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CAPES

Volume 4, Número 1, Jan/Abr - 2000

ARTIGOS DE PESQUISA

 

A enfermagem e a saúde da mulher: questões de gênero e sociopolíticas

 

Nursing and women's health: social, political and gender issues

 

La enfermería y la salud de la mujer: cuestiones de género y sociopolíticas

 

 

Cristiane Rodrigues da RochaI; Patrícia Regina Affonso de SiqueiraI; Paula Renata França OlivieraI; Maria Aparecida Vasconcelos MouraII; Thelma SpindolaIII

IMestrandas da Escola de Enfermagem Anna Nery da UFRJ
IIProfª Drª do Núcleo de Pesquisa em Enfermagem da Saúde da Mulher (NUPESM) do Departamento de Enfermagem Materno Infantil da Escola de Enfermagem Anna Nery da UFRJ
IIIDoutoranda da Escola de Enfermagem Anna Nery da UFRJ, Professora Assistente da Faculdade de Enfermagem da UERJ. Enfermeira do HUGG-UNIRIO

 

 


RESUMO

O estudo apresenta uma reflexão sobre a evolução da mulher e suas conquistas na dimensão sociopolítica através de um breve recorte histórico, evidenciando sua inserção no mercado de trabalho e as modificações acarretadas para sua vida no núcleo familiar e na sociedade. Avalia a política de atenção à saúde da mulher discutindo os avanços e limites que apresenta, como também a questão da violência e a repercussão na saúde dessa parcela da população. Faz-se uma contextualizacão da mulher brasileira, destacando-se o compromisso da enfermagem como uma profissão da área de saúde essencialmente e majoritariamente feminina, valorizando-se as orientações, o encaminhamento aos demais profissionais e, sobretudo, a escuta, o olhar atentivo e a solidariedade.

Palavras-chave: Saúde da mulher - Enfermagem - Trabalho


ABSTRACT

This paper presents a theoretical reflection about women's evolution as well as the social and political dimensions of their conquests through a historical approach. Women's insertion in the work market and the consequent changes in their life in the family sphere as well as in society are emphasized. This study evaluates not only women's health care policy, discussing its advancements and limitations, but also the issue of violence against women and the repercussions on the health of this part of the population. The Brazilian women's context is analyzed, placing great emphasis on the commitment of nursing, considering that it is an essentially and major women's profession in the area of health. Nurses' orientations to other professionals and, more importantly, their listening, attentive look and sympathy are also valued.

Keywords: Women's health - Nursing - Work


RESUMEN

El estudio presenta una reflexión sobre la evolución de la mujer y sus conquistas en la dimensión sociopolítica a través de un breve recorte histórico, evidenciando la inserción de la mujer en el mercado de trabajo y las modificaciones que trajo consigo para su vida en el núcleo familiar y en la sociedad. Evalúa la política de atención a la salud de la mujer discutiendo los avances y límites que presenta, al igual que la cuestión de la violencia y su repercusión en la salud de este grupo poblacional. Se hace una contextualización de la mujer brasileña, destacándose en el compromiso de la enfermería como una profesión del área de salud especialmente femenina y valorando las orientaciones, la remisión a los demás profesionales y sobre todo la escucha, la mirada atenta y la solidaridad.

Palabras claves: Salud de la mujer - Enfermería - Trabajo


 

 

INTRODUÇÃO

A população residente no Brasil, até 1998, conforme dados da Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE atingia cerca de 158 milhões de pessoas e, em sua maioria, do sexo feminino, um total superior a 80 milhões. Neste contingente, incluem-se as menores de idade, aquelas em idade produtiva e reprodutiva e as idosas. A história da mulher, nas distintas comunidades, não prosseguiu de maneira contínua e, conforme a cultura de cada comunidade, teve conquistas diferenciadas, como referem Beauvoir (1980), Muraro(1995), Oliveira(1997) e outros. Ao longo dos anos, elas tiveram suas funções limitadas ao interior da família, com papéis diretamente relacionados à reprodução dos filhos, distantes da força de trabalho. Sua inserção no mercado produtivo mudou o curso da história e provocou alterações na configuração das comunidades. Nos tempos atuais, precisa conciliar os papéis de mulher, mãe e profissional, e este perfil é um aspecto importante a ser observado na prestação de assistência à saúde dessa clientela. As políticas governamentais de atenção à saúde dessa parcela da população devem contemplar não somente os aspectos biológicos da saúde, como os psicológicos e sociais.

A questão da violência contra a mulher também não pode ser distanciada de seus programas haja vista a incidência de violência a que estão expostas quer no ambiente intrafamiliar ou na sociedade.

 

A EVOLUÇÃO DA MULHER E SUA INSERÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO

Desde os tempos mais remotos, a família era o núcleo central dos povos primitivos. Talvez não com o mesmo significado de hoje, porém os grupos organizavam-se em torno das famílias.

A história da raça humana começou com a fêmea, refere Miles (1989), destacando que a mulher carregou o cromossoma humano original garantindo a sobrevivência da espécie. Segundo a referida autora (op.cit.), as mulheres primitivas não tinham vida longa, morrendo antes dos 20 anos, realizavam inúmeras tarefas em sua breve existência, ficando ocupadas com a coleta de comidas, o cuidado com as crianças, fabricação de cerâmicas, ferramentas para usos variados, aplicação medicinal de plantas para curas e abortos, entre outros afazeres.

A diferença entre os sexos sempre existiu, estando presente desde o início dos tempos. Não apenas no sentido biológico, mas principalmente no social. No entender de Fonseca (1996,p.10):

(...) o sexo social e historicamente construído é produto das relações sociais entre homens e mulheres e deve ser entendido como elemento constitutivo destas mesmas relações nas quais as diferenças são apresentadas como naturais e inquestionáveis ao contrário, a análise mais profunda de tais relações revela condições extremamente desiguais de exercício de poder, onde as mulheres vêm ocupando posições subalternas e secundárias em relação aos homens.

Nesta concepção, desde os povos primitivos havia uma relação de dominado e dominador entre os sexos, sendo a mulher prisioneira de sua própria condição biológica.

A evolução feminina não prosseguiu de maneira contínua, cada comunidade tinha suas crenças e leis próprias havendo distinções entre elas. Assim sendo, conforme a cultura de cada comunidade, a mulher teve conquistas diferenciadas (Beauvoir, 1980).

Ao longo dos anos, foram excluídas das atividades públicas e tiveram suas funções delimitadas no interior da família, com papéis diretamente relacionados à reprodução, distantes da força de trabalho e dos processos decisórios na esfera pública.

Com a entrada da mulher no mercado de trabalho, muitas transformações ocorreram em sua vida, na busca de sua independência pessoal e realização profissional. O trabalho feminino foi tardiamente regulamentado em decorrência da falta de organização das mulheres em sindicatos, de sua tradição de resignação e submissão, da falta de solidariedade e consciência coletiva diante das novas condições. Assim, as trabalhadoras contentavam-se com os baixos e diferentes salários que recebiam, evidenciando que não sabiam defender-se de seus exploradores, como refere Beauvoir (1980).

A propósito da participação da mulher na População Economicamente Ativa (PEA), Fonseca (1996) refere que, ao final dos anos 80, havia cerca de 22 milhões de trabalhadoras no Brasil, sendo que mais de sete milhões passaram a integrar o mercado de trabalho, o que representou um crescimento de 48%. Neste sentido, Bruschini (1992) lembra que a participação da mulher no sistema produtivo é definida pelas condições oferecidas pelo mercado de trabalho, como também pelas potencialidades da mulher de inserir-se neste espaço. Assumem importância neste contexto as características individuais como condição marital, número de filhos, idade, e escolaridade que, entre outros atributos, também determinam e/ou facilitam/dificultam a sua inserção no sistema produtivo.

Para a referida autora (op.cit.,1992), contribuiu nesse processo a elevação das expectativas de consumo diante da proliferação de novos produtos e sua promoção, o que fez com que se redefinisse o conceito de necessidade econômica para as famílias das camadas de média e baixa renda. A este respeito, Fonseca (1996,p.101) acrescenta que:

(...) contribuíram ainda para atrair as mulheres para o mercado de trabalho as profundas transformações nos padrões de comportamento e nos valores relativos ao seu papel social, intensificadas pelo impacto dos movimentos feministas e pela presença cada vez maior da mulher nos espaços públicos. Além disso, facilitaram a oferta de trabalhadoras a intensa queda da fecundidade, a expansão da escolaridade e o acesso maciço das mulheres às universidades.

Assim sendo, embora existam novos espaços de ocupação, as mulheres trabalhadoras, em geral, concentram-se em áreas específicas, especialmente no setor terciário da economia, nos serviços que englobam atividades de pouco prestígio social. Existe diferenciação destas áreas de ocupação conforme a classe social e escolaridade. Houve uma ampliação da participação feminina nas atividades de nível médio (administrativas e comércio). As mulheres que completam o curso superior têm como maiores opções o magistério e a enfermagem (Fonseca, 1996).

Na opção da mulher pelo "mundo" do trabalho, refere Moreira (1999,p.57), deu-se a busca por carreiras que se aproximassem das características femininas. Assim, afirma que (...) a saída de casa deu-se através de profissões tais como a enfermagem e o magistério, onde a mulher aparece com funções de cuidado e ensino remetidas ao universo familiar. Neste sentido, Avendaño, Grau e Yus (1997,p.117) reconhecem a enfermagem (...) como um prolongamento das atividades de cuidado e atenção da saúde que as mulheres têm assumido historicamente em relação às suas famílias e a comunidade.

A enfermagem, como o magistério, é caracterizada como uma profissão de mulheres, profissão esta que, no mundo público, representava uma extensão do lar, de um feminino dócil, que cuida, nutre e educa (Moreira, 1999).

Nas últimas décadas, as mulheres passaram a ter importante papel na composição da renda familiar, fato que, associado à ausência de políticas sociais voltadas para a criação de creches e escolas, bem como à difusão dos meios e informações sobre contracepção, contribuíram para a redução dos níveis de fecundidade (Médici, 1989). De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais (IBGE, 2000), os níveis estimados de fecundidade total no Brasil, no ano de 1998, são da ordem de 2,4 filhos por mulher em idade reprodutiva. Este valor traduz um declínio acelerado da fecundidade visto que, nas décadas de 60-70, este nível aproximava-se de seis filhos por mulher.

Em relação às condições de trabalho, Médici (1989) destaca que o grande problema da baixa remuneração feminina reside na diferença quanto à natureza das ocupações e magnitude das jornadas de trabalho. Assim, a necessidade da mulher em conciliar sua vocação profissional com a sobrevivência econômica e o desenvolvimento da família as leva a buscarem ocupações de tempo parcial. Embora a participação na força de trabalho masculina seja mais elevada (73,6%), o mercado de trabalho vem apresentando uma participação maior das mulheres, com uma taxa de 47,5%, chegando a ultrapassar 31 milhões de trabalhadoras. A posse da carteira assinada é maior entre as mulheres (66,9%) do que para os homens (59,5%) na mesma categoria, provavelmente porque grande parte da força de trabalho feminina está concentrada nas ocupações domésticas (IBGE, 2000).

Em relação às famílias, acrescenta-se que, em 1998, havia no Brasil cerca de 45,2 milhões de famílias, sendo que 74,1% eram chefiadas por homens e 25,9% por mulheres. Todavia, vale observar que 96,6% dos cônjuges residem em famílias de chefias masculinas, enquanto apenas 3,3% residem onde a chefia é feminina. Em relação à renda por tipo de arranjo familiar, as famílias com chefe mulher sem cônjuge tendem a ter uma renda inferior àquela onde se pode contar com a presença de um casal. Neste caso, pode-se afirmar que existe uma pessoa a menos que poderia estar contribuindo para a renda da família. Neste aspecto, existem no Brasil mais de 7 milhões de mulheres chefes de família residentes com seus filhos e destas, 23,8% recebem até meio salário mínimo; 22,3% recebem mais de ½ até 1 salário; 20,2% recebem mais de 1 a 2 salários; 8,0%, de 2 a 3 salários; 6,6%, de 3 a 5 salários; apenas 5,3% recebem mais de 5 salários, segundo os dados de 1998 (IBGE, 2000).

 

AS POLÍTICAS PÚBLICAS NA ATENÇÃO À SAÚDE DA MULHER

Desde 1984, com a publicação, em nível nacional pelo Ministério da Saúde, do Programa de Assistência à Saúde da Mulher (Brasil, 1984) e o Programa da Assistência à Criança (Brasil, 1984), a saúde da mulher e da criança foram determinadas, pelo governo, como áreas de prioridade política e social. Apesar disso, nos anos que se seguiram, muitas outras publicações oficiais, em âmbito nacional e latino-americano, surgiram na tentativa de oferecer uma assistência de qualidade a esta população e de diminuir as complicações decorrentes da assistência à saúde inadequada que então existia.

A análise das condições da saúde feminina torna-se uma atividade de difícil empreendimento quando se considera que o perfil desta população refere-se, na maior parte das informações disponibilizadas, aos dados que se relacionam ao ciclo gravídico-puerperal. Desta forma, quando há uma tentativa de diagnosticar a saúde da mulher em aspectos não reprodutivos, depara-se com um entrave vigoroso, a falta de informações e de programas oficiais específicos nos serviços de saúde de referência.

A saúde da mulher merece especial atenção por parte das políticas públicas de atenção à saúde. Este fato justifica-se não somente pelo quantitativo feminino superior ao masculino na população, mas refere-se sobretudo às tendências sociais que estão se desenvolvendo ao longo da história das sociedades até os dias atuais, onde a mulher encontra-se cada vez mais inserida no desempenho de atividades externas ao ambiente doméstico, quer como força economicamente produtiva, quer como participante de atividades sociocomunitárias.

Assim, não basta enfocar o ciclo gravídico puerperal para assistir com qualidade a saúde de uma mulher. Existem questões peculiares e específicas que devem ser consideradas, sobretudo tendo em vista a atual configuração da inserção feminina na sociedade. A assistência à saúde da mulher deve considerar seu novo perfil contemplando os aspectos relacionados às suas atividades enquanto mãe, esposa e profissional. As mulheres acumulam essas funções com repercussão direta no seu estado de bem-estar físico e mental.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a saúde é um estado de bem-estar físico, mental e social, e não necessariamente ausência de doença. Nessa concepção, pode-se identificar inúmeras falhas no perfil da assistência pública à saúde feminina no Brasil, não apenas quanto à saúde da mulher, mas à saúde de forma ampla e geral para todos os segmentos sociais e populacionais. Sobretudo, quando consideramos a saúde feminina, esta situação encontra-se particularmente agravada, uma vez que os aspectos assistenciais estão quase sempre direcionadas para a expressão do papel social feminino, restringindo a condição da mulher à maternidade e, mais atualmente, ao papel de esposa. Apesar do enfoque das políticas públicas que centralizam a saúde da mulher nos aspectos anteriormente citados, as taxas de mortalidade feminina apontam os riscos obstétricos como a terceira maior causa de mortalidade entre as mulheres na idade reprodutiva. Desse modo, cabe uma reflexão séria e comprometedora para toda e qualquer política de saúde direcionada para a mulher. Se os aspectos obstétricos considerados como enfoque principal para a saúde da mulher encontram-se respondendo pela terceira grande causa de mortalidade feminina, o que vislumbrar para os outros setores que deveriam ser implementados, mas que ainda não possuem um peso social tão forte que mereçam destaques?

As mulheres, assim como os homens, morrem principalmente de patologias crônicas como as cardiopatias, câncer e doenças associadas. No entanto, elas possuem condições biopsicossociais suficientes para particularizá-las no agravo destas situações de saúde. No aspecto biológico, pode-se considerar as variações hormonais e as conseqüências acarretadas ao nível físico e psicológico e ainda, quanto aos aspectos sociais, pode-se considerar a tripla jornada de trabalho feminino, no desempenho de suas funções acumuladas de mãe, esposa e profissional, além das responsabilidades que pairam sobre a mulher, como inerentes ao desempenho de cada uma destas atividades. Na questão da inserção no mercado de trabalho, por exemplo, temos a preocupação com a contribuição que a renda feminina pode gerar na renda familiar. Geralmente, nas famílias de baixa renda, a chefia familiar é desempenhada pela mulher, sendo ela a responsável direta por prover e manter os recursos de sua família.

Por todas estas vertentes apresentadas, torna-se necessário um olhar diferenciado e urgente para essa expressiva parcela da população feminina que apresenta necessidades de atenção à saúde imediata. Neste aspecto, considerase o papel da enfermagem na assistência à essa população como uma profissão que prima pela integridade do ser humano, buscando um olhar assistencial holístico, no desempenho de suas atividades como profissional de saúde.

A enfermagem representa uma categoria que muito tem a contribuir para a melhoria da qualidade da assistência à saúde da mulher, pelas suas práticas e seu corpo de conhecimento teórico-científicos. Enquanto categoria profissional, encontra-se plenamente inserida nos programas atuais de assistência à mulher, embora ainda necessite lutar para preservar o espaço conquistado para sua expressão profissional. Nesse sentido, em todos os níveis assistenciais à saúde da mulher, há a necessidade da inserção da (o) enfermeira (o), como a (o) profissional que interage diretamente com a população assistida.

De uma forma ampla, a partir de todos os aspectos situacionais da assistência de saúde à mulher no Brasil, pode-se perceber que, apesar de transcorridos quinze anos, desde a primeira publicação oficial que definiu, de forma específica, a saúde da mulher como área de prioridade política e social até os dias atuais, se identifica claramente que este objetivo ainda não foi plenamente alcançado. Além disso, as necessidades das mulheres brasileiras apontam para muitas vertentes ainda não contempladas pelas autoridades públicas em seus programas de saúde, ou seja, uma assistência à saúde da mulher que englobe não somente os aspectos reprodutivos, mas também as necessidades inerentes à sua condição feminina frente à sociedade.

A mulher, considerada como um ser com características diferenciadas em todas as perspectivas da sua inserção social, merece um olhar diferenciado. A inserção da mulher no mercado de trabalho e as conseqüências para seu estado de bem-estar, as conseqüências das atividades profissionais acumuladas com as atividades domésticas, patologias crônicas com enfoque voltado para as características fisiológicas, os aspectos psicológicos relativos às condições hormonais femininas e a relação da mulher com o meio social neste período, estes são apenas alguns dos aspectos dentre tantos especificamente femininos.

 

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM REFLEXO NA SAÚDE

Estamos vivendo um período onde os contrastes sociais entre pobres e ricos vêm aumentando. Os problemas sociais, como o desemprego e a falta de incentivo governamental, têm proporcionado revolta na população. A violência vem aumentando assustadoramente, refletindo em todos os âmbitos da sociedade, inclusive na estrutura familiar. Como podemos observar, a sociedade é violentada todos os dias, quando enfrenta a realidade sócio-econômica na qual está inserida. A esse respeito, Suárez e Bandeira (1999, p.13) referem que:

(...) a relação entre o crescimento interpessoal e a instabilidade econômica das nações é bastante clara, seu emprego para solucionar os problemas sempre presentes nas relações humanas está diretamente ligado a certos hábitos culturais e políticos, tais como a estereotipagem das diferenças de classe, de gênero ou de raça e o exercício da desigualdade do poder e da cidadania.

No contexto da violência contra a mulher, além da violência social a que a população como um todo está exposta, existem as violências físicas, psicológicas e sexuais realizada na maioria das vezes por homens que têm algum envolvimento afetivo com as vítimas. Nessa questão, existe um fator nitidamente histórico refletindo na sociedade de hoje, associado à diferença de gêneros e instituído em um regime patriarcal, onde o poder do homem não deveria ser contestado por nenhuma mulher.

Nesse sentido, Chaves (1986) refere em sua obra que o patriarcado foi instituído no período neolítico, a partir da descoberta pelo homem da sua participação no papel da procriação. Antes dessa descoberta, a mulher, cuja maternidade é inquestionável, era reverenciada como sendo a única capaz de gerar uma vida, obtendo dessa maneira o respeito por parte dos homens.

Após a instituição do patriarcado, o homem, através da força, realizou várias barbaridades, decorrentes da diferença entre os gêneros (Moura e Costa,1999). Esses homens detinham o poder legal sobre as mulheres, sendo estas, na época, consideradas incapazes de exercer certos atos da vida civil. Somente há pouco tempo, através dos esforços feministas, conseguiu-se modificar o estatuto da mulher casada, de 1962, na disposição que considerava a mulher incapaz para certos atos da vida civil, sendo equiparada aos maiores de 16 e menores de 21anos, aos pródigos [esbanjadores] e aos selvículas [selvagens] (Pimentel, 1993).

A violência contra a mulher é uma das violações mais comuns de desrespeito aos direitos humanos, sendo praticada indiscriminadamente, principalmente no âmbito familiar, sendo invisibilizada por ocorrer normalmente nas relações particulares entre pessoas que têm algum laço de afetividade, como o marido ou companheiro. Esse aspecto é constatado por Carmo (1998, p.12) ao afirmar que:

A violência doméstica é uma das formas mais comuns de manifestação da violência e, no entanto, uma das mais invisibilizadas, pois é o tipo de violência que ocorre no âmbito das relações particulares entre integrantes ou ex-integrantes de uma mesma família, tendo normalmente a casa (residência) como o espaço físico "privilegiado" para sua manifestação.

Várias são as formas de violência contra a mulher na sociedade, desde uma diferença salarial de um cargo similar ocupado por um homem até as agressões física, psicológica e sexual decorrentes, muitas vezes, de relações conturbadas entre marido e mulher. No pensamento de Grossi (1996, p.134), a violência contra a mulher é definida pela Nações Unidas como sendo qualquer violência de gênero que resulta em danos psicológicos, físicos e sexuais, incluindo ameaças, coerção, ou de privação arbitrária da liberdade, seja na vida pública ou privada. Prossegue esclarecendo que essa violência pode ser também simbólica quando são estabelecidos papéis sociais e sexuais, impostos pela sociedade.

Em 1985, graças aos esforços dos movimentos feministas, criou-se a primeira Delegacia de Defesa da Mulher, organizada pelo Centro de Orientação Jurídica e Encaminhamento à Mulher (COJE) junto à Procuradoria Geral do Estado de São Paulo da Secretaria de Estado de Negócios da Justiça (Goldenberg et al., 1989). A essa Delegacia cabe a investigação e apuração dos delitos contra as mulheres. Nos primeiros cinco meses de funcionamento, essa Delegacia atendeu 2.037 ocorrências, sendo que 73% entre casais que moravam juntos, segundo os autores supracitados.

Essas delegacias especializadas, denominadas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAM's), se expandiram para outras cidades brasileiras como Rio de Janeiro e Brasília, evidenciando a mesma problemática da violência intrafamiliar. Mesmo após as denúncias, muitas mulheres ainda vivem sofrendo agressões e ameaças do agressor, comprometendo suas vidas e a de seus dependentes (Pompeu, 1999). Para isso, foram criadas as casas-abrigo, que recebem mulheres em perigo de vida, até que possam reestruturar suas vidas.

As mulheres que vivenciam situações de violência por não conseguirem, muitas vezes, exteriorizar seus problemas, acumulam os sofrimentos, que se refletem na saúde física, psicológica e emocional. Para Almeida (1999, p.12), no que se refere à violência intrafamiliar "O impacto da violência doméstica é extremamente nocivo à saúde da mulher (...) o que seguramente acarreta a elevação do consumo de serviços de saúde, com vista à medicação de um problema que é antes de tudo, político, social, cultural e jurídico". Muitas mulheres, complementa a autora (op.cit), após vivenciarem situações de violência, apresentam um nível elevado de depressão, com idéias suicidas três vezes maior do que a população feminina como um todo. No entender de Grossi (1996), o problema da violência contra a mulher muitas vezes permanece oculto para os profissionais de saúde. A mulher, ao buscar atendimento nos serviços de saúde, queixa-se de palpitações, ansiedade, nervosismo, perturbações digestivas e outros, como sintomas secundários à verdadeira causa do problema.

Dessa forma, os trabalhadores de saúde devem ser sensíveis e estaré preparados para perceber que estas queixas podem estar encobrindo um contexto social no qual, muitas vezes, somente uma prescrição medicamentosa não será capaz de solucionar o problema. Daí a necessidade de preparar profissionais e formar equipe multiprofissional, que discuta e implemente programas de atendimento à mulher em situação de violência no país.

 

A MULHER NA ATUALIDADE E O COMPROMISSO DA ENFERMAGEM

A mulher, na atualidade, tem um perfil bem diferente das gerações anteriores. Em geral, diminuíram o número de filhos, estão inseridas no mercado de trabalho (seja formal ou informal) e sua força de trabalho reforça (e muitas vezes provê) a renda familiar. Para Miles (1989), a vida da mulher girava em torno da "santíssima trindade", ou seja, marido, lar, família. Entretanto, a mulher moderna precisa conciliar os mundos público e privado e esta necessidade fez com que a configuração familiar também sofresse alterações. O que antes era atribuição exclusiva da mulher passou a ser "dividido" ou compartilhado com o companheiro. Foram inseridas no contexto doméstico inovações tecnológicas que facilitam os afazeres domésticos, além da opção, em alguns estados, da escolha de creches para a guarda das crianças enquanto os pais trabalham.

A legislação trabalhista também foi alterada garantindo à mulher a licença-maternidade (120 dias), a licença-paternidade (7 dias) e a licença-amamentação. As instituições municipais e estaduais garantem três meses de afastamento para amamentação, as federais e demais instituições privadas são regidas pelo regime de trabalho das Leis Trabalhistas e têm liberação por uma hora, (saída mais cedo ou chegada mais tarde) até a criança completar seis meses mediante solicitação do pediatra. Mesmo assim, muitas mulheres ainda têm seu acesso dificultado ou impedido de ingresso ou reingresso no mercado de trabalho pela presença dos filhos em função da guarda das crianças ou pela opressão por parte das empresas.

Por outro lado, permanecer no mercado de trabalho reveste-se de grande sacrifício para as mulheres que convivem com as disputas em um espaço competitivo e lutam para conciliar seus múltiplos papéis. Segundo Muraro (1995), a população feminina no Brasil sofreu muitas alterações nos últimos anos, sendo que metade das estudantes das universidades, juntamente com as camponesas e operárias, perfazem quase 40% da força de trabalho. Faz distinções entre a mulher rural, as negras residentes nas favelas e as brancas revelando que, em sua grande maioria, a mulher negra sustenta sozinha a situação familiar, o "chefe" da família, e esclarece que a situação da mulher em nossa sociedade varia conforme sua classe social. Apesar de a mulher ter uma presença maciça nas universidades, Fonseca (1996) destaca a enfermagem e o magistério como as ocupações de maior procura.

No pensamento de Válery (1996), a situação da mulher no Brasil tem algumas características específicas, sendo destacado a persistência das desigualdades no acesso ao emprego, nas áreas de ocupação e em relação aos salários; continua crescendo o número de famílias pobres monoparentais sob a responsabilidade das mulheres. Estão ausentes do poder e das instâncias de decisão em todas as estruturas hierárquicas; em seu cotidiano, sofrem violência social, doméstica, física e sexual. Apesar do acesso à educação, permanece uma distinção por gênero que segrega homens e mulheres em área de ocupação, acentuando-se o problema na formação profissional. Não existe assistência satisfatória à saúde da mulher em todas as fases de sua vida pela inexistência de recursos nos serviços públicos; a legislação ordinária ainda não promove a igualdade entre homens e mulheres, conforme preconiza a Constituição Brasileira de 1998. A interpretação das leis pelo Poder Judiciário não contempla a igualdade de gênero apesar dos avanços da Constituição; às desigualdades de gênero acrescentam-se as socio-econômicas e raciais.

A enfermagem como profissão majoritariamente feminina também está incluída neste contingente populacional de mulheres trabalhadoras, desempenhando os diversos papéis inerentes à condição feminina. Nesse sentido, atentando para o novo perfil da mulher brasileira e lembrando do seu compromisso com a saúde das comunidades, destaca-se esta parcela da população, a qual tem suas condições de saúde agravadas pelos fatores estressantes de seu cotidiano enquanto mulheres, mães e profissionais, estando sujeitas a doenças como hipertensão, úlcera gástrica, infarto agudo do miocárdio, dentre outras. Assim sendo, é necessário que sejam estudadas propostas de intervenção que direcionem esforços para a garantia da saúde física e mental, a dignidade humana, o respeito social e o direito de cidadania a este grupo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ser mulher no mundo moderno assumiu conotações bem diferenciadas. Ao ingressar no trabalho remunerado, ela acumulou, gradativamente, duplas ou triplas jornadas que, em muitas situações, podem provocar o estresse emocional, considerando que as "tarefas domésticas" e a educação dos filhos continuam sob sua responsabilidade e resultam num acréscimo de atribuições. Assim, suas condições de saúde repercutem neste novo perfil da mulher da atualidade, estando sujeita a patologias como cardiopatias e hipertensão, dentre outras.

Os programas de saúde devem atentar para as particularidades da mulher de hoje contemplando todos os aspectos (biológico, psicológico e social) na prestação de assistência, reconhecendo também as questões da violência contra a mulher como fator importante a ser observado.

Apesar das dificuldades, ou talvez por causa delas, há que se ressaltar o esforço de todas na luta diária empreendida em prol do "status" social obtido no decorrer do tempo, garantindo com seu trabalho a possibilidade de independência, de uma vida melhor, de sua afirmação pessoal e profissional e de exercer os direitos inalienáveis que todo ser humano tem ao trabalho, lazer, saúde. Por outro lado, a enfermagem, como profissão essencialmente feminina, ao prestar assistência à clientela, deve manter um olhar atento e solidário para esta parcela da população contextualizada, inserida em uma realidade ímpar, valorizando as orientações para a saúde e o encaminhamento aos demais profissionais.

 

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NOTAS

1O presente artigo é resultado de uma síntese do trabalho apresentado na disciplina obrigatória do Seminário de Mestrado e Doutorado dos Cursos de Mestrado e Doutorado da EEAN/UFRJ.

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