Volume 7, Número 2, Mai/Ago - 2003
ARTIGOS DE PESQUISA
Questões epistemológicas da construção do conhecimento na enfermagem do ensino à prática de cuidar1
Epistemological questions on the construction of knowledge in nursing - from teaching to the practice of caring
Cuestiones epistemológicas de la construcción del conocimiento en la enfermeria de la enseñanza a la prática de cuidad
Vilma de CarvalhoI; Nébia Maria Almeida de FigueiredoII; Josete Luzia LeiteIII; Marléa Chagas MoreiraIV
IDocente Livre, Professor Emérito da UFRJ. Pesquisadora - CNPq
IIDoutora em Enfermagem. Professora Titular da EEAP/UNI-RIO. Pesquisadora - CNPq
IIIDocente Livre, Professor Emérito da UNI-RIO. Professor Visitante - EEAN/UFRJ. Pesquisadora - CNPq
IVDoutora em Enfermagem. Professor Adjunto, EEAN/UFRJ. Assessora Pesquisa Centro de Suporte Terapêutico-Oncológico/INCA
RESUMO
Discute-se questões da construção do conhecimento em experiência preliminar de pesquisa, implicando ensino e prática de cuidar na enfermagem. Visa-se a qualidade acadêmica do trabalho peculiar ao espírito pedagógico. O objeto de estudo comporta dimensões de ensinar e aprender a pesquisar; está delimitado em projetos de pesquisas (20), envolvendo estudantes da Graduação (216), de Universidades Federais (02) e clientes estudados (324) sob orientação de professores/pesquisadores de enfermagem (04). Os objetivos visam: fazer reflexões sobre marcos de referência para a construção científica; considerar possibilidades e limites da pesquisa na Graduação; e aplicar metodologia inovadora para uma epistemologia da enfermagem. A metodologia de categorização epistemológica inclui escolha preferencial das pesquisas, aplicação de conceitos epistemológicos e apreciação analítica dos dados. O enquadramento teórico-metodológico abrange fundamentos bachelardianos para a construção científica e outras fontes do método científico. Embora não conclusivos, os resultados compreendem questões epistemológicas emergentes das pesquisas. As autoras defendem os mesmos como confiáveis para aplicabilidade/exeqüibilidade de uma Metodologia de Categorização Epistemológica para a Pesquisa na Enfermagem, a qual assumem como contribuição para a formação do espírito científico.
Palavras-chave: Enfermagem. Pesquisa. Graduação. Metodologia Epistemológica.
ABSTRACT
Questions about the construction of knowledge in a previous research experience are discussed, involving teaching and practice of nursing care. It aims at the quality of the academic work produced by Professors, with characteristic pedagogical nature. The object of study includes dimensions of teaching and learning how to research, considering 20 researches, 216 students of undergraduate courses of 2 federal universities and 324 clients, supervised by 4 professors/researchers of nursing. The objectives were: 1) To reflect on milestones for the scientific construction; 2) To contemplate possibilities and limits of the research at the Undergraduate Course; and 3) To use an innovative methodology for a nursing epistemology. The methodology of epistemological categorization includes selection of researches, use of epistemological concepts and quanti-qualitative approach to analyze data. The theoretical and methodological frame includes Bachelard's ideas about the scientific construction, among other bibliographical sources. Although not conclusive, the results show epistemological questions emerging from the researches. The authors defend the reliability of the results in order to apply or carry out a Methodology of Epistemological Categorization to Research on Nursing, which they consider a contribution to create the scientific spirit.
Keywords: Nursing; Nursing Research. Undergraduate Course; Epistemological Methodology.
RESUMEN
Introducción: Se discute cuestiones de la construcción del conocimiento en una experiencia preliminar de investigación, implicando enseñanza y práctica de cuidar en la enfermería. Se intenta la calidad académica del trabajo, peculiar al espiritu profesional. El objeto de estudio abarca dimensiones de enseñar y aprender a investigar; está delimitado en proyectos de investigación (20), involucrado estudiantes de graduación (216), de Universidades Federales (02) y clientes estudiados (324), bajo la orientación de profesores/investigadores de enfermería (04). Los objetivos fueron: hacer reflexiones sobre marcos de referencia para la construcción científica; considerar posibilidades y límites de la investigación en la Graduación; y aplicar metodología innovadora para una epistemología de la enfermería. La metodología de categorización epistemológica incluye aplicación de conceptos epistemológicos y apreciacción analítica de los dados. El encuadramiento teórico-metodológico abarca fundamentos bachelardianos para la construcción científica y otras fuentes del método cinetífico. Aunque no concluyentes para generalizaciones, los resultados abarcam preguntas epistemológicas emergentes de las investigaciones. Las autoras defienden los mismos como confiables para la aplicabilidad y ejecución de una Metodología de Categorización Epistemológica para la Investigación en la Enfermería, la cual asume como contribuciones para la formación del espiritu científico.
Palabras clave: Enfermería. Investigación. Graduación. Metodología Epistemológica.
BREVE ESCLARECIMENTO SOBRE O ESTUDO
Cumpre confessar, antes de tudo, que este trabalho insere-se na pauta do Grupo da Linha de Pesquisa e Estudos Epistemológicos para a Enfermagem - Lepisteme, com aprovação e certificado institucional (UFRJ) e cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil (CNPq). O Grupo não está localizado em Departamento de Ensino, mas vinculado à Coordenação Geral de Pós-Graduação e Pesquisa da EEAN, em razão do caráter epistemológico (A Egrégia Congregação da EEAN/UFRJ julgou o Grupo "supradepartamental"). Por enquanto, o maior desafio é assegurar fronteiras no que tange às repercussões dos trabalhos do Grupo (CNPq, 2002).
Embora não seja toda a explicação, é o que se pode dizer, nesta oportunidade. Quanto ao trabalho intitulado Questões Epistemológicas da Construção do Conhecimento na Enfermagem - do ensino à prática de cuidar, as autoras acreditam poder (talvez) clarear possibilidades e limites do conhecimento produzido em pesquisas de enfermagem. Um desafio que, se devidamente superado, poderá iluminar, outrossim, a visibilidade do Grupo Lepisteme quanto à compreensão de seu sentido e extensão de seus termos.
DA TEMÁTICA E PROBLEMÁTICA
Apesar dos saltos evolutivos do modelo da formação profissional, na Graduação de Enfermagem (Portaria1721/94 - MEC), ainda não se conseguiu superar alguns desafios de "questões" que imprimem variação à arte pedagógica nas dimensões "do ensino à prática de cuidar". Dois pontos críticos destacam-se de pronto: o primeiro em relação aos objetivos do perfil profissional, mormente quanto à aprendizagem da pesquisa científica, o segundo pelo sentido do que seja qualidade acadêmica, assunto que transcende a prática da pesquisa, com implicações para o conhecimento produzido. Com justa razão, na compreensão acadêmica, pouco ou quase nada resulta da pesquisa se não se acrescenta algo "ao que já se sabe". Mas não é só isso.
Por conta das implicações, entre as questões ressaltam-se algumas que interferem no fenômeno do conhecimento, a partir de dois aspectos que se refletem nas formalidades da atuação da enfermeira e nos termos substantivos de sua arte. Os dois aspectos implicam-se, intrínseca e extrinsecamente, na intimidade do ato do conhecer e, conseqüentemente, no sentido da enfermagem como profissão (CARVALHO 1997). São os seguintes:
- o da arte de cuidar quanto aos cuidados prestados ofertados pela profissão, com conotações de significados substantivos tangíveis ao encontro de enfermeiras(os) com os clientes; e
- o das formalidades de atuar no processo de trabalho de enfermagem, com denotações de significados adjetivos para atribuições profissionais e que subordinam os cuidados aos clientes ao crivo de ordens médicas.
Os dois aspectos complicam-se na pesquisa e, portanto, na construção científica, e valem por uma ênfase no interesse deste trabalho. Ou seja, em que pese a especificidade da enfermagem em relação às pesquisas da área e aos dados produzidos (conhecimento buscado?). O primeiro aspecto - (dos cuidados prestados) - tem pertinência de significado para as "coisas" de que se ocupam os profissionais. Ou pode-se dizer do que se possa entender por "real" na arte de cuidar e no encontro de enfermeiras(os) com os clientes - é a esfera de significados substantivos do "objeto material", no ato de conhecer. O segundo aspecto corresponde às abordagens e estratégias das formas do "que-fazer" no trabalho de enfermagem - é a esfera de atributos adjetivos do "objeto formal", na construção do conhecimento. Esse último bem complicado, no plano da pesquisa, pela inerência da subjetividade (consciência do sujeito pesquisador) em suas relações com as bases explicativas e quadros de referências para a produção do conhecimento. Pode-se dizer, também, um complicandum pela necessidade da presença/participação de outros sujeitos na trama da objetividade científica. Os dois aspectos têm importância própria, não só nas dimensões do ensino à prática de cuidar, mas nas estratégias de ensino-aprendizagem na pesquisa. Mais precisamente, porque afetam objetivos de buscar respostas para a enfermagem, em especial quanto ao alcance de resultados eficazes para o conhecimento produzido.
Não há muito que objetar, o assunto é conhecido de pesquisadores enfermeiras(os) em instituições de ensino superior. Os profissionais defendem a enfermagem por padrões de prática mais bem definida por sua necessidade social do que por competências de qualidade acadêmica na prática científica - "prática-da-pesquisa-pela-pesquisa" e, por isso mesmo, uma prática crítica (DEMO; CARVALHO; 1985).
DA RELEVÂNCIA E JUSTIFICATIVA
A qualidade acadêmica transcende ao enfoque puramente técnico do perfil profissional, já bem conferido para os cuidados de enfermagem e para a valorização de atividades organizacionais/gerenciais na assistência à saúde. Mas em âmbito de prática crítica, a proficiência acadêmica tem relevância assegurada por elementos distintivos da arte pedagógica, e justifica-se porque os professores/pesquisadores, sob pressão de requisitos acadêmicos da produção científica, enfrentam dificuldades para superar desafios compatíveis com:
- A capacidade de ensinar, sobretudo, no processo de aprendizagem da pesquisa, isto é, de "ensinar-a-aprender-a-pesquisar".
- O perfil de pesquisador coerente com requisitos capazes de favorecer "a formação da mentalidade científica", desde o nível de Graduação.
- A qualificação acadêmica reconhecida, no plano da produção científica, e capaz de ampliar "o potencial de resultados eficazes" para a área da Enfermagem - seu saber como conhecimento em construção e sua história como prática social e científica.
Não dá para discutir em detalhes. Os professores de enfermagem lutam por reconhecimento como pesquisadores, no âmbito universitário e face às agências de fomento e amparo à pesquisa. E para redimensionar objetivos da arte pedagógica adequados à formação da mentalidade científica, é preciso desenvolver, na performance de atividades do trabalho acadêmico, o melhor estilo de partilhar/compartilhar com estudantes (a partir da Graduação) os avanços e aquisições do conhecimento para a profissão.
O maior incômodo é a sanção de que a pesquisa na enfermagem não produz evidências (CARVALHO, 2001). Na seara da avaliação acadêmica, a opinião habitual é a de que não se produz contribuição para o conhecimento da área, os resultados não traduzem mudanças na prática do ensino e nem resolvem problemas na prática da arte de cuidar. A crítica contundente refere a pesquisa em enfermagem servindo para descrever o espaço em que ocorrem os fenômenos, com pouca ou quase nenhuma atenção à realidade em si, ou como positivada em nível de relações que sustentam o espaço e os fenômenos assim entendidos. Pode-se compreender melhor, na proposição da epistemologia bachelardiana (BACHELARD, 1996), "(...) o pensamento científico é então levado para construções mais metafóricas que reais, e para espaços de configuração, dentre os quais o espaço sensível não passa, no fundo, de um pobre exemplo". Vale dizer que não se avança, além do que se sabe e do que se percebe, sem nenhuma idéia de buscar "o singular", no real, ou como algo de "inédito" que escape à descrição espacial requerida da compreensão dos fatos. Ou seja, não se consegue explicar "o que precisa ser explicado". Eis aí, (por suposto), a razão da precariedade de resultados de impacto para a área da enfermagem, ou de repercussões para o conhecimento da realidade em que se opera.
UMA ABORDAGEM METODOLÓGICA INOVADORA
A ocasião parece oportuna para expor o pensamento sobre uma "Metodologia de Categorização Epistemológica para a Pesquisa na Enfermagem"1, a qual, vazada em elementos de enfoque epistemológico, emergiu de simples "tópicos para uma discussão". Na realidade, essa metodologia emergiu no esboço de um "esquema arquétipo" (protótipo), e da idéia de que, se aplicado na análise de pesquisas já realizadas, talvez pudesse clarear dúvidas da atividade pedagógica de "ensinar-a-aprender-a-pesquisar". Ainda não sendo possível preencher, de uma vez, toda a explicação, só o exercício de aplicá-lo, em plano de real, já satisfaria a curiosidade intelectual de elucidar os resultados nas pesquisas. Daí a decisão de empreender o estudo, posto que o assunto "da construção do conhecimento na enfermagem" já vai longe e "vale todos os riscos". Algumas perguntas nortearam a experiência de usar o esquema. São as seguintes:
- Uma nova metodologia poderia ajudar a obter respostas adequadas a conferir evidências para a enfermagem?
- O enfoque epistemológico poderia favorecer mudanças de condutas na construção científica?
- A aplicação de um instrumento de análise - (esquema arquétipo) - em pesquisas realizadas serviria à finalidade de aprender a pesquisa pela pesquisa?
Entretanto, não se cogitou da idéia de controle nem por "objetivos específicos". Cabe admitir, portanto, que a nova metodologia, em sua conformação ao enfoque epistemológico, não prima pela essência de conceitos sociais e nem pelas fórmulas matemáticas de rigor para as experiências sob controle. A intencionalidade objetiva (interesse do conhecimento para a enfermagem) não condiz, porém, com posição fechada, pois o estudo tem mais a ver com um "ensaio preliminar" do que com experiência de demonstração. E o que mais se pretende é que seja seguido de outros.
Para favorecer a compreensão de "como" idealizada, vale dizer que a mesma foi esboçada para atender a este estudo, pelo qual (por suposto) poder-se-ia verificar a condição de precariedade ou de firmeza na conduta e na lógica da pesquisa, ou talvez os desvios nas instâncias do campo epistêmico (consistente com o grau de objetividade científica). As condições de estudo preliminar foram discutidas em vista de princípios de aplicabilidade e exeqüibilidade metodológica, e pelo fato de o "esquema arquétipo" estar calcado não tanto em idéias de cientificidade (recursos de lógica e conduta científica), mas em conceitos da "epistemologia bachelardiana"(JAPIASSU, 1977). Então, sob impulso de interesse acadêmico, as pesquisadoras decidiram-se pela aplicação imediata da metodologia, sem qualquer teste piloto e pela novidade da análise de pesquisas já realizadas em nível de Graduação. Assim, o estudo foi assumido não só para apreciar a aplicação da "nova metodologia" na análise de projetos de ensinar-a-aprender-a-pesquisar, mas para apreciar as "possibilidades e limites" da e na pesquisa de enfermagem.
A intencionalidade subjetiva (intenção/consciência do sujeito no conhecimento) teve por mira apreender, também, questões da construção científica. Algumas emparelhadas com dificuldades (desvios?) na lógica do campo da pesquisa ou nas idéias em instâncias metodológicas, a exemplo do enquadramento de assuntos nos espaços teórico e metodológico e em relação aos quadros de referências (De BRUYNE, 1977). Outras coerentes com o enfoque epistemológico para o conhecimento (na enfermagem), com pertinência aos aspectos que definem ou configuram "a formação do espírito científico" (BACHELARD, 1996).
Como não se sabe tudo, uma descrição dos termos do esquema arquétipo pode dizer melhor sobre o que se pensa que seja capaz de ajudar com alguns problemas operacionais de caráter epistemológico, no desenvolvimento de pesquisas e no processo de trabalho de "ensinar-a-aprender-a-pesquisar". De um ângulo bem linear, o esquema pode ser conferido como discriminado, a seguir.
1. Constituição do tema ou problema na pesquisa
- Em relação à contribuição para a enfermagem (conhecimento em construção)
- Com pertinência para o enfoque epistemológico na enfermagem (como dado e/ou se colocado na pesquisa)
Subjetivo/subjetividade (esfera do sujeito/consciência do pesquisador na pesquisa)
Objetivo/objetividade (esfera dos dados ou sujeitos - objeto ou como objetivados na pesquisa)
Entorno/Contorno - área que abrange o(s) sujeito(s) e dados na pesquisa - (região nos aspectos de totalidade ou de setorização - fronteiras do espaço que circunda ou delimita o ato do conhecer na construção científica).
2. Enquadramento Teórico-Metodológico (Quadros Referenciais)
- Teoria e Método (consagrado, sancionado, em construção)
- Enfermagem (área técnica) - Interesse da Profissão? Em que sentido?
- Epistemológico - Possibilidades e limites do conhecimento (já construído na ciência ou em construção).
3. Dados e/ou Resultados
- Coleta de informações e Tratamento de dados Quantitativos?
Qualitativos?
Quanti-qualitativos?
- Outros meios instrumentais/metodológicos
Descrição da realidade
Avaliação ou análise (de situação, de problemas)
Discussão
4. Aspectos epistemológicos destacados
- Noção de obstáculo epistemológico - Inércia do pensamento, parada, estagnação do conhecimento (retardo versus ousadia de pensamento)
Conhecimento Geral (unitário, não aprofundado, sem avanço)
Conhecimento Pragmático (utilitário à luz do que vale a pena; com ênfase em aspectos de extrema utilidade; grau elevado no plano prático-radical, exagerado)
Repetição de primeira experiência (nada de novo problema) - empiria sem novidades ou não controlada.
-Colocação de Enfoques temáticos (Saber da Enfermagem, ciência e arte; outros) no plano do conhecimento.
-Noção de intencionalidade objetiva - dimensionada para o objeto de estudo (do princípio à conclusão no estudo/pesquisa).
De interesse da Enfermagem?
De que se trata? Busca de resultados ou de evidências?
Tratando-se de primeiro estudo, não se cogitou de adotar outros conceitos epistemológicos. Assim, em relação ao arranjo desse esquema, cabe afiançar que a abstração serviu como procedimento normal para uma primeira tentativa de ordenação do trabalho (científico?) de realizar atividades de trabalho acadêmico e de analisar pesquisas de enfermagem. E serve de apoio à idéia de não se ter critérios de rigor para sua aplicação. Interessava realçar uma tonalidade (especial) da conduta na pesquisa, mais condizente com "uma prática crítica" - quer seja em razão da evolutiva histórica no conhecimento (recorrência epistemológica) - teorias e métodos consagrados, sancionados e/ou em construção, quer seja em vista da atitude reflexiva do pesquisador na pesquisa (vigilância epistemológica) - em relação a métodos adotados e sistemática do assunto (BACHELARD, 1996). Também pela necessidade de atender a condições ditas de causação - atribuição de causalidade, de lógica da proximidade ou de elos de conexão - entre o estudo/pesquisa e os fenômenos assim entendidos (De BRUYNE, 1977).
Com efeito, espera-se que a atitude do pesquisador, na pesquisa e em relação ao método de sua escolha, possa aliar-se à conduta científica (coerência do pensamento abstrato) relativa aos aspectos de superação de obstáculos (desvios?) epistemológicos. E pensou-se que se poderia, outrossim, no plano das pesquisas, perceber e talvez explicar dificuldades emergentes das atividades de pesquisar, que valem por questões epistemológicas da construção do conhecimento na enfermagem.
A título de ilustração, na primeira discussão e já apreciando a possibilidade de aplicação do "esquema metodológico", entre as pesquisadoras emergiram algumas declarações:
"Não há dificuldades para escolher projetos de pesquisa já realizados e nem para constituir a amostra".
"Amostra constituída de projetos já realizados em nível de Graduação? E por que não?"
"Não há dificuldades em processar a análise dos resultados obtidos".
"A dificuldade vai ser em manejar este esquema arquétipo no procedimento de análise".
"Jamais havia sentido a possibilidade de utilizar um esquema de enfoque epistemológico na análise de atividades de pesquisar e ensinar a pesquisar".
"Outras dificuldades? Só com algumas palavras expressivas ou significativas do esquema em particular, a exemplo de entorno/contorno versus totalidade/setorização".
"Também não havia cogitado diferença entre assuntos (teoria e método) consagrados, sancionados; somente entendia se em construção".
"Mas sendo (como parece) uma experiência com possibilidades de inovações, não merece ser evitada, então vale correr riscos neste ensaio preliminar".
"O que preocupa é a premência de tempo para realizar o estudo e sem compreender, com profundidade, este ângulo de enfoque epistemológico".
À simples leitura, pode-se apreciar/observar - qualitativamente - as limitações a que se poderia chegar com a aplicação da nova metodologia. Mas nem se cogitou de rejeitar a ocasião de exercitar o raciocínio em proveito da experiência de "analisar a pesquisa pela pesquisa". E mesmo antecipando dificuldades e desafios de aplicar, de imediato, um esquema analítico vazado em conceitos epistemológicos, as pesquisadoras encontraram uma forma de estudar algumas pesquisas e de dar nova ordem aos achados, sob o ângulo de produto do enfoque epistemológico para classificar "questões da construção científica na enfermagem".
CONDIÇÕES DO ESTUDO E DA OPERAÇÃO ANALÍTICA
Os projetos de pesquisa - 20 ao todo - foram escolhidos, preferencialmente, entre outros da safra de orientação de três (03) das pesquisadoras. E por se tratar de experiência (talvez) antecipadora do potencial analítico do "idealizado esquema metodológico", as pesquisadoras dispensaram os requisitos de métodos habituais de pesquisa, pois, no que convém a este estudo, não se aplicavam.
Neste sentido, decidiu-se que os projetos se constituiriam em "amostra/locus" da pesquisa que, em realidade, serviu para conferir em plano de abrangência (ampliada/globalizada) a participação de 216 estudantes e alguns professores de duas Universidades Federais (os "projetos" aliavam-se a outros não incluídos na amostra). Entre os estudantes, apenas 10 considerados sujeitos investigantes (participação direta), sendo quatro "bolsistas" (IC/CNPq) sob orientação de duas das pesquisadoras. No sentido da "abrangência" (por extensão), os projetos comportaram, ainda, 324 clientes, porque atendidos pelos mesmos estudantes e professores em prática de estágios de âmbito hospitalar. O que significa que, se contabilizado nos termos da produtividade das pesquisadoras, o processo de "ensinar-a-aprender-a-pesquisar" é bem mais complexo do que se costuma apreender em análise mais estrita.
Todavia, em termos de "real objetivado" no plano da "amostra", os projetos compõem, também, a produção científica das pesquisadoras (Pós-Graduação Stricto Sensu - Mestrado e Doutorado) e, principalmente, as atividades de ensino de Graduação (5º, 6º, 8º períodos de aulas), em que pese a prática de cuidar de clientes hospitalares. E estão relacionados ao recorte temporal de março de 1999 a dezembro de 2000.
DOS ACHADOS E RESULTADOS ALCANÇADOS
Apesar de dificuldades pedagógicas e de outras da vida acadêmica, as pesquisadoras estudaram a amostra-locus, se não para atender aos principais termos do "esquema arquétipo", pelo menos para classificar os projetos no que diz respeito a alguns aspectos de "enfoque epistemológico". O que se pode apreciar nos três quadros s seguir.
Como se pode observar no Quadro I, as questões epistemológicas destacam-se a partir dos assuntos focalizados e compreendem: 1) "Tema", subdividido em Ensino, com três projetos e, Prática de Cuidados (cuidados/clientes/ambulatórios/doenças crônicas), com 17 projetos; 2) "Contribuição", subdividido nos aspectos Entorno/Contorno x Totalidade, com 10 projetos (objeto de estudo ampliado?), e Entorno/Contorno x Setorização com 10 projetos (clientes/situações/áreas específicas); e 3) "Enfoque epistemológico", subdividido em relação a Subjetivo/Subjetividade com o total de 20 projetos (!?) e Objetivo/Objetividade subdivido por Dados, com 10 projetos, e por Sujeitos-objeto, com 10 projetos.
Quadro 1 - Clique para ampliar
Todavia, por dificuldades (conceituais?) e dúvidas (definição?), ou talvez pela novidade do procedimento analítico, as pesquisadoras declararam:
"Encontramos dificuldades quanto ao uso do termo Contribuição, ainda mais subdividido nos termos Entorno/Contorno x Totalidade/Setorização".
"Sentimos dúvidas quanto à expressão Enfoque epistemológico, principalmente como subdivido nos termos Subjetivo/Subjetividade x Objetivo/Objetividade".
"Percebemos o termo Subjetivo/Subjetividade no sentido de intenção e presença do sujeito pesquisador em todas as pesquisas, e entendemos o termo Objetivo/Objetividade como relativo a dados e sujeitos quando focalizados nos achados/resultados das pesquisas".
Após discussão do grupo, com a exigüidade de tempo e urgência de realizar o estudo, não foi possível acertar todas as dificuldades e dúvidas relativas às assertivas anteriores, o que pode significar alguma distorção (!?) na análise dos projetos, mormente quanto às questões relativas ao Item 3 do quadro anterior.
Pelos termos no Quadro II e pelo enquadramento dos assuntos, os projetos foram analisados em relação às questões epistemológicas: 1) "Pertinência do Enquadramento", com destaque para três dimensões - Teoria(s) e Método(s), Tratamento de Dados e/ou Resultados e Enfermagem; 2) "Autonomia em Fronteiras do Campo Epistêmico", sendo os projetos analisados em relação ao item anterior (Pertinência do Enquadramento) e, portanto, com realce nas dimensões: a) "Teoria(s) e Método(s), com subdivisão para os aspectos/destaques em "Consagrado(s)" com 31 referências (!?) assinaladas, e para "em Construção" com seis referências (!?) assinaladas; b) "Tratamento de Dados e/ou Resultados", com subdivisão em Qualitativo(s), com 27 referências (!?) assinaladas, e Quantitativo(s), com seis referências (!?) assinaladas; e c) "Enfermagem", focalizando o Interesse da Profissão, com 20 referências (!?) assinaladas.
Quadro 2 - Clique para ampliar
Na discussão do grupo, as pesquisadoras não chegaram a um pleno acordo. As dúvidas incidiram, de um lado, na compreensão de Quadros de Referências como patrimônio intelectual da intersubjetividade científica (domínio do intercâmbio de idéias na ciência) ou como base explicativa e/ou apoio metodológico. E, de outro, quanto às possíveis repercussões da pesquisa na enfermagem. Nesse particular, a implicação mais séria centralizou dúvidas quanto ao enquadramento dos assuntos pelos termos consagrado(s) e sancionado(s). Com efeito, os assuntos se destacam, no enquadramento, segundo a "autonomia" nas fronteiras do campo epistêmico (campo da construção científica), e como reconhecidos nas relações com disciplinas do conhecimento científico - sociologia, psicologia, etnologia, economia etc. (De BRUYNE, 1977). Na Enfermagem, a implicação da autonomia diz respeito à idéia de "conhecimento em construção" e destaca-se por imperativos de interesse da profissão e pelos aspectos distintivos de seu modelo de ensino e de prática. Nesse particular, talvez haja distorções na classificação efetuada, mormente quanto ao Item 2 (Autonomia x Fronteiras no Campo Epistêmico).
Pelo que se pode observar no Quadro III, as questões epistemológicas destacam-se nos aspectos: 1) "Enfoques Temáticos", com ênfase em interesse da enfermagem e que sublinham (talvez) obstáculos epistemológicos em relação a Conhecimento do Geral, com 10 projetos, Conhecimento - Ensino de Enfermagem (Pragmático ?) com sete projetos, e Repetição de Experiências - não controladas com três projetos; e 2) "Intencionalidade Objetiva" que, na relação de "assuntos x resultados", assinala a inclusão dos 20 projetos analisados.
Quadro 3 - Clique para ampliar
Contudo, pelas dúvidas verbalizadas em discussão, não foi fácil a classificação das questões em relação a "aspectos epistemológicos destacados", ou seja, quanto: a) Conhecimento do Geral (!?), pois alguns projetos focalizam assuntos de áreas especializadas; b) Conhecimento Pragmático (!?), pois se tudo tem sentido de "utilidade da profissão". Razão de optar-se por outros destaques como de Conhecimento - Ensino de Enfermagem. E em relação à Repetição de Experiências, optou-se por adjetivá-las como não controladas, posto que algumas pesquisas conferem com "experiências em procedimento de repetição", mas sem a positiva idéia de "experimentação controlada".
UM ESCLARECIMENTO A MAIS
A conta do exposto, e pelos termos da análise efetuada, o que se pode acrescentar é que, se devidamente consideradas as possibilidades e limites do instrumento analítico em confronto com as condições de suporte ou domínio epistemológico nas pesquisas, não será difícil inferir que a nova metodologia permanece, ainda, com a idéia de aplicável às pesquisas na enfermagem. O que impõe ao "esquema arquétipo" a condição sine qua non, ou exigência imperativa, de ser avaliado com urgência em próximos estudos e, sem dúvida alguma, com objetivos formulados para experiência sob controle. De fato, em vista do que se alcançou como "possibilidades e limites do conhecimento" em relação aos termos de alguns achados nos três Quadros (I, II e III), não é difícil perceber a fraqueza (precariedade?) na conduta e na lógica das pesquisas na enfermagem. Ou, então (por suposto), do ângulo do processo de "ensinar-a-aprender-a-pesquisar", só se pode perceber - (não se pode afiançar) - que "(...) é menos importante traçar uma linha precisa entre o que é científico e o que não é, do que favorecer, em cada oportunidade, o aumento [do conhecimento] científico" (DE BRUYNE, 1977). E isto, seja afirmado não apenas quanto ao desenvolvimento de atividades do trabalho de pesquisar, mas, principalmente, no manejo do pensamento como abstração na sistemática da ciência, quer seja esta entendida na lógica da prova e na lógica da descoberta, desde a primeira arquitetação (design) de projetos, quer seja na andança (andamento) e terminalidade da pesquisa.
Por último, mas não por fim, e sem qualquer idéia de radicalizar, os achados nos Quadros I, II e III, se considerados em confronto com as declarações das pesquisadoras, e mesmo em se tratando, aqui, de um estudo preliminar de aplicar um esquema metodológico novo, na análise de pesquisas de enfermagem, permitem a percepção da fraqueza ou precariedade na compreensão do que se possa entender como questões epistemológicas na construção científica. Certamente, se as pesquisas (estudadas/analisadas) não oferecem resultados de confiabilidade ou como produto de impacto nas dimensões do ensino à prática de cuidar, ou como processo capaz de apoiar a necessidade de evidência, pode-se estar correndo o risco de sublinhar o pensamento, na enfermagem, não como adequado à "procura da variação de um dado fenômeno", mas como condicionado à "busca da variedade de um objeto a outro" (BACHELARD, 1996).
E, com isso, pode-se estar correndo outro grande risco, qual seja o de levar a construção científica a justaposições meramente literárias, sem atenção ao que é "singular ou diferente" na natureza da própria Enfermagem entendida como ciência em construção.
REFERÊNCIAS
CONSELHO NACIONAL DE PESQUISA - CNPq/Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil. Grupo de Linha de Pesquisa e Estudos Epistemológicos para a Enfermagem. Versão 5.0 (Certificado pela Instituição UFRJ/SR2 - 26/07/02).
CARVALHO, Vilma de. A enfermagem de Saúde Pública como Prática Social: Um ponto de vista crítico sobre a formação de enfermeira em nível de graduação. Escola Anna Nery, Revista de Enfermagem, n. especial de lançamento, jul. 1997.
DEMO, Pedro. Teoria - Porque? In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE TEORIAS DE ENFERMAGEM, 1., 1985, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 1985.
CARVALHO, Vilma de. Tangenciando o pensamento de Pedro Demo e suas alegações por uma prática crítica. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE TEORIAS DE ENFERMAGEM, 1. 1985, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 1985.
______.Sobre construtos epistemológicos nas ciências - uma contribuição para a enfermagem. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM ENFERMAGEM, 11., 2001. Belém Anais... Belém: ABEn Seção PA, 2001.
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
JAPIASSU, Hilton. Introdução aopensamento epistemológico. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
De BRUYNE, Paul; HERMAN, Jacques; SCHOUTHEETE, Marc de. Dinâmica da Pesquisa em ciências sociais: os pólos da prática metodológica. 2. ed. Tradução de Ruth Joffily. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
NOTAS
1Proposta da Profª. Vilma de Carvalho, em momento de cogitações com as outras pesquisadoras. Na base do puro empirismo e da vontade de submeter o próprio pensamento à discussão, a autora desenhou, em "esquema arquétipo" (protótipo), suas idéias baseadas em termos que poderiam ajudar na análise de pesquisas já realizadas, com o fim de compreender elementos conceituais distintivos da construção científica. Mas o esquema está calcado em noções do método científico e conceitos da Epistemologia de Gaston Bachelard (vide referências).
Recebido em 31/07/2003
Aprovado em 25/08/2003