ISSN (on-line): 2177-9465
ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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ABEC
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FAPERJ
SCIELO
REDALYC
MCTI
Ministério da Educação
CAPES

Volume 4, Número 1, Jan/Abr - 2000

CONFERÊNCIA

 

A enfermagem na universidade brasileira: buscando espaços, conquistando posições

 

Nursing education in brazilian universities: challenges and conquests

 

El movimiento de inserción en la educación en enfermería en las universidades brasileñas: desafíos y conquistas

 

 

Suely de Souza BaptistaI; Ieda de Alencar BarreiraII

IProfª Titular do Deptº de Enfermagem Fundamental da EEAN/UFRJ; pesquisadora 1 C do CNPq; membro do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira (Nuphebras)
IIProfª Titular do Deptº de Enfermagem Fundamental da EEAN/UFRJ; pesquisadora 1 A do CNPq; membro do Nuphebras
Endereço: Rua General Glicério, nº 82, aptº 503 - Laranjeiras
Rio de Janeiro - RJ - Brasil. CEP: 22 245-120
e-mail: suelybaptista@openlink.com.br

 

 


RESUMO

O estudo discute as modificações na configuração da carreira de enfermagem na sociedade brasileira, advindas de sua inserção na universidade, que se iniciou no final da década de 30 e veio a completar-se com a Reforma Universitária de 1968. Com esta Reforma, criou-se um forte contraste entre as escolas de enfermagem e as de medicina, o qual até hoje é motivo de controvérsias. Contudo, a luta que se trava no cotidiano da vida universitária, ao colocar em interação os atores sociais envolvidos, propicia a atualização das representações sobre a carreira de enfermagem. Ao longo de sua trajetória o ensino de enfermagem alcançou apreciável grau de autonomia. Por isto também, um maior grau de cientifização da enfermagem, constitui talvez o maior desafio que as escolas têm que enfrentar, enquanto unidades universitárias, em busca de maiores espaços político-institucionais e de firmar, cada vez mais, sua reputação na comunidade científica nacional e internacional.

Palavras-chave: Universidade - Reforma - História da enfermagem


ABSTRACT

This socio-historical study discusses the changes that shaped nursing career in Brazilian society after its insertion in Brazilian universities. Emerged in Europe in the early days of the profession, social representations about modern nursing are still reproduced, although part of its power was lost in almost 150 years of existence. Now mingled with new representations, they build a complex picture that presents ambiguities and contradictions. The insertion of nursing education in Brazilian universities began in the late 30's. In mid 50's, institutions of higher education were agglutinated in order to fulfil the minimum legal requirements imposed by the Ministry of Education for the foundation of public universities. Benefited by this policy, nursing insertion in Brazilian universities was completed with the establishment of the 1968 University Reform, which created a strong contrast between nursing and medicine schools. Even today such contrast is the reason for controversy. On the other hand, there is a struggle in daily university life to reorganize and update the social representations about nursing in the academy. This is accomplished by making the ones involved interact. Nursing education reached a remarkable autonomy level along the years. Therefore, nursing schools search for increasing its political and institutional participation and consolidating even more its reputation in the national and international scientific community. That is also why maybe the greatest challenge to be faced by nursing as a field of study is the process of becoming more and more scientific.

Keywords: Universities - Reform - History of nursing


RESUMEN

El estudio discute las modificaciones en la configuración de la carrera de Enfermería en la sociedad brasileña, a partir de su inserción en la universidad, que ha empezado al final de la década de 30 y se ha completado con la implantación de la Reforma Universitaria de 1968. Con esta Reforma, se ha creado un fuerte contraste entre las escuelas de Enfermería y las de Medicina, lo que hasta hoy es motivo de controversias. Todavía, la lucha que se traba en el cotidiano de la vida universitaria, al colocarse en interacción los protagonistas envolvidos, propicia la actualización de las representaciones sobre la carrera de Enfermería. A lo largo de su trayectoria, la enseñanza de Enfermería ha alcanzado considerable grado de autonomía. También por esto, un mayor grado de nivel científico de la Enfermería, constituye quizá el mayor desafío que las escuelas necesitan enfrentar, mientras como unidades universitarias, buscando mayores espacios políticos e institucionales y de firmar, cada vez más, su reputación en la comunidad científica nacional e internacional.

Palabras claves: Universidades - Reforma - Historia de la enfermería


 

 

INTRODUÇÃO

A universidade é uma instituição social de extraordinária vitalidade, que vem persistindo por oito séculos. No Brasil, o advento do ensino superior ocorreu no século 19, mas sua organização sob a forma de universidade só veio a ocorrer no início do século que ora se encerra. E se antes somente as famílias ricas podiam mandar seus filhos para as faculdades, a fim de prepará-los para as funções sociais destinadas à sua classe, durante todo o século 20, ela veio sendo pressionada a desempenhar, além de seu papel de guardiã do conhecimento, de mediadora entre antigas e novas gerações e de crítica da sociedade, a função de formar pessoas habilitadas a exercer profissões valorizadas por sua utilidade social, bem como a de facilitar o acesso de integrantes de todas as camadas sociais, e cada vez em maior número. Contudo, o estudante universitário não deve ser apenas um futuro profissional, mas também um cidadão que tenha a capacidade de tomar posições na sociedade em que vive e a de se adaptar a situações que, ademais de complexas, encontram-se em permanente processo de mutação. E também que tenha a possibilidade de contribuir para o desenvolvimento de sua profissão e de repensar o papel da universidade.

Esta é a aula inaugural do ano 2000 da Escola Anna Nery, a primeira escola de enfermagem brasileira segundo os princípios preconizados por Florence Nightingale e também a primeira a ser integrada a uma universidade, em 1937, à época denominada Universidade do Brasil, a mais antiga do país. O primeiro e mais evidente propósito de uma aula inaugural é o de apresentar os novos alunos à escola e a seus colegas e apresentar a eles o corpo docente, representado pelo professor distinguido com a honra de proferí-la. Esta recíproca apresentação constitui-se em um rito de passagem, ou seja, a admissão dos novos estudantes na comunidade universitária.

Mas existe um outro importante significado da aula inaugural, este de natureza pedagógica, que é o de deixar perceber a natureza da atividade denominada preleção, ou seja, o discurso feito em aula pelo professor, através do qual passa a seus alunos a tradição do aprendizado pela reflexão, os quais dele absorvem, de modo às vezes subliminar, uma certa visão de mundo. Para o professor, o dever de dar aulas o obriga a repensar seu conhecimento, a reconsiderar os problemas de sua área de estudo e a rever suas posições.

E é neste sentido que, mediante uma abordagem sócio-histórica, pretendo mostrar e comentar algumas das modificações ocorridas na configuração da carreira de enfermagem na sociedade brasileira, advindas, principalmente, de sua inserção na universidade.

 

DESENVOLVIMENTO

Atualmente existem cerca de 114 escolas de enfermagem de nível superior espalhadas por todo o território nacional, que formam anualmente mais de cinco mil enfermeiros, e que contam com um corpo discente de aproximadamente quarenta mil alunos de graduação. Cabe ressaltar a existência de 16 cursos de mestrado, oferecidos por 13 escolas de enfermagem brasileiras, entre federais e estaduais. Sete, destas 13 escolas, oferecem também 10 cursos de doutorado, os únicos da América Latina. Vale dizer que 12 cursos de mestrado e nove de doutorado estão localizados nas regiões mais desenvolvidas do país, ou seja, sul e sudeste. Estas escolas já titularam quase 1500 mestres e mais de 400 doutores. Algumas delas oferecem também seus programas de pós-graduação, em sistema de extensão, para outros estados brasileiros e para outros países, principalmente os da América Latina.

Portanto, é enorme a vitalidade e o dinamismo das escolas de enfermagem brasileiras que, nas últimas duas décadas e meia mostraram uma impressionante capacidade de renovação, tanto no ensino de graduação como no de pós-graduação, em relação dialética com o desenvolvimento das atividades de pesquisa. Atribuímos estas características ao fato de que o centro motor de suas atividades vem sendo os desafios que têm emergido de nossa prática cotidiana e das perplexidades derivadas das circunstâncias de cada momento, quando se procura, apesar de tudo, dar conta de nosso compromisso social.

Assim é que, apesar da instabilidade crônica, político-administrativa e econômica, em que vivemos em nosso país, e que afeta tão duramente a universidade brasileira, a maioria das escolas de enfermagem vêm conseguindo apresentar respostas aos desafios que enfrentam, tanto no que se refere à pesquisa, como instrumento imprescindível de crítica e de proposição, como no debate dos magnos problemas da enfermagem, da universidade e de sua inserção na sociedade. No entanto, o caminho até aqui percorrido foi vencido pelos profissionais de enfermagem mediante muito empenho e descortino.

No Brasil, desde os tempos coloniais, a administração e a assistência de enfermagem, na maioria dos hospitais, estavam a cargo de religiosas. Com a República, surgiram os primeiros cursos profissionais de enfermagem, bem como uma escola, segundo o modelo anglo-americano, que se denominou Anna Nery, a qual, em 1931, veio a tornar-se a escola oficial padrão para a criação e o reconhecimento de novas escolas de enfermagem. À época da criação das escolas de enfermagem padrão ananeri, ainda não havia universidade em muitos dos estados da federação. Também, por isto, o ingresso da enfermagem nas universidades iniciou-se na virada da década de 30 para a de 40. Mas esse movimento só ganhou impulso com a política do Ministério da Educação de incentivo à organização de universidades, uma vez que, em 1954, seu número ainda era de apenas 16.

A estratégia adotada foi a de federalização e aglutinação de instituições de ensino superior, entre as quais as escolas de enfermagem já existentes. Assim, na década seguinte já havia 37 universidades no país (entre federais, estaduais e religiosas), espalhadas pela maioria dos estados brasileiros (Cunha, 1983, p.95), observando-se assim um crescimento de mais de 130%, ou seja, de 16 para 37, no período entre 1954 e 1964. A partir daí, várias escolas de enfermagem já foram criadas inseridas nas universidades1, embora com diferentes graus de autonomia.

O exame das circunstâncias de fundação das escolas de enfermagem nos mostra que várias delas foram criadas anexas a faculdades de medicina. O currículo de enfermagem atendia às incipientes especialidades médicas e os professores-médicos lecionavam as disciplinas básicas e também a parte teórica relacionada aos princípios científicos. Cabia às professoras-enfermeiras relacionar esses conteúdos teóricos à arte ou à técnica de enfermagem, aplicada às diversas clínicas, e isso tanto em sala de aula como nos laboratórios de enfermagem e nos campos de estágio.

Desse modo, a enfermagem configurou-se inicialmente como uma profissão paramédica. Como vimos, e considerando o momento histórico, essa situação de dependência das escolas de enfermagem não deixava de apresentar vantagens, tanto de ordem pedagógica como política, e por isto contava com uma certa aquiescência por parte das professoras de enfermagem. Com isto, "obtinha-se uma relativa aceitação no campo, no entanto incompatível com a afirmação de um projeto existencial próprio" (Barreira, 1999, p.136). Nessas circunstâncias, muitas turmas de enfermeiras foram formadas antes que a categoria começasse a levantar questionamentos sobre a razão de ser da profissão na sociedade brasileira.

Vale lembrar que a posição da enfermagem nas universidades, assim como o desenvolvimento do seu ensino no Brasil, sempre estiveram relacionados à condição da mulher em nossa sociedade. A questão da escolaridade das candidatas às escolas de enfermagem foi motivo de intermináveis discussões entre as diretoras desses estabelecimentos que, por muitos anos, hesitaram em exigir das postulantes à carreira um nível maior de instrução, por temerem não serem suficientes os atrativos da profissão para o pequeno contingente de mulheres de classe média que, além de ter concluído o curso secundário, tivesse a aspiração, as possibilidades materiais e o apoio da família para fazer outros estudos. O fato é o de que as docentes de enfermagem não chegaram a formar um consenso a respeito. Não obstante, a aceitação de moças com apenas o curso ginasial reforçou a representação social da carreira de enfermagem como subsidiária.

E se isto não chegou a impedir a entrada das escolas de enfermagem nas universidades, certamente lhes acarretou uma posição incômoda, em relação às demais carreiras de nível superior. Essa questão terminou sendo resolvida por força da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1961, que determinou a exigência do curso secundário completo para o ingresso em qualquer instituição de ensino superior. Mas foi somente com a progressiva implantação da Reforma Universitária de 19682, a qual se constituiu em um divisor de águas para o ensino da enfermagem, que nossas escolas mudaram sua configuração, embora movidas por forças até alheias à sua vontade.

Cabe destacar que até 1969 haviam sido criadas, no Brasil, 44 escolas de enfermagem, sendo que 33 (75%) eram vinculadas aos governos (federal, estadual ou municipal) ou então eram mantidas por congregações religiosas, que em sua maioria ofereciam cursos gratuitos. E dessas 44 escolas, 11 (25%) eram vinculadas a estabelecimentos de ensino com fins lucrativos.

Durante os anos 70, o Departamento de Assuntos Universitários do Ministério da Educação e Cultura, frente à insuficiência numérica de enfermeiras no país, favoreceu a criação de 36 escolas de enfermagem universitárias, sendo: 67% (24) públicas e 33% (12) particulares. Vale lembrar que o crescimento das escolas de enfermagem ocorreu tanto pela criação de novas escolas como pela ampliação do número de vagas ofertadas para a carreira, no bojo do processo geral de massificação do ensino superior. Assim, a Reforma Universitária, que teve decisivas repercussões tanto quantitativas como qualitativas, representa o importante momento de ruptura acontecido na formação da enfermeira brasileira.

Em uma perspectiva qualitativa, as escolas de enfermagem passaram a apresentar uma feição propriamente acadêmica, com sua inclusão como unidade universitária em Centros de Ciências da Saúde, ou Biomédicos, o que correspondeu ao seu reconhecimento como área de saber. Essa melhor inserção foi reforçada pela instituição da pós-graduação stricto sensu, que gerou uma produção científica de enfermagem mais significativa, ainda que incipiente. Mas, no que se refere à organização do corpo docente, observou-se, com essa reforma universitária de 68, um forte contraste entre as escolas de enfermagem e as de medicina, pois as mesmas seguiram direções inversas.

Enquanto que muitas professoras de enfermagem, que até então acumulavam a chefia das enfermarias de hospitais das universidades, transferiram a responsabilidade, tanto da administração como da assistência, para as enfermeiras-chefes das unidades de internação, passando a freqüentar os campos clínicos apenas nas horas de estágio dos alunos, ao contrário, os professores de medicina continuaram a acumular o cargo de chefes de clínicas, assumindo a responsabilidade final, tanto pelo ensino médico como pelo tratamento dos clientes, garantindo sua presença contínua nos hospitais das universidades, por eles considerados como laboratórios de ensino. Este desencontro até hoje é motivo de controvérsias entre médicos e enfermeiras.

Neste sentido, a separação ensino-serviço de enfermagem, se por um lado, desencadeou uma perda de espaço da docente enfermeira nesses campos hospitalares, propiciou, por outro lado, e pela primeira vez, que o corpo docente das escolas de enfermagem passassem a ser integrados exclusivamente por enfermeiras. E se houve uma perda de antigos referenciais sobre a formação da enfermeira, também houve a possibilidade dessas professoras redirecionarem seus esforços para a premente necessidade de se prepararem para dar conta de suas novas responsabilidades pedagógicas, tendo em vista a exigência legal de obtenção do grau de mestre.

Na verdade, a busca de maior autonomia profissional não parece vir aproximando as docentes de enfermagem dos hospitais universitários, mediante uma estratégia de ocupação de espaços. De outro modo, para as professoras de enfermagem, o caminho da autonomia parece passar pelas novas abordagens adotadas nos currículos de seus cursos de graduação e de pós-graduação e no desenvolvimento de linhas de pesquisa que encaminhem o projeto que têm para a enfermagem e atendam suas perplexidades. Mas o certo é que o caminho da produção científica coloca para essas professoras um dilema, qual seja, o de ser a pesquisa de enfermagem trespassada por uma dupla determinação de seu objeto de estudo e de trabalho, ao mesmo tempo biológica e social. E se a ênfase no biológico pode acarretar uma perda de autonomia, uma demasiada ênfase no social pode lhe custar não só o preço do isolamento político no âmbito dos Centros de Ciências da Saúde, mas também a perda de parte da sustentação teórica que legitima a profissão, enquanto prática cientificamente fundada.

Os projetos integrados, que caracterizam a atividade de pesquisa como um processo de trabalho interdisciplinar e coletivo, poderiam ensejar uma participação mais interessante e mais interessada da docente de enfermagem nos hospitais universitários. O trabalho cooperativo de pesquisa, aplicado aos problemas dos serviços de enfermagem, favoreceria a emergência de grupos de enfermeiras assistenciais-pesquisadoras, o fortalecimento de linhas de pesquisa do tipo experimental e a participação de enfermeiras (docentes e assistenciais) em projetos multiprofissionais, o que contribuiria também para o incremento da produção científica desses hospitais, das escolas de enfermagem e de outras unidades dos Centros de Ciências da Saúde.

Temos que levar em consideração que o desenvolvimento da vertente biomédica da pesquisa em enfermagem vem sendo prejudicado pela insuficiente articulação entre as escolas de enfermagem e os demais órgãos dos Centros de Ciências da Saúde, como os hospitais e os Institutos Básicos. Mas também temos que reconhecer que esses hospitais e esses institutos não vêm garantindo os meios necessários ao avanço da pesquisa de enfermagem, de modo a que professoras e estudantes possam melhor se engajar em suas atividades de pesquisa.

Como clientela preferencial dos cursos de mestrado, e ainda mais dos de doutorado, as professoras vêm sendo as responsáveis pela produção ou (re)produção do conhecimento de enfermagem. No entanto, as enfermeiras de serviço, como responsáveis que são pela aplicação do conhecimento gerado, por sua apreciação e adaptação às exigências e urgências da prática, ou seja, pela introdução de mudanças e inovações indispensáveis ao bom funcionamento do sistema, também constroem um saber, que não deve ser menos valorizado que o saber acadêmico. Além disso, o fenômeno relativamente recente, mas muito intenso, de ingresso de enfermeiras de serviço nos cursos de pós-graduação indica a possibilidade, de todo conveniente, da redução da distância entre docentes e enfermeiras assistenciais, tendo-se em vista que a complementaridade das suas funções não pressupõe uma hierarquia, e portanto não deve provocar uma divisão da categoria.

Contudo, se quisermos pensar em termos de transformação da situação atual, temos que considerar que a base de todo o processo de produção de conhecimento em escala é a iniciação científica do estudante de graduação. Neste sentido, ao contrário do que se observava em décadas anteriores, quando estes participavam como bolsistas apenas dos Institutos Básicos, hoje verificamos a ampliação, ainda que de todo insuficiente, do número de estudantes bolsistas engajados em pesquisas coordenadas por professores de enfermagem. Isto se deve ao pleno desenvolvimento dos cursos de pós-graduação stricto sensu, nos anos 90, ao aumento do número de pesquisadoras-enfermeiras apoiadas pelas agências de fomento e ao surgimento dos núcleos de pesquisa no interior dos departamentos de enfermagem.

Uma constatação estimulante é a de que agora nos damos conta de como se alargaram as perspectivas dos estudantes de hoje, em comparação às alunas e enfermeiras veteranas. No momento, já se oferece ao estudante e ao professor de enfermagem uma visão mais nítida do que seja uma carreira voltada para o ensino superior e a pesquisa, a finalidade dos cursos de mestrado e de doutorado, as possibilidades de incentivo financeiro, bem como a vinculação dos títulos de pós-graduação stricto sensu e da produção científica com a progressão na carreira de enfermagem. E o significado dessas mudanças é profundo, posto que corresponde a uma importante mudança no próprio perfil profissional e de sua representação social. E mais ainda porque, neste quase século e meio de existência, aquelas representações sociais sobre a enfermagem, surgidas nos primórdios da profissão na Europa, embora tenham perdido parte de sua força, continuam ainda sendo reproduzidas, agora mescladas a novas representações, formando um quadro que, em sua complexidade, apresenta ambigüidades e contradições.

A integração ensino-pesquisa nos hospitais universitários talvez seja, além de um modo de garantir uma presença mais intensa das professoras nestes locais, uma estratégia de superação de certas dificuldades por vezes ainda sentidas pelas professoras e pelas enfermeiras assistenciais de fazer reconhecer a legitimidade da diferença do saber de enfermagem frente ao saber médico.

Pois é sobre um pano de fundo de luta pelo mercado de trabalho e pela manutenção dos privilégios de corporação que ocorrem as tentativas de manipulação, pela categoria dominante, das desvantagens que se apresentam aos representantes das demais carreiras. Estes, cientes da grande importância do seu trabalho, têm que manter um esforço sustentado no sentido de fazer ver e fazer crer seus pontos de vista.

Contudo, no contexto da dinâmica social, a convivência de estudantes e professoras de enfermagem com alunos e professores de outros cursos se faz com proveito para a carreira de enfermagem, pois obriga a um processo permanente de reelaboração e atualização das representações sociais sobre as diversas carreiras na academia.

Além disso, a apropriação de certas competências pelas professoras de enfermagem aumentou seu capital cultural, pela aquisição de saberes específicos (teorias e processos, estratégias e métodos), pelo domínio da linguagem de certas áreas afins (tanto de corte biomédico como da área das ciências humanas e sociais), e de uma certa capacidade argumentativa, o que lhe facultou uma nova condição profissional e um apreciável grau de autonomia.

Por isto, um maior grau de cientifização da enfermagem, enquanto área de domínio do conhecimento, constitui talvez o maior desafio que as escolas têm que enfrentar, enquanto unidades universitárias, em busca de maiores espaços político-institucionais e de firmar, cada vez mais, sua reputação na comunidade científica nacional e internacional.

Mas, para tanto temos que enfrentar a pouca disponibilidade de recursos para a pesquisa na área de enfermagem. O CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que deveria ser a principal agência de fomento à pesquisa em nosso país, não vem respondendo às demandas da área. No momento, esse órgão oferece menos de cem bolsas de Produtividade em Pesquisa, para apoiar enfermeiras pesquisadoras, que concorrem em desvantagem com pesquisadores de outras áreas, que têm maior tradição na produção do conhecimento. No que se refere à Iniciação Científica, além daquelas poucas bolsas vinculadas diretamente aos projetos apoiados pelo CNPq, e que não alcançam o número de cinqüenta, a agência repassa às universidades um certo número de bolsas, denominadas Pibic (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica). O modo como vem sendo feita a distribuição destas bolsas entre os diversos centros das universidades, e entre os pesquisadores das diversas unidades universitárias, muitas vezes vem prejudicando o desenvolvimento de nossa área, pois nem sempre tem seguido critérios de eqüidade. Outra fonte de recursos são as fundações estaduais de amparo à pesquisa, que operam tanto na distribuição de auxílios financeiros como na concessão de bolsas, e que em várias unidades da federação se vêm melhor estruturando, de modo a mostrar uma atuação mais consistente. Mas, ao final das contas, o certo é que a enfermagem não vem recebendo o investimento e os incentivos compatíveis com suas reais possibilidades de produção de conhecimentos.

Como sabemos, a utilidade social da universidade vem sendo duramente contestada, até porque, como nos adverte Marilena Chauí (1993), a universidade carece de um programa político que oriente sua vocação científica e defina as formas de suas relações com a sociedade. No âmbito do ensino superior, o projeto do governo aponta para uma política de modernização, entendida como racionalização, vinculando o financiamento das universidades a critérios de avaliação baseados em índices de eficiência e de produtividade. Mas o problema é o de que quem faz as perguntas também determina os critérios de classificação, e não só o que e como ensinar, mas também o que e como pesquisar, colocando em cheque a autonomia das universidades e portanto de suas unidades, dentre ela, a das escolas de enfermagem.

No que se refere às instituições mantenedoras, a situação das escolas de enfermagem inverteu-se drasticamente desde a década de 80, segundo a tendência geral de privatização do ensino superior: dos 43 novos cursos de enfermagem, apenas 30% (13) estão vinculados aos governos federal, estadual ou municipal, e 70% (30) a instituições privadas.

Mas é preciso lembrarmo-nos de que são as universidades públicas que têm sustentado, apesar de todas as dificuldades, os padrões de qualidade do ensino e da pesquisa no Brasil, não obstante a inversão ocorrida desde os anos 60, quando 30% das matrículas do ensino superior alocavam-se nas faculdades particulares, enquanto hoje apenas 33% das matrículas do ensino superior estão alocadas nas universidades públicas. E tanto assim que as universidades públicas têm 77,2% dos professores com doutorado, oferecem 87% dos cursos de mestrado e 89% dos cursos de doutorado do país. Na área de enfermagem, 100% dos cursos stricto sensu são oferecidos por universidades públicas.

A área da saúde enfrenta o desafio adicional de responder à crise do sistema de prestação de serviços, pois ainda que a política social nos anos 80 se tenha voltado para um sistema público de saúde orientado pelos preceitos da seguridade social, na realidade, o projeto político que se vem consolidando é o de corte neoliberal, orientado pelos preceitos da participação mínima do Estado, com grandes prejuízos para a enfermagem, pois o propósito do sistema público, qual seja o controle do processo saúde-doença na população, mediado pela vigilância epidemiológica, articulado à assistência individual, abriria novas perspectivas para a atuação das enfermeiras, tanto nos hospitais como nas unidades sanitárias (Silva et al, 1993, p.62).

 

CONCLUSÃO

A questão é que a inserção da enfermagem na universidade é um processo que transcorre no tempo, é uma totalidade em movimento, cuja estrutura dialética deve ser compreendida e explicitada em função da história. É importante ressaltar que do presente não faz parte apenas o passado próximo ou remoto, mas também o futuro, próximo ou distante. Por conseguinte, o que estamos sendo não é apenas uma resultante do que fomos, mas também do que pretendemos e queremos ser. Como diz Bourdieu (1989, p.141), "a concepção e a formulação de uma representação mais ou menos elaborada de um futuro coletivo" impõe um esforço crítico e reflexivo sobre os caminhos que nos trouxeram à realidade presente e sobre as possibilidades de ruptura com os modelos vigentes de visão e de classificação do espaço social, em que trabalhamos e convivemos, o que inclui a produção de novas categorias de percepção e de apreciação. No entanto, se o mundo social resulta, em grande parte, da ação dos sujeitos históricos em cada momento, contudo, eles isoladamente não têm a liberdade "de o desfazer e de o refazer" (Bourdieu, 1989, p.150). Assim, a possibilidade de modificar nossa condição no campo da universidade depende do conhecimento sobre sua dinâmica e de uma avaliação realista da posição que nele ocupamos e do que somos capazes, no espaço dos possíveis.

A nossa situação é a de que se, por um lado, estamos entre as escolas de nível superior que mais cedo contribuíram para a emancipação da mulher em nossa sociedade, por outro lado, somos uma profissão ainda jovem. No entanto, nossa juventude não nos pode impedir de pensar os dilemas de nossa sociedade, nem de nos empenharmos em empreendimentos que contribuam para que a universidade desempenhe a contento o papel que lhe cabe na sociedade brasileira. Assim é que tanto o peso da tradição como a desculpa da juventude precisam ser superados por um movimento de renovação, que apresente uma síntese que contenha, ao mesmo tempo, o saber da enfermagem construído em sua práxis na sociedade brasileira e uma proposta que considere o devir da profissão.

Contudo, o fato de concebermos novos caminhos, de procurarmos transformar a universidade, em benefício da formação mesma do enfermeiro e por conseguinte da melhoria dos serviços de saúde, corresponde a uma luta coletiva por maior autonomia, entendida como poder de definir os princípios de avaliação que nos são próprios, em conformidade com nossos interesses, em vez da aceitação de enunciados alheios.

Esse empreendimento, o qual objetiva o rompimento com os critérios vigentes de categorização social, na verdade, começa com o ato de enunciar a possibilidade de uma nova ordem, de representar-se, mediante novas práticas, em ruptura com o discurso de consagração da velha ordem, fazendo do cotidiano o espaço político de transformação das relações sociais (Heller, 1985). O poder de constituir o consenso de um grupo depende da capacidade de explicitar, de tornar público, o mal-estar, a ansiedade, a expectação e a inquietação, que até então permaneciam como experiências individuais (Bourdieu, 1989). Pois como já sabemos, sempre que conseguirmos tornar visível o que não o era e declararmos o que antes calávamos, evidenciando as contradições para todos, o espaço social será por força (re)configurado (Rancière, 1995, p.46-48).

Acreditamos que esse exercício de reflexão possa, em primeiro lugar, transformar a nós mesmos, pelo surgimento de uma nova consciência, construída no trabalho mesmo de resgatar a história, analisar, criticar, extrair significados, pensar o futuro e os novos compromissos que não cessam de se colocar à nossa consideração.

Oferece-se então o ensejo de pensar em novos empreendimentos, como a reconsideração da contribuição de cada escola para os cursos de graduação e de pós-graduação, a ampliação da base do programa de iniciação científica, a consolidação de nossos órgãos de divulgação, a aglutinação de grupos de pesquisa em novos núcleos, o fortalecimento de nossas entidades de classe, o estabelecimento de bases para um intercâmbio nacional e internacional permanentes e o incremento das condições para o oferecimento do pós-doutorado pelas escolas de enfermagem à comunidade científica.

Devido aos avanços realizados, aqueles antigos juízos sobre a enfermagem não mais se ajustam à realidade atual. Não obstante, a enfermagem ainda almeja uma posição na universidade mais condizente com o reconhecimento que lhe é devido por seus pares.

Portanto, o contexto de ineqüidade e de contradições que nos envolve, ao mesmo tempo em que nos afeta e nos impregna, também nos qualifica para, a partir da sua compreensão, tentar sua superação. Pode-se dizer que está feita a conquista da consciência de que a nós enfermeiros e estudantes de enfermagem compete escrever a história da enfermagem brasileira, pois acreditamos que aqueles que desfrutam de maior visibilidade e que estão mais qualificados a promover mudanças quase sempre são justamente os que estão menos interessados nelas.

E também entendemos que a situação da enfermagem na universidade não nos é exterior, mas, ao contrário, é um problema próprio, pessoal, de cada um de nós enfermeiros e que a vivência desse problema não depende da nossa vontade, pois não podemos nos comportar como se a nossa vida não fosse por ele afetada, como se a nossa existência pudesse dele isolar-se. Querendo ou não, participamos do jogo político, que é uma luta pelo poder de conservar ou de transformar as categorias de percepção do mundo social.

A maior ocupação dos espaços da universidade por estudantes e professores de enfermagem é indispensável para que possamos participar, junto com os outros grupos, da luta que movimenta este campo, pois se nela entrarmos isoladamente, individualmente, e em estado de dispersão, teremos que, de algum modo, ou aceitar que outros definam nossa identidade ou deixar-nos assimilar à identidade dominante. Portanto, o caminho para a valorização da carreira de enfermagem na universidade não pode ser trilhado apenas por alguns, ao contrário, tem que ser uma posição e uma disposição de um coletivo institucionalizado.

No momento, as transformações no mundo do trabalho estão afetando duramente a universidade brasileira e desses embates certamente surgirá um novo perfil de professor e de estudante. Percebemos que, de uma maneira ou de outra, está sendo feita a reconstrução dos juízos sobre todos os atores sociais presentes neste campo de ação. Nessa transição surgem as condições reais para a elaboração coletiva de um projeto para a carreira de enfermagem na universidade. Portanto, precisamos conhecer, cada vez mais e melhor, a realidade concreta da vida universitária, não como mero exercício acadêmico, mas como tarefa histórica de libertação. E com a certeza de que agora e sempre continuaremos buscando espaços e conquistando posições, que nos são devidos por direito, diante das provas cabais e reiteradas da imensa contribuição que temos dado no encaminhamento dos problemas que afetam a qualidade de vida de nossas gentes.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1Aula inaugural da Escola de Enfermagem Anna Nery, proferida em 13 de março de 2000.

2Mesmo nos Estados em que já havia universidade, até meados da década de 70, algumas das escolas de enfermagem foram criadas como estabelecimentos isolados de ensino superior.

3Lei 5540/68.

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