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Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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CAPES

Volume 7, Número 2, Mai/Ago - 2003

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O ensino de enfermagem obstétrica na Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro propostas e contradições: 1982-19861

 

Obstetric nursing teaching at the Nursing Faculty of Rio de Janeiro State University: proposal and contraditions-1982-1986

 

La enseñanza de enfermería obstétrica en la Facultad de Enfermería de la Universidad de Estado de Rio de Janeiro proposiciones y contradicciones-1982-1986

 

 

Luiza Mara CorreiaI; Suely de Souza BaptistaII

IProfª Assistente do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil da FENF/UERJ; Mestre em Enfermagem pela EEAN/UFRJ; Membro do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira (Nuphebras). E-mail: luimacorreia@aol.com
IIProfª Titular do Departamento de Enfermagem Fundamental da EEAN/UFRJ; pesquisadora do CNPq; membro do Nuphebras

 

 


RESUMO

Estudo histórico-social. Objeto: são as implicações da implantação do Internato de Enfermagem (IE) para a (re)configuração do ensino prático de Enfermagem Obstétrica no Curso de Graduação da Faculdade de Enfermagem/Universidade do Estado do Rio de Janeiro(FENF/UERJ) - 1982-1986.
OBJETIVOS: descrever as circunstâncias de criação e implantação do IE na FENF/UERJ; analisar as relações de força entre os agentes envolvidos no espaço do ensino da enfermagem obstétrica na FENF/UERJ; discutir as implicações do jogo de forças entre esses agentes para a (re)configuração do ensino prático da Enfermagem Obstétrica na FENF/UERJ. A discussão dos achados está apoiada em conceitos de Pierre Bourdieu (1998, 2000). O movimento de inserção da FENF no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), através da implantação do IE, se configurou como um espaço de lutas visando uma melhor formação do aluno de enfermagem. Porém, para o ensino prático de Enfermagem Obstétrica, houve predominância da assistência curativa, impregnada de tratamento medicamentoso e de desenvolvimento tecnológico, acarretando prejuízos para a formação do futuro enfermeiro no que se refere à assistência à mulher de gestação de baixo risco, e principalmente no processo de parturição.

Palavras-Chaves : História da Enfermagem. Enfermagem Obstétrica. Ensino. Internato não médico. Integração docente-assistencial.


ABSTRACT

Social historical study.
OBJECT: Implications of the insertion of intern nursing training to the (re)configuration of practical obstetric nursing teaching at FENF/UERJ (Nursing Faculty/Rio de Janeiro State University) graduation-1982-1986. Objectives: To describe the circumstances of creation and insertion of the Academic nursing school at FENF/UERJ; to analyze power relations among the involved obstetric nursing teaching agents in FENF/UERJ; to discuss the implications in power politics among these agents to the (re) configuration of the practical obstetric nursing teaching at FENF/UERJ. The discussion of results is based on the concepts of Pierre Bourdieu (1998, 2000). The insertion movement of FENF into HUPE (Pedro Ernesto Academic Hospital), through the insertion of the intern nursing training there, had the aspect of a space to fight for a better formation of the nursing student. However, concerning the practical obstetric nursing teaching, prevalence was given to curative assistance, impregnated of medicamental treatment and of technological development, leading to damages to the future nurse formation concerning low risk assistance to the pregnant women, and mainly in the parturition process.

Keywords: Nursing History. Obstetric Nursing. Teaching. Non-Medical Academic Training. Integration Assistance-Teacher.


RESUMEN

Estudio histórico y social. Objeto: las implicaciones de la implantación del Internado de Enfermería (IE) para la (re)configuración de la enseñanza práctica de Enfermería Obstétrica en el Curso de Graduación de la Facultad de Enfermería/Universidad del Estado de Rio de Janeiro (FENF/UERJ)-Brasil, en el período 1982-1986.
OBJETIVOS: describir las circunstancias de creación e implantación del IE en la FENF/UERJ; analizar las relaciones de fuerza entre los agentes envueltos en el espacio de la enseñanza de enfermería obstétrica en la FENF/UERJ; debatir las implicaciones del juego de fuerzas entre esos agentes para la (re)configuración de la enseñanza práctica de Enfermería Obstétrica en la FENF/UERJ. El debate de los hallazgos está apoyado en los conceptos de Pierre Bourdieu (1998, 2000). El movimiento de inserción de la FENF en el Hospital Universitario Pedro Ernesto (HUPE), a través de la implantación del IE, se cumplió como un espacio de luchas visando una mejoría en la formación del alumno de enfermería, pero hubo el uso excesivo de la asistencia curativa, impregnada de tratamientos con medicinas y de desarrollo tecnológico en la enseñanza práctica de enfermería obstétrica. Este hecho causa daños a la formación de futuros enfermeros, principalmente en la asistencia a la mujer con una gestación de bajo riesgo y en los procedimientos de parturición.

Palabras claves: História de la Enfermería. Enfermería Obstétrica. Enseñanza. Internado de Enfermería. Integración docente-asistencial.


 

 

INTRODUÇÃO

Este estudo, de cunho histórico-social, tem como objeto as implicações da implantação do Internato de Enfermagem (IE) para a (re)configuração do ensino prático de Enfermagem Obstétrica no Curso de Graduação da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro2, no período 1982-1986.

O Departamento de Enfermagem Materno-Infantil (DEMI)3 da FENF/UERJ, desde sua criação, coordena o ensino referente à atenção à saúde da mulher e da criança, com ações administrativas e pedagógicas na graduação, habilitação4 e pós-graduação lato e stricto sensu. No que se refere ao Curso de Graduação, até 1998, o DEMI foi responsável pelo ensino dos conteúdos referentes à área materno-infantil, oferecidos, à época, no 4º e no 6º períodos letivos. O 4º período era destinado aos conteúdos teóricos e às aulas práticas (estágios) da disciplina Enfermagem Materno-Infantil I; os campos de estágio eram hospitais públicos municipais e estaduais da Cidade do Rio de Janeiro. No 6º período letivo, a disciplina Estágio Supervisionado Enfermagem Obstétrica I desenvolvia atividades práticas baseadas tanto nos conteúdos ministrados durante o 4º período como em experiências oriundas do cotidiano da prática assistencial. Até o final do ano de 1985, a seleção dos campos para a realização dessas atividades era de responsabilidade dos professores do DEMI, e o estágio supervisionado era realizado em instituições da rede pública estadual ou municipal. Esses estágios ofereciam aos alunos uma seqüência de aprendizagem, organizada em níveis de atenção primária, secundária e terciária, dando-lhes a oportunidade de desenvolverem experiências curriculares que serviriam de base para seu crescimento/aperfeiçoamento profissional. Vale ressaltar que, de 1986 até 1998, a disciplina Estágio Supervisionado Enfermagem Obstétrica I foi desenvolvida exclusivamente na Maternidade do HUPE/UERJ.

Uma outra questão a ser abordada, pois tem relação direta com o objeto desta pesquisa, é o fato de que, em 1977, a direção5 da FENF/UERJ promoveu discussões com o corpo docente sobre a aprendizagem prática no Curso de Graduação. Essas reflexões tinham por objetivo a introdução no currículo desse Curso de uma modalidade de ensino voltada para uma formação que privilegiasse contato precoce, efetivo e intenso com a realidade do futuro trabalho do aluno. À época, a maioria das professoras considerou que a estratégia mais adequada para o alcance desses objetivos era a implantação do IE (TORRES, 1984, p. 280).

Além disso, esse grupo considerava que o desenvolvimento do Internato de Enfermagem (IE) poderia contribuir para uma melhor inserção da FENF no HUPE/UERJ. Isto é, através desse projeto, de cunho ideológico, político e pedagógico, procuravam a valorização e o reconhecimento nesse espaço político-institucional que consideravam ser também da FENF e do qual a mesma estava apartada.

O fato é que, em 1982, a FENF da UERJ implantou o IE no HUPE. A partir daí, a referida Faculdade passou a garantir melhor qualidade tanto na administração hospitalar como na assistência de enfermagem prestada aos clientes deste hospital universitário. Ao mesmo tempo, oferecia campo assistencial compatível com o nível de formação por ela preconizado. Por outro lado, a FENF tinha a intenção de promover o desenvolvimento profissional das enfermeiras docentes e assistenciais, principalmente mediante uma produção científica que envolvesse a pesquisa e a extensão.

A partir do vínculo da instituição formadora de recursos humanos - a FENF, com o produtor de serviços - o HUPE6, a maioria do corpo docente dessa passou a ter uma participação mais efetiva nos diferentes cenários do referido hospital. Talvez por isto mesmo, o HUPE passou a se configurar como um espaço de lutas entre as categorias que concorriam (as enfermeiras e os médicos) por melhores condições no campo. Assim, tornaram-se claros os conflitos e as disputas, mas também as alianças e os acordos entre esses agentes sociais, os quais na maioria das vezes tinham interesses contraditórios.

A partir da análise dos achados, podemos afirmar que, durante o movimento de inserção da FENF no HUPE/UERJ, foi estabelecida uma relação de forças entre os agentes, havendo uma imposição da classe dominante (os médicos) sobre a classe dominada (os professores de enfermagem) em função de questões filosóficas e ideológicas. Também devemos considerar que o processo de redemocratização pelo qual passou o país no início dos anos 80 teve repercussões em vários setores da sociedade. Em razão disso, surgiram movimentos que levaram ao debate as políticas sociais e educacionais. Acentuava-se com isso a discussão da responsabilidade do Estado diante do agravamento das questões de saúde da população. Assim, ocorreram mudanças conjunturais que vieram a atingir as políticas de saúde e de educação, as quais evidentemente vieram a se refletir no campo da enfermagem.

A proposta da Reforma Sanitária e as iniciativas para a implantação do Sistema Único de Saúde acentuaram os debates sobre o ensino na universidade e os reais problemas de saúde da população. De um lado, os profissionais mostravam-se insatisfeitos com as condições de trabalho a que eram submetidos, e de outro, os usuários se queixavam do atendimento que recebiam no sistema público de saúde. Com isso, entre muitas outras iniciativas da sociedade, os movimentos feministas se mobilizaram em busca da cidadania e dos direitos da mulher, passando a influenciar na implantação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), em 1984, em nível nacional. Nesse contexto, a formação da enfermeira deveria ser pautada pelas necessidades da população, pela situação social, econômica e política do país, para que esse agente pudesse atuar de forma adequada à realidade. Em sendo assim, sua prática profissional seria efetiva nos programas de assistência materno-infantil, enfatizando a prevenção e a promoção da saúde da mulher e da criança.

A partir da problemática, apresentamos a seguinte hipótese teórica: As restrições impostas ao ensino prático da disciplina Enfermagem Obstétrica I no curso de graduação da FENF da UERJ, a partir da implantação do IE no 6º período do curso, em 1986, a qual perdurou por dez anos, traduz-se como uma violência simbólica exercida pelas dirigentes da referida Faculdade frente ao pensamento consensual dos professores de enfermagem obstétrica.

Para dar conta do objeto em estudo, traçamos como objetivos: descrever as circunstâncias de criação e implantação do IE na FENF/UERJ; analisar as relações de força entre os agentes envolvidos no espaço do ensino de enfermagem obstétrica na FENF/UERJ; e discutir as implicações do jogo de forças entre esses agentes para a (re)configuração do ensino prático de enfermagem obstétrica na FENF/UERJ.

 

ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA

Para desenvolver o objeto em estudo, de acordo com as exigências determinadas pela temática, optamos pelo enfoque histórico-social, por ser o mais adequado para o aprofundamento no mundo dos significados das ações e relações humanas, pois a produção do conhecimento histórico (...) é capaz de apreender e incorporar a experiência vivida, fazer retornar homens e mulheres não como sujeitos passivos e individualizados, mas como pessoas que vivem situações e relações sociais determinadas com necessidades e interesses e com antagonismos (VIEIRA et al., 1989, p.17-18). Por isso, também utilizamos o método dialético em função da possibilidade de realizar um estudo abrangente que envolvesse uma determinada época, considerando a realidade social, política e educacional do objeto em questão. Buscando melhor compreender o objeto desta pesquisa, apoiamos a discussão dos resultados em conceitos de BOURDIEU (1998, 2000).

O recorte temporal abrange o período 1982- 1986. O marco inicial corresponde à implantação da modalidade de ensino IE no HUPE, com a turma do 7º período do Curso de Graduação da FENF da UERJ. O marco terminal é a mudança de enfoque do ensino ministrado na disciplina Estágio Supervisionado em Enfermagem Obstétrica I, a qual era oferecida na modalidade de Internato aos alunos do 6º período do mesmo Curso de Graduação. Vale esclarecer que o campo em estudo é a FENF da UERJ e que o foco principal do objeto desta pesquisa é o ensino de Enfermagem Obstétrica no Curso de Graduação da referida Instituição, o qual está sendo considerado como subcampo da enfermagem obstétrica.

Nesta pesquisa, constituem-se fontes primárias: documentos pertencentes ao arquivo do Centro de Memória Drª Nalva Pereira Caldas, da FENF da UERJ, como atas, relatórios e 13 depoimentos de professores da FENF/UERJ. As fontes secundárias incluem obras de História da Enfermagem, do Brasil, da Educação, do Ensino de Enfermagem Obstétrica. Os procedimentos utilizados na coleta de dados incluíram análise documental e entrevistas. Buscando ouvir a voz dos sujeitos que participaram do processo de mudança no ensino prático da enfermagem obstétrica no Curso de Graduação da FENF da UERJ, mediante a criação e implantação do IE, utilizamos a história oral que implica a percepção do passado como algo que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado. A presença do passado no presente imediato das pessoas é razão de ser da história oral.(...) não só oferece uma mudança para o conceito de história, mas, mais que isso, garante sentido social à vida de depoentes (...) que passam a entender a seqüência histórica e sentir-se parte do contexto em que vivem (MEIHY, 1996, p.13).

Para a obtenção de 12 depoimentos dos 13 sujeitos7 da pesquisa, usamos a técnica de entrevista semi-estruturada, mediante um roteiro de orientação pré-estabelecido. Contudo, Minayo (1999, p122) diz que: o entrevistador se libera das formulações prefixadas, para introduzir perguntas ou fazer intervenções que visam a abrir o campo de explanação do entrevistado ou a aprofundar o nível de informações ou opiniões. As entrevistas foram gravadas em fita magnética e transcritas, o que nos permitiu um maior aprofundamento nas questões relativas ao estudo em pauta. A vantagem do uso da gravação direta é registrar todas as expressões orais, imediatamente, deixando o entrevistador, livre para prestar toda a sua atenção ao entrevistado (LÜDKE; ANDRÉ, 1989, p. 37). Ainda mais, cada depoimento foi marcado por momentos repletos de emoções, quando boas e más lembranças eram revividas. Os depoentes autorizaram a utilização de seus depoimentos nesta pesquisa e os doaram ao Arquivo do Centro de Memória Drª Nalva Pereira Caldas, da FENF da UERJ, e ao Centro de Documentação da EEAN/UFRJ.

 

AS POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO E DE SAÚDE E A FACULDADE DE ENFERMAGEM DA UERJ

Com base no Parecer 163/72, do CFE, o corpo docente da FENF/UERJ tomou providências no sentido de reestruturar o currículo de seu curso de graduação visando o desenvolvimento de um ensino voltado para as reais necessidades da população brasileira, tanto no que diz respeito à problemática de saúde do país como à situação do exercício e da educação em enfermagem.

No relatório de 1976 da referida Faculdade, foram apontados os problemas identificados em relação ao processo ensino aprendizagem no curso de graduação, eram eles: insatisfação do corpo docente e discente quanto ao processo de avaliação do ensino prático e deficiência dos campos de prática; defasagem entre a Faculdade e o HUPE da UERJ; inexistência de programa de atividades assistenciais a serem prestadas pela própria Faculdade. Desse modo, surgiu a proposta de oferecer aos alunos experiências de aprendizagem baseadas no processo de articulação entre as unidades de ensino - a FENF e de serviço - o HUPE, buscando com isso a integração da teoria com a prática, e assim, enfermeiras-docentes e assistenciais poderiam vir a possibilitar o desenvolvimento de um processo ensino aprendizagem no curso de graduação mais aproximado das reais necessidades da clientela e conseqüentemente uma mais adequada formação acadêmico-profissional. Assim, iniciou-se um movimento na FENF/UERJ visando o desenvolvimento de um projeto no HUPE que pudesse vir a ser utilizado amplamente como campo de pesquisa e prática assistencial dos estudantes e professores de enfermagem. Percebe-se que o empreendimento tinha em vista que a Faculdade abrisse novos caminhos para alcançar sua melhor inserção no campo assistencial universitário, principalmente por meio da introdução de novas práticas que pudessem transformar o cotidiano do espaço assistencial estabelecido pelo discurso institucional.

Como conseqüência dos estudos realizados e das deliberações tomadas pelo corpo docente da FENF, em dezembro de 1977, foram elaboradas as seguintes propostas: incentivo ao desenvolvimento da consulta de enfermagem pelos professores da FENF no HUPE; elaboração de anteprojeto de estágio supervisionado na modalidade de Internato; realização de estudo sobre a integração do serviço de enfermagem do HUPE à FENF; ampliação da carga horária dos professores para 40 horas visando a cobertura das atividades do curso, em face das características do novo projeto de ensino aprendizagem. Destacamos que esse movimento estratégico da FENF através da postura metodológica que foi assumida pela direção e o corpo docente - a integração docente/assistencial, sustentou a organização social e política do contexto educacional da referida unidade acadêmica.

A depoente nº 1 comenta sobre o movimento de inserção da Faculdade no HUPE: (...) o nosso entendimento era exatamente fazer essa combinação de não só no plano ideológico, mas, também no do fazer, do cuidar, que a enfermagem tivesse ressonância entre a academia e a área assistencial. (...) um grupo forte [de professores] estaria não só oxigenando a assistência, mas também contribuindo com sua mão-de-obra (...)

Dessa forma, entendemos que a ação pedagógica tem por função reforçar a estrutura e impor as relações sociais dentro do sistema de ensino institucionalizado. As articulações entre as instituições de ensino e de assistência para a implantação do projeto construíram um planejamento pedagógico que possibilitou a implementação de estratégias que tornaram possível a integração da força de trabalho docente e discente entre os agentes do HUPE.

Podemos inferir que a inserção da Faculdade no campo assistencial universitário foi um caminho importante tanto para consolidar a formação do aluno com a nova estratégia pedagógica como para delinear o perfil da enfermeira docente na universidade.

Nesse sentido, podemos afirmar que a reforma curricular do Curso de Graduação da FENF/UERJ, em 1977, foi uma estratégia para o processo de implantação da Integração Docente/Assistencial no HUPE, a qual serviu como legitimadora de uma inovação no interior da prática assistencial deste hospital.

Para Baptista e Barreira (2000, p. 25), a integração ensino/pesquisa nos hospitais universitários talvez seja, além de um modo de garantir uma presença mais intensa das professoras nesses locais, uma estratégia de superação de certas dificuldades por vezes ainda sentidas pelas professoras e pelas enfermeiras assistenciais de fazer reconhecer a legitimidade da diferença do saber de enfermagem frente ao saber médico. Desse modo, o corpo docente da Faculdade redirecionou seus esforços na busca de maior autonomia profissional no hospital universitário, no sentido de fazer ver e fazer crer seus princípios educacionais na formação do enfermeiro.

 

CIRCUNSTÂNCIAS DE CRIAÇÃO DO PROGRAMA DE INTERNATO NO CURSO DE GRADUAÇÃO DA FACULDADE DE ENFERMAGEM DA UERJ

A partir de dezembro de 1979, a Faculdade investiu na elaboração de um anteprojeto de integração com o HUPE, visando a operacionalização da proposta de Internato, a qual era de todo consonante com a proposta de Integração Docente/Assistencial. Deste estudo, ressaltamos que: a pesquisa passa a ser um dos principais pontos de integração; os estudantes passam a fazer parte da equipe de prestação de serviços; os docentes passam a desenvolver atividades assistenciais simultaneamente às de ensino, demonstrando o modelo a ser seguido pelo aluno; os enfermeiros assistenciais e chefes de unidade passam a integrar o Programa de Internato durante 24 horas, objetivando assistência continuada.

Essas afirmativas deixaram suficientemente claros os propósitos da Faculdade para estabelecer a co-participação no campo assistencial, os quais deveriam ser retratados através da principal estratégia para a implementação do projeto da IDA, que foi: a indicação de um professor da FENF para ocupar o cargo de chefe do Serviço de Enfermagem do HUPE.

Desse modo, a diretora da FENF, profª Maria Jalma Rodrigues8 e o diretor do HUPE, prof. Humberto da Silva Peixoto, elaboraram um documento conjunto (em 28 de abril de 1980), do qual constavam algumas condições essenciais para a implantação do Programa de Internato, quais sejam: responsabilidade/autoridade da assistência de enfermagem desse hospital entregue aos professores da FENF; direção do Serviço de Enfermagem entregue ao professor a ser indicado pela direção desta Faculdade, com a aprovação do diretor do Hospital. Após algumas reuniões, os membros do Conselho Departamental da FENF acordaram que deveriam encaminhar o nome da professora Alphaida Teixeira dos Anjos para ocupar o referido cargo. A depoente nº 3 ratifica a escolha dessa enfermeira para a função: (...) pessoa com vasta experiência (...) a gente não quis brincar com isso, a gente tentou trazer o que tinha de melhor no Rio de Janeiro.

A designação da professora Alphaida para tal cargo foi de todo apropriada, pois ela era detentora de grande capital cultural e, portanto, possuía credenciais administrativas e gerenciais que as professoras da Faculdade julgavam que poderiam facilitar o exercício de suas funções na chefia do Serviço de Enfermagem do HUPE. Por isso mesmo, poderia melhorar o ensino, incrementar a pesquisa e favorecer o desenvolvimento de adequadas atividades assistenciais que concorreriam para a efetiva implantação do projeto institucional da FENF, qual seja, o IE.

Pelos achados, podemos constatar que houve suficiente discussão de como as atividades planejadas para o Internato deveriam ser implantadas, mas parece que o mesmo não aconteceu em relação a quem iria realizá-las. Pelos relatos das depoentes de nº 7 e 9, fica claro que alguns professores escalados para implementar a nova proposta pedagógica resistiram à mesma. Senão vejamos: Nessa fase de implantação teve momentos emocionais muito fortes, porque muita gente não estava preparada para estar no Internato. Foi um momento muito forte, de pessoas não querendo aceitar (...) mudou a vida do professor (dep. nº.7); os docentes resistiam muito a ir ao campo (...) foi um fator que complicou, dificultou a implantação do Internato (...) foi um pequeno grupo designado, por força das circunstâncias (...), não foi algo trabalhado, discutido, compreendido pelos professores que foram colocados lá (dep. nº.9).

Para Bourdieu (1998, p.120), todo e qualquer grupo é palco de uma luta pela imposição do princípio legítimo de construção dos grupos, sendo que qualquer distribuição de propriedades sociais (...), pode alicerçar divisões e lutas propriamente políticas.

Finalmente, em 4 de janeiro de 1982, instalou-se a primeira turma do IE, no 7º período, com bolsa de estudos para os Internos de Enfermagem do Curso de Graduação.

 

A INSERÇÃO DA FACULDADE DE ENFERMAGEM NO ESPAÇO HOSPITALAR UNIVERSITÁRIO

O empreendimento implementado no HUPE pelo corpo docente da FENF/UERJ tinha como prioridade manter uma supervisão contínua dos estudantes pelos enfermeiros docentes e assistenciais para o desenvolvimento da prática do Internato. Durante o período da gestão da professora Maria Jalma, como diretora, podemos constatar um ganho significativo de recursos humanos para a Faculdade, seja pelo aumento da carga horária dos professores ou pela criação de vagas para a ampliação do número de professores vinculados ao IE no HUPE. Para a Faculdade, havia o interesse de capacitar seu corpo docente, pois o respaldo técnico-científico proporcionaria uma melhor inserção junto à equipe multiprofissional do hospital universitário, favorecendo a ocupação dos espaços hospitalares.

A partir de março de 1982, a operacionalização do 7º período do Curso de Graduação da FENF no HUPE aconteceu com a participação de oito professores fixos, os quais foram alocados em vários setores do Hospital. Mediante esses dados, percebe-se que houve por parte da Faculdade e da chefia do Serviço de Enfermagem do HUPE um efetivo investimento de capital para o pleno funcionamento do projeto no interior do HUPE. No cotidiano assistencial dos professores e alunos que incorporaram os interesses institucionais e reproduziram o desenvolvimento dessa prática assistencial e pedagógica - a IDA, desenrolaram-se lutas e alianças, o que acabou por tornar o hospital universitário um espaço mediador de relações sociais do poder entre as instituições envolvidas nesse campo político, demonstrando à comunidade universitária a força dos agentes dominantes na manutenção dos seus interesses contraditórios.

Após quatro meses da implantação do IE e seis meses após assumir as funções de chefe do serviço de enfermagem do HUPE, a professora Alphaida foi dispensada do cargo pelo diretor do HUPE. A ocorrência trouxe para o corpo social da FENF uma situação de perplexidade frente à posição autoritária do diretor do HUPE, pois o acontecimento acarretou o rompimento do acordo assinado em 28 de abril de 1980 entre as direções das referidas instituições, as quais pareciam estar envolvidas no processo da IDA. O fato chamou a atenção para a questão de que o processo racionalizador implementado pelos detentores de posições de poder no campo [os médicos] sustentavam o modelo de desenvolvimento arbitrário nas decisões centralizadoras de acordo com os interesses da classe médica, traduzindo para o campo assistencial o equilíbrio hegemônico implementado no hospital universitário. A dispensa da professora Alphaida de sua função no HUPE desencadeou uma mobilização de professores e alunos da FENF, a qual culminou com uma greve que perdurou de maio a junho de 1982. Sendo assim, em 29 de julho de 1982, a professora Alaíde Bittencourt Duarte assumiu o cargo de chefe do serviço de enfermagem do HUPE, consumando os propósitos de dois meses de luta da Faculdade por essa posição junto ao HUPE.

O fato é que, passados quatro anos da implantação do Internato, pode-se perceber que a ocupação dos espaços do HUPE se concretizou, através da acumulação do capital adquirido pelos professores de enfermagem nesse campo de lutas. Essa conquista foi reconhecida pela comunidade universitária, o que garantiu aos agentes da FENF posições de destaque no campo, isto é, um poder social reconhecido e capaz de dar acesso legítimo aos direitos essenciais que lhes era de direito.

Por outro lado, o momento político era favorável para dar continuidade ao programa pedagógico da Faculdade, e agora através da integração ao projeto do Internato das disciplinas do 6º período do Curso de Graduação, que estavam estruturadas no DEMI. A depoente nº 2 comenta sobre a continuidade da implantação do 6º período do curso de graduação no Programa do Internato: aquele momento era ímpar, não haveria outro momento, por isso era importante até com o prejuízo do aprendizado. Era importante que os professores e a direção andassem juntos, para que o amanhã pudesse ser diferente. Não há luta sem perda. A meu ver todos os professores não foram amadurecidos para perceber isso, talvez por dificuldade da direção em conscientizá-los, mas entendo que não se conscientiza o outro, por isso para aquele grupo [DEMI] a direção era vista como autoritária.

 

A (RE)CONFIGURAÇÃO DO ENSINO PRÁTICO DE ENFERMAGEM OBSTÉTRICA NO CURSO DE GRADUAÇÃO DA FACULDADE DE ENFERMAGEM DA UERJ

Os relatórios do DEMI e os das disciplinas, referentes à área de enfermagem obstétrica, dos anos de 1980 e 1981, demonstram claramente que havia grandes dificuldades na operacionalização dos conteúdos referentes a essa área de conhecimento, pois o referido Departamento carecia de um maior número de professores com experiência na área. O fato é que, para dar conta das atividades previstas na nova estrutura curricular, a partir de 1977, houve a necessidade de ampliação da carga horária do corpo docente e a contratação de outros professores para a FENF. Nesse contexto, também o DEMI passou a contar com novos agentes, sendo que a grande maioria deles eram enfermeiros obstétricos. O depoente nº 11 comenta sobre o reflexo da mudança curricular no ensino de enfermagem obstétrica, a partir de 1980, na referida Faculdade: essa mudança curricular colocou sob a nossa responsabilidade o 4º período. O estágio supervisionado [6º período] ficava com duas professoras (...). Nós tínhamos que fazer isso acontecer de tal forma que não houvesse reclamação, porque era uma experiência nova da Faculdade (...). Com essa mudança era um movimento muito grande (...) a gente ficava o tempo todo com alunos em sala de aula, em prática (...).

Pelo depoimento acima podemos, deduzir que houve um grande envolvimento dos professores de enfermagem obstétrica com o desenvolvimento desse currículo, talvez mesmo um compromisso para fazer ver e fazer crer a possibilidade concreta de os mesmos virem a ocupar diferentes espaços de atuação, principalmente mediante a implementação de uma metodologia que possibilitasse que o processo de ensino/aprendizagem garantisse uma adequada assistência à saúde da mulher.

A partir da reestruturação curricular, o DEMI passou a ser responsável por disciplinas tanto no 4º e no 6º períodos do Curso de Graduação, como no 8º e no 9º períodos correspondentes a Habilitação em Enfermagem Obstétrica. Nos relatórios das disciplinas Enfermagem Materno-Infantil I e Estágio Supervisionado Enfermagem Obstétrica I, correspondentes ao período 1977-1985, foram identificados como instituições que contemplavam as aulas práticas: a Maternidade Municipal Fernando Magalhães, o Hospital Municipal Salgado Filho,o Hospital Carmela Dutra, o Hospital Naval Nossa Senhora da Glória. Sendo considerados como setores: sala de admissão, pré-natal, sala de pré-parto, sala de parto e puerpério. Em decorrência do ensino de enfermagem vigente estar direcionado para uma enfermagem hospitalar, observamos que os programas das disciplinas abrangiam o nível primário, secundário e terciário predominantemente hospitalar, o qual visava instrumentalizar o aluno para as técnicas específicas em relação à assistência à mulher no ciclo gravídico-puerperal. Pode-se perceber a variedade de instituições percorridas pelos professores responsáveis pelo desenvolvimento do processo de ensino/aprendizagem da referida disciplina no Curso de Graduação. Parece que com isso buscavam vínculos e parcerias institucionais em campos diversificados, pois consideravam de todo adequado o desenvolvimento de uma prática pedagógica nos três níveis de assistência para essa área de atuação profissional. Destarte, o aluno poderia desenvolver uma assistência à saúde da mulher em todos os setores pertinentes das unidades prestadoras de serviço, inclusive no centro obstétrico.

É importante enfatizar que a disciplina do 6º período do curso de graduação - Estágio Supervisionado Enfermagem Obstétrica I não tinha como objetivo o ensino prático da realização do parto normal. Porém, o aluno deveria ser capacitado para a assistência de enfermagem à mulher no processo de parturição, devendo atuar principalmente na sua preparação física e emocional. Cabe advertir que o enfermeiro obstétrico, docente da FENF da UERJ, nesse momento, buscou e vislumbrou o seu reconhecimento científico no espaço de atuação nas instituições hospitalares junto à assistência à parturiente procurando inserir-se nessa prática assistencial, conforme preconizava a legislação de ensino do Curso de Enfermagem pelo Parecer 163/72. Podemos dizer que esse agente social procurou legitimar o seu saber e fazer construído historicamente através da atualização de seu habitus profissional.

Na reunião do Conselho Departamental, de 17 de dezembro de 1985, a diretora da FENF, professora Iara Maria Oliveira Torres10, solicitou a leitura do relatório do DEMI que abordava o assunto "Internato no 6º período acadêmico", o qual retratava situações relativas a problemas administrativos e assistenciais que poderiam refletir-se nos setores do HUPE, e que deveriam ser utilizados pelos professores e alunos do 6º período do Curso de Graduação. Contudo, mesmo diante dos resultados do estudo do DEMI, as disciplinas que compunham o 6º período passaram a integrar o Programa de Internato no HUPE. O que se pode depreender do acontecido é que naquele momento prevaleceu o projeto político da Faculdade de ampliar seus espaços de atuação no interior do HUPE, e que o corpo docente da referida unidade universitária estaria na luta por melhores posições, possuindo capitais próprios, que precisariam estar definidos para serem aceitos como legítimos.

O fato é que, para continuar atendendo aos interesses da IDA, foi implantado o Programa de Internato no 6º período, e assim ficou estabelecida uma relação da FENF com o HUPE que impôs o desenvolvimento do processo ensino/aprendizagem em uma unidade de obstetrícia de atendimento à gestante de alto risco, mesmo com o parecer contrário dos professores do DEMI. A esse respeito, comenta o depoente nº 11: a enfermagem obstétrica queria uma assistência desmedicalizada (...) e a obstetrícia do HUPE tinha um modelo intervencionista (...). O Departamento se reuniu e mostrou para a direção da Faculdade que a unidade não poderia servir de treinamento, apontando todos os problemas (...). Essa imposição jogou a professora nesse espaço de luta sutil, às vezes declarada, mas uma luta muito difícil.

De acordo com esse depoimento, fica claro que a estrutura hospitalar universitária estava organizada dentro de normas preconizadas pelo poder predominante da classe hegemônica [médica], a qual instituía e determinava as ações de acordo com os interesses dos médicos. Além disso, a posição ocupada pelo grupo de docentes enfermeiros da Faculdade na maternidade do HUPE era no mínimo desconfortável, uma vez que estavam inseridos em um espaço onde prevalecia o saber médico obstétrico, pois a assistência que ali era prestada incluía exclusivamente ações voltadas para a gravidez de alto risco. Pelo exposto, pode-se afirmar que houve uma violência simbólica em relação à inserção desses agentes no campo obstétrico, e isso aconteceu mediante o uso de instrumentos de comunicação e de conhecimento para a imposição ou legitimação da dominação levando à domesticação dos dominados. É o poder de impor (BOURDIEU, 2000, p. 11).

Na fala da depoente nº 4, fica explícita a imposição da dominação dos representantes do poder instituído da Faculdade sobre os enfermeiros obstétricos docentes: O que eu aprendi lá em São Paulo, as noites que eu passei em claro para aprender a partejar, para eu chegar aqui... No começo fizemos um excelente trabalho nas Maternidades (...) em todos os hospitais que nós passamos: fazendo o que eu sabia fazer (...) a prática do parto (...). Então, de uma hora para outra: "Você vai para lá agora". Para aquele lugar que ninguém queria ir. Custou muito. Dois anos que eu passei lá, nunca mais fiz parto na minha vida.

Outra conseqüência da inserção dos docentes de enfermagem obstétrica na maternidade do HUPE e que veio de encontro ao "habitus" profissional desses agentes, ou seja, o fazer-saber do enfermeiro obstétrico, foram as lutas travadas com os médicos no cotidiano do assistir a clientela feminina, principalmente no momento institucionalizado e medicalizado da parturição.

Em janeiro de 1986, teve início a primeira turma do 6º período do Curso de Graduação da FENF, na modalidade do Internato no HUPE.

Com a mudança estabelecida e oficializada do campo de prática do 6º período para o IE, o grupo de agentes que dominava este campo obstétrico (médicos e residentes de medicina) tiveram que ceder alguns espaços para a atuação de docentes e internos de enfermagem. Entretanto, o confronto entre o que os professores da FENF pretendiam e o que realmente conseguiam realizar logo apareceu no cotidiano da IDA. A depoente nº 5, atesta parte desta situação: Professoras questionavam algumas prescrições, até de medicamentos (...) uma vez, duas professoras de enfermagem pegaram o prontuário de uma mulher e foram parar no gabinete do diretor do HUPE (...) eram pessoas que movimentaram, reclamavam de tudo que viam de errado, independente de quem tivesse cometido o erro, eram pessoas que exigiam prescrição de enfermagem, evolução, exame físico (...).

É conveniente ressaltar que as relações conflituosas entre o "habitus" profissional dos enfermeiros e dos professores de enfermagem e o dos médicos e dos professores de medicina polarizavam-se principalmente nas seguintes questões: - concepção ideológica, pois o intervencionismo técnico presente no processo biológico normal repercutia no processo de ensino/aprendizagem da área obstétrica-perda de espaço no campo obstétrico pelo profissional médico.

Contudo, os esforços empreendidos pelos professores de enfermagem obstétrica não foram suficientes para que houvesse uma melhor ocupação do espaço da maternidade do HUPE, pelos diversos agentes que ali atuavam. Pelos resultados desta pesquisa, podemos supor que isso aconteceu principalmente porque o que continuou prevalecendo foi o poder dos médicos de enunciarem a verdade quanto ao monopólio do atendimento à gestante de alto risco internada.

Sabe-se que num jogo de forças o que mais conta é o volume dos diversos tipos de capital com que cada agente entra na disputa.

O fato é que, com a mudança do enfoque do ensino prático de atenção à saúde da mulher, a formação do discente do Curso de Graduação da FENF/UERJ passou a privilegiar a abordagem dos aspectos obstétricos voltados para a atenção terciária, isto é, uma assistência curativa em detrimento da preventiva. O perfil da clientela daquela unidade de alto risco apontava redução do número de partos normais, os quais estariam voltados para assistência a parturientes e puérperas de baixo risco, sendo condição também essencial para a prática da enfermagem obstétrica.

Pelos achados, podemos constatar ainda que à medida que ocorria o desenvolvimento da referida disciplina na maternidade do HUPE, tornou-se evidente a exclusão progressiva das docentes de enfermagem obstétrica do fazer durante o processo de parturição, pois, nesse espaço hierarquizado, a assistência à parturiente era e continuou sendo atividade exclusiva da classe médica. A depoente nº 4 declara sua luta no espaço assistencial do HUPE: eu tentei conquistar, mas não consegui nada. Eu não tinha armas políticas (...). Porque na questão do parto, nesta questão, não é só a prática não, não é saber fazer não. É você estar politicamente engajada no processo (...). Todas as vezes que eu chegava aqui reclamando [na FENF], reclamando, nada havia, nenhuma providência.

Frente a isso, o grupo de professores do DEMI buscou estratégias para oferecer aos alunos experiências práticas na assistência à mulher no pré-natal, parto e puerpério nos níveis de atenção primária, secundária e terciária, no espaço hospitalar estabelecido pela FENF, ou seja, no HUPE. Desse modo, foi implementado no ambulatório do HUPE um projeto que visava a Assistência de Enfermagem no Pré-Natal. Tal projeto foi desenvolvido por uma professora da FENF e por uma enfermeira do ambulatório do HUPE, a partir do dia 14 de maio de 1986. Essa iniciativa visava atender a estratégia da integração docente-assistencial e, assim, viabilizar a participação do aluno de enfermagem na atenção primária e secundária às mulheres no ciclo gravídico-puerperal. No entanto, a implantação do referido projeto não vinha ao encontro da estrutura organizacional do HUPE. E isto porque os agentes dominantes instituídos (os médicos) primavam e defendiam a reprodução da ideologia dominante na instituição, procurando manter suas posições superiores no campo institucional universitário, as quais se legitimavam pela manutenção da ordem estabelecida. Desse modo, o projeto da enfermagem de assistência à mulher no pré-natal do HUPE teve seu término em dezembro de 1986.

Para a enfermagem obstétrica da FENF da UERJ, a IDA não fortaleceu a área de saber em questão no interior do HUPE, pois a falta de uma filosofia desta instituição voltada para a atuação da enfermeira obstétrica repercutiu de forma negativa no processo de ensino/aprendizagem. Apesar do grande empenho dos agentes-enfermeiros para com a IDA, os mesmos não conseguiram ocupar os espaços da prática da enfermagem obstétrica, e deste modo não puderam desenvolver plenamente as atividades inerentes ao processo de formação dos futuros enfermeiros. O fato é que os agentes que configuravam a enfermagem obstétrica da FENF da UERJ não conseguiram construir uma relação de integração entre os agentes estabelecidos nesse campo obstétrico, em decorrência dos embates ideológicos e principalmente pela resistência dos profissionais médicos em não reconhecerem os princípios éticos e legais do exercício da enfermagem obstétrica.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo evidenciou que, a partir de 1982, com a implantação do IE no HUPE, ficou comprovada a necessidade de adequar o processo ensino/aprendizagem do Curso de Graduação da FENF à estrutura organizacional do HUPE. E isto resultou em uma luta simbólica entre os diversos agentes das instituições envolvidas no ensino e na assistência na busca da consolidação das concepções políticas e ideológicas na formação profissional dos futuros enfermeiros. Evidenciou-se nesse campo assistencial universitário, em 1982, que o corpo docente da Faculdade, diante do surgimento de uma divergência de interesses que envolviam as instituições, estabeleceu uma luta simbólica para poder fazer ver e fazer crer, de produzir e de impor sua classificação como legítima e legal. Para a FENF, a época em estudo foi de lutas com avanços e retrocessos.

Os resultados do estudo deixam claro que na relação entre as instituições, mediada pelo IE, foram utilizados diversos instrumentos de poder visando estabelecer a legitimidade científica, através da imposição da visão de mundo e do "habitus" profissional dos professores da FENF, dentro de um campo hegemônico, o HUPE. O estudo nos mostrou também que, até 1985, o processo ensino/aprendizagem do saber prático da disciplina enfermagem obstétrica, ministrada no 6º período do curso de graduação, era desenvolvido em diversas instituições prestadoras de serviços assistenciais do Município do Rio de Janeiro. Naquelas unidades de saúde, os enfermeiros obstétricos docentes tinham a oportunidade de exercer seu saber e de atualizar seu "habitus" profissional, uma vez que desenvolviam os conteúdos pertinentes à disciplina com uma abordagem didático-pedagógica no sentido de capacitar os alunos de enfermagem para atenderem de forma adequada os diferentes problemas de saúde que acometem as mulheres no ciclo gravídico-puerperal, ou seja, uma assistência baseada no PAISM e regida pela legislação do exercício profissional.

Entretanto, como a partir de 1986, o desenvolvimento da disciplina Estágio Supervisionado Enfermagem Obstétrica I passou a ser realizado sob a modalidade de Internato na Maternidade do HUPE, o processo ensino/aprendizagem do 6º período, ficou essencialmente centrado na assistência à mulher no ciclo gravídico-puerperal com características de atendimento em nível terciário, em detrimento da atenção primária e secundária. Por outro lado, a limitação do campo de atuação para o enfermeiro obstétrico docente no HUPE deveu-se principalmente às perdas no embate com os agentes (os médicos) que dominavam aquele espaço específico de assistência obstétrica terciária e curativa, a qual era (e ainda é) impregnado pelo desenvolvimento tecnológico e medicamentoso.

Apesar disso, os professores de enfermagem obstétrica continuaram tentando estabelecer um espaço de atuação de acordo seu "habitus" profissional, o qual acreditavam que viesse a favorecer o desenvolvimento do ensino prático da disciplina Estágio Supervisionado Enfermagem Obstétrica I. Por tudo isso, a inserção da referida disciplina no Internato gerou lutas simbólicas no campo obstétrico do HUPE. Por isso mesmo, o desenvolvimento dessa disciplina desencadeou nos agentes responsáveis por sua implementação uma adaptação a uma nova realidade de atuação e o reconhecimento de que o discente precisava experienciar ações voltadas para a assistência primária e secundária para que conseguissem atender as necessidades de saúde das mulheres.

Os resultados mostraram ainda que houve uma tentativa de resistência dos professores da FENF ao modelo assistencial instituído pelo poder hegemônico no interior do campo obstétrico do HUPE. Contudo, a análise dos dados nos mostrou que essas estratégias pedagógicas não conseguiram se estabelecer e, portanto, não conseguiram produzir ações didáticas e assistenciais voltadas para um tipo de assistência que viria ao encontro da realidade social das clientes e do "habitus" profissional dos enfermeiros obstétricos. Conseqüentemente, o estudo apontou que não houve por parte desses agentes a reprodução das diretrizes do PAISM, na medida em que se verifica que os professores de enfermagem obstétrica não conseguiram espaço para continuar lutando pela posição que lhes era de direito.

Para finalizar, cabe ressaltar que os dados analisados e discutidos no presente estudo deixaram claro que o corpo docente do DEMI da FENF/UERJ não deixou em qualquer momento de investir esforços no sentido de acompanhar as transformações estruturais pertinentes ao ensino de enfermagem obstétrica, procurando sempre incorporar ao seu "habitus" profissional as políticas públicas que interferiam diretamente na prática docente e assistencial. Nesse sentido, os agentes responsáveis pelo desenvolvimento dos conteúdos teóricos e práticos referentes à saúde da mulher, nesse Departamento, buscavam desenvolver um trabalho pedagógico com propostas de ensino, assistência, extensão e pesquisa, tendo como meta a garantia dos direitos da mulher em seu contexto social.

 

REFERÊNCIAS

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BOURDIEU, P. A economia das trocas lingüísticas: O que falar quer dizer. 2. ed São Paulo: EDUSP, 1998.

______. O poder simbólico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

CUNHA, H. L. Contribuição à memória da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, 1988.

LÜDKE, M; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1989.

MEIHY, J. C. S. M. Manual de História Oral. São Paulo: Edições Loyola, 1996

MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 6. ed. São Paulo - HUCITEC /Rio De Janeiro-ABRASCO, 1999.

______. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

PARDAL, P. UERJ: Apontamentos sobre sua origem no 40º aniversário de criação e 60º de ensino. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1990.

TORRES, I.M.D. et al. Internato de Enfermagem e Nutrição-uma modalidade de integração docente-assistencial. Revista Brasileira de Enfermagem. Brasília, v.37 n. 3/4, p. 280-289, jul/dez. 1984.

VIEIRA, M. do P. A. et al. A pesquisa em História. São Paulo: Ática, 1989 (Série Princípios).

 

NOTAS

1Prêmio na modalidade profissional - A Lâmpada. Conferido na 6ª Jornada Nacional da História da Enfermagem/10º Pesquisando em Enfermagem, na linha de pesquisa História da Enfermagem.

2A Universidade Estadual do Rio de Janeiro foi criada através da Lei Municipal nº547, em 4/12/1950. Desde sua criação, a universidade sofreu alterações em sua denominação. A partir de 1975, com a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, pelo Decreto-Lei nº67, de 11/04/1975, passou a denominar-se Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (PARDAL, 1990, p29-33).

3Nesta pesquisa, será utilizada a denominação atual Departamento de Enfermagem Materno-Infantil (DEMI). Contudo, este Departamento ao longo de sua existência teve outras denominações. Para maiores esclarecimentos, consultar o Centro de Memória Drª. Nalva Pereira Caldas, da FENF da UERJ.

4A última turma de habilitação em Enfermagem Obstétrica, da Faculdade de Enfermagem da UERJ, concluiu o curso no 2º semestre de 1999.

5À época, ocupava o cargo de diretora da Faculdade de Enfermagem da UERJ a professora Alaíde Bittencourt Duarte (01/03/76 a 03/03/80).

6O Hospital Geral Pedro Ernesto foi inaugurado em 1950. A incorporação do referido hospital à Universidade do Estado da Guanabara, hoje UERJ, ocorreu através da Lei Estadual nº 93/61 (CUNHA, 1988, p 35-37). A partir desta Lei, passou a ser denominado Hospital de Clínicas Pedro Ernesto; em 1984, de acordo com a Resolução nº 515, de 5/5/84, passou a Hospital Universitário Pedro Ernesto/UERJ. A referida instituição hospitalar está situada no Boulevard 28 de Setembro, 77/87, Rio de Janeiro.

7Um depoimento foi fornecido por escrito.

8A professora Maria Jalma Rodrigues Santana Duarte ocupou o cargo de diretora da FENF/UERJ, no período de 03/03/1980 a 08/03/1984.

9A professora Iara Maria Oliveira Torres ocupou o cargo de diretora da FENF/UERJ, do período de 08/03/84 a 08/03/88.

 

 

Recebido em 12/06/2003
Aprovado em 30/07/2003

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