Volume 7, Número 2, Mai/Ago - 2003
ARTIGOS DE PESQUISA
Abordagem estrutural das representações sociais sobre a AIDS entre os servidores de um hospital universitário1
Structure of AIDS social representation for nursing and administrative workers at a university hospital
Planteo estructural de las representaciones sociales entre obreros de un hospital universitario
Sergio Corrêa MarquesI; Denize Cristina de OliveiraII; Marcio Tadeu Ribeiro FranciscoIII
IProf Auxiliar do Departamento de Fundamentos de Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Enfermagem/FEN-UERJ
IIProfª Titular do Departamento de Fundamentos de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu/Mestrado da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
IIIProf. Adjunto do Departamento de Fundamentos de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu/Mestrado da Faculdade de Enfermagem e Coordenador de Campi Regionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
RESUMO
O estudo teve como objetivo identificar e comparar o conteúdo e a estrutura da representação social da AIDS dos trabalhadores da enfermagem e técnico-administrativos de um hospital universitário. A amostra foi constituída por 366 servidores que atuam num hospital universitário da cidade do Rio de Janeiro. A coleta de dados foi realizada por meio da técnica de associação livre e a análise pela técnica do quadro de quatro casas com a utilização do software EVOC. O resultado mostrou que o significado da AIDS para esses sujeitos é fortemente marcado por elementos negativos, traz uma dimensão imagética associada à morte e reflete o posicionamento dos sujeitos através de emoções e atitudes como sofrimento, medo e preconceito, presentes no núcleo central. Os elementos periféricos traduzem conhecimentos, juízos e crenças que são vivenciados no cotidiano dos sujeitos. Concluiu-se que os resultados poderão instrumentalizar a enfermagem para intervenções junto a estes trabalhadores.
Palavras-chave: Trabalhadores. AIDS. Associação livre.
ABSTRACT
This study aimed at identifying and comparing the content and structure of AIDS social representation for nursing and administrative workers at a university hospital. The sample was built of 366 workers who work at a university hospital in Rio de Janeiro. The data collection has been made by means of free association technique and its analysis by the four-quadrant board with the use of EVOC software. The outcome has shown that AIDS is strongly remarked by negative elements for these subjects, it brings an imagetic dimension which is associated with death and reflects the subjects position through emotion and attitudes as suffering, fear and prejudice that are present in the central nucleus. The peripherical elements translate knowledge, judgment and beliefs that are daily experienced by the subjects. It has been concluded that the outcomes may instrumentalize nursing for interventions for these workers
Keywords: workers. AIDS. Free association.
RESUMEN
El estudio objetivó identificar y comparar el contenido y la estructura de la representación social de la AIDS de los obreros de enfermería y técnico-administrativos de un hospital universitario. La muestra fue constituida por 366 obreros que trabajan en un hospital universitario de la ciudad de Rio de Janeiro - Brasil. La recolección de datos fue realizada por médio de la técnica de asociación libre y el análisis siguió la técnica del cuadro de cuatro casas con la utilización del software EVOC. El resultado mostró que el significado de la AIDS para tales sujetos es marcado fortemente por elementos negativos, trae una dimensión de imagen asociada a la muerte y refleja la posición de los sujetos por medio de emociones y actitudes como sufrimiento, miedo y prejuicio, presentes en el núcleo central. Los elementos periféricos traducen conocimientos, juicios y creencias que son vividos en el cotidiano de los sujetos. Se concluyó que los resultados podrán ampliar las intervenciones de enfermería junto a esos obreros.
Palabras clave: Obrero. AIDS. Asociación libre
INTRODUÇÃO
A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida - AIDS surgiu na década de 80, evidenciando um fato novo no panorama da saúde mundial. O crescimento acelerado do número de portadores do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e da AIDS e, conseqüentemente, o seu impacto no âmbito pessoal, social, cultural e econômico exigiram uma resposta rápida dos órgãos governamentais e da comunidade científica.
Os primeiros estudos foram voltados para a descoberta do agente etiológico, das medidas terapêuticas para combatê-lo e das possíveis formas de transmissão do vírus. Esses conhecimentos propiciaram o desenvolvimento de novos estudos direcionados para as ações de caráter assistencial, preventivo e epidemiológico, mobilizando, inclusive, profissionais e estudiosos de outras áreas do saber, como das ciências humanas e sociais.
O comportamento de indivíduos e grupos sociais, seja de portadores ou não do HIV/AIDS, frente a este fenômeno, tem sido foco de atenção em diversos estudos, quer seja para avaliar as respostas das várias ações empreendidas pelos órgãos governamentais e não-governamentais, quer seja para identificar a necessidade de novas intervenções relacionadas às medidas de prevenção e controle da doença. Observa-se, inclusive, que estas investigações têm privilegiado diversos segmentos da sociedade, no entanto, verifica-se que em relação aos trabalhadores têm sido desenvolvidas de forma muito tímida. Tendo em vista a especificidade desse grupo social, mostrou-se relevante realizar um estudo tendo como sujeitos os trabalhadores de um hospital universitário da cidade do Rio de Janeiro, com o intuito de analisar como concebem, interpretam e atribuem significados ao fenômeno AIDS para avaliar a necessidade de intervenções educativas.
Para a consecução desse propósito, optou-se por realizar este trabalho por meio do estudo das representações sociais, segundo a construção teórica de Serge Moscovici (MOSCOVICI, 1978; WAGNER, 1994; JODELET, 1998) no contexto da psicologia social, utilizando, inclusive, uma proposta complementar a esta teoria, ou seja, a abordagem estrutural ou teoria do núcleo central (SÁ, 1996; ABRIC, 2001).
Em relação à Teoria do Núcleo Central, Abric (2000, p.31) afirma que "a organização de uma representação social apresenta uma característica específica, a de ser organizada em torno de um núcleo central, constituindo-se em um ou mais elementos que dão significado à representação". Abric (2000) propõe, então, a organização das representações sociais ao redor do seu núcleo central, sendo este o elemento que subsidia seu sentido fundamental e inflexível. Neste sentido, como característica ontológica de um núcleo central de determinada representação, cita-se a natureza do objeto representado, o tipo de relações que o grupo mantém com este objeto e o sistema de valores e padrões sociais que constituem o ambiente de vida, em sua dimensão objetiva ou subjetiva, do indivíduo e do grupo.
Assim sendo, o presente estudo teve como objetivo identificar e comparar o conteúdo e a estrutura da representação social sobre AIDS entre os trabalhadores da enfermagem e técnico-administrativos de um hospital universitário. Pretendeu-se, desta forma, destacar a necessidade de estudos junto a este segmento da sociedade, para o desenvolvimento de ações de caráter educativo, assim como, evidenciar o referencial teórico-metodológico utilizado como, um campo propício às investigações dos problemas de saúde que afetam indivíduos e grupos sociais, especificamente na esfera de atuação da enfermagem.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo quanti-qualitativo que foi conduzido de acordo com a abordagem estrutural ou teoria do núcleo central, conforme definida por Abric (2000).
A população estudada foi definida por uma amostra aleatória estratificada cuja composição correspondeu a 20% dos servidores técnico-administrativos, ou seja, 145 servidores, e igual percentual de profissionais da enfermagem, correspondendo a 221 profissionais, perfazendo um total de 366 sujeitos.
A escolha dos sujeitos ocorreu sob a forma de sorteio utilizando-se o número da matrícula funcional. Para não comprometer o tamanho da amostra, foram realizados sorteios para reposição dos sujeitos que estavam afastados das suas atividades laborativas por motivos diversos.
O procedimento de coleta de dados foi iniciado após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa do hospital. Os sujeitos registraram o aceite de participação no estudo por meio de assinatura no termo de consentimento livre e esclarecido. Cabe registrar que não houve recusa por parte de nenhum sujeito sorteado.
Considerando as propriedades qualitativas e quantitativas na determinação dos elementos centrais e periféricos de uma representação, empregou-se a técnica de evocação ou associação livre para a coleta de dados, utilizando-se como termo indutor a sigla AIDS. A aplicação da técnica consistiu em solicitar aos sujeitos que escrevessem cinco palavras ou expressões que lhes ocorressem imediatamente à mente em relação à AIDS.
O método da evocação ou associação livre propicia colocar em evidência o universo semântico do objeto estudado, assim como a sua dimensão imagética, de forma mais rápida e dinâmica que outros métodos, com igual objetivo, como, por exemplo, a entrevista (BARDIN, 1977; OLIVEIRA, 1996; ABRIC, 2001). Por outro lado, a técnica de Vergès, integrada à tecnologia da informática mostra-se como um importante instrumento facilitador para a análise da estrutura e organização de uma representação social.
O produto obtido por meio das evocações livres foi analisado pela técnica do quadro de quatro casas criado por Vergès (1994). Esta técnica, ao combinar dois aspectos relacionados às palavras ou às expressões evocadas, que são a freqüência e a ordem em que foram evocadas, possibilita a distribuição dos termos produzidos, segundo a importância atribuída pelos sujeitos. Para o tratamento dos dados coletados, foi utilizado o software denominado EVOC, versão 2000 - conjunto de programas para a análise das evocações (OLIVEIRA, 2001). O produto das evocações foi organizado previamente, constituindo-se em três corpura para análise. O material foi, então, tratado pelo software EVOC 2000 que calculou, para cada corpus, a freqüência simples de cada palavra evocada, as ordens médias de cada palavra e a média das ordens médias de evocação, e, ao final, gerou os quadros de quatro casas.
A partir desses dados, foi realizada a construção do quadro de quatro casas, que corresponde a quatro quadrantes com quatro conjuntos de termos. No alto e à esquerda (quadrante superior esquerdo), ficam situados os termos verdadeiramente significativos para os sujeitos e que constituem, provavelmente, o núcleo central da representação estudada. As palavras localizadas no quadrante superior direito e inferior esquerdo são os elementos intermediários que podem se aproximar do núcleo central ou dos elementos periféricos e aquelas localizadas no quadrante inferior direito constituem os elementos periféricos da representação (VERGÈS, 1994; SÁ, 1996).
RESULTADOS
São apresentados nessa seção os três quadros de quatro casas que evidenciam os conteúdos e como estão estruturadas as representações sociais sobre a AIDS nos grupos estudados.
Em relação ao corpus formado pelas evocações de todos os sujeitos, foram evocadas 1.776 palavras, com 285 diferentes, e a média das ordens médias de evocação (rang) foi igual a 2,96 (numa escala de 1 a 5). Considerando que foram desprezadas as evocações cuja freqüência foi igual ou menor que 17, encontrou-se a freqüência média de evocação igual a 48. A análise combinada desses dados resultou no Quadro 1 de quatro casas apresentado na página a seguir (p. 189).
Quadro 1 - Clique para ampliar
No corpus de análise do grupo enfermagem, o programa evidenciou: 1.083 palavras evocadas, com 207 diferentes; média das ordens médias de evocação igual a 3; freqüência média de evocação igual a 29(Quadro 2, p.189).
Quadro 2 - Clique para ampliar
Das evocações dos técnico-administrativos, o programa evidenciou o seguinte resultado: 693 palavras evocadas, com 177 diferentes; média das ordens médias de evocação igual a 2,9; freqüência média de evocação igual a 23, gerando o Quadro 3 de quatro casas apresentado a seguir (p. 190).
Quadro 3 - Clique para ampliar
Analisando-se a estrutura e a organização da representação sobre AIDS no grupo enfermagem (quadro 2), observa-se semelhança com a estrutura e a organização da representação sobre AIDS de todos os sujeitos do estudo (quadro 1). Verifica-se como diferença, em relação à localização, as palavras sexo, discriminação e tristeza. A palavra sexo do quadro referente a todos os sujeitos compõe os elementos intermediários do quadrante inferior esquerdo, e aí, reforçando o núcleo central, aparece no quadro do grupo enfermagem compondo o referido núcleo, acrescentando ao significado da AIDS, além dos descritos na quadro 1, mais uma dimensão imagética, ou então fazendo referência ao conhecimento acerca da AIDS. A palavra discriminação, que no quadro de todos os sujeitos localiza-se no quadrante inferior direito, aparece no grupo da enfermagem no quadrante superior direito reforçando os elementos periféricos, e a palavra vergonha, nesse mesmo grupo (quadro 2), integra os elementos periféricos.
Ainda no grupo da enfermagem, a palavra contágio aparece integrando os elementos periféricos, que não consta em nenhum quadrante do quadro de todos os sujeitos.
Os elementos periféricos traduzem no resultado do grupo da enfermagem, de maneira mais evidente, os aspectos relacionados aos conhecimentos e às informações referentes aos fatores que predispõem a transmissão da doença, assim como as atitudes frente à exposição, ao contágio/contaminação. Tal resultado, provavelmente, guarda relação com a formação e a prática profissional deste grupo e com a sua proximidade com os portadores da doença.
Os elementos periféricos traduzem, também, sentimentos e emoções vivenciadas no cotidiano desses sujeitos, em sua maioria exprimindo aspectos ligados ao sofrimento, como solidão, tristeza e vergonha.
A estrutura e a organização da representação no grupo da enfermagem mostra a incorporação do conhecimento no núcleo central e também no sistema periférico. Mostra, ainda, as atitudes e os elementos subjetivos com forte tendência a se concentrar no sistema periférico. Essa organização possibilita inferir que a representação deste grupo está numa fase de transição tendendo para a mudança da sua representação em relação à AIDS, ou seja, ainda mantém elementos arcaicos incorporados às primeiras representações da AIDS, presentes no sistema periférico, e ao mesmo tempo reproduz neste mesmo sistema elementos que caracterizam a adaptação da representação às evoluções do novo contexto da AIDS.
Comparando-se a estrutura do grupo técnico-administrativo (quadro 3), com o quadro de todos os sujeitos (quadro 1), observa-se que a palavra tristeza aparece no grupo técnico-administrativo integrando este núcleo. Este resultado mostra que o significado expresso por esta palavra é característico desse grupo de profissionais.
As palavras medo e prevenção, que no quadro referente a todos os sujeitos estão entre os elementos centrais, no grupo técnico-administrativo aparecem integrando os elementos intermediários, nos quadrantes superior direito e inferior esquerdo, respectivamente, mas ambas reforçando o núcleo central. As palavras perigo e promiscuidade localizam-se no quadrante inferior esquerdo, reforçando os elementos periféricos.
Observa-se uma certa tendência para incorporação de conhecimentos ao núcleo central da representação do grupo técnico-administrativo, considerando que as palavras que denotam o conhecimento do grupo em relação à AIDS são mais evidentes no quadrante inferior esquerdo como camisinha, doença incurável, doença e prevenção, reforçando o núcleo central.
Os elementos periféricos da representação do grupo técnico-administrativo mostram uma organização distinta em relação ao quadro de todos os sujeitos (quadro 1), seja em termos quantitativos, seja em relação ao seu conteúdo. Este, inclusive, é constituído por elementos que denotam sentimentos ou atitudes de compreensão e apoio ao outro (amor e solidariedade), e um elemento que pode estar manifestando atenção para o fenômeno ou para práticas de proteção individual ou coletiva (cuidado). Embora a palavra cuidado possa também caracterizar o conhecimento em relação à AIDS, o conhecimento apresenta-se mais evidente na palavra sexo, como uma forma de transmissão do vírus.
Percebe-se na organização da representação do grupo técnico-administrativo a presença marcante de elementos subjetivos em detrimento de conteúdos relacionados ao conhecimento científico. Percebe-se, também, de forma nítida, que o núcleo central da representação desse grupo exerce uma função normativa e o sistema periférico uma função de concretização, conforme definido por Abric (2000; 2001).
Comparando-se a estrutura e a organização da representação social da AIDS entre os servidores da enfermagem (quadro 2) e os servidores técnico-administrativos (quadro 3), verifica-se que as palavras morte, preconceito e sofrimento são comuns aos dois, no quadrante que caracteriza o núcleo central. No entanto, no grupo técnico-administrativo a palavra tristeza nele se integra, constituindo um significado fortemente marcado somente por elementos subjetivos, negativos. Nele não se observa os aspectos relacionados à evitabilidade nem a conhecimentos da forma de transmissão da doença, presentes no significado do grupo da enfermagem.
Verifica-se, também, que a distribuição espacial dos elementos no sistema periférico, aí se enquadrando os elementos intermediários e periféricos, são muito distintas entre os dois grupos. Nos elementos periféricos da representação do grupo da enfermagem, percebe-se nitidamente conteúdos que expressam conhecimentos, atitudes e sentimentos, muito provavelmente, como já mencionado, refletindo aspectos da formação e do cotidiano profissional deste grupo. Esta composição não se verifica no mesmo quadrante dos servidores do grupo técnico-administrativo, no qual destacam mais os elementos que refletem sentimentos e emoções.
Ainda que existam diferenças na organização dos conteúdos nos quadros de quatro casas dos dois grupos estudados, pode-se inferir que não se tratam de duas representações sociais distintas em relação ao fenômeno AIDS. Para configurar duas representações sociais diferentes, uma condição precípua é a composição distinta de dois núcleos centrais (ABRIC, 2001), fato que não se observa no presente estudo, onde se verifica a semelhança de conteúdos nos dois núcleos centrais, e também a presença de conteúdos semelhantes nos elementos intermediários de ambos os grupos, reforçando os núcleos centrais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As representações sobre a saúde e a doença ultrapassam a esfera do campo biológico e abrangem dimensões mais amplas que comportam idéias, significados e imagens as mais variadas, certamente relacionadas a componentes individuais e ao contexto sociocultural no qual os indivíduos vivem e convivem (PAULILO, 1999). A AIDS, em especial, pela sua dimensão e pela forma como foi socialmente apresentada, proporcionou um campo fértil para produção de diversas significações e imagens, algumas delas registradas neste estudo a partir dos resultados das evocações livres.
Pode-se verificar que a morte tem uma dimensão imagética muito marcante nos grupos estudados. Esse significado está relacionado, provavelmente, ao fato de que a AIDS ainda não tem cura, apesar de ser controlável. Há que se considerar também que por muito tempo a morte e a AIDS tiveram uma relação muito íntima, constituindo-se para muitos num risco iminente. De acordo com Paulilo (1999), a caracterização da AIDS como doença letal foi interiorizada de maneira profunda e contribuiu para exacerbar temores relacionados à morte.
Os servidores da enfermagem, no seu cotidiano, vivenciam a questão da morte em várias situações e, com o advento da AIDS, esta experiência tornou-se muito mais comum. Além disso, a morte na prática desses profissionais, na maioria das vezes, não se dá como um fato isolado, mas como o fim de um processo que, durante seu curso, perpassa por questões de ordem emocional e moral, entre outras.
Os sentimentos negativos associados à AIDS também se mostram muito presentes entre os sujeitos deste estudo, principalmente àqueles representados pela palavra sofrimento. Este significado pode estar relacionado aos sentimentos e emoções vivenciados pelos sujeitos ou pela forma como percebem esses sentimentos vivenciados pelo outro, ou seja, por aqueles cuja doença afeta de forma mais direta.
O desconhecimento e as formas como as informações são veiculadas para os indivíduos são apontadas por Meneghim (1993) como elementos que contribuem para que estes desenvolvam um sentimento de medo e insegurança em relação à contaminação pelo HIV. O medo aparece, inclusive, de forma mais explícita no grupo da enfermagem. A prática profissional desse grupo, que implica contato mais direto com o cliente e, em muitos casos, com seus fluidos corpóreos, deve traduzir no seu imaginário um risco ainda maior de exposição à contaminação. As palavras contaminação e contágio estão presentes entre os elementos periféricos desses profissionais na análise estrutural de suas representações.
Significados que caracterizam os estigmas da AIDS são representados pelas palavras preconceito, discriminação, desgraça, promiscuidade e doença de homossexuais. O termo preconceito parece, pela sua freqüência, representar todas as formas de referência a este significado. A origem dessa concepção reside no fato de que a ausência de conhecimentos científicos sobre a doença no início da epidemia e as primeiras referências que a associavam a determinados grupos da população, com atitudes e práticas não muito aceitas pela sociedade, fizeram com que essas últimas informações fossem veiculadas pelos meios de comunicação de massa, muitas vezes com uma conotação pejorativa em relação aos portadores ou possíveis grupos de maior risco de exposição (MENEGHIM, 1993; PARKER, 1994; PAULILO, 1999).
A prevenção, ainda que de maneira discreta, aparece como um dos significados da AIDS. Esta aparição reflete a sua incorporação pelos sujeitos, provavelmente resultante da massificação das informações ou do conteúdo a ela inerentes, e, talvez, nem tanto pela sua prática. Destaca-se, no entanto, que este significado, no conjunto dos sujeitos estudados, tem mais relação com o grupo da enfermagem que dos demais servidores. Este dado sugere que, em decorrência da formação e da prática profissional, este aspecto da evitabilidade da doença faz-se mais presente no grupo da enfermagem.
Estudos recentes realizados por Tura (1997) e por Thiengo, Oliveira e Rodrigues (2000), embora com outro grupo populacional, no caso adolescentes, mostram resultados muito semelhantes em relação ao significado da AIDS. Em ambos os estudos, a palavra morte se destaca como significado central da AIDS. Esse dado, ainda que incipiente para conclusões, nos remete a pensar que este seja o significado ou a imagem mais marcante das representações sociais sobre AIDS, independente do grupo estudado, ou seja, constituinte de representações hegemônicas, conforme apontado por Sá (1998).
Por fim, conclui-se que, face aos resultados obtidos, considera-se que o estudo das representações sociais do objeto de estudo proposto permitiu a identificação dos significados hierarquizados da representação da AIDS, a partir dos quais pode-se instrumentalizar processos de intervenção junto a esses trabalhadores, além de apontar caminhos para repensar a prática profissional em enfermagem.
REFERÊNCIAS
ABRIC, J. C. Prácticas sociales y representaciones. México: Ediciones Coyoacán, 2001. 227 p.
______. A abordagem estrutural das representações sociais. In: MOREIRA, A S. P. ; OLIVEIRA, D. C. (Org.). Estudos interdisciplinares de representação social. 2. ed. Goiânia: AB Editora, 2.000. p. 27-38.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. 229 p.
JODELET, D. (Org.) AIDS e representações sociais: à busca dos sentidos. Natal: EDUFRN, 1998. 190 p.
MENEGHIN, P. O enfermeiro construindo e avaliando ações educativas na prevenção da AIDS. 1993. 123 p. Tese (Doutorado) - Escola de Enfermagem Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.
MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 291 p.
OLIVEIRA, D. C. Introdução ao objeto de pesquisa. In: ______. A Promoção da Saúde da Criança: análise das práticas cotidianas através do estudo de representações sociais. 1996. p. 2-42. Tese (Doutorado) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.
______. A enfermagem e as necessidades humanas básicas: o saber/fazer a partir das representações sociais. 2001. 225 p. Tese (Concurso de professor titular) - Faculdade de Enfermagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.
PARKER, R. G. et al. A AIDS no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: ABIA/IMS/UERJ, 1994. 360 p. (Coleção História Social da AIDS, 2).
PAULILO, M. A S. AIDS: os sentidos do risco. São Paulo: Veras , 1999. p. 239.
SÁ, C. P. Núcleo Central das Representações Sociais. Petrópolis: Vozes, 1996. 189 p.
_______. A construção do objeto de pesquisa em representações sociais. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 1998. 106 p.
THIENGO, M. A.; OLIVEIRA, D. C.; RODRIGUES, M. B. R. D. Adolescentes, AIDS e práticas de proteção: uma abordagem estrutural das representações sociais. Revista Enfermagem UERJ. Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 81-94, maio/ago. 2002.
TURA, L. F. R. Os Jovens e a Prevenção da AIDS no Rio de Janeiro. 1997. 174 p. Tese (Doutorado em Medicina) - Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
VERGÈS, P. Approche du noyau central: propriétés quantitatives et structurales. In: GUIMELLI, C. Testes de Base in Sciences Sociales - Structures et Transformation des Représentations Sociales. Paris: Delachaux et Niestlé. 1994. cap. 8, p. 233-253.
WAGNER, W; ELEJABARRIETA, F. Representaciones sociales. In: MORALES, J. F. Psicología Social. Madri: McGraw-Hill. 1994, p. 815-842.
NOTAS
1Este trabalho é um recorte da dissertação de Mestrado intitulada Representações Sociais da AIDS dos Servidores de um Hospital Universitário: um indicador para a implantação de programas de treinamento, apresentada à Faculdade de Enfermagem da UERJ e aprovada, em dezembro de 2002.
Recebido em 14/03/2003
Reapresentado em 06/06/2003
Aprovado em 18/06/2003