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Ministério da Educação
CAPES

Volume 18, Número 4, Out/Dez - 2014



DOI: 10.5935/1414-8145.20140104

REFLEXÃO

Subalternidade de gênero: refletindo sobre a vulnerabilidade para violência doméstica contra a mulher

Laura Christina Macedo Piosiadlo 1
Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca 2
Rafaela Gessner 2


1 Universidade Federal do Paraná. Curitiba - PR, Brasil
2 Universidade de São Paulo. São Paulo - SP, Brasil

Recebido em 29/09/2013
Aprovado em 03/09/2014

Autor correspondente:
Rafaela Gessner
E-mail: rgessner2@yahoo.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Este artigo tem o objetivo de refletir sobre a violência de gênero praticada contra a mulher no espaço intrafamiliar, sobretudo, a relação entre a subalternidade de gênero no âmbito familiar e a vulnerabilidade para este tipo de violência.
RESULTADOS: A subalternidade de gênero e a violência contra mulher apresentam-se entrelaçadas na história e, conformam-se por meio da construção de gênero nas sociedades. As mulheres formam um grupo que é violentado, constantemente, e de diversas maneiras, como, agressões e abusos físicos, verbais e sexuais cometidos por parceiros ou ex-parceiros, familiares, amigos, desconhecidos, por instituições públicas ou pelo Estado.
CONCLUSÃO: Para que os serviços de saúde possam se antecipar às doenças e agravos decorrentes da violência doméstica é essencial compreender os aspectos relacionados à vulnerabilidade da mulher para a violência, como um indicador da iniquidade e da desigualdade social que supera o conceito probabilístico de risco.


Palavras-chave: Violência Contra a Mulher; Violência Doméstica; Identidade de Gênero.

INTRODUÇÃO

No processo de construção da vida social, os seres humanos estabelecem vários tipos de relações entre si e com a natureza. Ao estabelecerem relações de produção criam e recriam uma estrutura social fundamentada em relações de poder1. Uma das formas de impor o poder é por meio da violência. Conflitos de autoridade, lutas pelo poder, vontade de domínio, de posse e de aniquilamento do outro e de seus bens são exemplos de manifestações violentas que podem ser aprovadas ou não, lícitas ou não, dependendo das normas sociais e dos processos culturais em uma determinada localidade, em uma determinada época. Parece nunca haver existido sociedade totalmente sem violência, mas sempre existiram sociedades mais violentas que outras. Um passo positivo no desenvolvimento da humanidade foi perceber várias formas de violência como negativas, pois essa percepção acompanha o progresso do espírito democrático onde o emprego ilegítimo da força, seja ela física, moral ou política, contra a vontade do outro, passa a ser uma opressão2.

A violência pode ser caracterizada de acordo com os agentes que a exercem: policial, institucional, social, econômica, política, dentre outros, ou conforme a população que atinge (violência étnica ou racial). Também pode ser predicada de acordo com o local em que acontece. Violentar refere-se a constranger, coagir, usar a superioridade física sobre o outro, ou impedir o outro de manifestar seu desejo ou vontade, sob pena de ameaça, lesão, ou aniquilamento do outro ou de seus bens2. As mulheres formam um grupo que experimenta, constantemente, vários tipos de agressões e abusos físicos, verbais e sexuais cometidos por parceiros ou ex-parceiros, familiares, amigos, desconhecidos, por instituições públicas e até mesmo pelo Estado.

Os primeiros estudos sobre violência, em 1960, discutiam a violência intrafamiliar focando, principalmente, da criança agredida. A mãe, muitas vezes, aparecia como agressora sem que se contextualizasse a situação em que a mulher vivia. As questões de gênero não eram levadas em consideração. Uma década depois, o movimento feminista internacional criou o termo violência contra a mulher e, a partir desse momento, os estudos buscam apontar para a violência como uma violação dos direitos da pessoa, ganhando visibilidade cada vez maior nas áreas jurídica e policial. Na década de 1980, o campo da saúde adotou a terminologia violência doméstica, apontando para a intersecção entre e violência intrafamiliar e contra a mulher. Atualmente, a expressão violência de gênero, surgida na década de 1990, é usada para designar agressões e abusos decorrentes dos conflitos de gênero e da forma de lidar com eles, expressando a radicalização nas desigualdades existentes entre homens e mulheres3.

Na agenda da saúde, o enfrentamento da violência contra a mulher ocorreu pelo protagonismo do movimento feminista. "Com estratégias voltadas para criar consciência de gênero nos mais diferentes ambientes e instituições, esse movimento pressionou e continua a pressionar o setor saúde, para que atue ativamente e dê respostas concretas não apenas para o tratamento das lesões e traumas provenientes da violência, mas para agir nas causas, por meio de uma pauta positiva de ações"2:48.

Especificamente sobre a violência contra a mulher, o Ministério da Saúde reconhece que:

As desigualdades sociais, econômicas e políticas estruturais entre homens e mulheres, a diferenciação rígida de papéis, as noções de virilidade ligadas ao domínio e à honra masculina (...) são fatores da violência de gênero. Seu impacto não se observa somente no âmbito individual, mas implicam perdas para o bem-estar, a segurança da comunidade e os direitos humanos4:17.

No que se refere ao impacto do fenômeno, 25% dos dias de trabalho perdidos por mulheres costumam ter como causa a violência, o que reduz seus ganhos financeiros entre 3% e 20%. Filhos e filhas de mães que sofrem violência têm três vezes mais chances de adoecer e 63% dessas crianças repetem pelo menos um ano na escola, abandonando os estudos, em média, aos nove anos de idade. A violência ocorrida dentro dos lares representa quase um ano perdido de vida saudável, para uma em cada cinco mulheres, entre 15 a 44 anos, ocupando peso similar ao da tuberculose, do HIV, dos diversos tipos de câncer e das enfermidades cardiovasculares4.

Assim, entende-se que trabalhar tendo em vista a vulnerabilidade da mulher para violência doméstica é fundamental, para que os serviços de saúde se antecipem às doenças e aos agravos decorrentes da violência. A vulnerabilidade é um indicador da iniquidade e da desigualdade social que supera o caráter individualizante e probabilístico do clássico conceito de risco, ao apontar um conjunto de aspectos que vão além do individual, abrangendo aspectos coletivos e contextuais, que levam à suscetibilidade a doenças ou agravos considerando também aspectos que dizem respeito à disponibilidade ou à carência de recursos destinados à proteção das pessoas5.

A vulnerabilidade tem como propósito trazer os elementos abstratos associados e associáveis aos processos de adoecimento para planos de elaboração teórica mais concreta e particularizada, em que os nexos e mediações entre esses processos sejam o objeto de conhecimento. Diferentemente dos estudos de risco, as investigações conduzidas no marco teórico da vulnerabilidade buscam a universalidade e não a reprodutibilidade ampliada de sua fenomenologia e inferência6:1327.

Em vista disso, o foco desta reflexão é a violência de gênero praticada contra a mulher no espaço intrafamiliar - violência doméstica contra a mulher - mais especificamente, a relação entre a subalternidade de gênero no âmbito familiar e a vulnerabilidade para este tipo de violência.

Subalternidade entre gêneros e violência contra a mulher - entrelaçadas na história

A construção da masculinidade e da feminilidade se dá sobre os homens e as mulheres, sobre corpos biológicos masculinos ou femininos que estão imersos num social que transforma e são transformados por estas pessoas, por isso as relações sociais entre elas, inclusive as relações afetivas, vão se conformando legitimadas social e historicamente7.

Nesta construção social de papéis masculino e feminino, pesquisadores reconhecem registros de subalternidade feminina e de violência conjugal no Brasil desde o período colonial. À época

... os maridos deviam se mostrar dominadores, voluntariosos no exercício da vontade patriarcal, insensíveis e egoístas. As mulheres, por sua vez, apresentavam-se como fiéis submissas e recolhidas. Sua tarefa mais importante era a procriação. É provável que os homens tratassem suas mulheres como máquinas de fazer filhos, submetidas às relações sexuais mecânicas e despidas de expressões de afeto8:45.

O contexto de violência doméstica continuou imbricado na sociedade brasileira. Como é possível perceber em registros mais posteriores, no século XIX, o tratamento dado às mulheres continuava remetendo ao tratamento dado a um objeto:

Existia um alto nível de violência nas relações conjugais. Não só violência física, na forma de surras e açoites, mas violência do abandono, do desprezo, do malquerer. Os fatores econômicos e políticos que estavam envolvidos na escolha matrimonial deixavam pouco espaço para que afinidade sexual ou o afeto tivessem grande peso nessa decisão8:65.

E em outros registros percebia-se que no Brasil imperial, sob o pretexto do adultério, o assassinato de mulheres era legítimo. Apenas em 1916, o novo Código Civil passou a considerar o adultério de ambos os cônjuges razão para desquite. No entanto, a alteração da lei não modificou o costume de matar a esposa ou companheira9.

O crime passional, antes, era perdoado com base nos direitos superiores do homem sobre a mulher. O matador da mulher era visto com complacência, compaixão e, alguns eram absolvidos ao serem julgados pelo tribunal do júri, com base nesses direitos superiores. Quando os homens descobrem a traição por parte da companheira, transformam-se em juízes e executores9:88.

E os relatos sobre violência continuam no século XX. Na década de 1950:

... os homens tinham autoridade e poder sobre as mulheres e eram responsáveis pelo sustento de esposa e dos filhos. A mulher ideal era definida a partir dos modelos femininos tradicionais - ocupações domésticas e cuidado dos filhos e do marido - das características próprias de 'feminilidade' como instinto materno, pureza, resignação e doçura (...). As aventuras extraconjugais das mulheres eram severamente punidas8:161.

O processo de urbanização, vivenciado no século XX, e o acesso ao trabalho assalariado por parte das mulheres trouxe consigo uma grande mudança no comportamento feminino. Mas apesar da mudança de comportamento de parte da sociedade em direção a não aceitação de violências que, anteriormente, eram naturalizadas, crimes cometidos por maridos contra suas esposas continuavam a ser justificados como legítima defesa da honra. "Fumar, usar biquíni e assistir Malu Mulher nesses tempos podia acabar em morte"8:209.

Desconstruindo a banalização da violência doméstica contra a mulher

O período que se estende do final dos anos 1970 aos primeiros anos da década de 1980 marcou a transformação na forma de a sociedade brasileira olhar para a violência contra a mulher.

Num período de transição para a democracia, após 20 anos de regime militar, os direitos relativos à cidadania começavam a ser reconhecidos, porém, um discurso que falasse em igualdade de direitos para homens e mulheres mostrava-se insuficiente para sensibilizar a todos - sociedade e governo - na luta pelo fim da discriminação contra a mulher. Por isso, inicialmente, a fala articulou-se em torno dos homicídios, mas logo passou a revelar outras formas de violência que eram praticadas contra a mulher. O movimento de mulheres alertava que os homicídios não eram atos isolados, motivados por uma paixão descontrolada, mas o ato final de uma relação baseada em agressões, humilhações e ameaças frequentes e que termina em assassinato. Assim, agressões que eram socialmente aceitas e até mesmo justificáveis (violência sexual e violência nas relações conjugais, especialmente, os espancamentos, maus-tratos e ameaças), a partir de um dado momento, puderam ser denunciadas e combatidas10.

O tema foi ganhando corpo e passou a ser objeto de denúncias e de campanhas para a prevenção e a punição, atingindo status de problema público estimulando a formulação de políticas para o atendimento das vítimas, nos âmbitos da saúde, da segurança e da justiça, bem como a proposição de legislação que criminaliza o assédio sexual, alimentando as tentativas de tipificação penal da violência doméstica contra a mulher10. Dando visibilidade à luta pela condenação de maridos violentos, o movimento feminista passou a lutar pela igualdade e pelo fim da discriminação das mulheres.

A criação de uma delegacia especializada para o atendimento de mulheres constituiu, na década de 1980, a mais importante resposta às reivindicações de grupos de mulheres articuladas de forma autônoma ou vinculadas à Igreja, aos sindicatos ou partidos políticos que, favorecidos pelo movimento de redemocratização política que se instalava na sociedade brasileira, passaram a estabelecer diálogo com o Estado, cobrando a urgência de políticas que pudessem dar respostas institucionais de prevenção e punição à violência praticada contra a mulher10.

No contexto internacional, a construção histórica dos direitos das mulheres que havia se iniciado com a Década da Mulher (1975-1985) conheceu grandes avanços nos anos de 1990. A conferência de Viena (1993) enfatizou os direitos das mulheres como direitos humanos - universais, inalienáveis, indivisíveis - e reconheceu a violência contra a mulher como violação dos direitos humanos. Outras conferências - Cairo (1994), Beijin (1995) e Durban (2001) também contribuíram para os avanços no reconhecimento destes. A UNIFEM (United Nations Development Fund for Women), mobilizada pelas decisões de Beijin, desencadeou ampla campanha internacional para que os governos nacionais elaborassem planos com a adoção de medidas efetivas para a erradicação da violência contra a mulher10.

No entanto, em pleno século XXI, casos e mais casos de violência doméstica contra a mulher se acumulam nas fichas de notificação, tais como:

"Mantém união estável há 16 anos, tendo sofrido agressão desde o primeiro ano de casamento. Além de agredir as filhas verbalmente ele tem uma relação extraconjugal há três anos"

"Logo ao acordar o bebê chorou. O companheiro foi pegar a mamadeira e estava caída no chão. Ficou nervoso e começou a agredi-la por achar que não está cuidando bem da criança"

"Após a gravidez o parceiro mandou-a embora de casa, tirou o seu convênio de saúde e disse que irá prejudicá-la muito por ter engravidado"

"União estável há oito anos, tem dois filhos desta relação. Ele é alcoólatra, usuário de crack e a agride verbal e fisicamente. Na última agressão sofrida recebeu socos, chutes e tentativa de sufocamento"11.

Questionados sobre os motivos que os levaram a cometer atos violentos contra suas companheiras, os agressores reconhecem que estão relacionados às mulheres (presença de ações ou atitudes inadequadas da companheira, domínio da mulher sobre o companheiro e resposta à agressão física, verbal ou psicológica da companheira) relacionadas a eles (uso de substâncias químicas, situação financeira) ou a outros (interferências de pessoas alheias à relação conjugal). Do ponto de vista deles, alternam-se os papéis de agressor (enquanto protagonista na ação agressiva) e de vítima (ao responsabilizar a mulher quanto à motivação do comportamento agressivo). Em relação às causas, se mesclam no dia a dia, acumulam-se sob a forma de conflitos e eclodem em atos que configuram a violência conjugal do homem contra a companheira12.

O quadro pode ser ainda mais grave, pois:

Apesar do crescimento no número de pesquisas sobre violência contra a mulher e das estatísticas já apresentadas, ainda há a dificuldade de se precisar a real magnitude da violência, pois a relação conjugal, a familiar e o ambiente doméstico ainda são considerados aspectos privados e particulares, naturalizando e banalizando este fenômeno social cotidiano12:156.

Ainda há muito que ser feito...

Manter estereótipos ligados à concepção de gênero naturaliza as desigualdades entre seres humanos de sexos diferentes, bem como a subalternidade entre eles13. Esses estereótipos são um conjunto de crenças acerca dos comportamentos e características particulares do homem e da mulher que funcionam como esquemas cognitivos, controlando o tratamento da informação recebida e sua organização, a interpretação que se faz dela e os comportamentos a serem adotados. Há dois tipos: de papéis de gênero e de traços de gênero. Os de papéis rotulam as atividades que seriam adequadas aos homens e as que seriam adequadas às mulheres; e os de traços de gênero remetem a características psicológicas atribuídas, distintamente, a cada um dos gêneros. De acordo com esses estereótipos cabem ao homem tarefas e atividades relacionadas à esfera pública e ao trabalho remunerado, assim como a tomada de decisões referentes à manutenção socioeconômica da família; à mulher cabe a esfera privada, da família, ficando responsável por organizar o cotidiano familiar, as tarefas domésticas o cuidado com os filhos, com a saúde e com a educação14.

Um olhar mais apurado sobre dados estatísticos aponta por meio dos números a produção e a reprodução social das desigualdades sociais entre os sexos que, por consequência tem como um de seus desdobramentos a produção e reprodução social da subalternidade feminina, subalternidade esta que colabora para que a mulher esteja mais vulnerável à violência doméstica.

Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios15 revela que há diferenças de inserção no mercado de trabalho entre os dois sexos, expressas por diferenças na taxa de atividade e na de desocupação: a população economicamente ativa (PEA) é composta por 56,1% de homens e 43,9% de mulheres, considerando a população adulta existente no país 72,3% das pessoas do sexo masculino estão inseridos na PEA, enquanto 52,7% das pessoas de sexo feminino fazem parte da PEA. Apesar das mulheres lutarem para ingressar no mundo do trabalho remunerado, elevando sua escolaridade e tendo menos filhos, no mercado de trabalho nacional ainda têm um nível de ocupação menor que os homens. Permanece a histórica taxa de desocupação mais alta para as mulheres, além de continuarem ganhando menos que os homens.

A diferença de rendimento entre trabalhadores do sexo masculino e feminino continua evidente, com os homens representando 80% do total dos brasileiros com renda superior a 20 salários mínimos mensais. As cidadãs brasileiras têm o dobro de participação entre as pessoas sem renda no Brasil. Consequências da desigualdade são a menor possibilidade de consumo de bens e serviços e persiste a relação positiva entre mulher e pobreza15.

O retrato das mulheres chefes de família mostra que de 2001 a 2009, a proporção de famílias chefiadas por elas, no Brasil, subiu de aproximadamente 27% para 35% do total. São solteiras, separadas ou viúvas que tem filhos, solteiras sem filhos, morando sozinhas, entre outras. Uma das causas do aumento de mulheres chefes de família, além do aumento no número de relações maritais desfeitas e, da iniciativa própria em compor uma família monoparental, é que os homens morrem mais por causas violentas na faixa de idade em que constituem família. Em 2008, continuou inalterada a marca de 92% de masculinidade nas vítimas de homicídio e 82% nas de transporte. A violência contra os homens obriga as mulheres a se responsabilizarem sozinhas pelas famílias, atingindo-as, mesmo que indiretamente. Chama a atenção também à quantidade de mulheres casadas chefiando a família mesmo tendo um marido ou companheiro em casa, com ou sem filhos15.

A pobreza contextualizada articulada às relações de gênero mostra que as mulheres constituem um grupo crescente entre os pobres das sociedades latino-americanas, não sendo diferente na sociedade brasileira. Nesta lógica, a precariedade da situação social das mulheres tem sido considerada como resultante da divisão sexual do trabalho, de menores oportunidades na educação, de situações de trabalho instáveis e com menor remuneração, de níveis inferiores de saúde e bem-estar, de reduzida participação nas decisões (tanto no âmbito privado como no público, mas, especialmente, neste) e de limitada autonomia pessoal. Elas têm mais anos de estudo, se dividem entre o trabalho e os cuidados com a casa, ganham menos e trabalham mais14.

Os estereótipos de gênero também influenciam a forma como os homens convivem com a violência, enfrentando-a ou perpetrando-a. No que se refere à violência sofrida por eles, geralmente, são agredidos por outros homens, mas, normalmente, é um desconhecido ou uma pessoa não íntima. Pessoas do sexo masculino são os agressores em mais de 80% de todas as situações; são cerca de 90% do contingente carcerário; têm expectativa de vida menor que as mulheres e; morrem mais por causas externas, sejam acidentes de trânsito, homicídios, suicídios bem como de ingestão de álcool e outras drogas3.

Assim concorda-se que:

... ainda existem importantes lacunas e dúvidas com relação ao tema violência conjugal. Investigações a partir da visão da pessoa agressora ainda são escassas, no entanto, podem contribuir substancialmente para uma melhor compreensão desse fenômeno e para desvelar nesse universo a percepção de que a agressão exige mais do que a punição prevista em lei, ou seja, é importante que ocorra a instrumentalização de políticas públicas que incluam esse homem e que essa ação possa minimizar a violência praticada contra a mulher. (...) a solução da agressão envolve aspectos complexos que vão além da penalização, uma vez que ela afeta não só o indivíduo e as vítimas diretas, mas também a família e a sociedade como um todo12:154.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sintetizando o que foi exposto, na pós-modernidade têm sido detectados vários processos destrutivos da vida das mulheres, como o aumento na proporção de mulheres chefes de família sem equiparação dos suportes jurídicos e salariais oferecidos aos homens; o processo de subvalorização do trabalho feminino, a desvalorização social de profissões exercidas majoritariamente por mulheres, além da tripla jornada de trabalho para possibilitar a sobrevivência familiar e a maior dificuldade de acesso a bens de consumo e serviços. Problemas econômicos, preocupação com as crianças, dependência emocional, falta de apoio da família e de amigos e a esperança de que o homem vá mudar fazem com que as mulheres optem por permanecer em relações violentas. Este é um retrato de uma realidade que é carregada na tinta dos estereótipos de gênero.

É importante reforçar que, neste trabalho, não se acredita que a violência seja um traço de personalidade relacionado aos sexos masculino ou feminino, muito menos que características genéticas determinem que os homens sejam mais violentos e mulheres mais frágeis e submissas, pois isso seria reforçar um estereótipo muito comum, ainda usado para justificar o atual cenário de violência doméstica contra a mulher. Ao contrário, o que se quer com esta reflexão, é defender que a característica violenta vai se conformando com a construção do gênero que, por sua vez, está atrelada ao modo de viver e sobreviver em cada sociedade. Como já foi mencionada, a violência é social e historicamente construída. Naturalizá-la, portanto, é negar que existem formas de intervenção eficientes.

No campo da saúde coletiva, que tem por base a teoria da determinação social do processo saúde-doença, saúde e a doença são faces da mesma moeda. Não se nega o lastro biológico que cada indivíduo traz consigo, mas cada grupo social tem um potencial de desgaste ou proteção consequentes das formas de produção e reprodução social, por ele vivenciadas. Por isso optou-se por trabalhar na linha de raciocínio do conceito de vulnerabilidade.

As possibilidades de leitura das necessidades dos indivíduos, a partir do conceito ampliado de vulnerabilidade, como foi exposto no decorrer desta reflexão, expõem à Saúde Coletiva, formas de apoiar os sujeitos sociais no que diz respeito aos seus direitos. Por isso o conceito de vulnerabilidade constitui uma ferramenta eficiente para o desenvolvimento de novas estratégias de intervenção em saúde coletiva, capaz de favorecer o cuidado às pessoas, primando, pela multidisciplinaridade e pela interlocução com outros setores da sociedade.

Ao se olhar para a violência de gênero na perspectiva do plano coletivo, estruturando-se em um referencial ético-filosófico que busca a interpretação crítica dos dados, pautados na categoria gênero, busca-se distanciar a análise da violência doméstica contra a mulher, daquelas que se restringem à responsabilidade individual e à causalidade, e se aproximar da transformação das práticas em saúde e da construção de estratégias que possibilitem a conscientização e o empoderamento das mulheres para desconstruir a desigualdade imposta e reconstruir relações pautadas na equidade de gênero.

Diante disso, uma das possibilidades de conhecer a vulnerabilidade da mulher à violência pode ser por meio de instrumentos que possam identificar a subalternidade de gênero, em especial, no âmbito intrafamiliar e das relações afetivas. Acredita-se que, desta maneira, é possível ampliar as análises relativas à violência doméstica contra a mulher, fugindo da lógica da multicausalidade e trazendo à tona indicadores ou marcadores que contemplam o processo saúde doença em sua dimensão integral, possibilitando inovações na atenção à saúde e permitindo o atendimento às necessidades de saúde das mulheres que não se limitam àquelas de ordem física, clínica e biológica.

"As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito".

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