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CAPES

Volume 7, Número 2, Mai/Ago - 2003

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Acerca de alguns dos aspectos lúdicos na arte de ensinar e na arte de cuidar na enfermagem

 

Some considerations about the ludic aspects of the art of teaching and the art of caring in nursing

 

Sobre algunos de los aspectos ludicos en el arte de la enseñanza y en el arte de cuidar en enfermería

 

 

Paulo Vaccari CaccavoI; Vilma de CarvalhoII

IDoutor em enfermagem e professor Adjunto do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica, EEAN/UFRJ
IIProfessor Emérito da UFRJ. Pesquisadora CNPq

 

 


RESUMO

Estudo sobre alguns aspectos lúdicos na arte de ensinar e na arte de cuidar na enfermagem. Com a intenção de atingir nosso objetivo e ressaltarmos essa parte expressiva da profissão, construímos o pensamento com base nos dados obtidos dos discursos de 25 enfermeiros docentes e assistenciais. Utilizamos aproximações com a "arqueologia do saber" de Foucault como recurso de método e, para fundamentar uma possível episteme para a profissão, distinguimos duas formas de arte na enfermagem - a arte de enfermagem e a arte da enfermagem. Concluímos que os enfermeiros docentes e assistenciais se expressam de maneira inusitada ao suprimirem o tempo real/cronológico quando "transformam" o encontro entre eles e sua clientela (estudantes e clientes) num momento lúdico, "mágico", o que nos permite afirmar que a arte efêmera, graciosa e perene está, sempre, aberta para as pessoas e para o mundo.

Palavras-chave: Enfermagem. Educação em Enfermagem. História.


ABSTRACT

Study about some ludic aspects of the art of teaching and caring in nursing. In order to reach our goals and highlight this important part of our profession, we built our thought based on twenty-five interviews with nurses and Professors of Nursing. As a resource of method, we used approximations with Foucault's "archaeology of learning", and to establish a possible episteme for the profession, we distinguished two kinds of nursing art: the first is related to the professional knowledge and the other is established when nurses interact with their clients. We concluded that nurses and Professors of Nursing express themselves in an unusual way by suppressing the real/chronological time when they transform their encounter with students and clients into a "magical world" that permits to affirm that the ephemeral, graceful and perennial art is always open to the persons and to the world.

Keywords: Nursing Education .History.


RESUMEN

Estudio sobre algunos de los aspectos ludicos en el arte de enseñanza y en el arte de cuidar en enfermería. Con la intención de alcanzar nuestro objetivo, basamos el pensamiento en los datos obtenidos de los discursos de 25 enfermeros docentes y asistenciales. Hicemos aproximaciones con la "arqueologia del saber" de Foucault como recurso de método y, para fundamentar una posible episteme para la profesión, percibimos distintamente dos formas de arte en la enfermería: el arte de enfermería. Se concluyó que los enfermeros docentes y asistenciales se expresan de manera inusitada al suprimir el tiempo real/cronológico cuando "transforman" el encuentro entre ellos y su clientela (estudiantes y clientes) en un momento lúdico, "mágico", lo que permite a nosotros afirmar que el arte efímero, gracioso y perenne está abierto para los indivíduos e para el mundo.

Palavras Clave: Enfermería. Educación en Enfermería. História.


 

 

SOBRE O LÚDICO NA ARTE DE CUIDAR E NA ARTE DE ENSINAR NA ENFERMAGEM - CONSTRUÇÃO DO ESTUDO

A arte da enfermagem inclui aspectos que se assemelham a desafios nos cenários da prática de ensino e da assistência. No que diz respeito ao ensino de enfermagem, por exemplo, observa-se em relação aos estudantes uma crescente necessidade de saber mais a respeito da doença e do tratamento, e menos (talvez) do cuidado à pessoa, desvio que pode ser resultante dos avanços da tecnologia e da ciência, que causam maior impacto no plano da produção e "reificação" do conhecimento. Como conseqüência, talvez isso possa acarretar, no futuro, numa "medicinalização" da enfermagem (ou numa "medicalização" das ações dos enfermeiros). Em relação a esta nossa afirmativa, há que se observar, ainda no processo de formação profissional, o que diz Nightingale (1893): "cuidar da pessoa e não da doença é uma ação típica da enfermagem".

No que diz respeito à assistência, os cuidados de enfermagem "aplicam-se a qualquer ambiente - lar, hospital, escolas, indústrias, etc" (Henderson, 1981). Todavia, a concentração de um número maior de enfermeiros nos hospitais e a existência de uma multiplicidade de dispositivos tecnológicos e de ações, inerentes às atividades dos profissionais, fazem com que o evento do cuidado nos hospitais promova a crença de que a "necessidade de cuidados" esteja relacionada à prestação dos mesmos "durante uma doença - ocasião em que a família mais necessita de auxílio" (HENDERSON, 1981). Em face disso, pensamos que enfermeiros docentes e enfermeiros assistenciais têm de se haver, muito freqüentemente, com questões que estão além e aquém da compreensão deles acerca de significados de alguns aspectos que têm importância para a arte da enfermagem, e que resultam em benefícios para os profissionais, para os estudantes, para os clientes e para a sociedade. Ainda que não tenhamos intenção prescritiva, é preciso dizer que, no caso dos estudantes, a resposta dos professores poderia ser aproveitar a ocasião para uma experiência de instrução adequada ao enfoque da arte da enfermagem. Já no caso dos enfermeiros assistenciais, seria compreender que a especificidade da profissão poderia favorecer o destaque da enfermagem, em que pese a arte de cuidar. Isto porque "a arte é (...) um fazer em que o aspecto realizativo é particularmente intensificado, unido a um aspecto inventivo. Nela a realização não é somente um "facer", mas particularmente um "perficere", isto é, um acabar, um levar a cumprimento e inteireza"(PAREYSON, 1993). Portanto, compreender esses princípios da arte é importante para os enfermeiros, pois o objetivo da operosidade profissional implica cumprimento, na inteireza e no "perficere" desta arte insigne.

Em vista disso, e para construirmos nosso pensamento, partimos dos discursos de enfermeiros. Aplicamos dois instrumentos (em Anexo) para coletar dados junto a 25 enfermeiros docentes e assistenciais, destacando os discursos mais significativos acerca da percepção que têm da arte de prestar cuidados. Nesses discursos, detectamos alguns aspectos lúdicos relacionados ao ensino e à assistência e, por isso, neste artigo, nossa intenção é a de ressaltar os significados deles para a arte da enfermagem. De acordo com as características do estudo, utilizamos a "vigilância" como "recurso epistemológico" (JAPIASSU, 1979) no intuito de refletir sobre parte dos significados da arte de e da enfermagem. Isto porque pensamos que a arte de enfermagem está relacionada à trajetória evolutiva da profissão e ao seu saber, ao passo que a arte da enfermagem tem a ver com o discurso sobre a expressividade dos enfermeiros quando do contato deles com seus clientes. Assim, arte de enfermagem pode ser entendida no plano do saber que caracteriza a profissão (intrinsecamente), e a arte da enfermagem tem pertinência maior com o plano profissional, projeta-se (por extensão), também, ao plano da coletividade (extrinsecamente).

Ao considerarmos os aspectos da arte de e da enfermagem, vimos que, para tratar os dados e construir o objeto, seria necessário rever os princípios/fundamentos contidos no pensamento produzido na trajetória evolutiva da profissão - arte de enfermagem. Esta necessidade de "voltar ao passado", em busca dos conceitos/fundamentos profissionais, na intenção de compreender ações e atitudes de enfermeiros docentes e assistenciais na atualidade, e relacionadas a alguns dos aspectos lúdicos da profissão, ancoramos nosso pensamento na "arqueologia do saber" de Foucault (1987). Isto porque pensamos que a enfermagem se situa, ainda, em um campo impreciso do conhecimento (MOLES, 1995), e entendemos que a arte da enfermagem (os atos e operações dos enfermeiros) não foi, ainda, suficientemente explicitada.1 Uma aproximação de perspectiva arqueológica permitiu apreciar os dados, na medida em que elaboramos teoricamente um objeto. Assim, o objeto é tratado em uma região onde as palavras e as coisas não se separam, possibilitando uma articulação do discurso com o objeto, mas não somente em relação à linguagem falada. Para Foucault, discurso tem um significado mais amplo, pois se refere à produção do pensamento acerca do objeto, no decorrer da sua formação. Nos estudos arqueológicos, o objeto possui uma expressão positiva, dotada de verdade, essência e natureza, o que resulta na ordenação do pensamento acerca dele. No caso da arte da enfermagem, o positivo principal é a restauração ou a devolução da saúde ao cliente - a essência e natureza mesma da profissão -, ao passo que a ordem reside nos mecanismos e no instrumental que enfermeiros dispõem para a prestação dos cuidados. E a intenção do método, como diz Machado (1988), é a de assinalar rupturas, estabelecendo períodos, baseando a argumentação numa experiência objetiva.

Em relação a outras características do método, elas foram centradas: a) no objeto arte da enfermagem, a partir dos discursos dos enfermeiros, referentes a um enunciado elementar; b) na localização do enunciado em um campo institucional - instituições de saúde e escolas de enfermagem, em nosso caso; c) em nossa posição face aos achados; d) na descrição arqueológica, que contribui para definir e dar sentido aos aspectos lúdicos da arte efêmera, graciosa e perene; e) na descontinuidade do discurso profissional, o que permitiu criar os nexos entre os fatos ou dados considerados secundários na busca de compreensão do enunciado elementar. Quanto a esse, por exemplo, a afirmativa de que a enfermagem é uma arte e uma ciência não sofreu alterações desde as proposições de Nightingale, o que enseja a um sentido de homogeneidade enunciativa, que é uma outra característica do método (MACHADO, 1988 p. 160-8).

Para enfatizar os aspectos lúdicos da arte de ensinar e de cuidar na enfermagem, utilizamos os princípios/fundamentos contidos em um estudo de Huizinga (1999) - "Homo ludens". Nosso objetivo esteve pautado na descrição da operosidade de enfermeiros docentes e assistenciais relacionados aos significados do que entendemos por arte de e da enfermagem. Assim, de posse dos dados e do consentimento por escrito para uso das informações, fizemos aproximações de método com a "arqueologia" de Foucault (1987), para guiar a construção do pensamento. Vale dizer que os enfermeiros entrevistados são considerados por seus pares como aqueles que ensinam a cuidar e cuidam com propriedade, e responsáveis pela difusão do saber e da aplicação da arte profissional nos cenários da prática. A repetição dos nomes dos enfermeiros docentes e assistenciais tornou-se significativa e, associada à convergência das informações, dimensionou corretamente a construção do estudo.

 

O LÚDICO NA ARTE DA ENFERMAGEM E NO ENSINO

Na construção do objeto de estudo, deparamos-nos com um pensamento convergente, pleno de significados e significações, e que tem a ver com os nexos entre jogo e educação. Isto porque, no conjunto dos discursos dos enfermeiros entrevistados, pôde-se perceber a existência de uma unidade na diversidade que é significativa para a arte efêmera, graciosa e perene. Partindo da idéia de que a imaginação harmoniza-se com o entendimento, quando a harmonia leva às relações abertas, e "abertas para o mundo" (SANTOS, 1964), pode acontecer a manifestação de outro tipo de símbolo da arte da enfermagem - a expressão lúdica entre enfermeiros professores/estudantes, entre enfermeiros assistenciais/clientes, e outras possíveis conjugações.

O termo lúdico deriva do latim ludus, que significa brinquedo e está associado à criança que brinca (joga), desinteressadamente (ULLMANN, 1991). "Jogo" deriva do grego paidiá, e possui o mesmo significado. Já o termo educação, é representado (também em grego) pelo vocábulo "paidéia, e tem a mesma raiz da palavra "paidiá". No entanto, as semelhanças entre paidiá e paidéia não terminam aí. Segundo Ullman, ambos os termos estão associados à cultura, só que, para Huizinga (1999), "o jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta (...) pressupõe sempre a sociedade humana; mas os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica". Huizinga estabelece uma rede de idéias para ressaltar as associações das características lúdicas com as do ensino. Ele relaciona o "lúdico" a um costume japonês e a uma palavra específica - "asobu", que designa a função lúdica, o "jogo em geral, recreação, relaxamento, divertimento, passatempo, distração (...) significa ainda o estudo sob a direção de um professor, ou numa universidade, o que faz lembrar o uso da palavra latina "ludus" no sentido de escola". Sobre a significação de "escola", o autor diz:

"A palavra "escola" tem por detrás dela uma história curiosa. Originalmente significava "ócio", adquirindo depois o sentido exatamente oposto de trabalho e preparação sistemática, à medida que a civilização foi restringindo cada vez mais a liberdade que os jovens tinham de dispor de seu tempo, e levando estratos cada vez mais amplo de jovens para uma vida quotidiana de rigorosa aplicação, da infância em diante".

É neste sentido que reside a associação de jogo (paidiá), como brincadeira, à educação (paidéia), porque a noção de jogo está, também, associada ao desenvolvimento da inteligência (ludus/brincadeira, ludus/escola). O que diferencia os significados dos termos é o fato de os jogos, em si, não comportarem sobriedade, solenidade. Mas, mesmo assim, o jogo tem uma seriedade que diz respeito ao momento em que se joga. Nesse momento, ainda que as pessoas não percebam, há uma coisa "em jogo", como diz Huizinga e, portanto, no jogo há uma intencionalidade, mas não há uma regra específica, já que a regra principal do jogo é a vontade de quem joga continuar jogando. Caso uma das pessoas desista de jogar, não há mais jogo.

Mesmo sendo passatempo, ele faz com que as pessoas consigam evadir-se da realidade imediata, quando criam, em torno de si, uma espécie de redoma na qual há um tipo de suspensão do tempo real, cronológico. Sobre a vertente lúdica da arte, Santos (1964) afirma que a idéia está relacionada à pessoa que aprecia a arte de maneira desinteressada, da mesma forma que os brinquedos, "porque os brinquedos são autotélicos (de autos, si mesmo e telos, fim, têm o fim em si mesmo) (...) a tendência lúdica do homem (e quando deixamos de ser crianças?) influi decisivamente para marcar uma característica da arte: o ter um fim em si mesma". De acordo com o pensamento do autor, apreciar a arte "desinteressadamente" é o mesmo que dizer "contemplar" uma obra de arte (qualquer). No entanto, pode-se julgar a obra e atribuir-lhe um valor (juízo de valor). Além deste autor, a mesma idéia pode ser encontrada em Baumgarten (1993), Hegel (1999), Pareyson (1993, 1997), Santos (1964), Ferry (1994), Vázquez (1999). Ora, mas qual o nexo entre essas palavras e o assunto aqui tratado? De que forma o significado delas são expressos na arte da enfermagem? A resposta é dada por Souza (s.d.), quando ela afirma: "o exercício da arte é, portanto, o campo ideal para o treinamento de todo ser humano. Através dele [do exercício], dentro dela [da arte], se encontram a criança, o adolescente, e o adulto que somos e que convivem dentro de nós". Para entender o significado disso, é preciso ressaltar a forma que enfermeiros e clientes demonstram satisfação quando um "bom" cuidado é prestado e recebido, tal como declarada nos discursos.

Sabemos que o ser humano demonstra satisfação por algum acontecimento ou alguma coisa que lhe tenha dado prazer. Pela percepção, ele é sensibilizado e os fatos ou objetos adquirem sentido e, então, a demonstração de satisfação tem origem num motivo, ou servem de motivação. Vale dizer, entretanto, que a evasão da realidade imediata (tal como a encontrada nos discursos) é um costume na prática do cuidado e a forma pela qual enfermeiros e clientes evadem-se da realidade pode ser entendida como a motivação para o surgimento de uma atividade lúdica. Huizinga (op. cit.) afirma que o jogo "é mais que uma função fisiológica ou um reflexo psicológico (...) é uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa "em jogo" que transcende às necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação (...) [tem um] caráter profundamente estético". Além disso, o jogo acompanha o desenvolvimento das sociedades, tem representatividade histórica e diz respeito ao "ethos", à cultura e, por conseguinte, à educação. O autor diz ainda que "no jogo reside seu [um] valor ético e educativo, pois a experiência da mimese desperta os sentimentos imitados (...) para Platão, mimesis é um termo geral que descreve a atitude espiritual do artista (...) Platão entendia a criatividade como um jogo". O autor reforça esse sentido cultural de "jogo", ao comentar que ele "promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio dos disfarces ou outros meios semelhantes" (p. 16). Assim, entendemos que treinamento e jogo podem influenciar o processo de ensinar a cuidar e o de cuidar dos clientes. Com efeito, as atividades lúdicas (jogo, ou brincadeira) estão associadas à arte de ensinar (ou treinar) e à de assistir pessoas. Sobre alguns dos aspectos relacionados ao assunto, os enfermeiros relatam:

"Eu gosto muito de ter um ambiente agradável. Gosto de colocar música, conversar com todos e fazer com que todos conversem. Gosto de criar um ambiente que seja mais ameno, agradável. Gosto até de dançar e me lembro de, por conta disso, ter dançado uma vez" (M. - Enfermeira/professora).

"Ela era uma paciente com mieloma múltiplo. Eu pensei: "Puxa, tão jovem e já com mieloma múltiplo." Conversamos e ela estava super deprimida. No dia seguinte, falei "- Olha, hoje eu vou cuidar de você!" Eu fiquei brincando: "- Olha, é tratamento VIP, hein! Não é para qualquer um não" (...) Nesse dia, todos os cuidados dela eu fiz sozinha e ela não se queixou de dor. Nós conversamos, brincamos. No dia seguinte ela me deu uma caixa de bombons e eu falei para a equipe: "- Estão vendo? Eu estava de férias, cheguei, e já ganhei uma caixa de bombons" (A. R. - Enfermeira assistencial).

"Eu trabalho cantando, conversando alegremente com os pacientes, transmitindo a eles um sentimento positivo. Mas esse tipo de postura é difícil de se assumir num cenário onde a dor, sofrimento e miséria estão sempre presentes" (N. V. - Enfermeira/professora).

"É engraçado. Já teve época da unidade estar fechada, ter uma confusão danada e a gente não abre mão do F.R. [iniciais do cliente] por nada neste mundo. Ele podia ser de fora da unidade (...) nós sempre conseguíamos uma "brechinha" para ele (...) Nós dois ríamos muito e eu falava para ele "- F.R., você é muito "macumbeiro"! Até ambulância existe para você, mas para mais ninguém daqui no hospital" (A. - Enfermeira assistencial).

"Quando chego e vejo o doente sorrindo para mim, penso que ele está alegre. Vou até ele, falo, converso, brinco" (M. - Enfermeiro assistencial).

"Eu brinco com eles o tempo inteiro (...) brinco muito. Uma das coisas que faço é isso, principalmente em meio a esse caos. Faço isso não somente com eles, mas com a equipe também. No meio dessa coisa "dura", da "ralação", eu paro, brinco, comemoro. Eu faço "Festa Junina", chamo os doentes para brincar" (C. - Enfermeira assistencial).

Com esses tipos de comportamento, os enfermeiros transformam o seu cotidiano. Nos discursos, podemos detectar expressividades que se atêm àquelas que dizem respeito à própria arte, como o canto, a dança. Os profissionais se expressam dessa maneira porque conseguem suplantar os desafios, a seriedade requerida dos profissionais pela instituição e toda sorte de exigências, requisitos, disciplinas, normas. Pensamos que o grau de espontaneidade dos enfermeiros com os clientes, pessoal de suas equipes e outros profissionais permite que eles possam se expressar mais levemente como pessoas. A base dos significados de "jogo" para a arte da enfermagem, é encontrada em Huizinga (op. cit., de acordo com a seguinte afirmativa:

"Reconhecer o jogo é, precisamente, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência, não é material (...) é uma confirmação permanente da natureza supralógica de situação humana(...) tem uma função social(...) não desemepenha uma função moral, sendo impossível aplicar-lhe a noção de vício e virtude (...) ele próprio é liberdade (...) depois de ter chrgado ao fim ele permanece como uma ciração nova do espírito, um tesouro a ser conservado na memória (...). Ele cria ordem e é ordem. Introduz na confusão da vida a na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada (...) o jogo lança sobre nós um feitiço; é "fascinante", e "cativante". Está cheio de qualidades mais nobres que somos capazes de ver nas coisas; o rítmo e a hamonia".

Para além disso, Taylon, Lillis e Le Mone (1993) descrevem 15 caracterísiticas da arte da enfermagem e, entre elas dizem: enfermagem é sorrir: enfermeiros que sorriem com outros sabem que o humor é árte dos sentimentos de conforto e pertença".2 Ainda que Florence Nightingale (1992) não se refira propriamente à importância de se "brincar", "jogar" ou desenvolver atividades "lúdicas" com os enfermos, ela diz que a variedade significa recuperação ("Variety - a means of recovery"). Nightingale afirma que a música, as cores, os sons agradáveis, a mudança de ambiente, as flores, a leitura de livros, o descanso mental do cliente em ocupar-se com atividades manuais, a ocupação das enfermeiras em fazer com que os clientes variem seus pensamentos, são importantes para a recuperação do enfermo. E, mais ainda, diz o que pode ter de importância, para o enfermo, o simples ato de poder olhar através de uma janela. Com isto, ela descreve formas expressivas das quais as enfermeiras podem lançar mão para desencadear o processo de "restauração da saúde". Neste sentido, a variedade de Nightingale abrange os significados dos "jogos" que subscrevemos. E, assim, talvez possamos interpretar esse conjunto de expressões como tendo "significados estéticos" no contexto das atividades variadas a serem desenvolvidas junto aos clientes e aos estudantes.

Com estas proposições, aproximamo-nos, também, de outros elementos para exemplificarmos os significados de jogo e ensino para a arte da enfermagem, e distinguir o que queremos dizer. Para tanto, remetemo-nos aos seguintes relatos dos enfermeiros/professores:

"Quando percebo que o aluno tem dificuldade em evidenciar a opção pela enfermagem, eu me sento com ele na varanda. Penso que, às vezes, o melhor lugar para se ensinar enfermagem é na varanda" (A. L. - Enfermeira/professora).

"Eu tenho feito perguntas para eles deste tipo: "- Você cuidou de alguém hoje? Como era o seu cliente?" (...) "- Ah, professora, ele tinha um tubo, estava num aparelho, tinha um curativo grande". Com a resposta, pergunto: "- Como era o cabelo dele? Cacheado ou liso?" (...) "- Ih, esqueci. Não sei" (...) "- Qual era a cor do olho dele?" (...) "- Sabe que eu não sei, professora? Eu não olhei a cor do olho" (...) "- Você fez exame físico?" (...) "- Fiz" (...) "- No momento em que você estava apalpando olhou para o rosto dele?" (...) "- Não. Eu me esqueci, porque estava 'ligada' no fígado" (...) Está na hora de nós, docentes, termos a noção da importância do comportamento sensível para dar a eles o entendimento do que seja um comportamento sensível (...) Para mim, fazer tudo isso [cuidar e ensinar] representa ter sempre uma pitada de bom humor e de prazer. Se não tiver essa pitada, não dá para conciliar as coisas" (N. M. - Enfermeira/professora).

Os relatos ressaltam o que significa a associação do ensino e do jogo para a enfermagem como profissão. No primeiro, pode-se perceber a formação de uma redoma em torno da relação professor/estudante, o que permite supor a suspensão do tempo [real] de cuidar, para a transposição ao tempo [real, mas por demais simbólico] de refletir. Essa disposição de conversar/refletir com o estudante, na varanda, pode representar a evasão da realidade, um momento mesmo de descontração (o "asobu", no sentido de orientação do professor, ou "ludus", no de escola). No segundo, está "em jogo" não só a transmissão do saber (de interesse de professores e de sua arte de ensinar), mas também a aquisição (principalmente esta) de conhecimentos sobre a arte da enfermagem, só que com uma "pitada de bom humor e de prazer". Estes aspectos interessam não apenas os conhecimentos de arte de enfermagem mas à expressão mesma ("prática viva" - Carvalho, 1997) da arte da enfermagem, tal como demonstrada pelos enfermeiros docentes e assistenciais, nos cenários de prática.

 

À GUISA DE CONCLUSÃO

Frente aos fatos relatados, pode-se dizer que o aspecto lúdico permeia os processos de ensinar e de cuidar na enfermagem. Através do prazer que enfermeiros docentes e assistenciais experimentam, nesses processos, restam outros "mistérios" a desvendar. Não esqueçamos que a enfermagem, em si mesma, é um terreno admirável, posto que os fenômenos que fazem parte da profissão podem mudar a qualquer momento, e que os "estilos" dos enfermeiros são marcantes. Contudo, ainda que tenhamos discutido parte dos símbolos em meio aos quais se encontra o que há de lúdico na arte da enfermagem, é preciso contar com o que há de inusitado nas pessoas e nas experiências, com os aspectos relacionados aos momentos "mágicos" dos encontros entre os profissionais e sua clientela, com aquilo que a enfermagem tem de "fascinante". Isso implica dizer que há, possivelmente, muito mais coisas a serem decifradas na arte dos enfermeiros e, portanto, na arte da enfermagem, o que nos permite afirmar que a arte efêmera, graciosa e perene está, sempre, aberta para as pessoas e para o mundo.

 

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NOTAS

1Foucault considera que um saber só se constitui numa ciência na medida em que suas regras estejam bem definidas. De acordo com esta concepção, ele considera ciência a Matemática e demais protótipos da cientificidade; as Ciências da Vida, da produção e da Linguagem, como a Biologia, Economia e Ciências da Linguagem; as Reflexões Filosóficas (Japiassu, op. cit., p.114). Neste caso, vale dizer que Moles (1995) utiliza a expressão "ciências do impreciso" para fazer referência aos ramos do saber que se distinguem, por exemplo, da Lógica e da Matemática.

2Tradução livre dos autores.

 

 

Recebido em 18/09/2002
Reapresentado em 08/04/2003
Aprovado em 30/06/2003

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