da falta de preparo para lidar com situações que refletem a complexidade do ser humano e o processo de morrer, bem como com a carência de recursos materiais e humanos, e ausência de estrutura física adequada, de forma a favorecer o cuidado de qualidade, individualizado e humanizado. Seguem depoimentos:

Aqui no hospital universitário a gente tem dificuldade de recursos humanos e materiais. Um exemplo: a quantidade de biombos é insuficiente para prestarmos uma assistência de boa qualidade a todos os pacientes. E, muitas vezes, em uma determinada enfermaria, com essa quantidade insuficiente de biombos, o que acontece? Precisamos de biombos para um banho no leito e ao mesmo tempo temos um paciente com câncer em fase terminal, e ambos precisam dos biombos ao mesmo momento. O que vai acontecer? A gente vai priorizar o uso dos biombos no banho porque o paciente vai estar exposto, despido [...] (E3).

Os profissionais devem ser humanos na sua forma de assistir [...] a maioria não presta a assistência humanizada que os pacientes de clínica médica precisam, principalmente os de oncologia. A assistência acaba não sendo eficaz como deveria ser [...] (E7).

No que tange à falta de preparo dos profissionais da área da saúde em nível de graduação, incluindo os enfermeiros, em especial, para lidar com o avanço da doença e consequente processo de morte e morrer, destaca-se a seguinte fala:

Por ser um hospital não especializado em oncologia, em momento nenhum você tem caracterizado que um paciente está fora de possibilidade de cura, o que interfere nas condutas. Os profissionais acabam fazendo procedimentos invasivos desnecessários, porque eles não sabem lidar com isso, e acham que a família vai exigir, ou que o professor vai exigir, que o colega vai exigir, que aquilo vai ser omissão de socorro, quando na verdade não é [...] (E3).

O depoimento acima destaca outra peculiaridade do cenário, pois se trata de um hospital universitário, campo de atividade prática para alunos dos cursos de graduação e pós-graduação nas diversas áreas da saúde. No caso do profissional médico, em específico, do residente médico, a rotatividade do mesmo entre os setores pode influenciar na assistência à pessoa em cuidados paliativos, já que em sua maioria não há discriminado no prontuário o objetivo do tratamento, abrindo possibilidades de condutas invasivas diante de possíveis complicações clínicas.

No gerenciamento do cuidado de enfermagem, o enfermeiro também evidencia dificuldades em estabelecer as prioridades de atendimento, levando em consideração a variação do perfil das pessoas que são atendidas na clínica médica, bem como dos objetivos de tratamento, quando acaba priorizando os casos em que há possibilidade de cura.

É muito complicado, porque aqui não é um hospital específico para pessoas com câncer, têm pessoas com várias outras patologias. Então, é complicado você lidar com o paciente com câncer, em estágio terminal, ao mesmo tempo em que existe outro que requer um cuidado imediato [...] (E1).

O déficit de recursos humanos na enfermagem, a ausência da equipe multiprofissional para atender as necessidades dessas pessoas, bem como de recursos materiais são dificuldades que limitam a prática. Tais carências geram sobrecarga de atividades administrativas, afastando este profissional enfermeiro da assistência direta à pessoa.

O contato é muito rápido com o paciente, por ser uma clínica médica e que porta muitos leitos, a gente além de atender assistencialmente, faz a parte burocrática [...]. Aqui, infelizmente, a demanda é muito grande para as enfermeiras, e como tem poucas, acaba sobrecarregando todo mundo e não prestamos uma assistência correta (E5).

[...] vejo a minha prática limitada, a partir do ponto em que a gente tem uma estrutura limitada, com uma carência de recursos materiais e humanos [...] temos várias funções na nossa carga horária de trabalho [...]. Além disso, não se tem uma equipe multiprofissional direcionada para os cuidados paliativos aqui, para promover mais conforto para esse paciente e seus familiares (E7).

Pensando em estratégias para melhor qualificar a assistência de enfermagem em um CACON

Esta categoria apresenta as diferentes estratégias, a partir da percepção das enfermeiras, de modo a melhor qualificar a assistência prestada no contexto. Dentre elas, destacaram-se: a capacitação da equipe por meio de educação permanente e treinamento em serviço; disseminação da política de humanização da assistência; redução da rotatividade e dos remanejamentos entre os funcionários da equipe de enfermagem; investimento no quantitativo de recursos humanos; e existência de leitos para acolher especificamente as pessoas em cuidados paliativos.

É preciso treinar a equipe para que possa prestar uma assistência adequada a esse paciente com câncer em fase terminal [...]. Cursos de capacitação abordando o tema dos cuidados paliativospoderiam ser promovidos [...] (E7).

Das questões relativas à gestão de pessoas, além das estratégias de redução da rotatividade de funcionários e dos remanejamentos, bem como do investimento no quantitativo de recursos humanos na equipe de enfermagem, as enfermeiras abordaram a carência do atendimento das suas próprias necessidades, principalmente as referentes ao apoio psicológico.

Precisa tambémaumentar a equipe, e que seja uma equipe sempre, que não fique mudando de equipe, que a gente fique numa equipe só, única e siga com ela por um longo tempo [...] não tendo uma alta rotatividade, para que assim a gente tenha continuidade do trabalho [...] (E5).

[...] ter aquele profissional psicólogo atuando com a equipe [...] porque nós estamos vulneráveis, nos envolvendo emocionalmente com esse paciente e familiares, então vamos precisar também [...] (E7).

A necessidade de criação de oferta de leitos diferenciados nos hospitais gerais, que fazem parte da rede de atenção oncológica, em sua maioria, foi ratificada na fala das enfermeiras, conforme observado no depoimento que segue.

[...] teria que ser um quarto privativo, um setor específico para os pacientes com câncer e nesta situação, um setor para cada tipo de cuidado. Não sei se seria utopia isso. Mas o ideal seria um ambiente especializado, um ambiente específico para ele [...] (E7).

DISCUSSÃO

Conhecer a realidade vivenciada pelo enfermeiro ao prestar o cuidado à pessoa em cuidados paliativos, no contexto de um CACON, constitui uma forma relevante de reflexão e busca de novos caminhos diante das dificuldades enfrentadas. Algumas observações empíricas realizadas pelas autoras evidenciam que os referenciais teóricos e legais não condizem com as realidades dos serviços públicos de saúde, em especial no que concerne à assistência oncológica, sendo comum a carência de muitos recursos. Esta pesquisa fomenta este tipo de observação.

Dessa forma, os depoimentos das enfermeiras trouxeram para pauta de discussão vários pontos nevrálgicos. Ao identificar as dificuldades enfrentadas neste contexto, os enfermeiros destacaram: os déficits na formação profissional, que não os prepara para lidar com o processo de morrer e morte, problema este que se agrava por ser um hospital de ensino; a carência de recursos humanos, de materiais e de infraestrutura básica para atendimento, incluindo neste aspecto a inexistência de equipe multiprofissional para atendimento em cuidados paliativos; e a ausência de leitos diferenciados para este perfil de clientela, uma vez que a configuração atual dos leitos nas enfermarias clínicas, como um hospital geral, tem contribuído para a dificuldade em estabelecer prioridades no atendimento, bem como na organização do tempo no cuidado à beira do leito, fato relacionado também ao déficit de recursos humanos na enfermagem.

Assim, tais dificuldades encaminham para uma discussão pautada em estratégias que possam melhor qualificar a assistência de enfermagem neste contexto. Salienta-se a necessidade de capacitação da equipe multiprofissional, principalmente da equipe de enfermagem, por meio de educação permanente, de modo a facilitar o desempenho das ações guiadas por conhecimentos e condutas institucionais previamente estabelecidas10.

Essa estratégia, contudo, demanda a composição de uma equipe com formação em cuidados paliativos, o que reflete a necessidade de ações conjugadas, para que movimentos ou investimentos isolados não sejam enfraquecidos e descontinuados. A variação nos níveis de experiência dos participantes, como base no tempo de formação profissional e de trabalho na instituição, por exemplo, demandam que a capacitação faça parte da rotina dos enfermeiros, e que a didática utilizada considere a novidade do tema para muitos dos profissionais, podendo seguir exemplos da prática, por meio de estudos de caso.

No que tange à humanização do cuidado, destaca-se que a disseminação dessa práxis em muitos contextos ainda está aquém do necessário. O cuidado desumanizado é uma realidade existente em muitos locais de assistência à saúde, incluindo o ambiente hospitalar. Ressalta-se que o não seguimento dos preceitos dos cuidados paliativos, e a realização de terapêuticas consideradas fúteis e desnecessárias nesta fase da doença, podem ser consideradas práticas desumanizadas, uma vez que contribuem para o sofrimento das pessoas e seus familiares, bem como para a valorização dos aspectos físicos em detrimento do atendimento das necessidades que envolvem outras dimensões do ser humano em processo de morrer. A assistência humanizada é uma premissa, que deve ser difundida entre os pares, refletida numa ação de respeito ao próximo em qualquer relação, construída a partir da comunicação e da relação de ajuda11.

Assim, como o conceito de humanização leva consigo a solidariedade e o respeito, o paciente fora de possibilidade de cura deve ter preservadas a sua autonomia e a sua dignidade. Vale ressaltar que quando o paciente percebe o cuidado humanizado pode exteriorizar suas vontades e sentimentos ao longo do processo de finitude, podendo alcançar a boa morte7.

Valoriza-se também a relação entre os profissionais e a evidência de suas próprias necessidades, em sua maioria, relacionadas à dimensão psicológica, diante do cotidiano marcado pela (in)certeza da morte. O suporte psicológico para o enfrentamento dessas situações tem sido apontado como uma importante estratégia12. É comum observar comportamentos da equipe de enfermagem, em geral, que compreendem outras estratégias de proteção individual e do grupo, diante do sentimento de vulnerabilidade própria. Dessa forma, destaca-se o uso de biombos para "isolamento" das pessoas em processo de morrer. Vale levantar a discussão que a estratégia da abertura de leitos diferenciados no cenário do estudo, se não conjugada com o investimento em recursos humanos qualificados, poderá contribuir para este tipo "isolamento".

Dessa forma, o exemplo da prioridade do uso do biombo na enfermaria, diante de necessidades distintas, encaminha para a questão: até que ponto o cuidado do uso do biombo, nesse ambiente, decorre da intencionalidade do enfermeiro em preservar a privacidade da pessoa hospitalizada em processo de finitude, ou da necessidade inconsciente de encobrir a realidade diante da dificuldade de lidar com a morte?

É fácil encontrar na literatura assertivas que exigem que os profissionais sejam capacitados e habilitados para atuar na oncologia, bem como, nos cuidados paliativos. Entretanto, a atenção às necessidades dos próprios profissionais diante de realidades complexas remete ao fato de que se trata de pessoas cuidando de pessoas, sendo importante articular e integrar o cuidado de si, do outro e "do nós"8.

A qualidade da assistência prestada pela equipe de saúde está relacionada com a adequada gestão de pessoas, considerando o dimensionamento de pessoal e os atributos da formação, em especial, no ato da contratação. Porém, adequar as necessidades do perfil da clientela ao quantitativo ideal de funcionários, principalmente, da equipe de enfermagem, representada pelo maior número, gera elevados custos para as instituições hospitalares13. Com a carência de profissionais, especificamente de enfermeiros, a sobrecarga de trabalho passa a ser uma consequência previsível, e estes acabam, a cargo de suas múltiplas atribuições, dispensando maior tempo com as atividades administrativas, que lhes são privativas, em sua maioria. Tais atividades distanciam os enfermeiros do cuidado direto, devido ao tempo que demandam para execução, sendo este mais um fator restritivo na prática junto às pessoas em cuidados paliativos oncológicos14.

Contudo, peculiaridades do perfil das pessoas em cuidados paliativos oncológicos devem ser levadas em consideração, uma vez que apresentam uma grande instabilidade do quadro clínico, exigindo reavaliações constantes por parte do enfermeiro, por exemplo, de modo a adequar o plano de cuidado de acordo com as novas ou persistentes necessidades. Além disso, ressalta-se a demanda de cuidado dos familiares, que precisa ser atendida, uma vez que adoecem juntamente com seus entes queridos, nessas experiências ligadas às condições crônicas de saúde. Em geral, as necessidades dos familiares estão relacionadas com a comunicação eficaz, o que requer disponibilidade de tempo e dedicação do profissional para o estreitamento das relações com base na empatia15.

O cuidar em enfermagem exige que o profissional tenha um olhar abrangente e humanizado com o intuito de assistir à pessoa em sua integralidade, respeitando-a nos aspectos biopsicossociais e nas suas particularidades, deixando de valorizar somente a execução de técnicas e práticas específicas16. Entretanto, é preciso ter condições adequadas de trabalho, para que o cumprimento destas demandas seja exequível, e não uma utopia. Esse cuidado de enfermagem à pessoa é executado em diferentes cenários, abrangendo os cuidados paliativos, onde a participação deste profissional é ativa, tanto no hospital quanto no domicílio devido sua formação técnico-científica ampliada, visto que sua substância compreende o cuidar do outro.

No entanto, visando o atendimento das necessidades sociais, bem como dos papéis de formação social e intelectual do homem, os movimentos de reforma curricular na área da saúde conjugam vários aspectos por exigência da contemporaneidade, sendo destacada aqui a prática interdisciplinar17-18. Mas, seja por influência cultural, ou por influência do sistema capitalista, os currículos ainda carecem de oportunidades de discussão sobre oncologia e, especificamente, sobre cuidados paliativos.

A limitação do estudo baseia-se no fato da investigação ter tido como cenário apenas um hospital que compõe a rede de atenção oncológica do estado do Rio de Janeiro. Porém, é preciso ampliar a visão acerca dessa problemática, de modo a contribuir para formação de redes entre os serviços. Essa ampliação deve contar com a participação de outros profissionais da área da saúde, além dos que compõem a equipe de enfermagem, incluindo representantes da esfera administrativa.

As implicações para a prática encaminham para a implementação de medidas que possam qualificar a assistência de enfermagem, envolvendo ações de cunho assistencial e administrativo, com destaque para a organização do serviço, como no exemplo da disposição de leitos diferenciados, e na gerência dos recursos humanos, considerando a realização de escala de serviços, treinamentos, e premissas para contratações ou realizações de outros processos seletivos, de acordo com o perfil de clientela a ser atendido. Tais ações articulam-se de modo que as causas e efeitos sejam retroativos, podendo gerar melhorias contínuas.

CONCLUSÃO

A pesquisa permitiu constatar que as enfermeiras encontram grandes dificuldades em assistir as pessoas em cuidados paliativos no contexto de um CACON. Dentre as dificuldades, destacaram-se: a ausência de leitos diferenciados para esse perfil de clientela; a deficiência no âmbito da formação profissional, destacando a dificuldade em lidar com a temática morte, bem como a influência do modelo curativista; déficit de recursos materiais e humanos, incluindo a carência da equipe multidisciplinar voltada para atendimento das necessidades no final da vida; e o cuidado desumanizado.

Estes fatores restritivos podem comprometer a qualidade do cuidado prestado, de modo a proporcionar vivências e experiências negativas durante o período de internação.

Diante das dificuldades encontradas, as enfermeiras propuseram estratégias com intuito de melhor qualificar a assistência de enfermagem no contexto investigado, com destaque para a capacitação da equipe e implantação da educação permanente, difundindo a temática dos cuidados paliativos, já que esta tem sido tratada deficitariamente nos cursos de graduação e pós-graduação. Destaca-se ainda, a estratégia de criação de leitos diferenciados, ao encontro das ideias difundidas em movimentos que visam ampliar a oferta de cuidados paliativos no país. Esta, dentre outras estratégias trabalhadas no texto encaminham para temas mais abrangentes, incluindo uso de recursos pelo SUS, criação de políticas públicas e formação de redes.

Ressalta-se ainda, que para mudanças efetivas é preciso que as pessoas, profissionais e gestores, tenham interesse em ofertar um cuidado paliativo de qualidade, em consonância com as necessidades sociais da contemporaneidade, a partir do conhecimento científico, de modo a garantir eficiência, eficácia, segurança e qualidade.

Os desafios são muitos e para que sejam vencidos com sucesso é preciso planejar adequadamente as ações, seja em nível institucional, na visão micro, ou em nível nacional, na visão macro. Que as ações sejam determinadas em planos com metas alcançáveis em curto, médio e longo prazo, e que possam contar com lideranças representativas no país, como as instituições de referência na assistência oncológicas. Os estudos precisam continuar, a fim de subsidiar tais planos estratégicos e devolver para o campo prático reflexões e discussões de experiências exitosas ou não, contribuindo para o desenvolvimento desta área de atuação, considerada como um novo modo de cuidar.

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