Volume 19, Número 1, Jan/Mar - 2015
PESQUISA
Conforto para uma boa morte: perspectiva de uma equipe de
enfermagem intensivista
Rudval Souza da Silva
1
Álvaro Pereira
2
Fernanda Carneiro Mussi
2
1 Universidade do Estado da Bahia. Salvador - BA, Brasil
2 Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia. Salvador - BA, Brasil
Recebido em 25/10/2013
Aprovado em 04/11/2014
Autor correspondente:
Rudval Souza da Silva
E-mail:
rudvalsouza@yahoo.com.br
RESUMO
OBJETIVO:
Trata-se de uma pesquisa qualitativa que objetivou conhecer o significado do
cuidar em enfermagem para uma boa morte na perspectiva de uma equipe de enfermagem
intensivista.
MÉTODOS:
Adotou-se o Interacionismo Simbólico como referencial teórico e a Análise de
Conteúdo de Bardin como referencial metodológico para análise. Foram entrevistados
10 profissionais de enfermagem, que vivenciavam o cuidado à pessoa em processo de
terminalidade, numa UTI de um hospital especializado em oncologia.
RESULTADOS:
O significado do cuidar para uma boa morte centra-se na promoção do conforto como
categoria central e três subcategorias: Alívio de desconfortos físicos, Suporte
social e emocional e Manutenção da integridade e do posicionamento corporal.
CONCLUSÃO:
Cuidar para uma boa morte significa promover conforto como um resultado de
intervenções terapêuticas que conciliem racionalidade e sensibilidade nas
interações dos profissionais de saúde com o paciente e sua família assegurando a
sua dignidade.
Palavras-chave: Morte; Cuidados Paliativos; Cuidados de Enfermagem; Unidades de Terapia Intensiva.
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, a questão da morte tem estimulado estudantes e pesquisadores a se debruçarem sobre suas várias facetas, de modo que os estudos vêm contribuindo, reflexivamente, para o desenvolvimento do conhecimento na área da Tanatologia no Brasil. Contudo, o tema ainda é tido como um tabu, causando inclusive, surpresa e estranheza quando alguém propõe investigações a seu respeito, a ponto de gerar um estigma àqueles que buscam pesquisar sobre essa temática1. É preciso vencer tal estigma, e olhar para a morte com uma tranquilidade pelo menos relativa, uma vez que ela faz parte da existência humana e precisa ser compreendida como parte do ciclo de vida.
Sabe-se que o processo da morte e do morrer tem sofrido variações, conforme o momento histórico e o contexto sociocultural no qual o homem está inserido, sendo um processo construído pela interação social entre grupos e culturas, assim como, às demais dimensões do universo. Portanto, o ser humano durante o processo de interação social pôde construir diferentes simbolismos sobre a morte.
No campo das ciências sociais, os estudos acerca da morte ganharam maior dimensão a partir de 1960, quando os pesquisadores passaram a perceber mudanças nas práticas e representações relacionadas à morte e o morrer1. O simbolismo da morte sofreu, com isso, variações históricas, sociais e culturais.
Tomando por base o momento histórico e o contexto sociocultural no qual o homem se encontra, pode-se perceber que a ideia de uma boa morte tem se transformado com o passar dos tempos. Na cultura ocidental, num período anterior ao surgimento da ciência moderna e da medicina, o simbolismo atribuído a uma boa morte mantinha uma relação com elementos ligados à religião, considerando-se que morrer bem significava morrer em paz com Deus, em casa, na presença da família e das pessoas do convívio cotidiano. Nessa perspectiva, os cuidados médicos eram tidos como secundários, levando-se em conta que tolerar a dor física era um sacrifício aceitável para a salvação2.
Com o fortalecimento das ciências médicas, na segunda metade do século XVIII, pôde-se observar uma transformação acerca do simbolismo atribuído a boa morte. Muitas causas de morte passaram a ser vistas como evitáveis e, portanto, a morte tornava-se algo a ser prevenido e sua ocorrência passava a ser considerada uma falha da ciência médica. A morte deixa de ser concebida como um acontecimento natural. Assim sendo, o ideal da boa morte para o homem da modernidade, era a morte projetada num futuro inimaginável; a morte que não se via acontecer e, progressivamente, era removida do domínio familiar e da comunidade, para uma instituição hospitalar e, a morte que acontecia de maneira inesperada, no jardim ou após uma refeição ou silenciosamente durante o sono2.
Percebe-se, por conseguinte, que a exclusão da morte e daquele que está morrendo são características fundamentais da modernidade. Nesse sentido, falar espontaneamente sobre a morte com a pessoa que está morrendo, uma necessidade premente desta, vai se tornando cada vez mais difícil. A morte passa a ser enfrentada como um problema humano e social, fomentando o sentimento de que morrer é contagioso e ameaçador, pretexto pelo qual os vivos afastam-se, involuntariamente, daqueles que estão morrendo, causando o que se pode caracterizar como uma morte social3.
Certamente, os simbolismos da modernidade ainda se fazem presentes na contemporaneidade, até mesmo porque é difícil perceber, no início do século XXI, que alguma coisa tenha sido mudada radicalmente. Contudo, diante do dinamismo e evolução do comportamento humano, o simbolismo da boa morte surge na pós-modernidade com um novo significado: a valorização do controle da morte pela pessoa em processo de terminalidade. Espera-se que, nessa condição, ela tenha uma participação ativa na tomada de decisão sobre sua morte, a qual na modernidade era exclusivamente atribuída ao médico. Tal fato se deve a influência dos cuidados paliativos no campo das ciências da saúde. Na pós-modernidade a morte passa a ser imaginada e torna-se um assunto que pode ser abertamente falado e tratado em filmes e novelas. Entretanto, a modernidade não pode ser ignorada, somente transcendida2.
A filosofia dos cuidados paliativos consiste numa abordagem que busca melhorar a qualidade de vida das pessoas adoecidas e seus familiares, que enfrentam doença que ameaça a continuidade da vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento. Demanda identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas físicos, psicossociais e espirituais4.
Os cuidados paliativos nasceram, primordialmente, para atender aos pacientes oncológicos em estágio avançado da doença, contudo, hoje se estendem a todos aqueles que tenham alguma doença que cause dor intensa, sintomas físicos, emocionais e/ou espirituais, tornando a vida extremamente intolerável. Cuidados direcionados a pessoa considerada pela ciência médica sem possibilidade da cura, mas que podem ser cuidadas visando assegurar conforto e dignidade no processo de morrer e na morte5.
Assim, o cuidado para uma boa morte deve ser baseado em princípios de veracidade, respeito e solidariedade, devendo assegurar a vontade e a autonomia das pessoas no processo de tratamento e considerar a relação custo/benefício da medida terapêutica na prevenção dos problemas potenciais e no não abandono5. As práticas de cuidar precisam estar orientadas para o alívio do sofrimento, focalizando a pessoa e não a sua doença, valorizando as trocas intersubjetivas e o encontro autêntico entre quem cuida e é cuidado.
O cuidado em saúde é central ao processo de trabalho em enfermagem5,6. Os profissionais da equipe de enfermagem estão nos hospitais às vinte e quatro horas do dia junto à pessoa internada e são aqueles que mais, frequentemente, realizam as práticas de cuidar tendo, portanto, a oportunidade de conhecer o sentido existencial do adoecimento, as demandas e desejos por práticas de promoção, proteção e recuperação da saúde, as necessidades face o processo de morrer e a morte.
Nessa posição privilegiada estes podem, certamente, estabelecer uma relação de maior proximidade e de ajuda, o que justifica estudar o significado do cuidar da pessoa em processo de terminalidade na perspectiva de uma equipe de enfermagem intensivista. Salientando-se que, embora a internação em unidade de terapia intensiva (UTI) seja habitualmente indicada para pessoas em estado de saúde crítico e recuperável, é possível encontrar pessoas com doença avançada, incurável e em processo de terminalidade nesse ambiente, pois os cuidados paliativos não excluem a possibilidade de cuidado e tratamento intensivo desde que esse possibilite o alívio do sofrimento.
Apesar da literatura estabelecer as diferentes concepções de uma boa morte ao longo da história da humanidade, poucos são os estudos7 acerca do que significa para os profissionais de enfermagem o cuidar para uma boa morte. Conhecer essa questão permitirá identificar suas concepções sobre o tema e suscitar a reflexão do cuidado em enfermagem à pessoa em processo de morrer e na morte e a importância do cuidado sensível e humanístico, pautado no respeito e na autonomia da pessoa e no apoio a sua família no processo de luto.
Com base no exposto, determinou-se como objetivo deste estudo: conhecer o significado do cuidar em enfermagem, para uma boa morte na perspectiva de uma equipe de enfermagem intensivista.
MÉTODO
Trata-se de estudo com abordagem qualitativa que adotou como referencial teórico o Interacionismo Simbólico8 que valoriza, sobretudo, o significado que os indivíduos atribuem as suas experiências e tem seus fundamentos em três premissas: o ser humano que age em relação às coisas, com base nos sentidos que estas têm para ele; o sentido das coisas é derivado, ou se origina da interação social que o indivíduo estabelece com os outros; estes sentidos são manipulados e modificados por meio de um processo interpretativo, usado pela pessoa ao lidar com as coisas e situações que ela encontra. Assim, o cuidar da equipe de enfermagem para uma boa morte decorre dos sentidos que a equipe atribui aos objetos com os quais interage no processo de cuidar.
O estudo foi desenvolvido numa UTI de um hospital de ensino, especializado em oncologia, localizado na cidade de Salvador-BA, com dez profissionais de enfermagem com mais de um ano de experiência em UTI, os quais foram entrevistados utilizando-se a entrevista semiestruturada, entre os meses de abril e julho de 2010. A equipe de enfermagem era constituída por 13 enfermeiras e 15 técnicos de enfermagem e após a abordagem dos mesmos houve aquiescência de quatro enfermeiras e seis técnicos de enfermagem7.
O instrumento de coleta de dados foi composto por duas partes. A primeira continha questões fechadas sobre dados de caracterização sociodemográfica e de formação profissional dos participantes do estudo e, a segunda foi composta por questões norteadoras a exemplo de: Conte-me sobre a sua vivência de cuidar de um paciente que está morrendo. O que significa para você promover uma boa morte?7
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do hospital campo do estudo, recebendo o parecer de nº 264/2010, em 29/03/2010. Os princípios éticos atenderam à Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. Os participantes concordaram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apresentado e assinado anteriormente à realização das entrevistas. Essas foram gravadas e, posteriormente, transcritas na íntegra, sendo os participantes identificados pelo número da entrevista (E1, E2, E3...).
Os dados de caracterização dos participantes do estudo foram analisados descritivamente. Para análise dos dados das questões norteadoras adotou-se a Análise de Conteúdo proposta por Bardin9 que consiste num conjunto de técnicas de análise das comunicações, por meio de uma sequência de procedimentos de ordenação e organização de dados, provenientes das respostas dos entrevistados. Um método sistemático e prático desenvolvidos em três etapas: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados a partir das inferências e interpretações.
A pré-análise consistiu, inicialmente, da leitura flutuante das entrevistas permitindo ao pesquisador se deixar invadir sobre impressões a respeito do material coletado. Posteriormente, elas foram lidas exaustivamente, visando à compreensão profunda do material. Na fase de exploração do material identificaram-se os núcleos de sentido (unidades de significados) que foram agrupados, sistematicamente, considerando suas semelhanças e diferenças. Esses agrupamentos foram analisados e reorganizados de acordo com o sentido a eles atribuído dando origem às categorias, conforme apresentadas na Figura 1.
RESULTADOS
Caracterização dos profissionais de enfermagem participantes da pesquisa
Dos dez participantes do estudo, sete eram mulheres e três homens, com idade entre 25 e 39 anos. Sete declararam-se católicos, sendo cinco praticantes e dois não praticantes, um era espírita praticante e dois atribuíram acreditar em Deus.
Todas as enfermeiras tinham especialização latu sensu, sendo duas especialistas em UTI; uma em oncologia e uma em enfermagem do trabalho. Do(a)s técnico(a)s de enfermagem, dois tinham especialização de nível médio em UTI. O tempo de formação variou entre três e dez anos e o tempo de atuação em terapia intensiva esteve entre dois e sete anos.
Significado do cuidar para uma boa morte na perspectiva de uma equipe de enfermagem intensivista
Da análise dos dados emergiu a categoria central intitulada "Promoção do conforto", a qual expressou o significado do cuidar para uma boa morte na perspectiva de uma equipe de enfermagem intensivista. Três subcategorias denominadas de Alívio de desconfortos físicos, Suporte social e emocional e Manutenção da integridade e do posicionamento corporal simbolizaram a promoção do conforto (Figura 1).
Promoção do conforto
Essa categoria constituiu-se no símbolo, mas também em uma finalidade do cuidar em enfermagem para uma boa morte identificada nas falas dos membros da equipe de enfermagem intensivista. A promoção do conforto significou aliviar desconfortos físicos como a dor e a angústia respiratória; oferecer suporte social e emocional a pessoa em processo de terminalidade e à sua família, possibilitando a presença do seu ente querido no momento da morte conforme as solicitações daquele que está morrendo e, assegurar a manutenção da integridade e do posicionamento corporal com medidas de higiene e de prevenção de lesões na pele, evitando com isso o desconforto dos odores e o surgimento de feridas que estigmatizam e provocam sofrimento.
Essa categoria evidenciou que o cuidar em enfermagem demanda competências técnico-científicas, éticas e humanísticas e precisa ser pautado em práticas de cuidar direcionadas à pessoa e sua família na sua particularidade e integralidade.
A centralidade da promoção do conforto para uma boa morte pode ser ilustrada pelos depoimentos a seguir:
Uma boa morte é proporcionar conforto para que o paciente não sinta dor, tenha uma boa passagem, e isso só quem faz é a enfermagem, que é quem está ali do lado do paciente, conhece sua singularidade. [...] Deve ficar muito enfático para a equipe proporcionar conforto, não abrir espaço para nenhum [tipo de] sofrimento. A enfermagem pode proporcionar, e é quem mais proporciona uma boa morte na UTI, a enfermagem em si (E1).
Para uma boa assistência ao paciente, é [preciso] dá todo conforto, carinho, atenção até o final do tempo, da morte. Fazendo a nossa parte e dá aquela assistência ao paciente que tá indo a óbito, dá todo conforto (E4).
Eu acho que a prioridade no cuidado ao paciente terminal é exatamente o trabalho da enfermagem, em relação ao conforto. Eu considero que o cuidado de enfermagem deva ser o cuidado, o melhor possível, para que o paciente morra em conforto (E10).
A categoria promoção do conforto para uma boa morte foi expressa por três subcategorias, a saber:
Alivio de desconfortos físicos: significou desenvolver práticas de cuidar para minimizar a dor e aliviar a angústia respiratória mediante o uso dos analgésicos, de sedativos e do aparato tecnológico disponível os quais podem proporcionar um processo de morrer e uma morte com maior tranquilidade e dignidade. Significou também evitar ao máximo a dor decorrente de procedimentos invasivos em face da condição de terminalidade, como ilustram os depoimentos.
Minimizar a dor do paciente, facilitando para que ele tenha uma morte digna [...] tentar minimizar, ao máximo possível para que ela [a morte] venha, venha de uma forma menos dolorosa possível (E2).
O cuidado com a sedação adequada. Mantendo-o sempre tranquilo, aparentemente, sem desconforto respiratório, procurar fazer naquele momento com que o paciente não sofra, sofra o mínimo possível (E3).
Acho que todo hospital tem que ter uma UTI, para poder dar uma boa morte ao paciente que precisa. No caso de uma doença como o câncer, o paciente tem que ter uma UTI para poder dá uma maior assistência. Por que é muito difícil você ver um paciente indo a óbito sem você ter os equipamentos adequados para você dá aquele conforto até a morte (E4).
Uma boa morte tranquila é evitar que o paciente fique ali sofrendo dor, agonizando, tem paciente que a gente vê que está agonizando, com falta de ar, [é preciso] fornecer oxigênio pra ele, oferecer uma medicação que possa aliviar um pouco a sua dor. Não o deixar sentindo dor sem necessidade ou falta de oxigênio, desde quando a gente pode oferecer uma melhora pra ele... (E9).
Suporte social e emocional: significou apoio a pessoa em processo de terminalidade e a sua família por meio de demonstrações de carinho, atenção, palavras de coragem e força em todos os momentos e a utilização de estratégias de descontração e lazer por parte dos profissionais de saúde. Significou ainda, favorecer a presença constante da família ao lado daquele que está morrendo, mesmo que isso implique em flexibilizar as normas e rotinas hospitalares e mantê-la informada da condição de seu membro.
Dar todo apoio. Acho que a família facilita a gente nesse processo. Os recursos humanos que é toda equipe. Pessoas humanas existem muito ainda na área da saúde. Eu sentei [numa determinada situação], conversei com a plantonista: O que que há? (perguntou a plantonista) Ela disse: Não, vamos liberar [a entrada da família]. A gente se mobiliza, de certa forma pra que suba [a família], pra que seja liberado isso. Então a pessoa que tá acompanhando ali, tá proporcionando a família esse momento, proporcionando o conforto (E1).
Tranquilizar esse paciente sempre que possível, dando apoio, ânimo a esse paciente, mesmo sabendo que não tem mais jeito. Brincando, tentando descontrair esse paciente, de várias maneiras: brincando, usando televisão, tentando fazer o máximo para ele superar essa situação. A família, a família o tempo todo ao lado do paciente (E2).
Dar todo conforto, carinho, atenção até a morte. Uma boa morte é dá aquela assistência ao paciente que está indo a óbito, dando todo conforto... (E4).
Morte digna eu acho que é no momento que a gente sabe que não tem mais condições. É você manter o paciente com seu ente querido do lado. Isso é importante! A prioridade é exatamente o trabalho da enfermagem em relação ao conforto (E10).
Essa subcategoria incluiu também oferecer apoio aos familiares ajudando-os a compreender a inevitabilidade das perdas e a situação de saúde de seu membro. A equipe reconhecia que o carinho e atenção dispensados à pessoa que está morrendo, significavam conforto, o qual também devia ser extensivo à família conforme ilustram os depoimentos:
É fazer com que a família esteja nesse momento, fazer com que compreenda que às vezes a perda é inevitável. Toda tarde, às dezesseis horas, tem o boletim médico, o médico sempre esclarece isso, não tem porque esconder não é? (E1).
A perspectiva que a gente tem em mente é de um cuidado integral, abrangendo também a família porque a família tem que ter uma atenção maior nesse momento. Além de cuidados técnicos, a gente tem que ter uma atuação muito grande, quanto à família do paciente (E6).
Ajudar também a família, que, às vezes, vem visitar o paciente e tá tão abalada (...) dar apoio a família. É o que a gente pode fazer no momento (E10).
Manutenção da integridade e do posicionamento corporal: significou assegurar o direito à integridade física, respeitar o corpo de maneira ampla contra tudo que possa feri-lo, preservar a boa imagem corporal e a ausência de odores. Essa integridade pode ser assegurada por cuidados de manutenção da boa higiene, incluindo o momento após a morte e, de prevenção de lesões corporais como as úlceras por pressão. Assegurar essa integridade é uma forma de evitar o desconforto físico, emocional e social daquele que está morrendo e o desconforto emocional da família ao ver o seu membro com o corpo deformado e exalando mau cheiro. Essa subcategoria significou, também, manter a pessoa aquecida e sentindo-se em uma posição confortável.
Eu, enquanto enfermeira procuro proporcionar um banho, o aquecimento, porque a gente pensa assim: com aquela escara imensa, tudo isso é ruim para a família. É bom a família ver o paciente bem cuidado. Eu acho que a enfermagem tem um papel singular, no que diz respeito ao cuidado com o corpo, higiene, um cuidado com uma posição confortável. Às vezes, só o que o paciente precisa naquele momento é de um travesseiro (E1).
Evitar o mau cheiro, tirando as secreções de vários lugares do corpo do paciente (E2).
Dar um bom cuidado, manter ele sempre limpo, saudável (E7).
Morrer limpo, morrer e ter o corpo após a morte limpo. Manter o corpo pós-morte limpo. Não deixar o paciente morrer com escaras, cheio de ferimento, mudar sempre o paciente de posição (E8).
DISCUSSÃO
A equipe de enfermagem caracterizou-se, predominantemente, por mulheres, adultos jovens, adeptos da religião católica. Observou-se um perfil de profissionais que buscam atualização, haja vista que todas a(o)s enfermeira(o)s possuíam curso de pós-graduação lato sensu e dois dos seis técnico(a)s de enfermagem realizaram curso de especialização de nível médio. Nenhum profissional tinha especialização em Enfermagem em Cuidados Paliativos e, isso talvez se deva a inexistência de oferta desse curso no estado da Bahia. Em relação ao tempo de formação e o tempo médio de trabalho em UTI, entre dois e sete anos, indica que a equipe tem experiência profissional nas ações paliativas.
O significado central do cuidar em enfermagem para uma boa morte na perspectiva de uma equipe de enfermagem intensivista foi associado à promoção do conforto. Esse fenômeno vem sendo considerado desde os primórdios da profissão como uma meta do cuidado de enfermagem, assim como, na prática hospitalar observa-se que é algo esperado pelo indivíduo no processo de tratamento.
O conforto consiste numa experiência, positiva, subjetiva e multidimensional que é vivenciada na interação dos indivíduos com eles mesmos, com as práticas de saúde e a racionalidade que as fundamentam e com os objetos institucionais10. Portanto, esses objetos sociais poderão ser fontes de conforto ou desconforto, podendo, este último, ser minimizado quando pessoas em processo de terminalidade e familiares tornam-se sujeitos da atenção à saúde que agrega competência técnico-científica, ética e humanística11.
Da interação entre os indivíduos e práticas de saúde, espera-se que resulte um estado, ainda que temporário, de bem-estar, o qual pode ocorrer durante qualquer estágio do continuum saúde-doença. Em face da iminência da morte, espera-se que a promoção do conforto seja o objetivo primordial do cuidar em saúde. Na impossibilidade da experiência de conforto como um último estágio de paz e serenidade, espera-se o alívio, mesmo que temporário, da maioria do que se constitui em desconfortos12.
A partir da categoria central que atribuiu à promoção do conforto como sendo o significado central do cuidar em enfermagem para uma boa morte, pode-se evidenciar que é possível a equipe de enfermagem planejar intervenções terapêuticas a pessoa em processo de terminalidade tendo como metas contribuir para evitar desconfortos potenciais, atenuar o desconforto atual e promover o conforto. Práticas de cuidar focalizando o alívio de desconfortos físicos como a dor, oferecendo suporte social e emocional e assegurando a integridade corporal poderão minimizar alterações, perturbações e dificuldades de natureza física, psíquica e social vividas pela pessoa em processo de terminalidade e sua família e, assim, promover o conforto13,14.
A categoria e as subcategorias que expressaram o significado de conforto para uma boa morte na perspectiva de uma equipe de enfermagem demonstraram que esse grupo de trabalhadora(e)s reitera o conforto como um fenômeno multidimensional. Essa multidimensionalidade se expressa também na definição de conforto de Katherine Kolcaba como "a satisfação das necessidades humanas básicas de alívio, tranquilidade e transcendência, nos contextos físico, psicoespiritual, sociocultural e ambiental"13:433.
A subcategoria "Alívio de desconfortos físicos" evidenciou a preocupação da equipe de enfermagem em evitar ou minimizar quaisquer desconfortos físicos, considerando uma boa morte, como aquela em que a pessoa está livre de dor. Um estudo14 constatou que o controle da dor, enquanto um desconforto físico da pessoa que está morrendo foi uma preocupação da maioria das enfermeiras no processo de cuidar.
Outros autores14,15 corroboram com esses resultados ao afirmarem que um dos elementos essenciais para uma "boa morte" é a ausência de dor, possibilitando que a pessoa esteja física e mentalmente capaz de alcançar qualquer objetivo que pretenda atingir antes da morte. Portanto, o conforto advém da confiança na qualidade técnica do atendimento a qual oferece a segurança de que o processo de morrer e a morte poderão ser assegurados com menos sofrimento10.
Aliviar ou reverter os desconfortos físicos, melhorando o estado de conforto, promoverá um morrer com dignidade. No que se refere ao controle da dor, embora nas falas da(o)s entrevistada(o)s as medidas para a mensuração do seu nível não tenham sido explicitadas, sabe-se que sendo um sintoma subjetivo, é necessária a sua avaliação, sempre que possível, com o uso de escalas visuais, uma prática considerada como ponto de partida para o controle dos sintomas15.
Se por um lado o cuidar para uma boa morte foi associado à promoção do conforto físico por meio do emprego de tecnologias duras, sobretudo para alívio da dor e do desconforto respiratório, também é verdade que os participantes compreenderam que o atendimento prestado não deve demandar o emprego de procedimentos invasivos incapazes de oferecer qualquer alternativa real de reverter à situação de terminalidade, ou seja, que prolongam a vida e não resultam em cura, apenas no prolongamento do sofrimento da pessoa em processo de morrer e de seus familiares.
A subcategoria Manutenção da integridade e do posicionamento corporal revelou que o cuidar para uma boa morte, significou também, empreender práticas de cuidar para atender aos padrões de higiene e preservar o corpo de lesões. A palavra higiene origina-se do grego "hugieinós" e significa dispensar ajuda para manter a saúde, assim, vale atentar-se que essa ajuda deve atender ao conjunto de valores socioculturais da pessoa, para que possa ser alcançado o nível de conforto desejado16.
Quando se fala em cuidados paliativos, a tônica relacionada aos cuidados de higiene passa a ter uma dimensão cada vez maior em consequência da perda de autonomia do paciente16, o que justifica essa preocupação da equipe. Respeitar o corpo preservando a sua imagem, a ausência de odores, o surgimento de ferimentos é uma forma de cuidar da dor e do sofrimento e assim, de promover conforto, o que é fundamental para o resgate da dignidade do ser humano neste contexto crítico de terminalidade.
A subcategoria Suporte social e emocional evidenciou uma preocupação da equipe em promover conforto por meio de demonstrações de apoio, atenção e afeto ao paciente e sua família, bem como pela promoção da interação entre a pessoa em processo de terminalidade e sua família, possibilitando as trocas intersubjetivas nos últimos momentos. Tais atitudes do grupo estudado demonstram que o conforto está associado a uma abordagem solidária e sensível para com eles.
Estudos11 mostram que o conforto pode ser promovido pelas interações de familiares com profissionais não apenas competentes, técnica e cientificamente, mas também, com a humanidade da equipe de saúde. Ser aceito e valorizado pelos profissionais, ser ouvido e compreendido, perceber preocupação com o sofrimento da família e com as possibilidades de minimizá-lo, ser tratado com tranquilidade, cumprimentado com um sorriso ou abordado com uma conversa, receber informações de forma gentil e compreensível e perceber boa vontade e sinceridade nos profissionais representou também conforto para familiares com um membro na UTI.
Dessa maneira, torna-se importante valorizar o acolhimento da pessoa, em processo de morrer e diante da morte e, seus familiares adotando-se um sistema eficaz de comunicação por meio de informações detalhadas e sempre que desejadas, flexibilização de normas e rotinas hospitalares relacionadas às visitas, permitindo maior interação entre a família e seu membro internado e respeito aos vínculos afetivos, bem como, torna-se necessária a capacitação emocional da equipe multiprofissional para lidar com o sofrimento de ambos, promovendo assim o conforto.
O suporte emocional e social ficou também bastante evidente nas falas dos participantes do estudo quando relacionado à importância do lúdico no cuidado a pessoa que está morrendo, promovendo conforto. Nessa perspectiva, a literatura acerca das atividades lúdicas no ambiente hospitalar aponta que as atividades que propiciem prazer, consistem em uma estratégia favorável para minimizar os efeitos negativos da hospitalização, ocupa o tempo ocioso e estimulam a inter-relação com seus pares e profissionais da equipe de saúde, entre outros benefícios17.
O suporte social e emocional como significado do cuidar para uma boa morte à pessoa em processo de terminalidade e a sua família coaduna-se com a definição dos cuidados paliativos da Organização Mundial de Saúde4 numa abordagem que busca melhorar a qualidade de vida das pessoas adoecidas e seus familiares e diminuir o estresse vivenciado neste momento de angústia e de ansiedade.
O significado do cuidar para uma boa morte reside em possibilitar a experiência do conforto na interação com práticas de cuidar em saúde que promovam segurança técnica e acolhimento11, tranquilidade, alívio e transcendência13, garantindo a preservação da dignidade humana. Interações intersubjetivas entre a pessoa em processo de morrer e os profissionais de saúde podem resgatar o humano diante do mundo mecanizado do hospital, mobilizar forças naquele que se encontra fragilizado diante do enfrentamento inexorável da morte.
É válido destacar também que confortar o outro traz conforto para aqueles que cuidam. O profissional de enfermagem que possui conhecimento, habilidade e vontade de proporcionar bem-estar à pessoa de quem cuida, tem chance de contribuir para o alcance de um alto nível de conforto, sentindo-se ao mesmo tempo confortado e realizado18.
Com o intuito de promover o conforto à pessoa em processo de terminalidade, o profissional não deve ter como parâmetro o que deseja para si, mas respeitar o que a pessoa necessita e deseja o que julga melhor para si, ouvindo inclusive a família quando ela não puder se expressar. É preciso lembrar que uma pessoa nunca é igual à outra, ainda que a manifestação da doença possa ser. Compreender a singularidade de cada um é o que guia para a promoção do conforto da pessoa de quem se cuida. Não se pode perder de vista, que as práticas de cuidar devem ser desenvolvidas com vistas a assegurar a integralidade da pessoa, respeitando a sua autonomia e individualidade.
Cuidar para uma boa morte significou para o grupo estudado promover conforto como um resultado de intervenções terapêuticas que conciliem racionalidade e sensibilidade nas interações dos profissionais de saúde com o paciente e sua família assegurando a sua dignidade.
Outra perspectiva de estudo que merece investigação e aprofundamento é conhecer o significado de uma boa morte na ótica das pessoas que vivenciam o processo de terminalidade. Investigações dessa natureza poderão ajudar os profissionais a identificarem as situações, que promovem conforto e/ou desconforto a estes sujeitos, suscitando reflexões e guiando práticas para qualificação do processo de cuidar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O significado do cuidar em enfermagem para uma boa morte expressou-se pela categoria central intitulada Promoção do conforto e, suas subcategorias: Alívio de desconfortos físicos, Suporte social e emocional e Manutenção da integridade e do posicionamento corporal. Concluiu-se que cuidar para uma boa morte significa, sobretudo, promover conforto o qual pode ser resultante de práticas de cuidar em saúde e em enfermagem que conciliem racionalidade e sensibilidade assegurando a dignidade do paciente e sua família.
O campo de análise com base no cuidar para uma boa morte é ainda incipiente e o aprofundamento em novas pesquisas poderá ampliar os horizontes dos cuidados paliativos possibilitando aos profissionais de saúde e de enfermagem uma atenção integral e interdisciplinar visando assegurar uma morte digna.
REFERÊNCIAS