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Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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CAPES

Volume 4, Número 2, Mai/Ago - 2000

ARTIGOS DE PESQUISA

 

A participação das enfermeiras na implantação das propostas de contracepção do CPAIMC: 1975-1978

 

Nurses and the implantation of CPAIMC's contraception proposals: 1975-1978

 

La participación de enfermeras en la implantación de las propuestas anticonceptivas del CPAIMC: 1975-1978

 

 

Luciane Marques de AraujoI; Suely de Souza BaptistaII

IProfessora do DEMI/FEUERJ, mestre em enfermagem pela EEAN/UFRJ, membro do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira (Nuphebras)
IIDra. Professora Titular do Departamento de Enfermagem Fundamental da EEAN/UFRJ, pesquisadora do CNPq e membro do Nuphebras

 

 


RESUMO

Trata-se de um estudo de cunho histórico-social que tem como objeto a participação das enfermeiras como agentes da reprodução da ideologia que norteava as propostas de contracepção do CPAIMC. O recorte temporal compreende o período de 1975 a 1978. As fontes primárias incluem depoimentos de profissionais de saúde que atuaram na entidade, nas diversas fases do programa, e 11 dos 15 volumes do Programa de Assistência Integrada à Mulher e à Criança. O método de análise é o dialético e a discussão dos achados está respaldada em alguns conceitos de Pierre Bourdieu. Pelos resultados, constatamos que as enfermeiras atualizaram seu habitus profissional, o que garantiu a reprodução da ideologia institucional e no caso desta pesquisa, a prática da contracepção como um instrumento para o controle da natalidade.

Palavras-chave: História da enfermagem - Controle da natalidade


ABSTRACT

The object of this social and historical study is the participation of nurses as agents who reproduced the ideology that guided CPAIMC's contraception proposals. The period that goes from 1975 to 1978 is studied. Primary sources include the testimony of health professionals who worked at CPAIMC during the several program phases. Eleven out of the fifteen volumes of the "Program for integrated assistance to women and children" are also included. The dialectical method is used for data analysis. Findings are discussed based on Pierre Bourdieu's concepts. Results show that nurses modernized their professional habit, and that guaranteed the reproduction of the institutional ideology. In the case of this particular research, it also guaranteed the contraception practice as a means to birth control.

Keywords: History of Nursing - Birth control


RESUMEN

Se trata de un estudio de carácter histórico y social, que tiene como objeto la participación de las enfermeras como agentes de la ideología que dirigió las propuestas anticonceptivas del CPAIMC. El recorte temporal comprende el periodo del 1975 al 1978. Las fuentes primarias incluyen declaraciones de profesionales de la salud que actuaron en la entidad, en las diversas fases del programa. Incluyen, además, once de los quince volúmenes del "Programa de Asistencia Integrada a la Mujer y al Niño". Se utiliza el método dialéctico de análisis. La discusión de los hallazgos se respalda en conceptos de Pierre Bourdieu. Por los resultados se constató que las enfermeras actualizaron su hábito profesional, lo que garantizó la reproducción de la ideología institucional y, en el caso particular de esta investigación, la práctica anticonceptiva como un instrumento para el control de la natalidad.

Palabras claves: Historia de la enfermería - Control de la natalidad


 

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Trata-se de um estudo de cunho histórico-social que tem como objeto a participação das enfermeiras como agentes da reprodução da ideologia que norteava as propostas de contracepção do Centro de Pesquisas de Assistência Integrada à Mulher e à Criança (CPAIMC).

O interesse em estudar este assunto foi devido ao fato de que atuando no Centro Municipal de Saúde Milton Fontes Magarão (CMSMFM) e desenvolvendo um trabalho assistencial, através da consulta de enfermagem, à clientela inscrita no programa de planejamento familiar dessa unidade de saúde, identificamos que muitas mulheres estavam usando ou já tinham utilizado, em alguma época de suas vidas, determinados métodos contraceptivos apesar de manifestarem uma série de dúvidas, inseguranças e dificuldades quanto aos mesmos.

Tais observações do cotidiano têm suscitado em nós dúvidas quanto à real liberdade de escolha, pelas clientes, do método contraceptivo adotado, apontando para a influência exercida pelos profissionais de saúde.

Portanto, há que se refletir acerca da relação dos profissionais de saúde com a clientela, historicamente autoritária e desigual, bem como sobre sua participação nos programas de saúde, em especial no programa de planejamento familiar, no que se refere às questões relativas à contracepção e ao caráter coercitivo que possa permeá-lo.

O fato é que o interesse pela reprodução é, sem dúvida, ancestral. Fora isto, devemos considerar que é, de longa data, o conhecimento acerca da participação de enfermeiras nas questões relativas ao planejamento familiar e mais especificamente à contracepção. Margareth Sanger3 iniciou sua luta pelo direito à contracepção, por volta de 1910 (SOS CORPO, 1990, p. 11).

Estudando a trajetória do planejamento familiar em nosso país, identificamos que nas décadas de 60 e 70, a falta de um claro posicionamento do governo com relação à questão populacional e ao planejamento familiar favoreceu a atuação de entidades privadas que, sob o rótulo de planejamento familiar, desenvolviam programas de controle da natalidade, atendendo aos interesses das agências internacionais financiadoras de suas atividades.

Neste sentido, os autores consultados são de opinião que, nesse período, o país esteve mergulhado em programas de controle de natalidade e afirmam que neste contexto, tiveram importante participação a Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar (BEMFAM) e o CPAIMC.

Sobrinho (1993, p.139) ao estudar a história do surgimento da BEMFAM e do CPAIMC, identifica que a primeira se dedicava ao "planejamento familiar", desacoplado de serviços de atenção à saúde das mulheres e crianças e já o CPAIMC visava chegar ao "planejamento familiar", por via indireta, através de programas de atenção materno-infantil, para aumentar sua aceitabilidade.

Rosas (1998, p.2), como integrante da equipe que atuava no CPAIMC, afirma que a "porta de entrada", da clientela, na referida instituição, era por meio da enfermeira, através da consulta de enfermagem, o que, segundo a autora, se tratava de atividade estratégica para que pudessem alcançar os objetivos institucionais.

Rosas (1998, p.10-12) acrescenta ainda que os cursos promovidos pelo CPAIMC tinham imensa procura por enfermeiras e médicos de todo o país e que os manuais elaborados para o treinamento eram requisitados por várias Escolas de Enfermagem, principalmente as das regiões nordeste e sul.

O presente estudo justificou-se, então, pela efetiva participação de enfermeiras, tanto na implantação das propostas do CPAIMC quanto no treinamento, em atividades de contracepção, de membros da equipe de saúde, principalmente médicos e enfermeiras, em âmbito nacional.

Por isto mesmo, acreditamos que discutir a trajetória da atuação de enfermeiras em atividades de contracepção contribui para o entendimento do que se passa hoje, acerca de nossa inserção e participação em instituições que desenvolvem atividades de planejamento familiar, favorecendo a tomada de consciência e reflexão crítica acerca das diretrizes4 dos programas de saúde, possibilitando a transformação das disposições incorporadas, para tomadas de posição mais adequadas da categoria.

A partir da problemática apresentada, delimitamos a seguinte hipótese teórica:

O trabalho de inculcação a que foram submetidas as enfermeiras do CPAIMC, contribuiu para a atualização de seu habitus profissional, o que favoreceu a reprodução da ideologia dessa instituição, no que se refere à utilização da contracepção como instrumento para o controle da natalidade.

Para dar conta do objeto em estudo, traçamos os objetivos que se seguem:

· Confrontar as diretrizes da proposta de contracepção do CPAIMC com as ações desenvolvidas pelas enfermeiras no cotidiano de sua prática.

· Discutir as implicações da participação das enfermeiras na difusão das propostas de contracepção do CPAIMC.

O presente estudo insere-se na linha de pesquisa "História da Enfermagem Brasileira" da Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ, uma vez que resgata acontecimentos históricos de parte da prática de nossa profissão.

Oferecendo subsídios para uma melhor compreensão do presente, o estudo contribui para tomadas de posição mais adequadas, da categoria, tanto no presente quanto no futuro, no que diz respeito à sua participação na elaboração e administração de programas de saúde, no ensino e na assistência à clientela.

 

ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA

Buscando explicações coerentes, lógicas e racionais para os fenômenos ocorridos, o enfoque histórico-social nos pareceu o mais adequado para o aprofundamento no mundo dos significados das ações e relações humanas, pois é impossível compreender a significação fora da estrutura social, o que não é perceptível e captável em equações, médias e estatísticas (Minayo, 1994, p. 22)

O método dialético foi empregado por favorecer a percepção da relação inseparável entre a ação do homem como sujeito histórico e as determinações que a condicionam (Minayo, 1993, p. 12)

O recorte temporal da pesquisa compreende o período entre 1975-1978.

O marco inicial, 1975, corresponde ao ano em que o Programa de Assistência Integrada à Mulher e à Criança (PAIMC), elaborado por um grupo de profissionais do Hospital Escola São Francisco de Assis (HESFA)/UFRJ, transformou-se em CPAIMC.

O marco final, 1978, corresponde ao ano em que as clínicas da UFRJ que funcionavam no HESFA, incluindo as que assessoravam o PAIMC, foram transferidas para o novo Hospital Universitário, na Cidade Universitária, Hospital Clementino Fraga Filho, cuja inauguração foi em 1º de março de 1978.

Como sujeitos preferenciais a princípio, foram definidas as enfermeiras que participariam do processo de implantação das propostas de contracepção do CPAIMC, no período em estudo. Entretanto, segundo o depoimento da primeira enfermeira entrevistada, a qual ingressou no CPAIMC em 1975, nesse período havia apenas quatro enfermeiros, sendo duas brasileiras e um casal de norte-americanos, o casal Scofield5, tendo as demais ingressado na entidade a partir de 1979.

Não tendo sido localizado o casal de enfermeiros norte-americanos6 e uma das brasileiras, foram incluídos no elenco de depoentes outros profissionais de saúde que foram reconhecidos como agentes-chave para o fornecimento de informações acerca de questões imersas na realidade estudada. Dentre estes: a ex-professora da Escola de Enfermagem Anna Nery que participou da elaboração do PAIMC, portanto, na fase anterior a 1975; um médico, que atuou no período de 1970 a 1989; duas enfermeiras que ingressaram na entidade em 1979; e uma assistente social, que ingressou em 1980.

As fontes primárias7 incluem os depoimentos dos sujeitos do estudo e 11 dos 15 volumes do Programa de Assistência Integrada à Mulher e à Criança (PAIMC)8.

Quanto às entrevistas, foi utilizada a do tipo semi-estruturadas, que estas foram gravadas e posteriormente transcritas. Apenas uma das entrevistas realizadas não foi gravada, porque o depoente não autorizou. Contudo, o mesmo fez uma síntese de seu depoimento, digitada em computador, dos aspectos que considerou relevantes e autorizou o uso da mesma nesta pesquisa.

Do elenco de enfermeiras, a depoente n.º1 atuou na entidade no período de 1975 a 1990; a depoente n.º2, no segundo semestre de 1979; a depoente n.º3, de 1979 a 1992 e a depoente n.º4, na fase anterior a 1975. A assistente social teve sua participação no período compreendido entre 1980 a 1992 e já o médico, de 1970 a 1989.

Como fontes secundárias, foram utilizadas teses, dissertações, monografias, trabalhos, artigos, livros, recortes de jornais que tratam da trajetória dos programas oficiais de saúde da mulher, enfermagem, planejamento familiar, controle da natalidade e políticas sociais.

Entendendo que a situação foco desta pesquisa precisava ser iluminada a partir das relações estabelecidas entre os diversos agentes envolvidos na implantação das propostas do CPAIMC, selecionamos para apoiar a análise e a discussão dos achados, alguns dos conceitos de Pierre Bourdieu, tais como: campo, poder simbólico, luta simbólica, violência simbólica e habitus.

 

O PAIMC E A PARTICIPAÇÃO DAS ENFERMEIRAS NA IMPLANTAÇÃO DAS PROPOSTAS DE CONTRACEPÇÃO DO CPAIMC

O programa do CPAIMC tinha como proposta a instalação de um sistema regionalizado de assistência integrada à mulher e à criança, constituído por nove unidades satélites locais, um centro de saúde, um hospital para crianças e um hospital geral, servindo aos 112.000 residentes das nove sub-regiões da III Região Administrativa do Rio de Janeiro9, dos quais 70% moravam em favelas (PAIMC, 1975, vol. IV, p.1-5).

O programa previa a realização de atendimentos à clientela, em quatro níveis: o primeiro nível no domicílio da cliente e na comunidade; o segundo, em unidade auxiliar de saúde ou unidade satélite; o terceiro, em centro de saúde; e o quarto nível, no hospital.

Os objetivos do Programa eram:

- implantar um modelo de prestação de serviços integrados, de saúde pública, com participação ativa da comunidade;

- melhorar as condições de saúde e de vida da comunidade pertencente à área de sua jurisdição;

- atingir ampla cobertura com baixo custo.

O programa tinha como propósito final, de acordo com o PAIMC (1975, vol.III, p.1-2), o desenvolvimento de um modelo de prestação de serviços de saúde que se estenderia a outras regiões do Estado ou do País e tinha como objetivos específicos:

Para a mãe - diminuir em 20% a mortalidade, em um período de 05 anos, mediante redução de complicações na gravidez, parto e pós-parto.

Para a Criança - diminuir, pelo menos, em 20% a mortalidade, em um período de 05 anos.

Para o Casal - diminuir a taxa de gravidez indesejável; diminuir o número de gestações em grandes multíparas; diminuir a freqüência de gravidez e prevenção do aborto provocado e suas conseqüências.

Para a Família - reduzir a morbimortalidade dos grupos etários não incluídos anteriormente.

O volume VI do PAIMC trata exclusivamente da Atenção ao Casal, no que se refere ao planejamento familiar, pré-nupcial e ao programa de infertilidade. Cabe dizer que as ações de saúde determinadas sob o rótulo de "Planejamento Familiar" referem-se exclusivamente à contracepção, e que o programa de infertilidade é tratado a parte. Pelo conteúdo do documento percebe-se claramente a ideologia controlista que norteava o programa, bem como a existência de prazos para o alcance de metas, relativas às taxas de natalidade, possivelmente impostas pelas agências estrangeiras, financiadoras da entidade.

Fora isto, identifica-se também a alegação à prevenção do aborto como justificativa para o controle da natalidade, o que, segundo Sobrinho (1993), se constituía no discurso utilizado não somente pela BEMFAM mas também pelo CPAIMC.

A equipe de saúde responsável pelo PAIMC tem como desafio no campo do Planejamento Familiar, usar recursos técnicos-financeiros limitados tão eficientemente quanto possível para melhorar as taxas de morbi-natalidade na população da III Região Administrativa, em um período determinado de tempo, principalmente em relação ao aborto provocado. (...) conseguindo-se racionalizar as taxas de fertilidade estaremos quebrando o ciclo de alta mortalidade, doença e miséria (...) (PAIMC, 1975, vol.VI, p.1) (grifo nosso)

A existência de metas relativas ao quantitativo de usuárias por métodos contraceptivos evidencia que eram mais valorizados, pelos profissionais do CPAIMC, os métodos contraceptivos que consideravam suficientemente eficazes para o alcance dos objetivos institucionais.

(...) tudo tinha um controle assim, no sentido de você atingir x, é...,é..., em busca de um quantitativo x, quer dizer, é um método..., cada um com um percentual de, vamos dizer assim... de... de... de usuários (...) já se sabia quais os melhores métodos, assim mais eficazes (...) havia assim um controle operacional muito bom (...) eu acredito que serviria de exemplo pra qualquer instituição (...) (Depoente, Enfermeira n.º 2)

O controle e o poder de inculcação exercido pelos dominantes sobre os agentes que viriam a alcançar as metas institucionais assegurou a eficácia do trabalho de inculcação, o qual se traduz na crença da depoente, no que diz respeito à qualidade dos métodos contraceptivos e dos serviços prestados.

Para Bourdieu (1998, p.14-15), o poder simbólico é o poder de impor significações, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, produzindo efeitos reais e dissimulando a violência que ele encerra. Fora isto, o autor (1999, p.72) acrescenta que os cargos oferecidos aos agentes dominados parecem exigir a submissão necessária para que cumpram as tarefas que lhes são atribuídas.

Como já podemos perceber, a proposta de contracepção do CPAIMC foi fortemente impregnada pela ideologia controlista que se apoiava na crença de que a limitação da natalidade poderia evitar a miséria, a fome e a insatisfação social. Esta constatação está claramente explicitada no depoimento que se segue, no qual o entrevistado cita como "principais motivos para o planejamento familiar":

Poder aquisitivo baixo, miséria, crescimento exagerado do índice populacional da classe menos favorecida, índice crescente de desemprego, desequilíbrio acentuado das condições socio-econômicas(...) (Depoente, médico)

Nas diretrizes do PAIMC, dirigidas aos profissionais de saúde, como as que se seguem, identifica-se o apelo explícito aos agentes para que estes utilizem de sua força simbólica, que detêm em função dos instrumentos de comunicação e conhecimento incorporados no campo, para impor às usuárias dos serviços os "métodos contraceptivos modernos" utilizados pelo programa.

As pacientes que, apesar de receberem todas as nossas orientações e esclarecimentos a respeito dos métodos contraceptivos modernos e que insistem em permanecer utilizando os métodos tradicionais, serão esclarecidas das suas vantagens e desvantagens e orientadas no sentido de que os métodos tradicionais não são tão seguros como os métodos modernos utilizados em nosso programa (PAIMC, 1975, vol.VI, p.33) (grifo nosso)

O médico orienta a paciente, faz anamnese e pratica o exame físico. Caso não haja contra-indicação aplica o método escolhido por ele e de acordo com a paciente (PAIMC, 1975, vol.VI, p.9) (grifo nosso)

As condutas prescritas com a freqüência contínua dos treinamentos, oferecidos aos agentes, acabam por determinar a incorporação destas, levando-os a adotar o ponto de vista dos dominantes e a impô-los às usuárias do serviço. Neste sentido, Bourdieu (1999,p.54) diz que o fundamento da violência simbólica reside não na consciência mistificada que bastaria esclarecer, e sim nas disposições modeladas pelas estruturas de dominação que as produzem.

Tanto os explícitos apelos à ordem quanto às imposições continuadas, silenciosas e invisíveis, feitas aos agentes dominados, no campo hierarquizado, os preparam a aceitar como evidentes, naturais e inquestionáveis as prescrições e proscrições que, inscritas na ordem das coisas, imprimem-se na ordem dos corpos e assim se perpetuam através da ação destes agentes que acabam por reproduzir sobre o receptor de seus cuidados, a violência a que foram sujeitos. (Bourdieu, 1999, p.62-71)

(...) às vezes até percebendo que seria talvez o melhor método para aquele casal e sentindo uma certa dificuldade de que aquilo fosse aceito (...) (Depoente, Enfermeira n.º 2)

A enfermeira que não se submetia à ordem institucional, ou seja, a enfermeira que não atualizava seu habitus, de modo a atender aos interesses institucionais e reproduzí-los no desenvolvimento de suas ações, tinha pouca possibilidade de permanecer no campo, o que é reforçado por Bourdieu (1998, p.31) que afirma que o agente só faz parte de um campo na medida em que nele sofre efeitos ou nele os produz.

Neste sentido, Bourdieu (1999, p.87-88) acrescenta ainda que é por intermédio daquele que detém o monopólio da violência dentro do campo que se exerce a ação psicossomática que leva à somatização da lei.

(...) quem ficava na instituição, realmente tinha que ficar... é... aceitando os preceitos determinados lá, senão não continuaria (...) (Depoente, Enfermeira n.º 2).

Cabe acrescentar que a insuficiência ou, na maioria das vezes, a ausência da abordagem da questão populacional e do planejamento familiar nos cursos de graduação pertencentes à área da saúde, aliada ao aumento da demanda de clientes para a contracepção, contribuíram para a grande procura, pelos profissionais, dos cursos promovidos pelo CPAIMC. Quatro depoentes assim se expressaram:

(...) a gente não aprendia nada de planejamento familiar na escola (...) A gente fazia muito treinamento (...) nesse meu trabalho (...) que viajo (...) tem sempre alguém que fez treinamento no CPAIMC (...) (Depoente, Enfermeira n.º 1).

(...) na faculdade não ensinam eles [os médicos] fazer ligadura de trompa (...) Eles, os médicos, eles tinham, assim, vontade de aprender a fazer ligadura de trompas por laparoscopia (...) e os médicos que vinham de fora também(...) (Depoente, Assistente Social).

(...) A grande procura pelo CPAIMC era pelo planejamento familiar porque as outras instituições não tinham (...) de todas as nossas atividades, que eram dezoito atividades, evidentemente 60% tava vinculado ao planejamento familiar, que era a grande procura (...) (Depoente, Enfermeira n.º 3).

(...) havia uma tendência maior para o projeto se dedicar ao planejamento familiar do que a outras ações (...) na verdade, havia preocupação de conter o número de filhos (...) (Depoente, Enfermeira n.º4).

Tal situação favoreceu as condições para que o CPAIMC, na qualidade de instância pedagógica, inculcasse sua ideologia, garantindo a reprodução do capital cultural imposto nos campos de atuação dos agentes treinados.

Neste sentido, Bourdieu e Passeron (1992, p.24-25) dizem que as ações pedagógicas, cujo poder de impor repousa sobre as relações de força entre os grupos ou classes constitutivas de determinada formação social, contribuem para a "função de reprodução social da reprodução cultural".

Em nosso meio, as enfermeiras do CPAIMC foram pioneiras na realização de técnicas, tais como inserção de DIU e mensuração de diafragma, que até então eram realizadas exclusivamente por médicos.

(...) começamos então a trabalhar, aí foi assim meio desacerto, né, porque enfermeira não podia, imagine enfermeira usar espéculo, imagine enfermeira fazer toque, imagine fazer inserção de DIU, até hoje tem... tem tabu quanto a isso. Imagine naquela época (...) a gente tinha toda liberdade (...) a gente tinha autonomia, coisa que não existia em canto nenhum (...) você tinha possibilidade de criar, de ousar, de investir e de realizar aquilo que devia ser feito (...) Então, era uma satisfação profissional muito, muito, muito, muito grande mesmo (...) (Depoente, Enfermeira n.º1) (grifo nosso)

Entretanto, vê-se claramente que a lei institucional foi plenamente incorporada, pela enfermeira, que acreditava gozar de uma liberdade que, segundo a depoente, "não existia em canto nenhum", mas estava limitada "àquilo que devia ser feito", traduzindo não somente a incorporação das diretrizes institucionais como também um devotamento afetivo à instituição, típico efeito da violência simbólica.

Neste sentido, Bourdieu (1999, p.51) diz que os agentes dominados, muitas vezes à sua revelia, ou até contra a sua vontade, contribuem para sua própria dominação, aceitando tacitamente os limites impostos.

Por sua vez, mesmo os ocupantes das posições mais próximas ao topo da pirâmide hierárquica do campo, ao receberem "assessoria" internacional, importam as ideologias impostas pelos países dominantes. Tal importação se dá em dois estados: no estado incorporado, mediante atualização do habitus e conseqüentemente, no estado objetivado, através da reprodução da ideologia no cotidiano.

Os efeitos, em cascata, da violência simbólica acabam atingindo, diretamente e em última instância, as usuárias do serviço que ficam privadas da liberdade de escolha de métodos contraceptivos e até da liberdade de planejar a própria família.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo das propostas de contracepção do programa de atenção materno-infantil do CPAIMC deixou clara a ideologia controlista que as norteava e que vinculava a redução dos índices de morbimortalidade e dos desequilíbrios sociais à redução das taxas de natalidade, utilizando como justificativa a prevenção do aborto.

Acrescenta-se a esta problemática, a questão do CPAIMC ter se constituído como instância pedagógica, o que lhe garantiu as condições para a inculcação da sua ideologia em um grande número de profissionais de saúde que realizavam os treinamentos por ele oferecidos.

As ações pedagógicas desenvolvidas nesses treinamentos eram tão eficientes que a grande maioria da clientela desses cursos reconhecia de imediato a legitimidade das informações transmitidas e passava a reproduzir o discurso de que o uso dos métodos contraceptivos "modernos" era seguro para a mulher e suficientemente eficaz para garantir a redução das taxas de natalidade.

O fato é que, mediante a análise das diretrizes da proposta de contracepção do CPAIMC e dos depoimentos dos sujeitos do estudo, ficou bastante clara a violência simbólica a que foram submetidos, tanto os profissionais de saúde treinados por esta entidade como as usuárias do serviço, receptoras de seus cuidados.

E mais, o processo de inculcação era tão efetivo que dissimulava as relações de poder entre os agentes, levando mesmo ao devotamento afetivo à instituição, o qual se traduzia na adesão incondicional às propostas do programa.

As condutas prescritas, pelo CPAIMC, aos agentes e, no caso deste estudo, às enfermeiras, como terminaram por ser incorporadas, determinaram a atualização do habitus profissional dessas enfermeiras, levando-as à adoção plena do ponto de vista dos dominantes e conseqüentemente a impô-lo tanto às usuárias do serviço, quanto aos membros da equipe de saúde por elas treinados.

Em nosso meio, o pioneirismo das enfermeiras do CPAIMC, no que diz respeito à sua atuação na assistência contraceptiva, somado aos instrumentos de comunicação e ao conhecimento que dominavam, permitiu-lhes serem reconhecidas como autoridades pedagógicas.

Esta condição lhes oferecia a prerrogativa de, através dos treinamentos oferecidos pela entidade, realizarem um trabalho pedagógico com outros membros da equipe de saúde, mediante o qual asseguravam a imposição de significações, por elas incorporadas no campo, pela inculcação da ideologia institucional, e a partir daí garantiam a reprodução de sua visão de mundo acerca da contracepção e do seu uso.

Desta forma, as enfermeiras do CPAIMC, ao atualizarem o habitus profissional de seus receptores pedagógicos, formaram agentes capazes de reproduzir a formação que elas próprias receberam.

Como mencionamos, ao garantir a reprodução do capital cultural imposto, se bem que sem qualquer tipo de coação, nos campos de atuação dos agentes treinados, as enfermeiras do CPAIMC contribuíram para a reprodução da ideologia controlista da instituição e para a utilização da contracepção como um instrumento para o controle da natalidade.

Por tudo isto, reconhecemos que, ainda nos dias de hoje, a atuação das enfermeiras e de outros profissionais de saúde, no que se refere à assistência contraceptiva, está fortemente impregnada pela ideologia controlista, a qual acaba por gerar entre nós a adoção de posturas coercitivas e autoritárias para a clientela, reproduzindo na prática as diretrizes do programa do CPAIMC.

Acreditamos firmemente que a tomada de consciência representa o primeiro passo para que transformemos as disposições incorporadas, rompendo com a cadeia de reprodução da dominação e da violência que cerca o polêmico assunto da contracepção.

Neste sentido, ressaltamos que é preciso continuar analisando criticamente as políticas e programas de saúde, em sua construção histórica, para que não nos deixemos ser utilizadas como instrumentos para o alcance de objetivos que em nosso entendimento, são ilícitos.

Portanto, há que se proporcionar condições para a discussão desta problemática, nos mais diversos espaços sociais, dentre eles: nos cursos de graduação e de pós-graduação da área da saúde, nas unidades de saúde que prestam assistência contraceptiva à clientela, nas entidades de classe.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS10

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______. O poder simbólico. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

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FERREIRA, A B.H. et al. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

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MINAYO, Maria Cecília de Souza et al. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1994.

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SOBRINHO, Délcio da Fonseca. Estado e população: uma história do planejamento familiar no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993.

SOS CORPO Grupo de Saúde da Mulher (Recife) - Viagem ao mundo da contracepção: um guia sobre os métodos anticoncepcionais. Recife: Rosa dos Tempos, 1990.

 

NOTAS

1 Professora do DEMI/FEUERJ, mestre em enfermagem pela EEAN/UFRJ, membro do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira (Nuphebras).

2 Professora Titular do Departamento de Enfermagem Fundamental da EEAN/UFRJ, pesquisadora do CNPq e membro do Nuphebras.

3 Margareth Sanger, enfermeira, nasceu em Nova York em 1883 e faleceu em 1966.

4 Entende-se por diretrizes o conjunto de instruções ou indicações para se tratar e levar a termo um plano, uma ação (Ferreira et al. 1986, p.594).

5 Sobrinho (1993) comenta que a história do CPAIMC teve início por meio de um enfermeiro, o norte-americano Leslie Charles Scofield, autor da proposta desta instituição.

6 Segundo a depoente, enfermeira n.º 1, o enfermeiro Leslie Charles Scofield Jr. faleceu assim que retornou aos Estados Unidos.

7 Cabe acrescentar que a busca de informações acerca da localização dos sujeitos do estudo, bem como de documentos escritos, nas instituições públicas que mantinham relações com o CPAIMC, foi extremamente difícil devido à falta de preservação de documentos que não somente resguardariam a memória das instituições e seus atores mas também facilitariam o desenvolvimento de pesquisas.

8 Quanto aos documentos pertencentes aos arquivos do CPAIMC, a depoente/enfermeira n.º 1 afirma que grande parte da documentação foi perdida. Entretanto, tive acesso a 11 dos 15 volumes do PAIMC, os quais pertencem ao arquivo pessoal de uma das enfermeiras que atuou no CPAIMC em período muito posterior ao definido no recorte temporal deste estudo.

9 Os bairros pertencentes à Terceira Região Administrativa do Rio de Janeiro, conhecida como Rio Comprido, são: Catumbi, Rio Comprido, Cidade Nova e Estácio (IPLANRIO, 1995, p.33).

10 No trabalho também foram utilizados depoimentos gravados e uma síntese de depoimento, como fonte documentais consultadas.

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