Volume 18, Número 3, Jul/Set - 2014
PESQUISA
Tuberculose multirresistente: integralidade da atenção à
saúde na perspectiva discursiva
Jaqueline Garcia de Almeida Ballestero
1
Ana Carolina Scarpel Moncaio
1
Laís Mara Caetano da Silva
1
Catiucia de Andrade Surniche
1
Mônica Cristina Ribeiro Alexandre d'Auria de Lima
1
Pedro Fredemir Palha
1
1 Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto - SP, Brasil
Recebido em 29/05/2013
Reapresentado em 23/04/2014
Aprovado em 24/04/2014
Autor correspondente:
Jaqueline Garcia de Almeida Ballestero
E-mail:
jaqueline.almeida@usp.br
RESUMO
OBJETIVO:
Analisar as vivências dos doentes de tuberculose multirresistente sob a
perspectiva da integralidade.
MÉTODOS:
Estudo analítico, qualitativo, realizado com doentes em tratamento. Foram
realizadas entrevistas semiestruturadas, transcritas na íntegra, interpretadas sob
o referencial da Análise do Discurso de matriz francesa.
RESULTADOS:
Notaram-se movimentos de sensibilização dos profissionais na busca da
integralidade, atendendo às necessidades emocionais dos doentes, porém
distanciavam-se desta em outros momentos. Quanto à organização da rede de atenção,
perceberam-se fragilidades: falta de vinculação e acolhimento do doente nos
serviços de saúde; falta de articulação entre os níveis de assistência;
responsabilização do doente para com o tratamento e diferentes contextos da
organização da Atenção Básica interferindo no acompanhamento do tratamento.
CONCLUSÃO:
Há necessidade de repensar a assistência ao doente de tuberculose
multirresistente, de modo a assisti-lo de maneira integral, tanto em suas
peculiaridades individuais relacionadas ao seu contexto de vida e processo de
adoecimento, quanto ao que tange à organização e coordenação da atenção.
Palavras-chave: Tuberculose Resistente a Múltiplos Medicamentos; Papel do Doente; Assistência Integral à Saúde; Integração de Sistemas.
INTRODUÇÃO
A Organização Mundial da Saúde (OMS) registrou nas últimas duas décadas um avanço importante na redução da mortalidade, incidência e prevalência da tuberculose (TB), nos países responsáveis por mais 80% da carga da doença no mundo. Entretanto, de todo, a doença continua preocupante, estimando-se uma incidência de 8,7 milhões de casos novos e 1,4 milhões de mortes em decorrência da TB1.
Um dos desafios envolvendo a TB relaciona-se com o desenvolvimento de resistência às drogas de primeira linha. Desta forma, a TB Multirresistente (TBMR) - definida como a resistência aos dois principais medicamentos de tratamento da doença (rifampina e isoniazida)2, é considerada uma ameaça aos avanços feitos para o controle da TB, mundialmente. Logo, é entendida como um importante problema de saúde pública, uma vez que dificulta a prevenção e tratamento da doença, além de contribuir para o aumento da mortalidade1,3.
Globalmente, estima-se que 3,7% dos casos novos e 20% dos tratados anteriormente serão TBMR. Em 2011, haveria 630.000 casos de TBMR entre os 12 milhões de casos prevalentes de TB1. Além disso, a OMS estima que houve, aproximadamente, 0,5 milhões de novos casos de TBMR no ano de 2011, e que 60% desses casos ocorreram no Brasil, China, Índia, Rússia e África do Sul1.
No Brasil, utiliza-se a classificação da TBMR de acordo com o tipo de resistência bacilar. Assim, essa doença pode ser considerada primária ou inicial - quando o doente é contaminado por bacilos multirresistentes; ou pode ser adquirida ou pós-primária, situação em que os sujeitos já passaram por tratamento para TB por pelo menos trinta dias2.
A resistência às drogas antituberculose pode ser resultado do uso impróprio dos antibióticos empregados e está relacionado com diversos fatores, entre eles: a administração de regimes de tratamento inadequados (prescrições inadequadas, uso incorreto e irregularidade na composição das medicações), a falta de adesão do doente ao tratamento, absorção intestinal deficiente, falta de suspeição de resistência primária (por avaliação inadequada da história de contatos e falhas no seguimento dos casos sensíveis), falta ou falha na provisão e distribuição dos medicamentos padronizados1.
O abandono do tratamento é considerado como um dos principais fatores para a resistência às drogas de primeira linha4. Nesse sentido, apontam que os problemas operacionais dos serviços de saúde (SS), principalmente, os relacionados com a organização das equipes de saúde, com ênfase à atuação do profissional perante o doente; como um dos componentes dificultosos para o sucesso do tratamento. Ainda salientam a importância de desenvolver a integralidade do cuidado a esse doente juntamente com a equipe.
Dessa forma, percebe-se a necessidade de atender o doente de forma integral, abordando seus aspectos individuais, sociais e considerando os SS de maneira a fortalecer o vínculo entre doente, profissional e serviço. Esses esforços implicariam na garantia de coerência com a realidade dos indivíduos com TB e com a integralidade como princípio do Sistema Único de Saúde (SUS)5. Sendo assim, é de grande importância a adoção de estratégias de seguimento próximas aos doentes durante a fase de tratamento6.
Uma característica que dificulta o tratamento dos doentes multirresistentes diz respeito ao acompanhamento destes por mais de um serviço de saúde. O Ministério da Saúde (MS), em consonância com a OMS, preconiza que os doentes sejam acompanhados em uma unidade de referência terciária, além de manter o Tratamento Diretamente Observado (TDO)3. Entretanto, na impossibilidade do serviço terciário realizar a supervisão do tratamento, seja por fugir de suas competências, pela distância geográfica da moradia dos doentes, das dificuldades do deslocamento diário à residência ou mesmo dos doentes irem ao serviço, cabe a Atenção Básica (AB) o acompanhamento por meio da supervisão do tratamento.
Nesse estudo, para a discussão referente ao cuidado integral do doente de TBMR, adotou-se como referencial teórico, a definição de integralidade trazida por Starfield7, a qual se entende como a prestação, pela equipe de saúde, de um conjunto de serviços que atendam às necessidades da população adscrita nos campos da promoção, da prevenção, da cura, do cuidado e da reabilitação; e a responsabilização pela oferta de serviços em outros pontos de atenção à saúde como elemento integrador dos aspectos biológicos, psicológicos e sociais, coordenados pela Atenção Primária à Saúde (APS).
Mendes8 defende o pressuposto de que para se alcançar a integralidade faz-se necessário a constituição e articulação em redes. Dessa forma, a organização dos serviços é orientada por relações não hierárquicas, voltadas a objetivos comuns e compartilhados por diversos atores. Tal entendimento possibilita a conformação de uma rede de atenção horizontalizada de distintas densidades tecnológicas e sistemas de apoio, sem ordem ou grau de importância entre eles.
Já por coordenação entende-se a existência de articulação entre a atenção prestada ao usuário, independentemente do local em que esta ocorra. Ademais, consiste na disponibilidade de informações sobre os problemas de saúde e percursos em diferentes serviços de atenção. Assim, a coordenação é afetada pela integração entre os diversos níveis assistenciais e pela relação existente entre os prestadores do cuidado7. Logo, os conceitos de integralidade e coordenação tornam-se complementares para análise de uma condição complexa como a TBMR.
A APS é compreendida, nesse estudo, como sinônimo de AB, o que pressupõe a garantia da atenção em outros níveis de complexidade como necessários, para conformar a APS como uma estratégia de organização dos sistemas de atenção à saúde e que orienta os recursos para as necessidades da população, mais especificamente no cuidado com o doente de TBMR5,9.
Desse modo, a integralidade da atenção é um eixo prioritário da investigação e avaliação dos serviços e dos sistemas de atenção à saúde, reconhecendo que nenhuma organização reúne a totalidade dos recursos e as competências necessárias para a solução dos problemas de saúde de uma população, em seus diversos ciclos de vida8.
A revisão da literatura evidenciou que a maioria dos estudos sobre TBMR tratavam de sequências gênicas do Micobacterium tuberculosis, efeitos adversos dos medicamentos, mutações genéticas, entre outros. Assim, nessa revisão procurou-se identificar estudos que tratassem da TBMR sob a ótica do doente e a integralidade do sistema de saúde. As bases de dados utilizadas para essa pesquisa foram LILACS (Literatura Latino Americana em Ciências da Saúde) e MedLine/PubMed (Medical Literature Analysis and Retrieval Sistem), utilizando os seguintes descritores controlados: Assistência Integral à Saúde; Tuberculose Resistente a Múltiplos Medicamentos; Papel do Doente, e, Integração de Sistemas.
Um único estudo se aproximou do objetivo da busca, ou seja, tratou da implantação do TDO para pacientes soropositivos, a fim de evitar a transmissão de TBMR. Nesse estudo, algumas barreiras foram identificadas no que diz respeito ao tratamento, tais como a adesão do paciente, a eficácia de identificação do paciente e continuidade nos cuidados10. Observa-se uma lacuna na produção científica entre a integralidade e o cuidado com o paciente de TBMR, assim como a compreensão dos fatores relacionados ao tratamento e à coordenação dos serviços.
Ao focar a relação entre integralidade e o cuidado com o paciente de TBMR, não se busca mostrar uma relação de causa e efeito, mas aprofundar o conhecimento que se tem, no que diz respeito ao tratamento e à coordenação dos serviços no acompanhamento dos doentes sob o eixo da integralidade.
Diante do exposto, para guiar o presente trabalho de investigação, formulou-se a seguinte questão: Quais os sentidos produzidos pelos doentes de TBMR em tratamento na rede de atenção à saúde?
Assim, o objetivo deste estudo foi analisar as vivências dos doentes de TBMR sob a perspectiva da integralidade da atenção.
MÉTODO
Trata-se de um estudo analítico, transversal, de natureza qualitativa, realizado no interior do Estado de São Paulo, em um dos sete Centros de Referência Ambulatorial para tratamento da TBMR, que a efeito desta investigação será identificado como "Hospital Jardim". Este serviço conta com o atendimento aos casos multirresistentes desde 2000, e em 11 anos de funcionamento atendeu a 44 doentes.
A amostra da presente investigação foi composta pelos doentes adultos (maiores de 18 anos), que iniciaram o tratamento até janeiro de 2011, estavam fora do sistema prisional e não apresentavam problemas cognitivos diagnosticados. Assim, foram selecionados 12 doentes. Quatro deles foram excluídos pelos seguintes motivos: procedência de municípios distantes e difícil contato durante as consultas ambulatoriais, e recusa na participação do estudo. Sendo assim, compuseram a amostra oito doentes de TBMR.
A produção dos dados ocorreu no período de março a maio de 2012, sendo quatro no serviço de saúde e as outras nos domicílios dos doentes, de acordo com a disponibilidade dos sujeitos e pesquisadores. Para tal, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com base em um roteiro de entrevista destinado aos sujeitos, composto por questões norteadoras que visavam compreender a história de vida do doente; a história da doença na sua vida e em sua família e comorbidades; possíveis histórias de abandono ou irregularidade no tratamento e seu percurso pelos diferentes serviços de saúde. Cabe ressaltar que a opção pela entrevista semiestruturada se deu pelo fato dessa consistir, como uma técnica que possibilita flexibilização na condução e absorção dos temas e outros aspectos relevantes em torno do foco principal do estudo11.
As entrevistas foram registradas em gravador digital, posteriormente transcritas, sendo que as informações provenientes compuseram o material empírico explorado. A organização do mesmo se deu por meio do software Atlas. Ti versão 7.0. Para análise e interpretação dos dados, utilizou-se o referencial teórico-metodológico da Análise do Discurso (AD), de matriz francesa, a fim de trabalhar com a compreensão e produção dos sentidos dos discursos12 dos doentes de TBMR.
Desta forma, buscou-se apreender, a partir das falas dos doentes, as condições de produção em que se dá o tratamento da multirresistência, bem como os fatores que colaboram à sua perpetuação junto ao sujeito e à sociedade. Utilizou-se o conceito de condições de produção em substituição da noção de "circunstâncias", acreditando que esse se refira de maneira mais profunda ao contexto que esse doente está inserido. As condições de produção relacionam-se tanto aos sentidos estritos e imediatos como também aos sentidos amplos, que consideram o cenário social, histórico e ideológico que caracterizam os discursos produzidos12.
O presente estudo foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (CEP EERP-USP), sob o protocolo nº 1487/2011, obedecendo, assim, aos aspectos éticos e legais preconizados pela Resolução Nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
As entrevistas foram realizadas com seis sujeitos do sexo masculino e dois do sexo feminino. A idade variou entre 28 a 67 anos, com média de 47,4 anos. Todos residiam em municípios da região, com média de distância de 100 km do serviço de referência (Hospital Jardim). Com relação à modalidade de tratamento, cinco recebiam o TDO, sendo supervisionado durante os dias da semana e autoadministrado aos finais de semana, dois faziam Tratamento Autoadministrado e um recebia o TDO integralmente (incluindo nos finais de semana). A fim de garantir o anonimato dos sujeitos, os mesmos foram codificados com uma letra (D) e um número que variou de 1 a 8. Da análise dos fragmentos dos relatos obtidos, emergiram três grandes temas: "O processo de adoecimento e a experiência da internação"; "A coordenação da atenção à saúde do doente de TBMR"; e "Estratégias para viabilizar a adesão ao tratamento da TBMR".
A partir deste momento, apresentam-se os fragmentos dos discursos dos doentes de TBMR entrevistados, que tinham como foco aspectos relacionados à integralidade da assistência e foram analisados discursivamente, com base na literatura relacionada à temática.
Todos os doentes apresentavam TBMR adquirida, sendo que dois deles estavam em seu primeiro tratamento para TB (D5 e D8), enquanto os outros já haviam realizado pelo menos um tratamento, em que os desfechos passaram pelo abandono (D7), mas a maioria havia obtido cura. Ainda que nenhum apresentasse coinfecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), seis deles conviviam com outras comorbidades, a saber: D2 - diabetes mellitus; D3 - micobacteriose atípica, tabagismo e etilismo; D5 - depressão, estenose de esôfago ainda em investigação, anemia ferropriva e desnutrição; D8 - asma, etilismo e tabagismo, D4 e D7 - tabagismo e etilismo. Nesse sentido, o processo de adoecimento por TBMR soma-se aos demais problemas de saúde dos sujeitos, aumentando seu sofrimento, além de, muitas vezes, representar o aumento da quantidade de fármacos ingeridos.
Além dos aspectos fisiopatológicos que permeiam o adoecimento por TBMR, cuja cura depende de um longo tratamento, muitas vezes, intermediado pela necessidade de internação hospitalar. Dentre os oito doentes entrevistados, sete já haviam sido submetidos ao regime de hospitalização. Ainda que a literatura científica sobre as internações para os casos de TBMR seja escassa, em um estudo realizado em um hospital universitário, a multirresistência esteve entre as principais causas de internação por TB, compreendendo 12,5% dos sujeitos internados, com tempo médio de internação de 29,3 dias13.
Analisando o discurso de D5, há possibilidade de relacioná-lo com sua vivência da internação:
Fiquei um mês eles não queriam me dar alta (...), porque eu vim embora com sonda [nasogástrica]. Eles colocaram sonda para passar os remédios, porque eu não estava engolindo (...) Não conseguia comer a comida de lá porque era horrível e eu estava com dificuldade pra dormir (...). Pedi que se eles me dessem alta, (...) porque eu sabia que iria ficar lá eu iria morrer de inanição ou depressão. 'Eu só sei que o mundo lá fora não é mais só branco, porque vocês [profissionais] entram aqui de vez em quando de mascará azul'. A única coisa [ruim] foi o hospital, (...) é o isolamento (...), eu fiquei deprimida, fiquei longe daminha família, longe dos meus amigos, longe dos meus cachorros, longe da minha casa. (D5).
Esse relato expressa uma situação de angústia, insatisfação e sofrimento frente à permanência em ambiente hospitalar. Há caracterização deste como um local que gera isolamento, distanciamento de seu ambiente familiar, além de seu apagamento em relação ao protagonismo na condução da situação, como o controle da alimentação. Nota-se por meio da formação discursiva "mundo lá fora não é mais só branco, porque vocês entram aqui de vez em quando de máscara azul" a simbolização do ambiente e de sua própria condição de saúde, que é pálida, triste. Contudo, a contraposição com a cor azul é ambivalente, pois apesar de estar relacionada à esperança em relação ao exterior, também colori um símbolo de seu isolamento: a máscara utilizada pelos profissionais responsáveis pelo cuidado. A internação hospitalar é uma situação na qual o sujeito se afasta do convívio familiar e passa a viver em um ambiente que lhe é estranho, com outras normas, pessoas e rotinas. Sendo que o processo de internação pode gerar sentimentos negativos nesses doentes, elencando aspectos como incapacidade, dependência e perda de controle sobre sua vida e espaços mais relevantes13.
Esse sujeito enfatiza a exacerbação de seus sintomas, materializados linguisticamente por meio da referência à "inanição" e à "depressão" e, em consequência disso, simboliza o sentimento de proximidade da "morte". Diante da situação inquietante vivenciada, D5 tenta reassumir seu papel de sujeito de seu processo de vida/saúde, reivindicando por sua necessidade de volta ao convívio familiar e tenta negociar sua alta hospitalar. Em contrapartida, a equipe médica responsável pela assistência é sensibilizada a adotar uma postura que se aproxima da visão integral do doente, pois, ao permitir seu retorno à residência, demonstra atenção aos aspectos psicológicos e sociais do sujeito, mesmo diante de uma situação clínica complexa em que há necessidade de via alternativa para alimentação e ingesta medicamentosa.
Outro sujeito diz:
Agora estou melhor, mas antes estava magra parecendo um palito, chorando, toda enrolada na coberta, em depressão e ele [esposo] comprando as coisas, dando apoio de marido, correndo de um lado para outro atrás de assistente social pedindo um beneficio para ela, porque eu não trabalho, não consigo lavar uma roupa, nem limpar a casa, ele que ajuda dentro de casa. (D6).
Quando D6 fala, suas formações discursivas aproximam-se às de D5, no sentido que partilham sentimentos de sofrimento, marcado linguisticamente pela recorrência da alusão à "depressão". Entretanto, esse sujeito diz a partir de condições de produção bem distintas às trazidas na fala anterior, pois se encontra em ambiente doméstico, próximo às suas relações afetivas e materiais, com apoio de seus familiares. A dificuldade emocional agora parece estar ligada à debilidade física frente ao processo de adoecimento por TBMR, que gera fraqueza e indisposição para realização dos afazeres domésticos, além de sua consequente alteração da rotina familiar.
A família pode representar para o doente, o principal suporte para o cuidado com a saúde. No caso específico da TB, quando há o apoio familiar, este possibilita o enfrentamento da doença, e é fundamental no sucesso do tratamento ao permitir que o indivíduo compartilhe suas dificuldades14.
Adiciona-se aos desafios enfrentados por esses sujeitos outro componente: a dificuldade financeira. Esta se trata de uma problemática de suma importância, tendo em vista que as diferentes formas de TB afetam sujeitos com idade economicamente ativa e, portanto, inseridos no mercado de trabalho15. Por muitas vezes, apesar de trabalharem, os vínculos são frágeis, expressos pela informalidade. Quando o indivíduo adoece, o mesmo não tem direito a benefícios como o auxílio doença, o que acaba por prejudicá-lo economicamente e acarreta prejuízos psicológicos e sociais. Na atenção à TB, existe a distribuição de incentivos como cestas básicas, vale-transporte e leite, que, quando bem gerenciados e distribuídos, se constituem como recursos que podem auxiliar na adesão ao tratamento e amenizar problemas relacionados às limitações financeiras desencadeadas pelo processo de adoecimento16.
Um doente relata:
Eles [profissionais da AB] perguntam a hora que eu saio daqui [hospital] (...) o que deu, e eu tenho que falar lá (...), por exemplo, por enquanto está dando tudo negativo os exames, não tá dando nenhum positivo. Tudo negativo. Ai eles me falaram hoje, ai eu passo para lá. (D8).
Os doentes de TBMR transitam por dois cenários distintos: a AB e o nível terciário de atenção. Esses SS assumem um papel bem distinto na efetivação do tratamento, enquanto cabe ao serviço de referência à prescrição dos fármacos, solicitação de exames e manejo das reações adversas, é papel da AB o acompanhamento do tratamento mais próximo ao doente e à sua realidade. Nesse sentido, o discurso de D8 é interpenetrado por sua vivência entre os dois SS, ao passo que descreve sua rotina, explicita seu papel na articulação da atenção recebida. A coordenação requer mecanismos de transferência de informações, sendo os métodos convencionais, os prontuários médicos e os sistemas de informação computadorizados. Porém, admite-se que na falta de um prontuário compartilhado entre os serviços, o doente possa assumir a tarefa de moderar as informações7. Contudo, é importante lembrar que esses fatos passam pelo julgamento de valores dos sujeitos, comprometendo a fidedignidade dos acontecimentos.
Na ordem do não dito, encontra-se outro aspecto importante: a posição que cada um dos serviços assume frente ao fluxo de informações relacionadas ao tratamento de D8. Por meio da marca linguística "passo", há o reconhecimento da AB como receptora das notícias produzidas pelo nível terciário. Tal percepção é materializada por meio da utilização da ficha de controle do tratamento - a qual é gerada pelos profissionais do serviço de referência no momento da consulta médica e contém a prescrição dos fármacos a serem administrados, distribuídos pelos dias de cada mês. Esse instrumento é fornecido ao doente pelos profissionais do nível terciário, e o doente deverá entregá-lo ao profissional da AB para que o preencha na ocasião da supervisão da administração medicamentosa. Pensando na coordenação da assistência necessária à atenção integral desses doentes, quando há apenas o repasse de condutas e normas, há comprometimento da articulação7 e negociação entre os serviços envolvidos, o que pode resultar em fragilidades e ocasionar prejuízos ao controle da doença.
Entretanto, por se tratarem de doentes procedentes de municípios diferentes, a AB assume diferentes formas de organização:
Tive que tomar lá no hospital [a medicação injetável], porque não tinha profissional para me dar lá, os profissionais [de referência] eu não sei onde estavam (...). Falei: "eu vim fazer aplicação, eu tenho essa injeção para aplicar e só isso", "você trouxe a receita?", "não", "mas sem receita não tem jeito", (...) "tem que ter receita" e isso e aquilo, então eu falei "mas gente, então se eu for embora agora com essa injeção eu não tomo remédio hoje (...) Faz mais de um ano que eu estou aqui fazendo esse medicamento". (...) As outras enfermeiras tiveram que esperar ele [enfermeiro responsável], mas se ele vai em um lugar que ele não pode voltar e de repente. Além de eu esqueça de tomar o medicamento que eu hoje lá fui lá. (D1).
Ao relatar um episódio ocorrido na unidade de saúde em que realiza o TDO, D1 reclama a falta de ser reconhecido, a ausência de vinculação com o serviço e prejuízo em seu acolhimento pela atenção municipal, a materializado em seu esforço em se lembrado pelos profissionais "Faz mais de um ano que eu estou aqui fazendo esse medicamento". Vale ressaltar que esse era o único doente de TB em tratamento no município de origem, entre os anos de 2011 e 2012. Com isso, podemos questionar a integralidade da organização municipal da rede de atenção, tendo em vista que a mesma não se mostrou eficaz para negociar e vincular esse sujeito ao serviço, não estruturando um mecanismo para atendê-lo em suas tão peculiares necessidades. Nota-se, assim, que a coordenação na internalidade do sistema de saúde municipal ocorre de maneira fragilizada, pois não há continuidade da atenção fornecida ao doente. Em estudo sobre a coordenação da assistência nos casos de TB sensível em Ribeirão Preto, encontrou-se prejuízo entre o fluxo de informações entre os serviços, caracterizando descontinuidade da atenção, com dificuldade por parte dos serviços em garantir os registros de informação17. Sabe-se que um sistema bem coordenado é aquele que integra informações provenientes dos diferentes níveis de atenção, com vistas à atenção integral do doente tanto de TB sensível quanto de TBMR. Quando as informações não se complementam, a integralidade da atenção torna-se frágil e limitada, tendo em vista que um dos envolvidos não conhece a história prévia do doente que acessa ao serviço e não tem, dessa forma, um arsenal de informações para repensar a assistência.
Ainda em relação à organização dos SS para assistência dos doentes de TBMR, temos:
Não, eles não vêm não no final de semana, é o irmão [que também passou por tratamento] que conta lá e prepara tudo. (D7).
No sábado e domingo elas vêm. Elas só não fazem o sorinho. Eu falo pra elas que não precisa, mas como é norma, ué. Para não prejudicar elas (...). Mas talvez, por eu tentar ajudar, e alguém ficar sabendo que elas não vieram no sábado e domingo, que eu tomei sozinha, pode até prejudicar elas. (D5).
Como se pode ver, os relatos acima pertencem a sujeitos distintos: D7 é do sexo masculino, ensino fundamental incompleto, lavrador e estava desempregado no momento da entrevista. D5, por sua vez, sexo feminino, tinha nível médio de ensino concluído, aposentada como profissional da equipe de enfermagem. É possível perceber que a modalidade de tratamento empregada para estes sujeitos é distinta. Ambos recebem TDO no domicílio, mas no caso de D7 este se dá apenas durante a semana, enquanto no final de semana tem o apoio familiar, ao passo que D5 recebe o TDO em seu domicílio todos os dias da semana, mesmo entendendo-se como sujeito capaz de gerenciar seu tratamento, o que não é feito devido à "norma" do programa e ao fato de não querer causar prejuízos aos profissionais que a atendem.
Enquanto D5 estava no primeiro tratamento para TB quando diagnosticada a multirresistência, D7 já se tratara por outras três vezes, sendo que em uma ocasião recebeu alta por abandono, além de ter sido contato domiciliar de outro doente de TBMR. Assim, esses sujeitos partem de diferentes condições de produção dos discursos que não se relacionam aos cuidados da AB. Com isso, torna-se evidente que a forma de realização do acompanhamento dos casos de TBMR não se relaciona com grau de autonomia, responsabilidade ou vulnerabilidade dos sujeitos e sim com o modo com que os serviços de AB conseguem se estruturar, nos diferentes cenários, para atender esses doentes.
Logo, após a definição da forma de acompanhamento do doente com TBMR, de acordo com os critérios municipais, não há flexibilização das rotinas, conforme percebemos ao analisar o fragmento a seguir:
Eu queria ver se as outras médicas tivesse condição de ir lá em casa aplicar injeção e eu tomaria o remédio em casa. Eu estou indo no posto todo dia e quando tá chovendo não tem sombrinha, o guarda-chuva lá não presta, arrebenta. E eu não posso toma chuvisqueiro. Quem tem esse problema não pode toma chuvisqueiro, não pode andar sem máscara. (D3).
Neste fragmento, podemos perceber as dificuldades relacionadas ao acesso ao serviço de saúde, expressas pelo deslocamento do doente até a unidade de saúde, configurando as condições de produção locais que evocam práticas de resistência, a partir do momento em que se faz contraponto ou que coloca os profissionais em condições de igualdade que precisa deslocar-se do seu espaço. "Eu queria ver se as outras médicas tivesse condição de ir lá em casa" - essas expressões linguísticas revelam, também, o que o sujeito silencia, que é a falta de negociação para o tratamento entre os doentes e profissionais de saúde, sugerindo ainda que há outras situações que podem interferir na continuidade do tratamento, como nas situações corriqueiras "não tem sombrinha" ou nas mais prescritivas "não pode andar sem máscara", que parece demonstrar suas dificuldades em ser percebido pela comunidade como alguém doente, que necessita do uso da máscara.
Dessa forma, é possível relacionar a fala de D3 com a de D5, visto que para ambos a forma de realização do TDO não é adequada. O discurso de D5 identifica a organização da atenção no nível local/municipal como aquela pautada na "norma", na protocolização de condutas. Essa ordem disciplinar dos SS, que atravessa os discursos dos doentes, explicita o quão complexo e peculiar é a forma que o tratamento supervisionado pode adquirir frente ao doente. A discursividade revela que os mecanismos, métodos, normas e funções adquirem um corpus de proposições que passam a ser assumidas pelos profissionais de saúde a tal ponto que independente da posição e papel social que institui ou destitui o sujeito doente, passa a ser desconsiderado por esses profissionais. Os protocolos, mesmo que em determinados momentos apresentem deslizes nas suas normatizações, podem se constituir como um dos elementos que colaboram para as condições de produção no acompanhamento do TDO, oferecendo linhas de fuga para situações como abandono, falência e outras negligências que colocam o doente na condição de resistência ao tratamento, oferecendo amplas condições, para que surjam novas complicações na resistência às drogas instituídas no processo terapêutico.
Há necessidade de que o TDO ultrapasse a questão da observação da ingesta medicamentosa, indo ao encontro das necessidades dos sujeitos doentes, emergindo em seu contexto de vida. Por esse lado, as autoras ressaltam que além de contribuir para a adesão ao tratamento, o TDO tem como desafio se firmar como ferramenta responsável pela reconstrução dos significados do processo saúde-doença, assim como o adoecimento por TB, possibilitando que a adesão se concretize como processo e não por imposição. Contudo, os profissionais e SS ainda necessitam avançar rumo à concretização de tal estratégia, restringindo seu caráter opressor.
CONCLUSÕES
O presente estudo tornou possível analisar os discursos produzidos pelos doentes de TBMR acerca do acompanhamento e tratamento contra a doença. Estes discursos, por sua vez, perpassaram por aspectos tanto biológicos, quanto psicológicos e sociais, todos intrínsecos ao processo do adoecer, à descoberta da doença, ao tratamento e ao acompanhamento do quadro apresentado. Ressalta-se que tais significados se interpenetram e constituem uma rede de sentidos relacionados ao processo de adoecer e conviver com a resistência às drogas antiTB.
As análises destacaram alguns movimentos de sensibilização dos profissionais frente aos problemas de diversas ordens que afligem os doentes. No entanto, perceberam-se certas fragilidades relacionadas à organização da rede de atenção para atendimento integral a esses sujeitos. Tais entraves podem ser caracterizados pela dificuldade de articulação entre os SS, (re)produzido pela tomada de decisões de maneira unidirecional e prejudicando a coordenação dos níveis assistenciais.
Nesse sentido, há situações de falta de vinculação da AB com os doentes atendidos, ocasionando a responsabilização isolada do usuário em situações, que esta deveria ser compartilhada entre doentes e profissionais. Além disso, os discursos produzidos remetem ao engessamento das posturas dos profissionais que presos a protocolos, abrem pouco espaço de negociação e adequação às particularidades de cada sujeito e contexto. Destacou-se, ainda, um descompasso entre as necessidades dos doentes e o modo de organização dos serviços, que por sua vez estruturam-se de diferentes maneiras de acordo com suas próprias necessidades.
As limitações do presente estudo se relacionam ao número de doentes entrevistados e à necessidade de ouvir os profissionais de saúde de ambos os níveis de atenção, para compor de maneira mais ampla todos os aspectos envolvidos nessas condições de produção do tratamento da TBMR.
Por fim, é de grande importância a realização de outras pesquisas focadas nesse tema, para a compreensão da problemática com profundidade, incluindo os SS envolvidos, de modo a identificar e refletir sobre ações que possam ser empreendidas para a promoção da atenção integral ao sujeito com TBMR.
REFERÊNCIAS