Volume 18, Número 3, Jul/Set - 2014
PESQUISA
Dialética de sentimentos do enfermeiro intensivista sobre o
trabalho na Terapia Intensiva
Élissa Jôse Erhardt Rollemberg Cruz
1
Norma Valéria Dantas de Oliveira Souza
1
Renata dos Anjos Correa
1
Ariane da Silva Pires
1
1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro - RJ, Brasil
Recebido em 17/07/2013
Reapresentado em 04/04/2014
Aprovado em 23/04/2014
Autor correspondente:
Renata dos Anjos Correa
E-mail:
enfaredacorrea@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Identificar a percepção dos enfermeiros intensivistas sobre o trabalho no cenário
da Terapia Intensiva e discutir fatores motivadores da permanência no trabalho em
Terapia Intensiva.
MÉTODOS:
A presente pesquisa, de caráter qualitativo-descritivo, tem como objeto a
percepção do enfermeiro intensivista sobre o trabalho numa Unidade de Terapia
Intensiva (UTI). A pesquisa desenvolveu-se numa UTI particular do Rio de Janeiro
com dez enfermeiros. A técnica de coleta foi a entrevista semiestruturada,
ocorrida de junho a agosto de 2008. Utilizou-se da análise de conteúdo para tratar
os dados.
RESULTADOS:
Os resultados revelaram que o enfermeiro intensivista tem afinidade com
tecnologia dura e gosta do cuidado direto ao paciente. Verificou-se que há
aspectos que resultam em prazer e sofrimento, o que revela uma percepção dialética
sobre o trabalho.
CONCLUSÃO:
Concluiu-se que este trabalho é, predominantemente, fator de prazer para os
enfermeiros devido ao status que o setor ocupa no ambiente hospitalar.
Palavras-chave: Saúde do Trabalhador; Trabalho; Enfermagem; Terapia Intensiva.
INTRODUÇÃO
O objeto deste estudo é a percepção do enfermeiro intensivista sobre o trabalho em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Esse objeto configura-se como um recorte da dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no ano de 20091.
O trabalho pode ser definido como "atividade resultante do dispêndio de energia física e mental, direta ou indiretamente voltada à produção de bens e de serviços contribuindo assim, para a reprodução da vida humana, individual e coletiva"2:341. Apesar dessa definição ser pertinente, acredita-se que a categoria denominada "trabalho" engloba também a inventividade, a capacidade de avaliação e de julgamento e as mobilizações subjetivas para a realização da tarefa, conjugando potencialidades cognitivas, motoras e psicológicas num processo contínuo e dinâmico3.
Nessa perspectiva, o trabalho interfere em diversas dimensões da vida em sociedade. Tal atividade humana incide na esfera social, econômica, política e cultural, ocupando centralidade na vida da sociedade contemporânea. O trabalho, por ocupar papel central na sociedade atual, também altera o processo saúde/doença das pessoas, promovendo saúde ou resultando em enfermidades.
No contexto atual, o trabalho vem se configurando como uma atividade penosa e causando sofrimento psíquico para uma multiplicidade de trabalhadores e/ou categorias profissionais. A partir do advento do neoliberalismo e da globalização, verifica-se que o trabalhador deve ser polivalente e multifuncional. Com isso, o ritmo laboral tornou-se cada vez mais intenso; subtraindo do trabalhador as pausas laborais; as condições de trabalho, principalmente, no contexto do serviço público, estão cada vez mais precárias, observando-se carência de recursos, humano e material; e as formas de contratação do trabalhador nem lhe garantem direitos nem asseguram uma estabilidade no trabalho4.
Ademais, as novas tecnologias aplicadas no trabalho têm requerido cada vez mais capacidade psicocognitiva dos trabalhadores; julgamento rápido e tomada de decisão; e capacidade de resistência aos imprevistos e à variabilidade do processo laboral. Além disso, a tecnologia desperta, nos trabalhadores fascínio, medo, estímulo ao saber e outras sensações semelhantes às de iniciantes ou novatos diante de situações novas e inusitadas5. Esses fatores também se somam para elevar a penosidade no trabalho.
Desse modo, o estresse ocupacional é uma realidade observada em diversas áreas e setores de trabalho, não sendo exclusividade dos profissionais que exercem altos cargos numa instituição de grande porte; o estresse ocupacional é, então, indiferente ao nível hierárquico em que se encontram, já que está diretamente relacionado às responsabilidades, cobranças, pressão laboral, competitividade, jornada de trabalho estafante, dentre outras características da globalização e do capitalismo neoliberal6.
No setor hospitalar, em especial nas Unidades de Terapia Intensiva com a centralização de recursos materiais e humanos com elevados padrões de qualidade (o que permite um atendimento pronto e eficaz), o estresse acomete o enfermeiro ao encontrar na realização de suas atividades uma constante expectativa quanto às urgências e às emergências atendidas. Além de vivenciar, frequentemente, situações de trabalho marcadas por variabilidades, imprevistos e incertezas7. Com isso, para que a meta do trabalho seja alcançada, é necessário que se façam regulações na execução das tarefas, adaptando-se às condições reais de trabalho, e tal situação caracteriza-se como estressante para muitos desses profissionais8.
É inegável que, entre o trabalho prescrito (tarefa) e o trabalho real (atividade de trabalho), existe um distanciamento causado por situações imprevistas ou não previstas pela organização do trabalho. Esse distanciamento define-se como 'variabilidade', ou seja, um conjunto de variações que podem ocorrer, normal ou incidentalmente, aleatoriamente ou não, tanto na produção quanto no fornecimento dos serviços ou entre os trabalhadores8,9.
O processo de trabalho é composto pela atividade adequada para um fim (o trabalho propriamente dito), o objeto de trabalho (a matéria sobre a qual se aplica o trabalho) e os meios de trabalho (instrumentos utilizados)10.
Ampliando essa composição, verificou-se que a organização do trabalho perpassa pela divisão das tarefas assim como pela divisão dos homens. Isso porque, com a divisão das tarefas, se prescrevem as cadências, as repartições de atividades e ações, enfim, o modo operatório, originando as hierarquias, os comandos, as relações de poder, as responsabilidades, caracterizando, então, a divisão dos homens10.
As situações de trabalho, em geral, são marcadas por imprevistos, variabilidades e incertezas, tornando inexistente a simples relação homem-tarefa, na qual a obediência restrita às normas estabelecidas pela organização prescrita do trabalho não asseguram a almejada confiabilidade do serviço realizado. Com isso, para que se alcance o objetivo do trabalho, frequentemente, é necessário que se façam adaptações à tarefa prescrita, tornando a execução do trabalho mais dinâmica e eficiente. Essas adaptações são identificadas como o trabalho real10. Para uma melhor compreensão da relação homem-tarefa e suas consequências para a saúde do trabalhador e para a produtividade, a ergonomia elaborou o já mencionado conceito da 'variabilidade'.
As situações de variabilidade no trabalho do enfermeiro intensivista são muitas e estão relacionadas às seguintes situações: (i) a interdependência do trabalho do enfermeiro com a conduta do médico; (ii) o agravamento do quadro clínico dos clientes; (iii) a necessidade de providenciar e operacionalizar exames diagnósticos a clientes que alteram seus quadros de saúde; (iv) a pouca eficácia na forma como se institui a comunicação entre os profissionais que compõem a equipe multiprofissional; (v) a introdução constante de novas tecnologias na UTI; e (vi) a tarefa mediadora da enfermeira entre médicos, clientes e equipe de técnicos de enfermagem7.
A variabilidade altera negativamente o processo saúde-doença dos enfermeiros que trabalham em terapia intensiva, gerando várias consequências negativas, como irritabilidade, elevação da pressão arterial, cansaço, dores, tensão muscular, envelhecimento precoce e estresse. Todavia, apesar das repercussões negativas em sua saúde, muitos enfermeiros intensivistas se mantém ativo no ambiente de trabalho7.
Dessa forma, considerou-se importante investigar a percepção que o enfermeiro intensivista tem acerca de sua realidade laborativa, dentro do contexto da Terapia Intensiva, em que se evidencia um caráter complexo, dinâmico e variável, acarretando a necessidade constante do enfermeiro se readaptar e superar tantas adversidades.
A partir da problemática pontuada, apresentam-se como objetivos: a) identificar a percepção dos enfermeiros intensivistas sobre o trabalho no cenário da Terapia Intensiva; e b) discutir fatores motivadores da permanência dos enfermeiros no trabalho em Terapia Intensiva.
METODOLOGIA
Esta pesquisa teve uma abordagem qualitativa e descritiva, desenvolvida numa Unidade de Terapia Intensiva de um Hospital da rede privada de saúde, situado no Município do Rio de Janeiro.
O critério de escolha desse cenário deveu-se ao fato da necessidade de coletar informações em um local que estivesse dentro dos padrões preconizados pelo Ministério da Saúde (MS). Dessa forma, informa-se que a UTI escolhida é reconhecida nacionalmente pela excelência no atendimento aos seus clientes e pela realização de pesquisas inovadoras de grande interesse à comunidade científica. Assim, a escolha por essa UTI foi proposital, pois foi relevante coletar as informações num local onde havia boas condições de trabalho, com um quantitativo de pessoal e material adequados para a realização da tarefa, e que as situações de variabilidade fossem de fato decorrentes da forma como se instituem a organização e o processo de trabalho, e não por questões de infraestrutura.
Os sujeitos da pesquisa foram dez enfermeiros (as) intensivistas, sendo três homens e sete mulheres em pleno exercício das atividades laborais, com atuação nessa UTI há pelo menos um ano. O critério de escolha sobre o tempo de atuação dos enfermeiros embasou-se na preocupação de que esses enfermeiros já tivessem apreendido a realidade laboral, tendo uma visão consistente da organização e do processo de trabalho. O tempo de atuação dos profissionais entrevistados foi de no minimo três anos e máximo de 19 anos. Também foi um critério de inclusão dos sujeitos o aspecto do voluntariado, sua aceitação livre e espontânea e a disponibilidade de tempo para fornecer as informações.
A técnica de coleta de dados foi a entrevista semiestruturada, composta pelas seguintes perguntas: 1) Há quanto tempo você atua em Terapia Intensiva?; 2) Como foi seu ingresso no contexto da Terapia Intensiva?; 3) Que significado tem este trabalho para você?; 4) Você se sente motivado a iniciar sua jornada diária de trabalho?; 5) Quais fatores motivam sua permanência na Terapia Intensiva?; 6) Você já precisou de licença médica durante seu tempo de atuação na Terapia Intensiva?; 7) A que fatores você atribui à manutenção da sua saúde diante da dinâmica de trabalho na Terapia Intensiva?.
A entrevista foi aplicada no período de junho a agosto de 2008. Para manter o anonimato dos sujeitos, utilizou-se uma codificação para cada entrevista, objetivando impedir qualquer tipo de ligação entre o conteúdo das entrevistas e os sujeitos nas descrições dos relatos contidos nos resultados. Portanto, à medida que eram transcritas as entrevistas, elas recebiam o código de E1, E2, E3 e assim sucessivamente, obedecendo a uma ordem cronológica de realização das transcrições das entrevistas. As entrevistas foram gravadas em gravador portátil de fita microcassette. Durante a realização da entrevista foram feitas as anotações no diário de campo, referente à expressão facial, postura, gestos, períodos de silêncio, ritmo, tom de voz, ênfases e entonações na fala, assim como emoções e sentimentos aparentes.
Por último, foi aplicada a escala de resiliência com os próprios sujeitos lendo e assinalando as questões. A escala de resiliência desenvolvida é um dos poucos instrumentos usados para medir níveis de adaptação psicossocial positiva em face de eventos de vida importantes. Possui 25 itens descritos de forma positiva com resposta tipo likert variando de um (discordo totalmente) a sete (concordo totalmente). Os escores da escala oscilam de 25 a 175 pontos, com valores altos indicando elevada resiliência11.
As informações coletadas foram analisadas e interpretadas à luz da análise de conteúdo, que se caracteriza pela organização das informações por meio de fases ou etapas, conduzindo a um resultado estruturado e organizado do conteúdo. Após a transcrição e leitura das respostas, com a identificação dos significados, procedeu-se à codificação das unidades de registro, visando identificar e problematizar as temáticas contidas nos registros para a construção do arcabouço lógico do pensamento do sujeito. Resultando na construção das seguintes categorias de análise:
perfil dos enfermeiros para o trabalho na Terapia Intensiva;
sofrimento e prazer: sentimentos dialéticos do enfermeiro intensivista.
O projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do hospital onde a pesquisa se desenvolveu, obtendo parecer favorável para o desenvolvimento da pesquisa sob o número de protocolo 255.
RESULTADOS E DISCUSSÃO DOS DADOS
Categoria 1 - Perfil dos enfermeiros para o trabalho na Terapia Intensiva
Nesta categoria, discutem-se os aspectos relacionados ao perfil inerente do enfermeiro intensivista, diante dos requisitos provenientes de sua dinâmica laboral, permeada de situações de variabilidade, as quais exigem desse profissional a mobilização constante de suas potencialidades psicocognitivas na execução de suas atividades voltadas para pacientes graves e em risco de morte.
Um grande desafio da administração de recursos humanos é a alocação dos indivíduos em setores, cuja demanda psicocognitiva do serviço seja compatível com as características e anseios pessoais e profissionais do trabalhador. Tal ação é importante devido à necessidade da manutenção de um ambiente laboral saudável, que favoreça o desenvolvimento da criatividade, do talento, da motivação e da satisfação no trabalho. Essa ação permite também a melhoria da produtividade, da qualidade do cuidado realizado e da promoção da saúde do trabalhador. Nesta perspectiva, apreendeu-se dos discursos dos sujeitos um perfil pessoal e profissional do enfermeiro intensivista, conforme apresentado a seguir:
São perfis diferentes, né! Acho que tem muito perfil. Tem gente que não tem perfil pra isso! [...] você faz o que você gosta, verdadeiramente, porque você gosta, principalmente, aqui na Terapia Intensiva que tem muito essa questão [...] (E8).
A partir desse relato, evidenciou-se que para se manter no contexto de trabalho da UTI, é relevante que o enfermeiro tenha afinidade com tecnologia dura e que goste de realizar procedimentos de enfermagem complexos e de cuidar de pacientes graves, além de ter habilidade para julgamentos e tomadas de decisões rápidas e eficientes.
Para atuar neste contexto laboral de alta complexidade, também é preciso que os enfermeiros desejem estar constantemente se capacitando e, por vezes, adaptando seus conhecimentos teórico-científicos e práticos para se inserirem e se manterem na realidade da assistência a ser prestada12. Confira-se o depoimento a seguir:
A gente tem muito conhecimento, a gente tem que estudar muito, a gente tem que entender um pouco as necessidades daquele que não fala, mas transmite para a gente sinais ou sons, quando ele consegue, senão só sinais: uma frequência alterada, uma sudorese... ver o que tudo isso significa. (E6).
Na Terapia Intensiva, a evolução tecnológica é constante e exige uma formação e atualização profissional contínua, especializada e familiarizada com os aparatos tecnológicos existentes nessas unidades. Além disso, exige-se conhecimento aprofundado acerca das patologias mais comumente associadas à clientela assistida, para que seja possível a assistência integral e intensiva dos pacientes13.
O ideal desses profissionais de trabalhar próximo ao paciente prestando uma assistência direta no enfrentamento de situações complexas, variáveis e imprevisíveis, lidando com os limites entre a vida e a morte, é reafirmado quando se tem a possibilidade de atuar numa instituição onde há condições de trabalho e incentivos infraestruturais favoráveis para o desenvolvimento das atividades laborais com qualidade.
Eu aprendi tudo o que eu aprendi aqui. A minha escola foi aqui. [...] eu me apaixonei. Me apaixonei porque é difícil não se apaixonar por este hospital, que dá todas as condições para nós crescermos: capacitação, recursos materiais e humanos de qualidade. (E2).
Diante das características inerentes da UTI, o trabalho em equipe torna-se crucial. Assim, além da função de coordenador da dinâmica laboral da Unidade, o enfermeiro assume o papel de elo entre o paciente e a equipe multiprofissional, de mediador das relações interpessoais no ambiente de trabalho. E, com isto, torna-se importante que tenha consigo, além da imprescindível fundamentação teórica, a capacidade de liderança, o discernimento, a iniciativa, a habilidade de ensino, a maturidade e a estabilidade emocional14.
Mesmo sendo enfermeira plantonista, a gente comanda uma equipe. Então a gente tem algumas responsabilidades, com a equipe, com os técnicos, a questão da autoridade. A gente precisa fazer isso para manter a organização, para manter uma ordem. (E3).
A instrumentalização técnico-científica é indispensável para o desenvolvimento das ações de cuidado em ambiente de Terapia Intensiva. Assim, uma estrutura de ensino e treinamento em serviço também é fator primordial para o desenvolvimento profissional, garantindo a qualidade do cuidado prestado aos pacientes críticos12.
Neste sentido, associado ao aspecto da liderança, o perfil para a docência também se faz presente nesse conjunto e aparece nos depoimentos, como no seguinte trecho da fala de um dos sujeitos deste estudo:
No segundo ano que eu entrei aqui, eu já fui convidada para compor também a equipe da Educação Continuada, porque eu já tinha um aspecto de liderança para o ensino, nato em mim. Trilhei esse caminho do ensino dentro da prática, que me fez estudar bastante, que me faz ainda estudar bastante! Tem uma busca ainda, claro que em menor intensidade do que quando você é mais nova. O que é natural. (E9).
No que se refere à capacitação e à atualização, o enfermeiro intensivista deve ter o compromisso contínuo com seu próprio desenvolvimento profissional, além de ser capaz de atuar nos processos educativos dos demais profissionais da equipe de saúde, favorecendo o benefício mútuo entre profissionais. Adicionado a isso, deve responsabilizar-se ainda pelo processo de educação em saúde dos indivíduos e familiares sob seus cuidados, contribuindo com a qualificação da prática profissional, construindo novos hábitos e desmitificando os conceitos inadequados atribuídos a UTI14.
A gente trabalha e tem que continuar trabalhando em casa, estudando, pois o compromisso é grande com os pacientes, com os familiares e com a ajuda para o crescimento profissional de outros colegas de trabalho. (E5).
Ao reportarmo-nos ao conjunto das atividades desenvolvidas pelos enfermeiros intensivistas, é possível perceber que existem exigências profissionais que envolvem atividades assistenciais, educativas e administrativas. Por um lado, isso remete ao pensamento de que tais características da dinâmica laboral, permeada de situações complexas e de variabilidade, poderiam gerar danos à saúde deste trabalhador. A necessidade da mobilização contínua de suas capacidades psicocognitivas e motoras seria fator de carga de trabalho elevada e, portanto, de desgaste psicofísico. Todavia, foi possível apreender que são estas mesmas situações consideradas desgastantes que estes enfermeiros identificam como sendo características que favorecem sua realização profissional, ao serem compatíveis com sua identidade pessoal e profissional, ou seja, são fatores que dão prazer e satisfação.
Essa situação dialética envolvendo características do contexto de trabalho na UTI, com fatores de risco para o padecimento psicofísico dos trabalhadores e o perfil profissional e pessoal dos enfermeiros que conseguem extrair prazer de uma atividade que tem alto potencial para o sofrimento, será abordada na categoria a seguir.
Categoria 2 - Sofrimento e prazer: sentimentos dialéticos do enfermeiro intensivista sobre o trabalho na Terapia Intensiva
Essa categoria de análise discute a relação entre o enfermeiro e sua realidade laborativa em UTI, enfatizando uma percepção dialética acerca desse trabalho, em que os sentimentos de prazer e de sofrimento emergem, fundindo-se como os dois lados de uma folha de papel, a fim de caracterizar o que pensam e compreendem sobre o processo e a organização laboral na terapia intensiva.
O prazer-sofrimento resulta da relação subjetiva do trabalhador com seu trabalho, assim como da intersubjetividade vivenciada nos relacionamentos interpessoais, sendo os valores organizacionais os responsáveis por definirem formas específicas de o trabalhador vivenciar sua tarefa e compartilhar suas relações sociais, afetivas e profissionais no contexto organizacional15.
Na Terapia Intensiva, o trabalho do enfermeiro é permeado de situações complexas, advindas das características inerentes a esse cenário. AUTI, sendo um espaço de trabalho dinâmico para os que nela atuam, apresenta grande circulação de pessoal, emprego de tecnologia de ponta, elevado grau de conhecimento circulante, ritmo de trabalho intenso e possibilidade constante de lidar com situações de emergência e morte. A organização laboral coloca o enfermeiro em situações de variabilidade que demandam a mobilização contínua de potencialidades psicocognitivas e motoras para a regulação da atividade visando à concretude da tarefa. Assim, tal cenário se configura como um ambiente que concentra uma carga psíquica elevada12.
Essa complexidade específica da Terapia Intensiva aparece nos relatos dos enfermeiros como geradora de estresse e desgaste psicofísico.
A Terapia Intensiva estressa muito, as pessoas, a equipe, a exigência. Ah, é muita exigência! O grau de responsabilidade que a gente assume. Você acaba assumindo e quando vê assumiu uma série de coisas que você abraçou e aí a sua saúde vai indo, vai indo, vai indo. Aqui são muitas tarefas, são muitas coisas! Cada dia aumenta um ponto, vamos dizer assim, o grau de responsabilidade! A gente vê quase que tudo ao mesmo tempo! (E9).
O enfermeiro de uma UTI tem como responsabilidade o cuidado do paciente, tanto nos casos emergenciais como nos casos de apoio à vida. Para isso, esse profissional precisa estar apto a cuidar de todos os doentes, independentes do seu diagnóstico e contexto clínico, de forma ampla, integrada e contínua com os membros da equipe de saúde, utilizando o pensamento crítico, analisando os problemas e encontrando soluções para os mesmos. Essa conduta assegura uma prática dentro dos princípios éticos e bioéticos da sua profissão. Assim, o enfermeiro deve avaliar, sistematizar e decidir o uso apropriado de recursos humanos, físicos, materiais e de informação no cuidado ao paciente crítico, visando o trabalho em equipe, a eficácia e o bom custo-efetividade14.
Tal responsabilidade traz consigo a angústia e o sofrimento no trabalho como aparece no trecho de um dos depoimentos apresentado a seguir, no qual o sujeito do estudo revela emocionado a aflição que sente na realização do seu trabalho.
As pessoas estão ficando mais velhas, mais doentes, o tratamento se prolonga. [...] a gente nunca sabe o que é que a gente está fazendo. Se a gente está fazendo uma distanásia, prolongando o sofrimento da pessoa. Se a gente está fazendo coisas, trabalhando feito uma louca durante o dia para no final do dia o paciente morrer e tudo aquilo foi em vão. Ou, se realmente tem que ser feito, se vale a pena, se é nisso mesmo que tem que investir, entendeu? Têm esses dois lados. Isso é um questionamento meu e que de que eu participo no meu dia a dia. Hoje em dia eu penso assim. [...] a gente vê que pela idade, pelas comorbidades, que tudo o que a gente está fazendo ali é... desnecessário! Isso é realmente uma angústia. (E2).
A UTI foi criada e desenvolvida para assistir pacientes em estado crítico de saúde e oferecer a eles um cuidado imediato, intensivo e integral, o qual possibilitasse o restabelecimento da saúde desses pacientes, salvando suas vidas16. Todavia, ainda que na UTI estejam disponíveis recursos tecnológicos relacionados ao suporte avançado de vida, nem sempre é possível o alcance desse objetivo maior, salvar vidas. A morte pode ser retardada, mas ela é inevitável e, logo, ocorrerá.
Alguns profissionais podem se iludir com o avanço tecnológico do cuidar, perdendo o senso crítico, o que resulta em prolongamento do sofrimento do paciente, dos familiares e até do próprio profissional, que se frustra devido ao alto nível de expectativa decorrente, talvez, de sua onipotência. Quando o resultado de um tratamento prolongado é positivo para a recuperação do paciente, continuar este cuidado é louvável, porém, se seu resultado é fraco, a decisão pela sua continuidade é questionável17.
O trabalho é uma expressão de liberdade, de humanidade e, portanto, origem de muitas realizações. Ao ser entendido somente como amostra da produtividade e de benefício para a organização, o trabalhador degrada-se, por não se satisfazer, passando a ter um desgaste contínuo com possibilidades de ter mais sofrimento do que prazer em suas atividades17.
Tem dias em que você chega e o cansaço físico junta com todos esses fatores, você chega muito cansado! E você fica se questionando porque que escolheu ser enfermeiro, o enfermeiro paga por todas as coisas, tudo é o enfermeiro... mas é normal do ser humano! (E8).
O sofrimento e o prazer no trabalho anunciam um plano em que a criação é experiência coletiva porque implica o encontro consigo e com o outro. Trata-se de tomar o trabalho como atividade humana que, sobretudo, se faz num processo contínuo de renormatização, de invenção de novas regras, de novos problemas18.
Dialeticamente aos sentimentos de sofrimento, estão as situações que geram prazer nos enfermeiros, como a possibilidade de intervenção e promoção da recuperação do paciente, o constante aprendizado, a valorização profissional e o reconhecimento institucional.
Esse trabalho tem um significado grande! Porque você lidar com um paciente crítico e ver esse paciente sair assim, lúcido. Um paciente estava todo complicado, em coma, e esse paciente começar a conversar com você... é um retorno muito grande que você tem! [...] Uma grande parte deles sai e sai até agradecendo a gente! Isso é muito gratificante! (E1).
Os enfermeiros intensivistas se sentem mais valorizados que os demais enfermeiros devido à oportunidade de exercerem o cuidado direto aos pacientes e de poderem manipular a tecnologia específica deste cenário12. Esses profissionais dominam o aparato tecnológico, têm formação diferenciada e capacitação contínua, prestam cuidado direto ao paciente e trabalham em local que fornece adequados recursos materiais, além de sentirem que dominam as "forças divinas". Tudo isso se traduzem uma autoestima elevada; portanto, este é um contexto que possibilita o surgimento do prazer. No relato a seguir, é possível evidenciar essa análise:
Na terapia intensiva é onde eu me sinto mais enfermeira. Eu acho que o cuidado é mais perto do doente. Eu acho que a gente faz melhor as nossas funções, desempenha melhor o nosso papel. Eu gosto muito de ficar perto do doente. Gosto muito de doente grave. E as coisas da terapia intensiva, esses respiradores, as milhares de medicações, a instabilidade, a gravidade do doente e a recuperação dele. Aqui é onde eu me sinto realizada profissionalmente. É aqui que eu me sinto enfermeira de verdade. Eu me sinto perto de Deus ou trabalhando por Ele. (E3).
Ainda que o trabalho provoque desgaste, se os esforços despendidos são reconhecidos e valorizados, o trabalhador compreende que seu esforço não foi em vão e acredita na sua contribuição para a organização, assim como para si próprio.
No entanto, caso isso não seja percebido pelos outros, pode então ser desencadeado o sentimento de sofrimento ao invés de sentimento de prazer17.
CONCLUSÃO
Ao se refletir sobre o significado da prática profissional para o enfermeiro na Terapia Intensiva, conclui-se que eles apresentam percepções contraditórias. As mesmas características apontadas como fatores precursores do sofrimento foram também apontadas como justificativa para o alcance do prazer. Assim, o prazer e o sofrimento, a frustração e a alegria, a motivação e desmotivação, a satisfação e insatisfação encontram-se unidos como as duas faces de uma mesma moeda, de modo que um inexiste sem o outro, sendo essas contradições importantes para a manutenção tanto da integridade psíquica dos enfermeiros quanto da identidade do profissional com sua atividade laboral.
Nesta perspectiva, é importante lembrar que o trabalho sempre traz algum grau de sofrimento para o trabalhador, porque ele é idealizado por uns e executado por outros, conflitando os desejos e os anseios pessoais dos trabalhadores. Assim sendo, também o trabalho nunca é neutro em relação à subjetividade das pessoas e nem em relação ao processo saúde-doença.
Desse modo, os sujeitos evidenciaram percepções dialéticas sobre o trabalho na UTI. Por um lado o sentimento de prazer está vinculado (i) à possibilidade de ajudar na recuperação de um paciente grave, (ii) à habilidade de manipular tecnologias duras, (iii) à capacidade de pensar rápido diante da variabilidade do trabalho na UTI, (iv) à necessidade de se capacitar continuamente e (v) ao reconhecimento, por parte de pacientes e familiares, pelo trabalho desenvolvido.
Contudo, por outro lado também há percepções negativas em relação ao trabalho nesse cenário, as quais fazem emergir sentimento de sofrimento. O sentimento de sofrimento surge, entre outros motivos, pela falta de reconhecimento da organização laboral em relação ao esforço empreendido para dar cabo da tarefa, pela grande responsabilidade atribuída aos enfermeiros e pela carga psicocognitiva desprendida para cuidar de pacientes graves.
Depreende-se que o trabalho nessa UTI é fator de orgulho e de elevação da autoestima dos enfermeiros, porque há uma cultura instituída na profissão e no cenário hospitalar que reforça que os profissionais de UTI são trabalhadores com um perfil diferenciado e sofisticado, pois há a percepção de que eles dominam a tecnologia dura, lidam com a variabilidade, tomam decisões com rapidez e possuem uma alta capacitação que os instrumentalizam a cuidar de pacientes graves.
Tais situações caracterizam-se como fatores motivadores para a permanência dos enfermeiros nesse cenário laboral; outro fator para que o enfermeiro permaneça nesse ambiente é o perfil pessoal e profissional dos sujeitos, o qual está em consonância com as demandas laborais na referida UTI.
A título de finalização deste artigo, é importante destacar que tais resultados são pertinentes, para aquele cenário, naquele determinado momento de coleta e para o grupo de profissionais que foram os sujeitos do estudo. Contudo, é importante salientar que dependendo das características da organização do trabalho-as quais podem mudar de acordo com interesses econômicos e políticos do momento, a identidade dos profissionais com o trabalho e em relação à atividade produtiva desempenhada, a percepção predominantemente positiva, apreendida no presente estudo, pode mudar, resultando em mais sofrimento que prazer. Sendo assim, há de se destacar, mais uma vez, a dinamicidade do universo laboral e as variabilidades às quais está vulnerável, assim como as contradições "naturais" que permeiam tal universo.
REFERÊNCIAS