Volume 19, Número 1, Jan/Mar - 2015
PESQUISA
Mulheres com gravidez de maior risco: vivências e
percepções de necessidades e cuidado
Daniela do Carmo Oliveira
1
Edir Nei Teixeira Mandú
1
1 Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá - MT, Brasil
Recebido em 31/03/2014
Aprovado em 28/10/2014
Autor correspondente:
Daniela do Carmo Oliveira
E-mail:
danielacarmoliveira@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Compreender vivências e percepções de mulheres com gestação de maior risco,
relativas aos problemas/necessidades de saúde e práticas de cuidado.
MÉTODOS:
Estudo descritivo-qualitativo, realizado em Cuiabá, Mato Grosso, com 12 mulheres
em acompanhamento pré-natal em um serviço público especializado, por meio de
entrevista semiestruturada e análise de conteúdo temática.
RESULTADOS:
As participantes expressam a vivência de importantes eventos não médicos, que
influem em sua saúde, como desinformação, medos, preocupações, desorganização da
vida cotidiana e familiar, carências financeiras, e outras. Contudo, para o
pré-natal, avalizam cuidados orientados pela perspectiva de risco, de controle dos
problemas médicos. Reportam-se à necessidade de cuidados amplos, mas, para isso,
buscam suporte na família e rede social comunitária de apoio.
CONCLUSÃO:
A compreensão das vivências e dos pontos de vista das mulheres grávidas é
imprescindível à construção de ações pré-natais que respondam a necessidades de
cuidados abrangentes.
Palavras-chave: Gestantes; Gravidez de Alto Risco; Cuidado Pré-Natal; Estratégia Saúde da Família.
INTRODUÇÃO
O estudo aborda eventos médicos e não médicos da vida de mulheres com diagnóstico de gravidez de maior risco. Destacam-se suas vivências e percepções a respeito de necessidades/problemas e cuidados recebidos, na Estratégia Saúde da Família (ESF) e no serviço especializado onde realizam o pré-natal, em Cuiabá, Mato Grosso.
Pesquisa1 realizada na ESF, nesse município, evidencia que, apesar de as mulheres apresentarem necessidades de saúde de diversas ordens - física, social, psicoemocional, educacional, dentre outras -, os profissionais priorizam, habitualmente, o controle de aspectos físicos e obstétricos da gestação por meio de ações curativo-preventivas.
No entanto, se a gravidez em si produz necessidades de saúde da ordem privilegiada, mulheres enfrentam exposições e suscetibilidades que propiciam, além do surgimento e agravamento de problemas médicos, o comprometimento da totalidade de suas vidas e saúde.
A prática de pré-natal no país efetiva-se no interior de um modelo de atenção à saúde, histórico e social, em permanente abertura e requalificação2. Esse modelo, apesar de expressar as influências de diferentes discursos acerca de possíveis modos de operar e gerir as tecnologias, é orientado pela perspectiva biomédica, que exerce, assim, forte influência na atenção pré-natal. Nesta, a abordagem das suscetibilidades e dos problemas/necessidades de saúde decorrentes, da mulher grávida, configura-se, sobretudo, da ótica dos riscos.
Essa perspectiva tem suas bases na intersecção do campo da biomedicina e da epidemiologia clássica. Sob a orientação destes, priorizam-se a identificação e o controle da presença de fatores de riscos que tornam grávidas mais suscetíveis aos agravos, bem como o controle de agravos manifestos.
Risco refere-se à probabilidade de ocorrência de um resultado desfavorável para a saúde - de um dano biológico ou fenômeno indesejado - evidenciado por meio de estudos científicos de relação causa-efeito, de base estatística. Esse conceito e a sua aplicação nas práticas de saúde têm contribuído, significativamente, à prevenção e ao controle de doenças3. Na saúde reprodutiva, estes têm resultado em redução da morbimortalidade fetal, neonatal e materna, um objetivo prioritário da atenção à mulher e da atenção à criança no país. No pré-natal, as gestações são, rotineiramente, classificadas como de risco habitual ou de maior risco. Nessa última situação, usualmente, a mulher é encaminhada a um serviço de referência para acompanhamento especializado.
Ainda que relevante, a perspectiva de risco não é suficiente à abordagem abrangente de acontecimentos e suscetibilidades apresentados por grávidas. Sob esse olhar e modo de fazer, a objetivação das dimensões sociais da saúde e da doença é relegada2,3. Na saúde reprodutiva, a eleição exclusiva da perspectiva de risco reduz a complexidade do fenômeno reprodutivo e das interferências sociais neste e resulta, ainda, em naturalização e distanciamento dos profissionais do modo como mulheres organizam suas experiências, as sentem e dão sentido a elas.
A perspectiva de vulnerabilidades pode resgatar e melhor iluminar esses aspectos. Ela se alicerça em construções da epidemiologia social e da integralidade da atenção em saúde. A noção de vulnerabilidade orienta a retomada da relação entre saúde e o entrecruzamento de aspectos ambientais, sociais, políticos, culturais, institucionais, comunitários, familiares, individuais2,4. No pré-natal, essa perspectiva busca considerar, para além dos riscos, efeitos do entrelaçamento entre condições individuais e contextuais na exposição de grávidas não só às doenças, mas também ao sofrimento e à limitação de potenciais de enfrentamento de situações desfavoráveis.
As mulheres vivenciam a gravidez atribuindo significados ao processo reprodutivo, às necessidades e intercorrências enfrentadas, às causas destas, às ações e aos recursos dos serviços de saúde e outros. Os significados construídos influem em sua saúde e em sua participação no cuidado de si, podendo se constituir também em evento gerador de vulnerabilidades. Desse modo, é importante que o pré-natal desafie-se no sentido de apreender, compreender e considerar as vivências e o ponto de vista das mulheres a respeito da gravidez e do que a afeta, e do que julgam relevante para a sua saúde e a de seu filho.
De um modo geral, as vivências em torno de um fenômeno são significadas de modo singular pelas pessoas, na dependência da personalidade, da biografia, da participação de cada uma na história. Mas essa significação não é do indivíduo; configura-se nas relações sociais e nas interações entre as pessoas, sendo, portanto, de natureza social. Os significados são constituídos nos espaços sociais coletivos que as pessoas partilham de algum modo e são deles constituintes5,6.
Então, neste estudo, assume-se que as experiências significadas por mulheres diagnosticadas com gravidez de maior risco revelam características peculiares e sociais que podem ser referência à construção de práticas assistenciais mais abrangentes, que incorporem também a perspectiva das vulnerabilidades.
Vários estudos publicados abordam vivências e percepções de grávidas em situação de maior risco. Porém, a maior parte as correlaciona a riscos e problemas específicos7. Há poucos estudos atuais (dos últimos cinco anos) sobre o tema aqui tratado. Os mesmos versam sobre como mulheres diagnosticadas de maior risco sentem a gestação8-11, sobre circunstâncias da gravidez de maior risco, condições que mulheres portam frente ao problema, riscos mais frequentes8, consequências8,9 e cuidados9,10. Neles, as suscetibilidades das grávidas não são abordadas da perspectiva das vulnerabilidades, embora, alguns consideram fatores além dos biológicos.
Considerando o apontado, o objetivo da pesquisa é compreender as vivências e percepções de mulheres com gestação diagnosticada de maior risco, relativas aos problemas/necessidades que possui e às práticas de cuidado à saúde adotadas/requeridas. Com este trabalho, busca-se contribuir para a melhoria da assistência pré-natal da perspectiva da integralidade.
MÉTODO
Estudo descritivo, qualitativo, feito com 12 mulheres em acompanhamento pré-natal em um hospital público de referência para a gestação de alto risco, de Cuiabá, MT. Este foi selecionado por atender somente pacientes do SUS e ser campo de formação na área da saúde.
Na escolha das participantes considerou-se que, em pesquisa qualitativa, é imprescindível estabelecer os atributos que interessam aos objetivos da pesquisa e que sujeitos melhor os representam12. Desse modo, definiu-se que as mulheres deveriam: ter a gestação classificada como de maior risco; ter sido referenciada por uma unidade urbana da ESF do município; e estar em acompanhamento especializado há pelo menos duas consultas, tendo em vista obter o relato de suas experiências gestacionais e de cuidado também com o serviço de referência. Previu-se a exclusão daquelas com agravos que dificultassem sua participação no estudo (o que não ocorreu).
No período inicial de recolha dos dados foram abordadas 205 gestantes, em 15 dias não sequenciais, para identificação das possíveis participantes. Destas, 163 faziam acompanhamento especializado e 12 possuíam todos os atributos de interesse e aceitaram participar do estudo.
Apesar desse número inicial, foi no processo de recolha e análise dos dados que o mesmo foi considerado suficiente, com base na exaustividade das informações de interesse, tal como proposto pelo fechamento amostral por saturação. Esse recurso metodológico da investigação qualitativa define que a interrupção da recolha de dados deve se dá com a confiança empírica de que eles não mais fornecem elementos novos à categorização e teorização, relevados os limites empíricos, a integração dos dados com a teoria e a sensibilidade teórica do pesquisador12.
Primeiramente, analisou-se o material obtido com seis mulheres chegando-se a eixos gerais depreendidos das unidades de significação selecionadas. Para cada eixo, as vivências e os pontos de vista das mulheres foram detalhados. Elaborou-se um quadro com a identificação de cada mulher e os achados obtidos. Então, foi feita nova recolha e análise de dados de mais três mulheres. Esse processo não forneceu elementos novos ao estudo. Para comprovar e garantir a saturação12, concluiu-se essa fase de campo com mais três entrevistas. Com essa estratégia, buscou-se respeitar o critério "validade objetiva" do conjunto das informações interpretadas, isto é, o uso de premissas legítimas para inferências e a possibilidade de "transferência" do conhecimento produzido a outros grupos/indivíduos com similaridades5,6.
A construção empírica da pesquisa ocorreu em março e abril de 2013, no próprio hospital. Realizou-se entrevista com instrumento semiestruturado6, por meio de um contato presencial de 45 minutos. As questões abordaram: condições sócio-demográficas e de trabalho das mulheres; experiências com a gravidez e serviços; e pontos de vista sobre a gestação, situação de saúde, cuidados e relações com os serviços envolvidos. O registro dos dados ocorreu em um diário de campo e por meio de gravação em áudio, após autorização das participantes.
Estabeleceu-se uma interação de confiança e respeito com as mulheres, por intermédio de conversas informais, escuta atenta, individualização das entrevistas, respostas às indagações e solicitações, e explicação da pesquisa, do interesse acadêmico, dos aspectos éticos envolvidos.
Os dados foram submetidos à análise de conteúdo do tipo temática5,6, norteada pelo objetivo da pesquisa. Organizou-se o material, fez-se a leitura/releitura do mesmo e se assinalou, além de sentidos apreendidos do todo do material, os temas ou unidades de significados de interesse. Considerou-se na análise, as mensagens explícitas e implícitas. Na sequência, os temas foram agregados por similaridades, classificados e reclassificados e, serviram de base à inferência apoiada também na teoria. Esse processo resultou em duas grandes categorias: vivências de eventos médicos e não médicos; relevo de eventos médicos como objeto de cuidado pré-natal dos serviços.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Júlio Müller, em 27/02/2013, Parecer 206.916. Respeitaram-se as normas da Resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde, vigente à época. As participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), após as explicações do seu conteúdo e sobre a pesquisa. As participantes foram identificadas por um codinome (nomes de flores), para preservar suas identidades.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Contextualização do estudo
As mulheres do estudo foram encaminhadas por unidades da ESF do município ao serviço de referência. Naquelas, o pré-natal consiste basicamente da oferta sistemática de pré-consulta, consulta médica e de enfermagem, e visita domiciliária por agentes comunitários. A primeira consulta é feita pelo enfermeiro e as subsequentes intercaladas com o médico. O encaminhamento de mulheres ao pré-natal especializado é feito por ambos, que atuam em complementaridade.
Em Cuiabá, são referências para o maior risco gestacional cinco policlínicas e três hospitais, um público e dois conveniados. O serviço de referência incluso no estudo oferta triagem, internação, apoio diagnóstico e acompanhamento ambulatorial para o alto risco gestacional. No pré-natal, atende mulheres com gestação de risco habitual e maior risco, por livre demanda e encaminhamento feito por serviços de saúde do estado/município, via central de regulação, conforme disponibilidade de vagas. As consultas são feitas por médicos e acadêmicos de medicina.
Vivências de eventos médicos e não médicos
Para avaliar grávidas, em suas necessidades de saúde, os profissionais do pré-natal do serviço especializado e da ESF priorizam a perspectiva de risco. Assim, o diagnóstico das participantes do estudo foi feito com base em eventos médicos enfrentados por elas, associados, ou não, a fatores individuais e/ou à história obstétrica e de saúde desfavorável. São eles: gestação gemelar; hipertensão e óbito neonatal anterior; diabetes e hipertensão pré-existentes e atuais; diabetes gestacional; diabetes gestacional e idade maior que 35 anos; hipertireoidismo; sorologia IgG e IgM positiva para citomegalovírus; sangramentos vaginais e idade menor que 20 anos; varizes em membros inferiores; quadro epiléptico prévio e atual; nefrolitíase; microcefalia congênita da mulher.
Entretanto, essas mesmas mulheres vivenciam e expressam vários eventos biológicos, comportamentais, afetivos, entrelaçados a situações familiares, institucionais e sociais, que extrapolam aqueles problemas diagnosticados, com possíveis consequências adversas à sua saúde e a de seu filho. Ou seja, enfrentam ocorrências e situações que comprometem ou podem afetar a sua saúde como um todo, incluindo o seu processo reprodutivo e as suas possibilidades de cuidar de si.
Despreparo para agir com autonomia no cuidado de si
Os fatores e problemas que dão origem ao diagnóstico de maior risco gestacional são apresentados pelos profissionais às mulheres. Estas sabem referi-los. Contudo, têm poucas informações sobre as suas causas/possíveis causas, consequências/possíveis consequências e os cuidados e os seus possíveis efeitos.
Assim, as mulheres revelam certa dificuldade em traduzir, de modo próprio, o problema, as suas implicações e as alternativas para a sua resolução, o que vem associado às dúvidas, preocupações e medos:
Orquídea - Falaram que era o vírus do citalomegalovírus, que eu corria o risco de pegar ele. Que era para eu comer carne bastante frita, lavar bem os alimentos e não mexer com nada de terra e nem gato. Que eu ia ter que tomar um remédio para ajudar a não pegar.
Entrevistadora - Por que você corria o risco de pegar o vírus?
Não sei não [...] Na minha família também, ninguém sabia o que era. Quando eu vim pra cá (serviço especializado), falaram que havia o risco, se eu pegasse o vírus, de quando a criança nascer, nascer surda ou muda. Aí a gente ficou com muito medo [...]. (Orquídea, 22 anos, primigesta, sorologia IgG e IgM positiva para citomegalovírus).
[...] porque a gente sabe que quando é uma gestação normal, tranquila, faz todo um acompanhamento pelo posto de saúde. Quando chega a vir para um acompanhamento mais de perto, não é normal, tem certo risco, não sei que grau dizer, se é muito, se é pouco, mas tem. Se não tivesse não teria sido encaminhado pra cá (referência). Então, é só preocupação mesmo [...] (Rosa, 33 anos, G2, P1, hipertireoidismo).
Com poucas informações, as mulheres ficam expostas a novos problemas, de ordem física, psicoemocional e, nas possibilidades de se proteger e ao filho. Não compreender a intimidade do próprio corpo, os perigos aos quais estão sujeitas, o que precisam fazer para melhor cuidarem de si e do filho, e desconhecer recursos e cuidados, as tornam suscetíveis a novas ocorrências. Um exemplo disso é a gravidez indesejada e, em condições físicas adversas:
[...] Eu engravidei tomando remédio de evitar. Foi na troca de remédio. A médica não me avisou que tinha que usar camisinha, durante esses 30 dias. Aí foi onde eu engravidei [...]. Quando a gente está tomando a injeção e troca por comprimido, a gente tem que usar camisinha, e ela (médica) não me alertou. Daí eu estava ingerindo o comprimido anticoncepcional já estando grávida, sem eu saber (Jasmim, 23 anos, G3, P2, varizes em membros inferiores).
Entre as mulheres, a necessidade expressa de ter informações em saúde extrapola o momento da gestação e a compreensão dos problemas em cursos. Abrange também o parto e o cuidado do filho.
Por enquanto, acho que a maior necessidade é saber como que está meu neném e achar um médico que resolva; me diga o que está acontecendo, porque, até agora, ninguém me disse o que está acontecendo [...] Se você está com uma gravidez de risco, eu acho que eles têm que dar mais atenção, porque eu não sei, o médico me falou que a criança pode ter má formação [...] (Orquídea, 22 anos, primigesta, sorologia IgG e IgM positiva para citomegalovírus).
Estudo sobre a satisfação e as expectativas de mulheres com o pré-natal, em Cajazeiras, Paraíba, evidencia a vivência dessa necessidade. As informações demandadas abrangem aspectos orgânicos e comportamentais da gestação (alimentação, ingesta hídrica, exercícios físicos, preparo das mamas), aspectos físicos e emocionais do parto, o cuidado do filho e a prática de aleitamento13.
O acesso da grávida a informações detalhadas sobre a própria saúde e a de seu filho é um componente muito importante do pré-natal. Em muitos contextos, por falta de informação, a mulher vive uma condição de dependência, de falta de autonomia e, inclusive, de maltratos8.
O compartilhamento de informações entre os profissionais de saúde e as mulheres, no momento certo e de forma personalizada, não só orienta a comunicação entre ambos, como também propicia a satisfação da necessidade de conhecimento que expressam e acresce poder a elas. Isto é, fortalece a capacidade das grávidas de decidirem sobre o seu corpo e cuidar de si com autonomia.
Isso não significa que há uma relação de linearidade entre informação/conhecimento e autonomia. Esta última configura-se nas relações, em meio à cultura partilhada14 e às condições contextuais. Além de acesso a informações, o desenvolvimento de graus de autonomia possíveis requer capacidade de lidar com as dependências e de intensificar a participação no processo terapêutico14 e na tomada de decisões.
Desse modo, além de compartilhar informações sobre os problemas médicos que as mulheres apresentam, o pré-natal deve direcionar todo o atendimento e as relações nele estabelecidas para o desenvolvimento de graus de autonomia entre elas. Para tal, os trabalhadores devem conhecê-las melhor, em suas potencialidades, fragilidades e necessidades, e compreender as suas ações, os seus sentimentos e os significados que atribuem à vida, ao processo reprodutivo, aos problemas, aos cuidados.
Além disso, é importante a realização de ações sistemáticas e grupais de educação em saúde com a participação ativa delas, nas quais se adotem estratégias baseadas em suas necessidades de saúde, determinadas por suas condições sociais, de educação, do ambiente no qual se desenvolvem e percepções que possuem sobre sua saúde reprodutiva e sexual8.
Sofrimentos afetivo-culturais
Diante da gestação, as mulheres revelam sentir satisfação e felicidade, pela concretização do desejo de ter um filho, a partir de um ideal social de maternidade que possuem. Mas, além disso, também manifestam inseguranças, medos e ansiedade, diante do imponderável.
Estou feliz, porque filho é sempre bem vindo, é sempre bom, mas também um pouco preocupada, com medo do que possa acontecer até o final da gestação, mas assim, estou feliz, estou contente, estou aguardando ansiosa, mas com medo, psicologicamente bem com medo (Rosa, 33 anos, G2, P1, portadora de hipertireoidismo).
O diagnóstico de maior risco, quando informado à mulher, produz sofrimento, por seu possível impacto especialmente na saúde do filho.
[...] Na hora que o médico falou que minha gestação era de risco para o bebê eu fiquei desesperada, chorei bastante, porque, até então, eu não entendia o que era. Aí, depois que eu vim para cá (serviço especializado), eles me explicaram qual era o risco. Aí fiquei mais tranquila (Nigella, 34 anos, G3, P2, diabetes gestacional).
O sofrimento da mulher é maior quando ela não tem espaço, no serviço, para conversar, expressar-se e melhor entender o que o diagnóstico significa. A banalização, pelos profissionais, da necessidade de conhecimento das grávidas reforça a sua insegurança.
A gravidez se faz acompanhar por várias mudanças - sociais, familiares, físicas, intersubjetivas. Atividades habituais da mulher são revistas; muitas vezes projetos são interrompidos; surgem novas demandas familiares. Tais mudanças, frequentemente, vêm acompanhadas de preocupações, medos, tensões, conflitos, culpas, dentre outros sentimentos.
Com o diagnóstico de gestação de maior risco esses sentimentos tendem a se intensificar, pois, além do problema médico, muitas vezes inesperado, aparecem exigências e dificuldades novas, relacionadas aos problemas, às suas consequências e aos cuidados necessários.
Estou preocupada pela gestação ser de risco, por eu ficar sozinha, a maior parte do tempo, em casa, e ter alguma crise (crise epilética). Isso tudo gera preocupações [...] Então, é preocupante pelo fato de poder cair, machucar, ou então, começar a ter isso (crise epilética) e não ter ninguém por perto, acontecer um sangramento, alguma coisa desse tipo (Margarida, 19 anos, primigesta, quadro epiléptico prévio à gestação e atual).
[...] eu andei um pouquinho, mas cansa, dá muita dor nas costas, e eu estou muito preguiçosa, durmo demais. Comer também a gente come demais, e tem que controlar, e não consegue... Eu estou comendo muito salgado [...] (Flor-de-Lis, 29 anos, G2, P1, deficiente visual, histórico de óbito neonatal anterior e hipertensão arterial atual).
Estudo com o objetivo de obter critérios para construir intervenções de enfermagem com gestantes de maior risco, feito com dez mulheres colombianas, aponta a presença de estresse e de sentimentos de ambivalência entre elas. Por um lado, o entusiasmo com a gravidez e, por outro, desiquilíbrios com as mudanças que afetam a sua qualidade de vida8.
Ao abordar vivências da gravidez de alto risco, pesquisa feita em Divinópolis, Minas Gerais, aponta que a mulher sente-se desestabilizada ao saber que está gerando um filho em situação de maior risco. O impacto que a notícia promove, a necessidade de (re)organização da vida e a privação de certos recursos associam-se à insegurança e ao medo. Mulheres se sentem vulneráveis, temem morrer, receiam a morte do filho, o nascimento prematuro e deformidades, ainda que tenham alguma confiança no sucesso da experiência10,11.
Esse mesmo estudo, ao retratar a relação entre essas mulheres e uma equipe de saúde, encontrou que, a atenção dos profissionais, para esclarecer dúvidas e dar orientações detalhadas, ameniza aqueles sentimentos. Com o diálogo em torno do diagnóstico e das ações assistenciais as mulheres, comumente, se sentem mais seguras10,11.
Também ações educativas sistemáticas podem minimizar os medos, as preocupações, as culpas, os conflitos, as dificuldades de gerir as mudanças. Elas podem propiciar, às mulheres, a oportunidade de falarem de si, de expressarem necessidades, sentimentos e preocupações. Os profissionais devem tratá-las com compreensão, no contexto de tensões que surgem entre as áreas pessoal, interpessoal e social. Para isso, precisam conhecer e considerar as condições psicossociais e a cultura que influem na maneira como elas experimentam e lidam com a gravidez e os problemas8.
Dificuldades da vida pessoal e familiar: aspectos socioculturais e econômicos
Em algumas situações, mulheres não se veem com condições pessoais para terem um filho ou para dar conta das novas tarefas que mais um filho lhes "exigirá", em um contexto de divisão do trabalho do âmbito privado entre homens e mulheres:
Não me sinto preparada, porque eu acho que ainda estou nova para ter um filho, 22 anos não é bom (Orquídea, 22 anos, primigesta, sorologia IgG e IgM positiva para citomegalovírus).
Quando era só um, foi bem mais fácil. Agora esses dois (gestação gemelar). Eu não sei como vou fazer, para criar dois de uma vez, do mesmo tamanho. Os outros são três, só que, assim, cada um é de uma idade diferente. Então, é diferente. Esses dois eu não sei como vou fazer [...] (Girassol, 27 anos, G4, P3, gestação gemelar).
Elas se defrontam com dificuldades para contornar problemas que surgem, face às condições pessoais e familiares que dispõem em um meio de menor proteção social. Para se deslocarem para o serviço especializado, necessitam de viabilizar alternativas para o cuidado de seus filhos, durante a sua ausência do domicílio.
Muitas coisas eu tive que deixar de fazer. Deixar meus filhos em casa pra poder vir (ao serviço especializado) e muitas coisas também que é da diabetes, como: eu não posso pegar peso, tenho dificuldades nos serviços de casa. Mas aí eu tenho que cumprir o que eles (profissionais de saúde) pedem, porque não adianta eles falarem e eu não cumprir (Dália, 31 anos, G6, P4, A1, diabetes e hipertensão arterial, pré-existentes e atuais).
Há mulheres que precisam ampliar o número de contatos com os serviços de saúde (ESF e hospital) e, para isto, têm que reorganizar as atividades da casa pelas quais são responsáveis. Frente a essa exigência sentem cansaço e tensão.
Alterei (rotina), porque eu tenho que vir toda semana aqui (serviço especializado), e toda semana no posto lá. Então, fica cansativo, bem pesado, ficar vindo toda semana aqui. Então, alterou bastante [...] Além disso, você tem que entrar em uma dieta, cortar açúcar, refrigerante, massa, tomar insulina. Eu tenho feito isso, a dieta e tomar a insulina (Nigella, 34 anos, G3, P2, portadora de diabetes gestacional).
A situação requer, ainda, mudar hábitos cotidianos de repouso, atividade e alimentação, com implicações pessoais, para toda a família e para as finanças. As demandas novas de cuidado ampliam os gastos, e elas nem sempre dispõem de recursos financeiros para supri-los.
[...] Eu já não era muito de comer. Comia de vez em quando, no almoço, mas muita verdura. Não sou muito de comer arroz. Agora, na gravidez, eu não estou conseguindo comer arroz, feijão, é mais verdura e carne. [...] Tem dia, que você não quer comer isso e quer comer aquilo, mas vai pesando, porque, hoje em dia, fruta e verdura são o que está mais caro. Então, pesa bastante no bolso (Orquídea, 22 anos, primigesta, sorologia IgG e IgM positiva para citomegalovírus).
As mulheres do estudo convivem com condições sociais adversas. Todas residem em áreas pobres e com pouca estrutura de serviços. Dez moram com seus companheiros, mas uma ainda reside com os pais e irmãos e outra apenas com uma filha. Somente cinco delas têm casa própria, as demais moram de aluguel ou em casa cedida. Quatro possuem emprego remunerado; duas o interromperam com a gravidez e à atividade escolar; e cinco encontram-se desempregadas. Todas têm um grau de escolaridade reduzido, entre o ensino fundamental incompleto (quatro) e o ensino médio incompleto (cinco) e completo (três). Quatro delas gestam pela primeira vez. Dentre as multíparas, três têm experiências gestacionais anteriores negativas, com a morte do companheiro, com patologias e o óbito do filho.
O problema médico que portam, a carência de informações sobre a própria saúde, a dificuldade de se movimentar com a independência possível, medos, tensões e outros sentimentos entrelaçam-se com outras limitações da vida das mulheres - a dificuldade de conciliar o cuidado da casa, da família e de si, condições culturais e socioeconômicas deficitárias, falta de apoio amplo dos serviços de saúde e de outros serviços sociais.
Olhar essas questões pelo ângulo das vulnerabilidades, e superar o exclusivo raciocínio de risco, implica identificar os aspectos e as condições que podem comprometer a saúde das mulheres e, ainda, reconhecer o entrelaçamento que há entre eles, e que os mesmos tanto afetam a sua saúde física e emocional, quanto limitam as suas possibilidades de tomada de decisão e de cuidado de si.
O conceito de vulnerabilidades abarca as diferentes dimensões das experiências vividas, relativas às necessidades, à atenção dos serviços de saúde15 e à proteção social. Refere-se à totalidade articulada de aspectos individualizáveis e de características próprias a contextos e relações socialmente configurados, que sobredeterminam os primeiros2,15.
Promotores de vulnerabilidades abarcam, além de condições de pobreza, vitimizações, fragilidades, inseguranças, contingências, desproteção, que as pessoas/famílias enfrentam em sua trajetória de vida, por imposições sociais, econômicas e políticas. É onde as pessoas vivem que carências, potencialidades e mecanismos de proteção e desproteção social manifestam-se. Isto é, em seus espaços de vida lhes são dadas, ou não, respostas às suas necessidades16. Embora esses aspectos não tenham sido tratados, neste estudo, se quer salientar que, da perspectiva das vulnerabilidades, além de apreender problemas médicos e necessidades expressas, no caso, por mulheres com maior risco gestacional, é preciso também identificar os recursos que elas acessam onde vivem, ou seja, a rede de proteção e de acesso a direitos que possuem.
Assim, para operacionalização de práticas assistenciais, nessa perspectiva, é preciso instaurar outro olhar e outros contextos assistenciais, regidos por práticas de saúde ampliadas, individuais e coletivas, que permitam aos serviços de saúde aproximar-se do conjunto diverso de questões nas quais se situam as necessidades de saúde15 das mulheres. A qualidade de vida destas não é apenas um reflexo de escolhas, de sentimentos e percepções, mas também resultado de políticas e situações sociais a elas impostas.
É importante que os profissionais do pré-natal aproximem-se da realidade de vida das mulheres com uma gestação diagnosticada de maior risco, apreendendo e compreendendo não só as implicações da nova situação para a sua vida e a vida de sua família, mas ainda as condições que possuem para administrá-la e às decorrentes suscetibilidades que elas produzem.
Relevo de ocorrências médicas como objeto de cuidado pré-natal
Embora as mulheres do estudo reportem-se a eventos não médicos de suas vidas - de ordem afetiva, cultural e social - que influem em sua saúde e cuidado, não os relacionam, diretamente, às práticas profissionais dos serviços de pré-natal. Estes são apreciados, sobretudo, em função de suas ações de controle dos problemas médicos que possuem. Assim, avalizam a perspectiva de risco priorizada na assistência recebida.
A gestação com agravos é uma vivência concreta, acompanhada de dificuldades, necessidades e sofrimentos que se expressam em seus corpos, e os cuidados médicos especiais são essenciais à sua superação. Então, com base nos problemas médicos vividos, nas alternativas de cuidado existentes e em seus efeitos, conhecidos ou esperados, as mulheres constroem aquela referência e agem com base nela.
O diagnóstico de maior risco gestacional, associado a um dado problema médico, é incorporado pelas mulheres como o que traduz as suas necessidades diante dos serviços de saúde. Desse modo, reconhecem o pré-natal especializado como o espaço de cuidado apropriado.
Sim, com certeza (concordando com o diagnóstico médico e o encaminhamento ao serviço especializado), por causa do medo que eu tive na primeira gestação; do risco, que eu também corro agora; por causa do hipertireoidismo. Então, concordei fazer esse acompanhamento mais de perto, no hospital [...] (Rosa, 33 anos, G2, P1, hipertireoidismo).
No geral, as mulheres mostram-se satisfeitas com a assistência recebida, tanto na ESF quanto no serviço de referência. Os seus critérios de julgamento de ambos são basicamente os mesmos, e abarcam aspectos relacionais, procedimentos de rotina, acesso a informações/explicações nos atendimentos e acesso fácil aos serviços.
No pré-natal, mulheres avaliam se são "bem tratadas" pelos trabalhadores e se obtêm explicações que consideram importantes, a respeito dos motivos do encaminhamento ao serviço especializado, de suas condições de saúde e do filho, dos achados dos exames, e explicações para as dúvidas e indagações.
[...] Eles (equipe da ESF) me trataram muito bem, me informaram também muito bem [...] Ela (médica da ESF), me explicou certinho porque eu estava vindo (para o serviço especializado), que era importante eu vim, por causa do neném. Então, fui bem informada, ela me explicou bem (Dália, 31 anos, G6, P4, A1, diabetes e hipertensão arterial, pré-existentes e atuais).
Eles (trabalhadores do serviço especializado) são bons, tanto a menina que fica aqui (recepção) como a que mede a pressão; são bem simpáticas, as médicas são bem atenciosas com a gente [...] (Girassol, 27 anos, G4, P3, gestação gemelar).
Dão valor a procedimentos do protocolo de atenção pré-natal, como a coleta de informações/de queixas, o controle de pressão arterial e peso, a avaliação do abdômen gravídico, a ausculta do bebê, os exames laboratoriais. Além disso, apreciam a proximidade do serviço e a agilidade do atendimento.
Eu ia às consultas, aí ela pesava, fazia os exames, perguntava como eu estava, olhava o coração do neném, olhava minha barriga, conversava comigo [...] Eu achava bom, porque era pertinho de casa, então era bom [...] Lá no posto eu tenho mais amigos do que profissionais, conheço todo mundo, desde a menina que faz a limpeza até o guarda. Então, são todos gente fina, não tenho o que reclamar de ninguém, desde a vacina que eu tomava, o exame que eu precisava fazer, os encaminhamentos de exames que precisava fazer e lá (ESF) não faz, as meninas (recepcionistas da ESF) marcavam para mim, as meninas lá são muito boas (Girassol, 27 anos, G4, P3, gestação gemelar).
No pré-natal especializado destacam o acesso a recursos que a ESF não possui, certos exames diagnósticos, o atendimento em qualquer dia ou horário e a imediata internação, se necessária.
Eu gosto mais daqui (serviço especializado), porque aqui tem mais recursos, o postinho quase não tem recurso. Aqui é um hospital grande, então tem mais recursos [...] Por exemplo, minha colega pegou a doença do gato e ela está grávida, aí ela vai fazer aquela ultrassom morfológica, diz que é caríssima, e isso ela conseguiu aqui [...] Até os próprios profissionais do postinho sempre falam se você tiver um sangramento você corre para o hospital [...]. Então, aqui é melhor (Flor-de-Lis, 29 anos, G2, P1, deficiente visual, histórico de óbito neonatal anterior e hipertensão arterial atual).
As mulheres dão preferência ao serviço especializado, por sua capacidade e agilidade de investigação e intervenção nos problemas gestacionais. O acompanhamento conjunto de ambos os serviços é considerado dispensável, embora algumas delas mantenham contatos sistemáticos com os dois, pela importância dada também ao vínculo construído com os profissionais da ESF.
No cuidado à sua saúde destacam as práticas médicas recomendadas: ida regular às consultas, realização dos exames prescritos, uso da terapêutica medicamentosa e adoção de comportamentos aconselhados (alimentares, de atividade e repouso, entre outros).
Estou tomando o sulfato ferroso, e comendo muito feijão, muita beterraba. Não é que sou anêmica agora, antes de eu engravidar eu sempre tive anemia. Quando a gente engravida, a imunidade da gente sempre fica mais baixa, aí precisa comer mais e tomar os remédios (Violeta, 17 anos, primigesta, sangramentos vaginais irregulares).
Contribuem para as percepções e práticas das mulheres vários fatores entrelaçados, internos - ligados às experiências, às sensações e aos sentimentos - e externos, tais como os grupos sociais aos quais pertencem; os ambientes em que vivem; a exposição a determinados problemas17.
Os critérios de julgamento dos serviços de pré-natal utilizados são frutos da forma como as mulheres percebem, dentre outros aspectos, o que cabe a eles, com base em ações, recursos e respostas que neles obtêm, no contato com a leitura médico-científica, reinterpretado, por outras leituras e, oportunidades educativas críticas e de exercício de direitos.
Os significados dados à própria saúde e as soluções que as mulheres admitem têm estreita relação com as características das práticas predominantes em saúde. Nestas, o fenômeno saúde é relacionado, sobretudo, ao bom funcionamento orgânico do corpo; aparta-se a pessoa do seu ambiente de vida, de suas experiências, dos eventos sociais e valorizam-se, em especial, ações clínicas de controle preventivo-curativo.
A demanda é socialmente construída e encontra-se, em certa medida, relacionada ao perfil de oferta dos serviços de saúde e à forma como, nestes, se processam a produção do cuidado e as relações entre profissionais e usuários18. Esses influem, então, no modo de as mulheres compreenderem exposições, fragilidades e necessidades, e como estas podem ser enfrentadas. Então, os critérios adotados por elas possuem estreita correlação com o que é priorizado na atenção à saúde reprodutiva no modelo biomédico, com as inter-relações nele presentes e, com os seus limites históricos (por exemplo, em torno do acesso a serviços/ações de saúde).
Isso não significa que a leitura das mulheres a respeito do que se passa com elas e sobre os cuidados dos quais necessitam sempre convirjam com a leitura tradicional dos serviços/profissionais. As percepções sobre a saúde, os problemas, as suas causas e os cuidados formam-se, também, a partir de um campo simbólico que as grávidas partilham em seu meio sociocultural, a partir do qual formam referências próprias. Isto é, a abordagem médica da situação vivida pelas mulheres é reinterpretada a partir de outras referências. Dessa forma, há discordância do diagnóstico profissional, embora não se fuja do reconhecimento da vivência do agravo.
Para mim, eu acho que é baixo risco (a própria gestação). Mas, por causa da epilepsia, de ter algum problema, a enfermeira do posto de saúde preferiu me encaminhar (Margarida, 19 anos, primigesta, quadro epiléptico prévio à gestação e atual).
Embora as mulheres do estudo esperem dos serviços de pré-natal, ações médicas tradicionais de cuidado à saúde, de forma similar à adotada neles, também se movimentam na busca de recursos para as suas outras necessidades. Nesse sentido, veem na família (nuclear e ampliada) e na rede social e comunitária, importantes fontes de cuidados, na esfera afetiva, do trabalho e finanças.
Suas famílias as ajudam em atividades cotidianas e em questões de ordem emocional e financeira. As acolhem e as auxiliam nas tarefas domésticas, no cuidado dos demais filhos, em dificuldades financeiras e, no acompanhamento ao serviço especializado.
As mulheres também acionam outros apoios de sua rede de relações - a ajuda de amigos, de conhecidos, de colegas de trabalho, de integrantes da instituição religiosa que frequentam, bem como lançam mão do exercício da fé que professam.
Eu peço para Deus me ajudar, porque eu acho que nem todo mundo está preparado para ser mãe. Eu acho que é Deus quem capacita a gente para ser mãe [...]. As irmãs da igreja também me tranquilizam, meus amigos, todos me dão apoio (Flor-de-Lis, 29 anos, G2, P1, deficiente visual, histórico de óbito neonatal e hipertensão arterial atual).
Eu moro de aluguel, a dona da casa, por eu ser nova, tem aquela preocupação de saber como que está, se eu estou bem, se estou precisando de alguma coisa, se estou passando bem (Margarida, 19 anos, primigesta, quadro epiléptico prévio e atual).
Quanto menos extensa e fortalecida a rede social familiar e comunitária, mais vulnerável a mulher pode se encontrar. O mesmo ocorre quando os serviços de saúde/profissionais distanciam-se da abrangência e especificidade das necessidades com implicações na saúde das mulheres e deixam de se integrar ativamente às ações dessa rede.
Os serviços de saúde e, em especial, a ESF devem dialogar e trocar com essa rede peculiar. Quando necessário, a mesma deve ser acionada e apoiada em seu potencial. Quando o serviço de saúde trabalha articuladamente com ela, amplia a abordagem focada apenas em riscos reprodutivos.
Os serviços locais de saúde podem atuar por meio de ações de educação em saúde para a mulher grávida, a família e comunidade; igualmente, organizando grupos de apoio e investindo na consolidação de redes específicas que apoiem a gestante8. Nessas ações, riscos e vulnerabilidades podem ser mais bem compreendidos; também as várias ações de cuidado necessárias; e o vínculo familiar e comunitário fortalecido. A base dessas ações deve incluir como as mulheres organizam as suas experiências de vida, saúde e cuidado, como sentem e dão sentido a elas; a sua exposição à promotores de vulnerabilidades; e potenciais de enfrentamento das situações adversas que possuem.
É importante que os profissionais reconheçam o potencial presente no papel ativo das mulheres no próprio cuidado à saúde gestacional. O trabalho das equipes de saúde deve apoiá-las para que o desenvolvam e à capacidade de pensar-se no contexto social e cultural, para cuidarem com mais autonomia da própria saúde, exigindo e apropriando-se dos direitos que têm.
CONCLUSÃO
Dar voz às mulheres que vivenciam uma gestação de maior risco permite apreender e compreender, a partir de suas experiências peculiares, a vivência de eventos médicos e não médicos aos quais se encontram expostas e, que podem gerar ou geram vulnerabilidades, a serem consideradas na boa assistência pré-natal.
No relato de suas vivências gestacionais, as mulheres expressam vários aspectos pessoais, intersubjetivos, familiares, institucionais e sociais entrelaçados, com consequências ou possíveis consequências nefastas à sua saúde, a de seu filho e família. Apesar disso, em sua relação com os serviços de saúde, dão valor, sobretudo, a ações e recursos tradicionais do pré-natal, em função do controle de problemas médicos. Contudo, têm na família e rede social local de apoio um importante suporte para os eventos não médicos que vivem e que afetam a sua saúde e práticas de cuidado.
O estudo contribui para o reconhecimento de insuficiências importantes no pré-natal da ESF e do serviço especializado, uma vez que estes se atêm às práticas direcionadas a problemas médicos. Embora a investigação não evidencie a diversidade de vulnerabilidades e de potencialidades da vida das participantes, bem como as várias teias que as definem, mostra que o reconhecimento e compreensão das mesmas são importantes à construção de ações que possam responder a necessidades de cuidados abrangentes.
Novos estudos devem explorar o que fragiliza e o que fortalece mulheres grávidas e, em especial, como esses aspectos podem ser apreendidos e abordados no pré-natal, por meio de ações individuais e coletivas. Incluir a perspectiva de vulnerabilidades nesses estudos pode produzir caminhos operacionais criativos à apreensão e interpretação dos determinantes sociais da saúde da mulher na clínica de pré-natal, assim, como à atuação sobre eles.
REFERÊNCIAS