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CAPES

Volume 6, Número 1, Jan/Abr - 2002

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Prática criativa da enfermagem psiquiátrica: fatores intervenientes no seu desenvolvimento

 

Creative practice in psychiatric nursing: intervening factors in its development

 

Práctica creativa de la enfermería psiquiátrica: factores que han intervinido en su desarrollo

 

 

Claudia Mara de Melo Tavares

Profa. Adjunta da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa. Coordenadora do Núcleo de Estudos Imaginário, Criatividade e Cuidado em Saúde - NEICCS Universidade Federal Fluminense. Dra. em Enfermagem - EEAN/UFRJ. Mestre em Educação - PUC/SP

 

 


RESUMO

A reforma psiquiátrica e a necessidade de transformar os modos e tecnologias de cuidar em saúde mental, na perspectiva da promoção do sujeito, constituem o cenário desta pesquisa. Analisam-se os fatores intervenientes no desenvolvimento da prática criativa na enfermagem psiquiátrica com base na abordagem sociopoética. Ficou evidenciado que a complexidade do processo intersubjetivo de cuidar é a chave para se pensar a prática criativa.

Palavras-chave: Enfermagem Psiquiátrica. Reforma. Criatividade.


ABSTRACT

The scenario of this research is the psychiatric reform and the need to transform methods and technologies of caring in mental health, considering a individual promotion perspective. Intervening factors in the development of a creative practice in psychiatric nursing are analysed, based on the socio-poetic approach. It was shown up that the complexity of the intersubjective care process is the key to discuss about the creative practice.

Keywords: Psychiatric Nursing. Reform.


RESUMEN

La reforma psiquiátrica y la necesidad de transformar los modos y las tecnologías de cuidar en salud mental, en la perspectiva de la promoción del sujeto, constituyen el escenario de ésta investigación. Se han analizado los factores que intervienen en el desarrollo de la práctica creativa en la enfermería psiquiátrica con base en el abordaje sociopoético. Quedó demostrado que la complejidad del proceso intersubjetivo de cuidar, es la clave al ser pensada la práctica creativa.

Palabras claves: Enfermería psiquiátrica. Reforma. Creatividad.


 

 

INTRODUÇÃO

A psiquiatria vem passando por várias transformações ao longo dos anos, entre as quais destaca-se a Reforma Psiquiátrica que, inspirada no modelo italiano, propõe um novo paradigma para a atenção à saúde mental.

Nesse novo contexto, para se incluir como profissional de referência, o enfermeiro deve rever sua prática, gerando novas formas de cuidar.

A criatividade nos ajuda a estabelecer meios de integração para engendrar modos singulares e originais de agir, engajando a nossa imaginação no complexo processo da existência humana. Através da criatividade, pode-se superar o aprisionamento teórico-prático imposto pelos paradigmas reinantes, que se constituíram historicamente em verdadeiros "paradogmas", fora dos quais não conseguimos pensar, nem agir.

Desde Florence Nightingale, a enfermagem é descrita como a arte de cuidar. O enfermeiro e descrito como profissional capaz de perceber o ser humano de uma forma global, engajada, solidária, sensível, estética e criadora. Contudo, em função da busca desenfreada pela cientificidade, muito dessa perspectiva se perdeu.

Atualmente, o trabalho dos enfermeiros nos serviços de saúde mental apresenta características diversas, dependendo do modelo de atenção ao qual ele está ligado, do impacto do paradigma da Reforma Psiquiátrica sobre esses serviços e dos dispositivos utilizados para o acolhimento e acompanhamento dos usuários.

No Estado do Rio de Janeiro, o modelo hospitalocêntrico, cuja assistência é pautada na exclusão e enquadre do sujeito, ainda predomina. Mas novos dispositivos de atenção à saúde mental, de caráter mais aberto e humano vêm sendo construídos, exigindo dos enfermeiros a valorização da singularização dos cuidados e o trabalho em equipe na perspectiva de uma "clínica ampliada". Passa-se a exigir a elaboração de novas teorias, técnicas e políticas. É um momento de dúvida, incertezas e reorganização emergente do processo de trabalho, mas também de grande integração, compromisso e criatividade.

Diversos estudos, como os de Monteiro e Barroso (1999), Ribas e Borenstein (1999), Kirschbaum (2000) entre outros, destacam que há inúmeras atividades inovadoras sendo implantadas pelos enfermeiros psiquiátricos.

No entanto, constata-se que um conjunto de forças constituídas por poder, saber, política, economia, ideologia e cultura opõe-se ao surgimento de uma prática criativa no campo da psiquiatria. Predomina a prática hospitalocêntrica, centrada no sintoma, em detrimento de uma sociologia da loucura.

Partindo do pressuposto que a criatividade é elemento indispensável para se qualificar o cuidado em saúde mental, o presente estudo visa analisar os fatores que interferem no desenvolvimento desta perspectiva na prática da enfermagem psiquiátrica, partindo do marco conceitual da Reforma Psiquiátrica e de encontros sociopoéticos com enfermeiros que trabalham em diferentes serviços de saúde mental no Estado do Rio de Janeiro.

 

O DESAFIO DE CUIDAR NA PERSPECTIVA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA

A Reforma Psiquiátrica Brasileira visa implantar uma rede integrada de serviços, composta por diversas modalidades de recursos assistenciais e comunitários. Nesses serviços espera-se que novas práticas se consolidem, centradas na convivência com as diferenças e no respeito ao direito de cidadania das pessoas portadoras de sofrimento psíquico (ALVES et al,1996)

O grande desafio proposto pela Reforma Psiquiátrica é abordar o louco como cidadão, através da construção de um novo cotidiano que ofereça uma forma original de lidar com a loucura e o sofrimento psíquico.

Para que o paciente psiquiátrico exerça seu papel de cidadão, se autogoverne e engaje a sua imaginação, abandonando a idéia de adaptação, é preciso que os profissionais de saúde mental promovam uma abertura para engendrar novas formas de aceitação social, emprestando-lhe o que Tikanoli (1996) denominou de contratualidade.

Motta (2000) questiona o tipo de cidadão que se espera que o louco, até então considerado como "fora de sua razão", "incapaz de responder por seu atos", juridicamente "insano" e "inimputável", seja.

Certamente não é de uma hora para outra que a sociedade irá superar todos esses estigmas em relação à loucura, passando a ver o sujeito que sofre psiquicamente como um cidadão com direitos e deveres. Nem mesmo os profissionais de saúde mental estão suficientemente preparados para engajar-se nessa luta.

Para responder de forma satisfatória a esse apelo social, o enfermeiro enfrenta o desafio do preparo profissional.

Formado dentro de uma lógica fundada no modelo médico tradicional, baseado em regras de ação técnica claras e definidas, marcado pelo signo da ciência, o enfermeiro encontra dificuldades para ajustar-se à nova proposta dos novos dispositivos assistenciais em psiquiatria.

Não é comum encontrarmos nos Cursos de Graduação em Enfermagem atividades curriculares que incentivem o pensamento produtivo, a independência das ações médicas, a curiosidade, a intuição, a abertura a impulsos e fantasias, a autoconfiança e a autonomia (TAVARES,1998).

Além disso, a falta de preparo para o desempenho das funções terapêuticas pode ser um dos fatores que contribuem para que os enfermeiros façam das atividades burocrático-administrativas a sua principal ocupação.

Convém ressaltar que tais atividades são freqüentemente solicitadas aos enfermeiros pelos próprios gerentes dos serviços. O enfermeiro, no vazio de uma perspectiva mais especializada e com a aquiescência de toda a equipe, assume a função burocrática do serviço, gerando sérios prejuízos para o desenvolvimento do cuidado de enfermagem. Pode-se dizer que esta é uma tendência histórica no exercício da enfermagem.

Um outro desafio posto para os enfermeiros é superar a tendência pedagógica de sua ação. O papel prescritivo é muito valorizado pelos enfermeiros, que consideram a orientação educativa uma máxima da assistência qualificada. A própria psiquiatria, historicamente, operou mais pelo meio pedagógico do que terapêutico, sendo o tratamento moral o berço da psiquiatria, cuja pretensão era devolver a razão aos loucos, ensinando-os a dominar as suas paixões desregradas.

Segundo Cavalcanti (1997), só é possível atuar terapeuticamente reconhecendo nos pacientes a positividade de suas criações, distinguindo a função terapêutica da função pedagógica. Ela diz que apenas a dimensão da fala pode devolver à psiquiatria a sua possibilidade terapêutica, que é preciso escutarmos o que os doentes têm a nos dizer para que possamos aprender com eles o que fazer, pois são eles que nos ensinam.

Portanto, o terapeuta é que tem que aprender a língua do doente, nem sempre falada e racional, em geral fragmentada, virtual, surpreendente, inacreditável.

Frente ao exposto, parece que o grande desafio do cuidar em saúde mental, posto para a enfermagem, é combinar satisfatoriamente estratégias criativas de acolhimento das demandas por saúde com a promoção da autonomia dos usuários dos serviços de saúde mental, de modo que a rede de cuidados estabelecidos aumente o poder de contratualidade social do paciente psiquiátrico e, ao mesmo tempo, expanda as possibilidades de atuação da enfermeira.

 

O CUIDAR CRIATIVO NA ENFERMAGEM

A enfermagem como prática de cuidar existe desde tempos imemoriais. Exercida por mulheres leigas, por religiosas, até sua atual profissionalização.

O cuidar criativo pode ser observado já no final do século XIX, a partir da teoria ambientalista da enfermagem, proposta por Florence Nightingale.

Roger (1970) evidencia que o desenvolvimento da prática de enfermagem requer criatividade e imaginação para que a enfermeira possa dar apoio às variações no processo vital do ser humano total, vindo a transformá-lo, se necessário. Para ela, o ser humano caracteriza-se pela capacidade de abstração e imaginação, linguagem e pensamento, sensação e emoção.

Armstrong & Kelly (1995) desenvolveram, a partir dos estudos de Peplau e Rogers, um modelo de atendimento em serviço ambulatorial de saúde mental baseado nos conceitos de interação e criatividade. A partir desse modelo, inúmeros pacientes com quadros de esquizofrenia foram mantidos fora do circuito de internação psiquiátrica.

Na psiquiatria, a criatividade é uma perspectiva importante por servir como guia para compreender situações de cuidar, que quase em sua totalidade representativa, são complexas, singulares, inusitadas e multifacetadas.

Segundo Tavares (1998), o cuidar criativo transcende a prática da arte enquanto terapia, para tocar a especificidade do ser humano em toda a sua complexidade: interior, social e cósmica, contemplando sua forma de existência, abrangendo sua potência, magia e mistério. Para cuidar criativamente, o enfermeiro deve buscar a essência da pessoa, que jamais adoece; compreendendo o sentido de seu sintoma, escutando sua dor sem repressão e repreensão com todos os sentidos, resgatando sua cidadania e inteireza.

Baraúna (2001) destaca que para o enfermeiro atuar criativamente precisa não somente trabalhar dentro de um sistema criativo, mas também reproduzir o dito sistema dentro da sua mente, interiorizando-o. Destaca que na enfermagem há necessidade de estimular o desenvolvimento de um pensamento divergente, pois o mesmo conduz a uma maior fluidez de idéias, a uma livre e rica associação de pensamentos, imagens, a reestruturar o conhecimento em algo novo, buscando soluções inovadoras, fugindo a formas previamente estabelecidas.

Para cuidar criativamente em psiquiatria, o enfermeiro deve aprender as regras e o conteúdo do campo da criatividade, assim como conhecer os critérios de seleção e apreciação da arte, precisa adquirir formação na área de domínio da saúde mental.

 

CAMINHOS METODOLÓGICOS

A pesquisa de abordagem sociopoética foi realizada com um grupo de 12 enfermeiros psiquiátricos, ligados a diferentes Serviços de Saúde do Estado do Rio de Janeiro.

Os encontros para produção de dados aconteceram por três vezes no período de dois meses. Inicialmente, explicou-se ao grupo-pesquisador os objetivos do estudo, solicitando-se a sua participação em todas as fases de seu desenvolvimento. Foram observados os aspectos éticos da pesquisa de acordo com a resolução CNS 196/96. Para preservação do anonimato dos sujeitos participantes, utilizou-se nomes fictícios para identificação das falas.

Os membros do grupo-pesquisador têm o tempo médio de formado de dez anos e há seis e meio trabalham em psiquiatria; 14% são mestres em enfermagem, 50% são especialistas e 36% possuem apenas a graduação em enfermagem.

Na descrição dos resultados, levou-se em conta a análise e a interpretação do grupo como um todo e as anotações feitas a partir da observação participante.

Frente às respostas do grupo, buscou-se evidenciar os fatores intervenientes na prática criativa do cuidar de enfermagem em saúde mental e as possibilidades de criação nesse contexto.

 

RESULTADOS

A seguir procede-se a análise dos fatores, apontados pelos enfermeiros, como intervenientes no desenvolvimento da prática criativa.

 

A FALTA DE FORMAÇÃO ESPECÍFICA EM ENFERMAGEM PSIQUIÁTRICA

O principal obstáculo apontado pelas enfermeiras à realização de uma prática mais criativa diz respeito à formação. Evidencia-se a falta de formação específica em psiquiatria, a insuficiência de um preparo teórico-prático em saúde mental e a desinformação quanto aos aspectos criativos da prática profissional.

Segundo Almeida (1986), as características do ensino de enfermagem correspondem ao modelo vigente nas sociedades capitalistas: uma preocupação demasiada com o treinamento, o desenvolvimento de habilidades específicas, a execução de programas previamente definidos, a sistematização de rotinas e procedimentos.

Complementando essas características, Tavares (1998) evidencia que aspectos como a expressão, o potencial criador, a espontaneidade, a flexibilidade, a imaginação, a performance e a originalidade não fazem parte do repertório lingüístico e nem curricular do enfermeiro.

A própria disciplina enfermagem psiquiátrica reforça os aspectos gerais da formação do enfermeiro. Muitas vezes, é o cenário onde se dá a experiência prática que reforça os aspectos tradicionais, desfavorecendo a expansão de uma visão mais criativa do cuidar. O aluno observa no campo de estágio, o enfermeiro realizando atividades centradas na administração e quando muito nos cuidados com o corpo do paciente, raramento os enfermeiros encontram-se engajados num processo de idealização do projeto terapêutico ou atendendo as reais demandas por cuidados do paciente.

"Não se tem boas lembranças do estágio em psiquiatria". ( Elvis).

"Pode-se relacionar algumas experiências desagradáveis, como estar sozinho com o paciente sem a ajuda do professor para entender o recado de um comportamento louco" (Allan).

" Tentamos encarar tudo aquilo como uma atitude natural, sem estigmatizar a diferença, mas nossa vontade é que o estágio acabe. Pensamos jamais trabalhar nesse campo, no entanto estamos aqui" ( Mãezona).

"Acreditamos que, ao nos formarmos, vamos fazer tudo diferente, aí nos descobrimos fazendo tudo igual" ( Joca).

O enfermeiro mostra-se em crise com o seu próprio saber, mas responsabiliza-se socialmente pela formação e atuação dos auxiliares de enfermagem. Além disso, o problema da estratificação social da equipe de enfermagem no campo da psiquiatria acentua-se frente à falta de uma liderança positiva da própria enfermeira. As conseqüências da relação saber/poder estão aqui colocadas.

"Como comandar uma equipe, quando não se possui a qualificação necessária para evidenciar as necessidades dos pacientes e propor-lhes alternativas?" (Mariana).

Num exercício desmedido do poder acredita-se que se impor é a melhor forma de manter-se na liderança.

A relação de poder vivida na instituição formadora, aniquiladora de desejos, reproduz-se na instituição trabalho. Tudo ocorre de acordo com os interesses institucionais, é grande o exercício do saber/poder sobre o mais fraco.

"É preciso ter pulso forte, falar mais alto do que os auxiliares, impor limites para conseguir administrar conflitos no âmbito da equipe de enfermagem" (Joca).

Frente a isso, a convivência enfermeira/auxiliar é tensa, é uma relação de poder e muito controle, a qual a equipe de auxiliares responde com resistência e insubordinação. As oposições internas da equipe de enfermagem fragmentam ainda mais a atuação da enfermeira psiquiátrica. Esse fato constitui região de conflito permanente na categoria.

"A enfermeira tem uma ilusão de poder, porque a questão-chave da enfermagem ela não tem autonomia para resolver. Questões mais amplas, que implicam de fato em mudanças, acabam sendo resolvidas pela diretoria do hospital, geralmente representada pela equipe médica" (Mãezona).

A rede simbólica de significados atribuídos ao trabalho em psiquiatria, de um modo geral, é relacionada a temas institucionais: relações de poder, trabalho em equipe, processo de transformação de toda prática psiquiátrica, redefinição dos papéis profissionais.

"Já começamos no hospital como supervisora. Imagina! Daí a gente se pergunta: o que é que eu vou fazer agora? Aqueles pacientes circulando... Tentamos encarar com naturalidade, vencer o medo e o preconceito. Como a gente tem experiência em Administração, entra nessa onda para ficar longe da assistência direta ao paciente." (Bel)

A enfermagem é uma das únicas profissões que forma chefes. O exercício da chefia é, na maioria das vezes, conveniente para o próprio dirigente, assim as enfermeiras acabam assumindo a gerência não só do serviço de enfermagem, mas de todo o setor. As atividades de cuidados diretos ao paciente são delegadas aos auxiliares de enfermagem, desconsiderando-se o nível de sua complexidade. Enfermeiros e dirigentes institucionais tornam-se aliados e cúmplices do afastamento dos enfermeiros do planejamento e realização do projeto terapêutico do paciente.

Rocha (1994) correlaciona a dificuldade de uma atuação terapêutica das enfermeiras no campo da psiquiatria à tendência de uma formação pautada em regras de ação técnica, claras e definidas. Desse modo, quando elas se deparam com uma abertura prática não têm iniciativa para a reinvenção de novas formas de cuidar e se posicionar.

A administração é um ponto de fuga para as enfermeiras psiquiátricas, uma possibilidade de

manter-se no trabalho sem correr riscos. É mesmo uma questão de sobrevivência.

Será que existe um saber específico nessa área? O trabalho em psiquiatria exige um domínio de habilidades específicas? Elas podem ser satisfeitas com uma boa formação ou só através de um Curso de Especialização?

Colvero (1994) evidenciou que as enfermeiras especialistas em psiquiatria delineiam com mais clareza suas atividades nesse campo de saber, conseqüentemente realizando a assistência ao paciente com maior segurança, além de definir melhor um lugar na equipe de saúde mental.

Discutindo sobre os impasses de sua formação, as enfermeiras revelaram uma grande preocupação com uma perspectiva teórica que dê sustentação à sua prática. Elas mostram estar sob a dependência do princípio da utilidade, da racionalidade científica tradicional, presas a necessidades conceituais e idéias convencionais, embora de fato estas não correspondam a sua prática.

 

O DESCONHECIMENTO DE REFERÊNCIAS TEÓRICAS PARA SUSTENTAÇÃO DA PRÁTICA CRIATIVA

Os enfermeiros avaliam que suas referências teóricas para lidar com a prática psiquiátrica são muito frágeis, levando-os a uma timidez em assumir posições críticas no contexto da equipe multiprofissional. O grupo não citou nenhuma teoria ou referência teórica da enfermagem psiquiátrica. As referências são na área da administração, psicologia, psiquiatria, muitas delas apenas de ouvir falar nos serviços por outros profissionais.

"Busco respaldo para a prática na análise institucional, na psiquiatria médica e social"(Dandan).

"Procuro levar a minha prática com base no processo criativo de Jung, porque cuidar é uma arte, mas é uma arte que você renova no processo criativo" (Bel).

Há quem considere não dispor de qualquer fundamento, tendo aprendido com a própria experiência ou com uma colega de trabalho.

"Gostaria muito de estudar psicanálise, mas tenho fundamentado minha prática nas orientações da Reforma Psiquiátrica, por meio de ordem de serviço." (Mariana)

"Aprendi muito sobre o que fazer com uma colega enfermeira, uma pessoa que me ajudou muito, libertou-me do condicionamento das atividades administrativas. Ajudou-me a superar a idéia da periculosidade dos pacientes psiquiátricos. Ela me mostrou um outro hospital, uma outra possibilidade de relação com o paciente, uma relação de proximidade íntima, onde a gente cria laços de amizade. Quando ela me mostrou o hospital daquele jeito, eu me apaixonei." (Mãezona)

Os enfermeiros dizem não saber o que fazer, como o fazer e por que fazer o cuidado criativo. Tal percepção decorre de um busca por respostas objetivas, da falta de registro e desvalorização dos pequenos gestos cotidianos produzidos pelo cuidador, que não são tomadas como uma forma de saber produzida por eles mesmos em sua prática. Pois não é possível exercer funções próprias de uma profissão sem um marco referencial mínimo.

O despreparo profissional aliado ao desconhecimento gera muita insegurança na lida do enfermeiro com o paciente doente mental, fazendo com que ele se afaste do seu cuidado, limitando sua ação às atividades administrativas, as quais supõe possuir maior domínio técnico.

Para preencher o tempo e ficar afastada da pressão feita pelos próprios pacientes, a enfermeira mantém-se atrelada às atividades burocráticas e administrativas, mesmo aquelas que trabalham na rede extra-hospitalar. O acúmulo de funções de natureza burocrática conforta o enfermeiro e agrada os dirigentes.

"As atividades burocráticas tomam muito tempo, não sobrando quase nada para conversar com o paciente" (Mousse).

" Não há tempo hábil para prestar cuidados diretos ao paciente, ninguém nos cobra isso" (Leta).

" É só manter o paciente limpo, alimentado, cheirozinho, que está tudo bem, você até recebe elogio" (Mãezona).

Observa-se que, embora os enfermeiros percebam as deficiências de sua formação,eles mantêm uma atitude passiva frente à necessidade diagnosticada.

Como as atividades administrativas ocupam a atenção e a maior parte da jornada de trabalho dos enfermeiros, eles delegam aos auxiliares as ações de cuidado direto ao paciente, sem especificação do nível de complexidade. Esse fato dificulta a construção de um discurso sobre o cuidar criativo e um posicionamento crítico por parte do enfermeiro psiquiátrico.

 

O NÚMERO DE PACIENTES COM QUE O ENFERMEIRO TEM QUE LIDAR

Numericamente, a relação enfermeiro-paciente distingue-se da dos pacientes com outros profissionais de saúde mental. De um modo geral, os demais profissionais trabalham como técnicos de referência de determinados pacientes enquanto o enfermeiro é um para toda a enfermaria, setor, hospital, serviço de atenção dia. Essa condição reforça uma ação com vistas a subsidiar as intervenções de outros profissionais da equipe de saúde mental, em detrimento da realização do próprio cuidado de enfermagem. Resta-lhe, assim, o consolo da ação administrativa, a única com visibilidade e prestígio junto a equipe multiprofissional.

O grande número de pacientes com que o enfermeiro tem que lidar constitui-se problema. A interação terapêutica fica prejudicada, o enfermeiro sempre em dívida com as informações necessárias para o estabelecimento de um projeto terapêutico.

"Somos sozinhas para um hospital inteiro" (Detinha).

"A gente tem que ter muito domínio, pensamento rápido e agilidade" (Joca).

A quantidade de enfermeiras contratadas pela instituição é em geral reduzida, assim, mesmo que ela desejasse, não poderia cuidar de todos os pacientes, teria que agir seletivamente, comprometendo o impacto de sua ação.

"Quando fui trabalhar na Juliano Moreira eu tinha 608 pacientes de referência, era difícil de cuidar, mesmo que eu tivesse muita experiência eu não poderia fazer quase nada" (Celis).

Mesmo sendo um administrador e cuidador eficiente, sozinho em um plantão, como ocorre amiúde, o enfermeiro não pode dar conta do quantitativo de pacientes psiquiátricos existentes na instituição, reforçando seu isolamento do projeto terapêutico do paciente.

Uma possível saída para esse impasse, seria a inserção do enfermeiro na equipe de saúde mental como terapeuta de referência, limitando sua ação a um grupo menor de pacientes. As atividades administrativas deveriam ser diluídas entre os diferentes da equipe ou realizados por um administrador hospitalar.

 

A COMPLEXIDADE DO PROCESSO INTERSUBJETIVO DE CUIDAR EM PSIQUIATRIA

Frente a todos os fatores intervenientes na prática da enfermagem psiquiátrica, os enfermeiros precisam fazer inúmeros ajustes no seu universo interno de significações. Envolver-se com o paciente e a complexidade do processo intersubjetivo do cuidar em saúde mental constitui um desafio.

Os enfermeiros sentem-se como se estivessem em meio a um vendaval, onde tudo o que fazem parece desaparecer frente a um cenário institucional marcado por uma rotina opressora para todos, equipe de enfermagem e pacientes. Eles indicam a existência de uma força institucional atuante contra o desejo por um trabalho criativo.

A complexidade do processo intersubjetivo de cuidar do paciente psiquiátrico é considerada um enorme obstáculo e o paciente tomado por desconhecido.

"Para mim o paciente psiquiátrico é um enorme desconhecido. A gente não sabe quase nada a respeito dele. Não consegue se comunicar" (Dandan).

Como portador de um comportamento imprevisível, o paciente psiquiátrico, provoca medo, ansiedade e angústia no cuidador. Ainda mais quando não se sabe ao certo o que fazer e se tem problemas de comunicação. Muitas vezes é o próprio cuidador que precisa de terapia.

O enfermeiro em seu cotidiano vive em estado de guerra e acaba, paradoxalmente, realizando inúmeras atividades que não são de sua responsabilidade, para ficar em paz. O enfermeiro se envolve com muitas situações. Obstina-se em controlar. Não é capaz de deixar as coisas acontecerem sem a sua participação. Ele ocupa-se de tudo. A crise é a tônica do ofício do enfermeiro psiquiátrico.

"O posto de enfermagem é um minihospício, a solicitação é contínua. A gente não consegue ficar em paz. As vezes a gente se tranca. Parece que os malucos somos nós." (Allan)

Não há paz e harmonia para a criação no cotidiano dos enfermeiros psiquiátricos. Embora almejem bem-estar e felicidade, queixam-se de um desgaste freqüente e de desestímulo frente às inovações.

 

A PRIVAÇÃO DE SUPERVISÃO TÉCNICA DE FINALIDADE TERAPÊUTICA

A responsabilidade pelo processo de cuidados do paciente fica por vezes a critério da vontade do próprio enfermeiro, não sendo uma exigência institucional. Além disso, enquanto nas demais áreas da saúde mental a supervisão técnica representa um apoio e possibilidade de análise dos processos tranferenciais do cuidar, na enfermagem a supervisão significa ordenação, punição e controle, sem nenhum valor terapêutico.

Vale lembrar que Rocha (1994) assinala que o enfermeiro, ao ocupar-se de tudo, afasta-se das atividades mais importantes, aquelas que estão relacionadas ao cuidado direto do paciente.

Entende-se com base nos dados produzidos nesta pesquisa, que o afastamento dos cuidados com o paciente indica a própria necessidade de cuidado do enfermeiro.

A forma utilizada pelo enfermeiro para lidar com os conflitos e contradições inerentes ao processo e trabalho em enfermagem psiquiátrica é a busca de culpados para deslocamento de responsabilidades ou o afastamento da prestação de cuidados diretos ao paciente.

"Não tenho nenhum método de planejamento para supervisão de minha equipe, a gente quebra o pau e arremessa as responsabilidades, um sobre o outro. É uma coisa muito louca mesmo" (Allan).

Conforme destaca Miranda et al. (2000), o núcleo da ansiedade para a enfermeira reside na relação com o paciente. No campo da psiquiatria, não há instrumentos mediadores para o cuidado de enfermagem que sirvam como anteparo para o impacto da ansiedade. O enfermeiro fica permanentemente exposto às demandas do paciente.

" A ansiedade é grande porque muitas vezes não sabemos o que dizer, nem o que fazer com o paciente" (Celis).

"O trabalho é feito de acordo com princípios e valores pessoais, não temos supervisão do que fazemos, nem do que não fazemos" (Cyberjack).

"Às vezes somos impulsionadas a cuidar, o paciente é grave, nos cala fundo, sentimos vontade, aí ficamos satisfeitas, vitoriosas, ganhamos o dia". (Leta).

"Não aprendi a fazer, são muitos pacientes, a relação é muito complexa, não sou paga para isso." ( Mousse)

A frustração decorrente dos baixos salários, do desprestígio social, das situações enfrentadas no cotidiano do cuidar em psiquiatria, a necessidade de se fazer o luto da onipotência frente ao paciente e outros problemas decorrentes do processo de transformação, pode ser trabalhada numa supervisão terapêutica, favorecendo conseqüentemente o cuidado criativo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa evidenciou que os fatores impeditivos ao desenvolvimento da prática criativa na enfermagem psiquiátrica são: a falta de formação específica em psiquiatria, o desconhecimento de referências teóricas para sustentação da prática criativa, o número de pacientes com que o enfermeiro tem que lidar no cotidiano, a complexidade do processo intersubjetivo de cuidar do sujeito em sofrimento psíquico e a privação de supervisão técnica de finalidade terapêutica

Ao lado dos obstáculos à implementação de uma prática efetiva do cuidar na psiquiatria, os enfermeiros revelam algumas de suas possibilidades de criação. Se por um lado o trabalho em psiquiatria é caótico, por outro, favorece a criatividade, levando a busca de soluções contínuas para os impasses do dia-a-dia.

Para realizar uma prática criativa e sair de uma posição de exclusão do processo de concepção do projeto terapêutico dos usuários dos serviços de saúde mental, o enfermeiro precisa ampliar seu olhar sobre a clínica da enfermagem psiquiátrica, considerando as diferentes dimensões do cuidar nesse campo de conhecimento - política, teórica, técnica, humana, estética e social. Isso implica num esforço individual para realizar novas leituras, cursos e discussão. Exige reflexão junto aos demais membros de equipe de saúde mental quanto a condutas a serem adotadas individualmente e coletivamente nos diferentes casos clínicos. Ousadia para reconhecer em si mesmo a possibilidade imaginativa e criativa para a formulação e execução de novos cuidados de enfermagem. Organização institucional e política para exigir dos dirigentes o investimento nos recursos que se fizerem necessários à qualificação do pessoal de enfermagem.

A despeito de toda crítica feita ao papel desempenhado historicamente pelos enfermeiros no campo psiquiátric, arriscamos dizer que essa é uma prática em desenvolvimento, com abertura para novos modos de atuação e renovação de compromissos éticos, humanos e profissionais.

Finalmente, vale salientar que o enfermeiro, ao embarcar no processo de Reforma Psiquiátrica, não deve ater-se apenas à inovação da assistência. A novidade no mundo em que vivemos é também mais uma norma. Buscar sempre uma posição nova frente às pressões institucionais é manter-se na captura histórica, que sempre colocou a enfermagem numa posição de asujeitamento. Uma prática criadora por outro lado, supõe uma "prática de si", uma ação mediada pela imaginação, fundada na singularidade do sujeito em busca de satisfação. A prática criadora, quebra o hábito, rompe com a rotina, para engendrar possibilidades a partir das ressonâncias provocadas pelas relações instituídas no cotidiano dos serviços de saúde.

 

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