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CAPES

Volume 6, Número 2, Mai/Ago - 2002

ARTIGOS DE REFLEXÃO

 

Um ensaio teórico filosófico sobre o desejo no cuidado numa perspectiva interdisciplinar

 

A theoretical and reflexive essay about the desire inside care from an interdisciplinary perspective

 

Un ensayo teórico filosófico sobre el deseo en el cuidado en una perspectiva interdisciplinaria

 

 

Enéas Rangel Teixeira

Enfermeiro e psicólogo. Professor Adjunto do Departamento de Enfermagem Médico-cirúrgica da Escola de Enfermagem da UFF e da UERJ. Doutor em Enfermagem. Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Subjetividades e Cuidados com o Corpo na Saúde - CNPq - versão 50

 

 


RESUMO

Trata-se um estudo teórico e reflexivo sobre o desejo no cuidado, baseado nos conceitos da esquizoanálise de Guattari e Deleuze e na sociologia sensível de Maffesoli, os quais tratam a subjetividade numa perspectiva individual, social e política.
OBJETIVA-SE: contribuir para melhor compreensão da dimensão subjetiva do cuidado; realizar uma distinção entre a necessidade e o desejo na enfermagem; buscar uma possível convivência da dimensão sensível e instrumental no cuidado. Neste sentido, o desejo é visto como uma expressão de vida, com potencialidade transformadora no campo da saúde. É importante mudarmos nossa percepção e ações de cuidadores para uma perspectiva que inclua a subjetividade e o sujeito desejante no cuidado, coadjuvantes às ações instrumentais. Essa abordagem não é definitiva e nem prescritiva, mas útil para melhor compreensão da arte de cuidar.

Palavras-chave: Enfermagem. Ensaio. Desejo. Necessidade. Psicologia. Transformação.


ABSTRACT

It is a theoratical and reflexive study about the desire which is inside care, based on Guattari and Deleuze schizoanalyse concepts, in which the subjectivity is treated from an individual, social and political perspective.
THE OBJECTIVE: to contribute to a better understanding of the subjective dimension of care; to make a distinction between necessity and desire in nursing; to look for an intimacy between the sensitive and instrumental dimension inside care. In this way, the desire is seen as an expression of life, with a potential of transformation in the health field. It is important to change our perception and actions of care professionals into a perspective in which the subjectivity and the individual needing care are included, as well as the instrumental actions. This approach is not definitive or prescriptive, but useful for a better understanding of the art of care.

Keywords: Nursing. Essay. Desire. Necessity. Phychology. Transformation.


RESUMEN

Se trata de un estudio teórico y reflexivo sobre el deseo en el cuidado, basado en conceptos de la esquizoanálises de Guattari y Deleuze y en la sociología sensible de Maffesoli, que tratan la subjetividad en una perspectiva individual, social y política.
LOS OBJETIVOS: contribuir para una mejor comprensión de la dimensión subjetiva del cuidado; realizar una distinción entre la necesidad y el deseo en la enfermería; buscar una posible convivencia de la dimensión sensible e instrumental en el cuidado. En este sentido, el deseo es visto como una expresión de vida, con potencialidad transformadora en el campo de la salud. Es importante cambiar nuestra percepción y acciones de cuidadores para una perspectiva que incluya la subjetividad y el sujeto deseoso del cuidado, coadyuvantes a las acciones instrumentales. Esta forma de abordar no es definitiva y tampoco prescriptible, pero es útil para mejor comprensión del arte de cuidar.

Palabras claves: Enfermería. Ensayo. Deseo. Necesidad. Psicologia. Transformación.


 

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Percebe-se, atualmente, uma abertura no campo da saúde para se trabalhar com a subjetividade numa perspectiva teórica interdisciplinar no campo da enfermagem e da saúde. Entendo que esse respaldo teórico é epistemológico e histórico social, num processo de mudança de paradigmas no campo da saúde.

Ancoragem é espistemológica no sentido de novas produções de saber que vêm tecer um território diferenciado na arte de cuidar, território que resgata e apreende modalidades da vida não abordadas apropriadamente pelo paradigma realista positivista. Neste sentido, os estudos pós-modernos possibilitam falar da pluralidade do cotidiano, da estética e do sensível. Assim sendo, a ciência não pode estar deslocada do desejo de seus representantes, pois o ser humano é sujeito de desejo (ALTOÉ,1999). Estas preposições abrem caminhos para entender o desejo na enfermagem.

O respaldo histórico e social se dá no sentido das transformações que ocorrem na sociedade diante das insatisfações e desgastes com práticas técnicas e científicas e com a subjetividade capitalista, norteada pela lógica de mercado, de modo que essa insatisfação leva a um movimento social em busca de novos saberes e práticas na saúde.

Assim sendo, estamos vivendo o pósmodernidade, no qual emerge o sensível, a globalização, a cibernética, a pluralidade e a estética do cotidiano. Enfim, essas transformações mobilizam nosso ser, nossas habilidades intelectuais, afetivas e psicomotoras. Esse devir mudança nos instiga a ousar e a criar virtualidades no cuidado com o corpo, criando linhas de fugas no instituído.

É nesse panorama que este artigo se fundamenta, no qual tenho como objetivos: contribuir para a melhor compreensão da subjetividade no cuidado; realizar uma distinção entre a necessidade e o desejo; apontar um possível convivência dessa dimensão sensível com o cuidado instrumental, repensando esses conceitos. Este trabalho se baseia na tese de que o desejo é real no cuidado (TEIXEIRA e FIGUEIREDO, 2001).

Nessa panorama, a subjetividade não é o contrário de objetividade, e nem um conceito inerente à introspecção individual, mas justamente o território que possibilita a criação e produção de novas virtualidades no campo social. Subjetividade é produção de sentido, sentido das coisas, da vida e do cuidado. Subjetividade não é apenas uma produção de sentido conceitual, mas produção de efeito na realidade dos sujeitos desejantes. As subjetividades, capitalista e religiosa, demonstram isso o tempo todo por intermédio de suas tendências homegeneizadoras das singularidades desejantes.

O desejo tem uma dimensão coletiva, no sentido de entender que a subjetividade capitalista lida com o desejo, controlando-o e impedindo que os sujeitos expressem seu desejo de modo genuíno e espontâneo, os quais são sufocados pela lógica do mercado que extrai as emoções, os encantamentos e as atividades lúdicas do homem comum. (MARCONDES FILHO, 1988, p. 32) E esse encantamento é substituído pela ação e efeitos das mídias nas subjetividades de grupos e indivíduos, tragando-lhes a criatividade.

Pensando assim, é interessante entender que a forma de cuidado atual também resulta de uma produção subjetiva que deu certo e que teve aderência. No campo da saúde, isso se exemplifica pela subjetividade mecanicista, da medicina dos órgãos, tecnicista, coercitiva e assim por diante. Mas o nosso imaginário criador nos permite: produzir outras virtualidades; seguir o fluxo do desejo de vida; retornar ao vitalismo; resgatar a vivência e a vida humana em vários aspectos do cuidar em enfermagem.

O desejo nessa perspectiva não é apenas individual, mas expressa-se nos agenciamentos coletivos mobilizadores. Nessa tônica, Guattari (1993) entende o desejo como transformador no campo individual e social. Ele fala da emersão de um paradigma ético, estético, que não se restringe de modo estrito ao campo da ciência, mas aponta para o subjetivo, ao cotidiano da vida, ao social, à natureza e ao cosmos.

Então essas transversalidades passam pela mão que cuida, pela língua que fala, pelo olhar, pelo ambiente e pelos movimentos. Enfim, é um processo caosmótico1 da realidade. Com efeito, cuidar remete às habilidades adquiridas, ao conjunto de vozes que nos compõem, mas também a força desejante pela vida, pelo novo, em se descolar das forças instituídas desvitalizantes, sugadoras de energia vital, "vampirescas" em essência.

Cuidamos do sujeito desejante, mas do que imaginamos. Esse sujeito desejante tende a se deslocar dos rótulos criados pelas taxionomias biomédicas, que subsidiam nossos conceitos e habilidades no cuidado. As expressões desejantes do cliente, sorrisos, afetos, gritos dos órgãos sofredores, precisam ser melhor trabalhadas no processo do cuidado. Diante disso, o enfermeiro não pode saber de antemão o desejo do outro sem uma abordagem humana e compreensiva, mas à medida que ele desenvolve a capacidade de ouvir e observar o efeito desejante no cliente abre-se um espaço lúdico, solidário e ético no cuidado.

Nesse sentido, a pessoa é um universo, uma expressão da sociedade, mas ao mesmo tempo singular, e isso torna o cuidado personalizado e ao mesmo tempo social. Assim, o discurso do sujeito não é um subsidio para o diagnóstico, como foi no nascimento da clínica e como bem coloca Foucault (1994), mas expressão do desejo da cidadania e da criatividade.

Desse modo, a produção de novas virtualidades inicia-se quando se mergulha na finitude sensível, ou seja, quando se percebe: os sentimentos, a realidade corporal, o conteúdo imaginário, as enunciações desejantes nas atividades humanas. Ora , o saber volta-se portanto para campo estético e sensível no cuidado com o corpo.

A subjetividade contorna, penetra, aflora no indivíduo, na instituição, no grupo social, na mídia e nas subjetividades políticas, religiosas e ideológicas (GUATTARI, 1987, p.8, p.31). Nessa perspectiva, não cabe falar de um determinismo de uma instância social sobre a outra, mas nas relações que se estabelecem na malha social, que envolvem indivíduos e instituições.

 

O DESEJO E A NECESSIDADE

O desejo e a necessidade são elementos humanos que desenham e remodelam o cuidado com o corpo. E cabe pensar no corpo físico e subjetivamente produzido pelas vivências e história social do sujeito. Esse corpo subjetivo envolve o desejo, o simbólico e o imaginário.

Freud (1996,p.176) ressalta que o físico e o psíquico na realidade não são o que aparentam ser. Realmente estamos percebendo isso no cuidado, ou seja, um redimensionamento do que vem a ser corpo e subjetividade. Aflora agora, mais do que nunca, a potencialidade do cuidado sensível que precisa ser mais estudado e pensado, com intuito de criar uma outra ética e estética do cuidado, que resgatam a vida, a beleza e o vitalismo nas ações de enfermagem.

Nesse contexto, Reich (1998) teorizou e formulou uma metodologia para entender e intervir no corpo, o qual expressa o caráter psicológico. O corpo vivo pulsa, emana e circula energia de vida. Mas a retenção dessa energia gera encouraçamento muscular, visceral e tissular, gerando doenças. Então a avaliação do corpo vai além do olhar de uma semiologia clássica. Isto requer o desenvolvimento dos sentidos, saber perceber o não dito entre linhas das palavras, entre as curvas e expressões corporais.

Enfim, o corpo é habitado pela linguagem do desejo e essa linguagem é a expressão do inconsciente, plural, coletivo e atemporal, que evoca as diferentes vozes. Em decorrência disso, já conseguimos perceber que, quando falamos do corpo do desejo, estamos num território da vivência e na enfermagem se arruma no campo estético do cuidado.

Maurano (1994, p.162) vem nos dizer que o corpo da psicanálise é diferente do corpo da necessidade.

Ressalto que não lidamos exclusivamente com as necessidades , mas com sujeitos desejantes e esses que criam sua forma de vida, hábitos, maneira de adoecer e de morrer (de modo consciente ou inconsciente). Freqüentemente, os sujeitos são guiados em seus cuidados por suas subjetividades e não pela lógica restritas dos conhecimentos técnicos e científicos, ou mesmo pelas regras do bem viver.

Nesse contexto, Waldow (2001), na enfermagem, defende o ponto de vista de um cuidado humano, sensível, estético e ético que abre margem para trabalhar com as potencialidades humanas voltadas para a vivência do sujeito e para a qualidade de vida. e dignidade humana.

Deleuze (1966) e Guattari (1966) colocam o desejo como uma questão crucial na vida do homem. O desejo é fluxo e intensidade, é transformador e é inerente à própria natureza. O desejo não se restringe ao indivíduo, mas é coletivo e possibilita agenciamentos coletivos e transformações sociais e individuais.

Então, essa dimensão produz uma cartografia2 do desejo em nosso território, pois falar de desejo, nesse sentido, implica também em nosso envolvimento desejante, como sujeitos do cuidado e não apenas o desejo de um sujeito isolado do meio que o cerca.

Apesar de Deleuze (1966) criticar a psicanálise, ele fala que ela demonstrou uma autonomia do desejo quando disse que o desejo não se submetia à procriação, nem mesmo à genitalidade. Assim Deleuze diz que: A grande descoberta da psicanálise foi da produção desejante e das produções do inconsciente. (DELEUZE e GUATTARI, 1966, p.16 e p. 28).

Ao deslocar o desejo da oralidade e da genitalidade, abre-se um território de expressividade desejante no campo social, com efeito no real. O desejo não implica, necessariamente, em falta, prazer ou mesmo em descarga. O desejo tem uma grande amplitude e profundidade e, assim, é considerado pelos sistemas sobrecodificadores, instituídos como ameaçador. Por isso existem interesses em colocar o desejo como algo vergonhoso e gerador de culpa. Os sujeitos oprimidos psíquica e socialmente vivem isso no seu ser.

O preconceito contra o desejo não é novo, foi produzido e vem sendo depurado ao longo da história, ele provém de nossa educação e moral ocidental que tem uma concepção racionalista, que enfatiza o intellectus em detrimento do desejo - Eros. E Schott (1996, p.8) ressalta que esse menosprezo por Eros veio de uma tradição filosófica herdada de um certo ascetismo grego e cristão. Não obstante a desvalorização filosófica de eros, a interpretação de emoção, desejo e sexualidade como poluentes tornou-se, de fato, decisiva para a construção da racionalidade com base na pureza.

Guattari e Rolnik (1986, p.215) colocam que o desejo é uma intensidade positiva e que permeia o campo social, as nossas práticas e até grandes projetos. O desejo tem uma dimensão inconsciente, reúne a afetividade, o impulso à vida, os agenciamentos coletivos e a transformação da realidade, que denota uma autonomia em relação às necessidades.

Necessidade e desejo, essas duas categorias falam de dois aspectos fundamentais da conduta humana, pois o homem se move pela necessidade e pelo desejo. Isto realmente tem implicações éticas, epistemológicas e sociais. A prática de enfermagem, tradicionalmente, tentou definir-se teoricamente pelo atendimento das necessidades do sujeito e pela manutenção de sua sobrevivência. E se organizou em uma pedagogia que via o sujeito pouco reativo, como alguém que precisaria ser educado e cuidado pelo enfermeiro que detinha o saber/poder sobre o corpo descrito pela cultura biomédica.

O termo necessidade, tematizado aqui, refere-se às necessidades de sobrevivência, portanto de base biológica; os outros impulsos que motivam o sujeito no seu aspecto subjetivo referem-se ao desejo ou demanda psíquica. Tento explicar a subjetividade pela autonomia do desejo em relação às necessidades, apesar de eles trocarem "figurinhas". Então, além de existir uma distinção de necessidade e desejo, também há uma diferenciação quanto à abordagem teórica dos autores que consideram a necessidade como elemento motivador humano.

A necessidade humana tornou-se um conceito de base para a prática de enfermagem, segundo o marco conceitual de Horta (1975). A referida autora, por sua vez, apoiou-se na hierarquia das necessidades humanas básicas de Maslow (1970 p. 35-46) - "necessidades fisiológicas, de segurança, de amor, de existência, de autorealização" - e nos domínios descritos por Mohana (1978, p.33) - psicobiológico, psicossocial e psicoespiritual.

Todavia, também constatamos que outras teorias de enfermagem de origem americana, direta ou indiretamente, implicam no conceito de necessidade no cuidado com o corpo.

Gostaria de dizer que o conceito de necessidade se diferencia do de desejo. E que é a necessidade de sobrevivência do homem - alimentação, eliminação, oxigenação, entre outras - subsidia a prática de enfermagem. Essa forma de perceber e organizar o cuidado de maneira exclusiva, nos condiciona a certas habilidades e impossibilita a percepção e operacionalização da subjetividade no cuidado. Isto não quer dizer que elas não são úteis para a nossa atuação, mas precisamos perceber outras dimensões do sujeito no cuidado.

Obviamente, essa ênfase nas necessidades biológicas é reforçada pelo pano de fundo dominante da taxionomia médica nas instituições, ou seja, da medicina dos órgãos. Isto é notório na organização do espaço institucional, no planejamento das ações de enfermagem e em programas de cursos e disciplinas que enfatizam mais o aspecto técnico e biológico do cuidado, desvinculando da estética e da subjetividade.

Contudo, Maslow (1970), Horta (1979) e Mohana (1978) tentam dar conta das questões psicológicas quando falam dos psicos envolvidos com as necessidades. Assim, Horta (1979, p.39) também fala de uma dimensão inconsciente, portanto subjetiva, quando define necessidades: "São estados de tensões, conscientes ou inconscientes, resultantes dos desequilíbrios hemodinâmicos dos fenômenos vitais".

É importante deixar claro que o desejo não é resultante de desequilíbrios orgânicos, mas envolve o registro simbólico do sujeito, os quais são investidos libidinalmente, que impulsionam para a vida, para a produção de novas virtualidades. Enfim, gerar utopia é próprio do humano, a qual expressa a maneira de lidar com a finitude e a buscar novos territórios, no sentido semiótico, geográfico, profissional e da própria vida.

O corpo do homem não é marcado apenas pelo rítmico biológico, mas pela nomeação que a linguagem que organiza o psiquismo produz no corpo. Então duas representações são produzidas sobre o corpo de modo complementar: uma representação científica, de base biomédica, e uma representação formada pela linguagem do sujeito, que instaura sua subjetividade. E esse psiquismo tem uma dimensão inconsciente e desejante. Nessa forma de pensar, Schiller (1991, p.78) reforça esse argumento quando diz que:

"O reconhecimento de uma distribuição diferente, de um mapeamento não científico das estruturas orgânicas não é uma contraposição, é complementar. É a consciência de que estamos diante de um corpo regido não só pelo ritmo biológico, mas também por um comando psíquico, lingüístico, por um desejo".

Apesar de os autores das necessidades tentarem inscrever o envolvimento psíquico em todos os aspectos humanos, na prática de enfermagem se observa ainda um domínio biológico nas formas discursivas e operacionais dos cuidadores.

Quando falo de necessidades, falo no sentido de sobrevivência do homem e não na concepção humanista da psicologia do ser de Maslow (1968). E nem entendo o desejo e a demanda psicológica como necessidade, mas como outra dimensão, que tem autonomia em relação às necessidades, mas que convivem no sujeito. Assim, é conveniente perceber as distinções entre desejo e necessidade e suas possíveis implicações.

O desejo é singular e seu objeto é múltiplo, em confronto com as necessidades que são gerais, universais, que são dessubjetivadas e não dão conta da singularidade. Entendo também que é pela via do desejo que o homem atende suas necessidades, que ele migra, desterrritorializa-se, torna-se nômade pela própria ação desejante.

Considero que, na perspectiva do desejo, não há sentido em estabelecer uma hierarquia de valores a priori, por exemplo, desejo de realização profissional em detrimento do desejo de lazer. Pois o desejo não se fixa num significante que possa ser generalizado para todos. Assim, o desejo do sujeito tem uma dimensão inconsciente que banha certas representações, e escapa à noção de equilíbrio e à hierarquia das necessidades. O desejo é distinto da necessidade e apresenta uma autonomia em relação a ela.

A necessidade subsidia a prática instrumental, portanto é funcional para o profissional, enquanto o desejo é da dimensão sensível e remete à noção estética da vida - Eros, ou seja, ao campo da expressividade. Muitas vezes o desejo cria rupturas com as necessidades, ou mesmo as inclui, produzindo metamorfoses no corpo, exigindo dele novas necessidades. Não é tão simples dizer o que não tem desejo nos atos humanos e o que não é necessário.

Nesse sentido, compartilho as idéias de Bornheim (1995, p.153) quando fala da relação do desejo com a necessidade:

"O homem é corpo, e um corpo com a especificidade do humano, que deseja não apenas suprir as suas necessidades, como exige também sua renovação. O desejo se dá dentro de coordenadas históricas e sociais bem determinadas; (...) Vale dizer que o desejo está sempre ativamente presente nos processos de transformação do mundo e de sua história".

Lacan (1992) também coloca a autonomia do desejo - Eros em relação à necessidade - Ananké, como diz Perelson (1994, p.5, p.6 ): "Enfim, o desejo não é efeito da frustração da necessidade, posto que seu objeto é outro, distinto e autônomo em relação ao objeto desta".

O desejo diferencia-se da necessidade, pois ele tende à multiplicidade, a novas reinvenções na realidade e não se prende a uma unidade. Se o desejo tem uma autonomia em relação à necessidade, também não faz sentido fixar o desejo nas necessidades, mas como algo que vai além delas. A necessidade, a meu ver, circunscreve um limite, um ponto que se esgota nela mesma, enquanto o desejo remete para a desterritorialização, ultrapassa o necessário, o limite imposto pelas condições de subsistência. A história humana demonstra isso.

O sujeito, tendo necessidade, também tem desejo, mesmo mantendo suas necessidades satisfeitas ou não. O desejo se expressa na multiplicidade, não tem um estilo único de ser, de se relacionar e de se vincular ao objeto. Por isso que uma mesma coisa pode ter intensidades diferentes para os sujeitos, no que tange ao desejo.

Os primeiros cuidados dispensados ao ser referem-se ao atendimento das necessidades básicas, alimentação, higiene, oxigenação e eliminação. Mas as necessidades começam a se separar do desejo já no início da vida do sujeito quando o choro pela fome dá lugar ao choro pelo amor da mãe. Assim, os objetos procurados pela satisfação estão banhados de afetos, remontam ao sentimento inconsciente de se sentir pleno. E isto faz com que o desejo se movimente durante toda a vida do sujeito, segundo a psicanálise.

Segundo Lacan ( 1992, p.280 ), o desejo consiste no reaparecimento da percepção do objeto que vem satisfazer o sujeito. Pois a frustração faz com que a criança chore para que alguém venha atender essa demanda de cuidado. E como a imagem do cuidador é gravada, toda excitação evoca a percepção primeira, de quando a mãe atendeu essa demanda de nutrição e afeto. Desse modo, ocorre uma clivagem em relação à necessidade, pois o sujeito pode alucinar a sensação de satisfação mesmo não tendo esse objeto. Ou seja, o sujeito tenta buscar um objeto perdido, o que lhe daria a sensação de se sentir pleno, mas esse objeto não existe. Então é essa sensação do vazio, da falta, que move o desejo, segundo a psicanálise .

"Tendo perdido uma parte de si mesma, a criança vai procurar os objetos exteriores os que poderão preencher essa falta. Aquele que primeiro se apresenta como capaz de substituir a parte perdida é o seio da mãe. Ele será o primeiro objeto da pulsão" (GARCIA ROSA, 1988, p.193).

A psicanálise assinala a existência do desejo e sua autonomia e distinção em relação à necessidade. No homem, não cabe falar apenas em necessidades, mas em desejo. Nessa perspectiva, cito Lacan (1992, p.283): "Porém temos é de lidar com o sujeito que está aí, realmente desejante, e o desejo de que se trata é anterior a qualquer espécie de conceitualização - toda e qualquer conceitualização sai dele".

Deleuze critica o conceito de desejo apoiado na falta como afirma a psicanálise; segundo ele, a falta está na necessidade e não no desejo que a inclui. Pois o desejo, nessa concepção, não é um derivado da necessidade, mas a necessidade é resultante do desejo.

"O ser objectivo do desejo é o Real em si mesmo (...) Não é o desejo que se apoia nas necessidades mas, pelo contrário, são as necessidades que derivam do desejo: são contraprodutos no real que o desejo produz".(DELEUZE, 1966, p.31)

Além do mais, o desejo, segundo Deleuze (1966), não se restringe à relação edipiana3, mas às várias relações que a criança estabelece com o seu meio. Assim ele ressalta:

"Desde a mais tenra idade que a criança tem toda uma vida desejante, todo um conjunto de relações não familiares com os objectos e com as máquinas do desejo, que não se refere aos pais do ponto de vista da produção imediata...."(DELEUZE,1966, p. 50).

A dimensão desejante do homem aponta a sua insatisfação no presente e o leva a metamorfoses e a romper muitas vezes com as necessidades. Nesse sentido Monzani (1995, p. 135) argumenta sobre o homem desejante.

"A análise da querela do luxo nos mostrou que o ser humano aparece como um ser insatisfeito que faz com que se rompa o ciclo da necessidade e se instaure outro que se caracteriza por um movimento indefinido onde ele é guiado pela fantasia e pela imaginação".

A busca da satisfação das necessidades também passa pelo desejo, pois para o sujeito desejar atender suas necessidades ele precisa estar vivo e lutar para isso. Segundo Sung (1997), dentro de uma perspectiva da teologia da libertação, o atendimento das necessidades humanas é condição primeira que possibilita a sobrevivência do homem. Contudo, o referido autor ressalta que tanto o capitalismo quanto a religião operam com o desejo humano. Ele diz que a necessidade é limitada e o desejo não é. Então, Sung (1997, p.68) diz que o que move as pessoas, o que faz as pessoas buscarem energias para lutar é o desejo. O desejo atrai as pessoas, enquanto que as necessidades, principalmente as básicas nos empurram

 

O CONVÍVIO DO SENSÍVEL COM O INSTRUMENTAL

Parece existir um hiato entre necessidade e desejo, mas é em Maffesoli (1996, p.294) que encontramos uma convivência entre o funcional - as necessidades e o desejo - estético e sensível. Ele diz: "eis o paradoxo dinâmico que mostra bem que é possível ligar beleza e funcionalidade". O autor chama esses dois elementos (necessidade e desejo) de base de toda existência, "a partir dos quais vai se constituir a arquitetura individual e social".

As palavras de Maffesoli sintetizam muita coisa que tento dizer, neste artigo, sobre a convivência da necessidade com o desejo. E o grande escoadouro desse aspecto é o terreno estético no cuidado com o corpo.

Quando falo na estética na arte de cuidar, não me reporto à estética midiática tão difundida, a qual opera com o desejo mimético. Também não me refiro à estética da cultura física, pois ela não se resume numa beleza produzida e estereotipada e nem é um atributo de exclusividade burguesa. Estética é um conceito filosófico instigante, trata-se de um juízo de apreciação entre o belo e o feio. Abre espaço para o sensível, a pluralidade, a heterogeneidade, os instantes, o encanto, os sentimentos humanos. A perspectiva estética não visa um fim, pois os meios falam por ele mesmo, as coisas que passam no processo são importantes, o aqui e agora. Isto quer dizer que a arte tem sua potencialidade.

Então, é mais do que legítimo falarmos da estética na arte de cuidar, cuidar do corpo, do sujeito, nos diferente níveis e complexidades na saúde. E isso toma maior dimensão no mundo contemporâneo que retoma a junção de razão e emoção, estética e ética na produção do saber.

Nessa perspetiva, Guattari (1993) também sinaliza a importância do tom estético no funcional, quando fala da subjetividade na arquitetura: Um certo retorno da perspectiva estética, indo de encontro à funcionalidade, parece certamente salutar (GUATARI, 1993, p. 176). Isso certamente é possível quando se entende a estética como uma sensibilidade, expressiva do desejo.

O desejo no cuidado vem mostrar a potencialidade de tornar a satisfação das necessidades mais plásticas. Isso quer dizer que, além das necessidades básicas, podemos criar outros dispositivos que geram satisfações mais elaboradas, via habilidades adquiridas no cuidado com o corpo - como a estética - a apreciação do belo, do prazer em estar junto.

Ainda estamos muito habituados a trabalhar de modo mecânico em um território muito concreto, o da sobrevivência da máquina biológica a qualquer preço, mesmo às custas da anulação do desejo do cliente e do enfermeiro. E quando se concede ênfase exclusiva à sobrevivência em detrimento da vivência, nega-se a possibilidade de o sujeito participar e opinar sobre o tratamento e os cuidados.

Em síntese: necessidade - funcional - subsidia a prática instrumental, e expressivo - estético - subsidia a vivência do sujeito no cuidado e a possibilidade de agenciamentos coletivos. Todavia, é possível a convivência ou um arranjo do funcional com o estético, da necessidade e do desejo no território do cuidado com o corpo.

Para manter-se vivo, é preciso desejo pela vida, um investimento constante no cuidado com o corpo. A sobrevivência marca a relação, o fluxo da vida, uma singularização no cuidado - a presença constante de Eros. E assim compartilho com Boff (1994, p.80):

"Esse amor. Que esse Eros, que essa potência de energia que se expande por todas as dimensões, incontrolável, indomável, ela emerge dentro de nós. Nós somos possuídos desse Eros. E a nossa grandeza, nosso fascínio, nossa irradiação; é o Eros que está em nós. Sempre jovem. E sempre criador".

O cuidado com o corpo envolve uma grande carga afetiva que não pode ser ignorada na arte de cuidar. Quando se trabalha com esse processo, estamos mexendo com conteúdos inconscientes e com o imaginário que o cuidado evoca.

Nesse sentido, a força das relações, a criatividade, a vontade de amar, a multiplicidade desses desejos são traços de um processo de singularização de um devir dissidente da subjetividade capitalista, pois: "o desejo só pode ser vivido em vetores de singularidade" (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p.47).

Na pós-modernidade, não é adequado cuidar falando apenas nas necessidades, numa tônica instrumental. É essencial mostrar a sensibilidade, a estética, a vida agradável e a felicidade nas maneiras de se cuidar, ou seja, o sujeito desejante histórico e social. Essa tônica flui nos discursos dos profissionais do corpo, quer pela mídia, quer pelos discursos endereçados ao público. Está na hora de vermos o desejo e seu aparato estético como algo essencial na vida do ser humano em suas várias modalidades. Dentro desse contexto, é possível a convivência do estético com o funcional, o desejo e a necessidade.

Este trabalho realizou uma reflexão teórica sob o prisma da subjetividade que nos instiga a novos estudos e pesquisas no que se refere ao cuidado com o corpo. Obviamente, determinados conceitos são provisórios e não prescritivos, mas importantes para entender a arte de cuidar numa perspectiva inter e transdisciplinar.

É importante mudarmos nossas percepções e ações de cuidadores para novos paradigmas que incluem a subjetividade e o sujeito desejante no cuidado, coadjuvantes às ações instrumentais. Eis o grande desafio para este novo milênio.

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Base para explicar o paradigma estético e ético. Guattari ( 1993, p.102, p. 103 ) diz que caos está na raiz do mundo. O caos possui uma trama ontológica. O processo caosmótico atravessa os extratos e transpõe paredes. Na caosmose, há caos e há osmose. Esta palavra substitui a idéia de dialética para a de processo.

2É a arte de produzir cartas geográficas. A cartografia tem como intuito representar um território; a cartografia orienta e serve de referência. Neste sentido, a esquizoanálise é uma poderosa cartografia da subjetividade. Existem outras cartografias: enfermagem tecnicista, psicanálise do édipo, cartografias religiosas, etc.

3Relativa ao complexo de édipo: "Conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança experimenta relativamente aos pais. Sob a sua chamada forma positiva, o complexo apresenta-se como na história de Édipo-Rei: desejo de morte do rival que é a personagem do mesmo sexo e desejo sexual da personagem do sexo oposto. Sob sua forma negativa, apresenta-se inversamente amor pelo progenitor do mesmo sexo e ódio ciumento ao progenitor do sexo oposto." (Laplanche, Pontalis, 1988, p.116)

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