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CAPES

Volume 7, Número 3, Set/Dez - 2003

ARTIGOS DE PESQUISA

 

O Centro Nacional de Transplante de Medula Óssea no Instituto Nacional de Câncer: os primeiros desafios da implantação1

 

The national center of bone marrow transplantation in the national cancer institute: the first challenges in the implantation

 

El Centro Nacional de Transplante de Médula Ósea en el Instituto Nacional de Cáncer: los primeros desafíos de la implantación

 

 

Eliana Maria Teixeira BarretoI; Lucia Helena S. C. LourençoII; Antônio José de Almeida FilhoIII

IEnfermeira do Centro Nacional de Transplante de Medula Óssea / INCa. Mestre em Enfermagem e membro do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira (NUPHEBRAS) - EEAN/UFRJ
IIDoutora em Enfermagem e Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem Fundamental e membro do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira (NUPHEBRAS) - EEAN/UFRJ
IIIDoutorando em Enfermagem e Professor Assistente do Departamento de Enfermagem Fundamental e membro do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira (NUPHEBRAS) - EEAN/UFRJ

 

 


RESUMO

Estudo de natureza histórico-social em busca do entendimento acerca dos reflexos decorrentes de uma decisão no âmbito federal de criar um Centro Nacional de Transplante de Medula Óssea, no início dos anos 80 do século XX, no Instituto Nacional de Câncer, na cidade do Rio de Janeiro. Através da leitura e análise de documentos escritos e de depoimentos orais, analisou-se o início e a organização para a implantação do Centro, que gerou discussões sobre a necessidade de haver, no Brasil, um centro de transplante de referência nacional, nos moldes daqueles já existentes no exterior. Além disso, foi um marco para o Serviço de Enfermagem daquela Instituição, que se consagrou no campo da Enfermagem Oncológica, ou seja, na assistência específica aos pacientes imunodeprimidos.

Palavras-chave: História da Enfermagem. Transplante. Medula Óssea. Hospital.


ABSTRACT

It is about a historical and social study, that seeks an understanding about the reflexes resulting from a decision in the federal scope of the creation of the National Center of Bone Marrow Transplantation (Centro Nacional de Transplante de Medula Óssea - CEMO), in the beginning of the 80's of the 20th Century, in the National Cancer Institute (Instituto Nacional do Câncer - INCA), at the city of Rio de Janeiro. Through the reading and analysis of documents and statements about the organization and the implantation of the Center, it was observed the needing of a center of transplantation in Brazil, on purpose of those already existents from abroad, that would be national reference. Moreover, the Center is a landmark for the Service of Nursing of that Institution. Its creation was established in the field of the oncology nursing, in other words, in the specific assistance to the patients under immunosuppression.

Keywords: Nursing History. Bone Marrow. Transplantion. Hospital.


RESUMEN

Es un estudio de naturaleza histórico-social realizado a través de la lectura y análisis de documentos asociado a los testimonios orales, buscamos un entendimiento acerca de los reflejos originados de una decisión en ámbito federal de crear un Centro Nacional de Transplante de Médula Ósea (CEMO), al inicio de los años 80 del siglo XX, en el Instituto Nacional del Cáncer (INCA), en la ciudad de Río de Janeiro - Brasil. La organización para la implantación del Centro generó discusiones sobre la necesidad de haver, en el Brasil, un centro de transplante en los moldes de los ya existentes en el exterior, que fuese referencia nacional. Además, el Centro fue un marco para el Servicio de Enfermería del INCA, que, después de su creación, se consagró en el campo de la Enfermería Oncológica, o sea, en la asistencia específica a los pacientes inmunodeprimidos.

Palabras clave: Historia de la Enfermería. Transplante. Medula Ósea. Hospital.


 

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este é um estudo de cunho histórico-social que tem como objeto a participação da equipe de enfermagem no processo de implantação de um centro de referência nacional denominado Centro Nacional de Transplante de Medula Óssea (CEMO), cujos objetivos são descrever as estratégias utilizadas pelos agentes, no campo da saúde, para a implantação do Centro; analisar os reflexos da decisão de âmbito federal para a criação do Centro e discutir as repercussões desta iniciativa para o Serviço de Enfermagem do Instituto Nacional do Câncer (INCa).

A motivação para realizar este trabalho decorreu do fato de que uma das autoras fez parte do grupo que construiu a proposta de implantação do Centro; foi designada para implantar as atividades de enfermagem e ainda, integra a equipe de enfermagem do INCa, há mais de 20 anos. Outra motivação prendeu-se ao fato que o Instituto está em constante movimento de reconfiguração de seus serviços, por conseqüência dos avanços nas áreas da Oncologia e da Tecnologia de Saúde.

Nesse sentido, no início da década de 80 do século XX estava sendo implantada uma política de recuperação e crescimento institucional no INCa, com o incremento das atividades de ensino e pesquisa. Isto incluía o Regime de co-gestão2 com a interveniência da Campanha Nacional de Combate ao Câncer. Naquela ocasião, foram contratados profissionais administrativos e técnicos para atender aos diferentes projetos e/ou serviços que estavam em andamento ou em plena fase de implantação.

Um desses projetos era a implantação do CEMO, cuja autorização para funcionamento aconteceu através da Resolução n.º 12 / 82 da CIPLAN. A implantação deste Centro foi um desafio institucional, em especial para o Serviço de Enfermagem daquele Instituto.

Frente a tal responsabilidade, tornou-se prioritário o preparo técnico de um grupo multidisciplinar, cabendo ao Serviço de Enfermagem organizar-se e, além disso, selecionar e qualificar enfermeiros para o funcionamento de uma unidade de transplante de medula óssea, que atuaria como referência nacional.

 

ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA

Optamos por um estudo histórico-social porque seu propósito é a reconstrução sistemática do passado. Assim, para entender os acontecimentos, torna-se necessário analisar suas relações com o todo.

Neste trabalho foram aplicados alguns conceitos do sociólogo Pierre Bourdieu, tais como campo, espaço social, habitus, poder simbólico, luta e violência simbólica e capital cultural. Para este autor, os conceitos de campo e de habitus são fundamentais para analisar as relações e as estruturas sociais que determinam o processo de construção do campo acreditando que, no interior de cada campo e entre os diferentes campos, as relações de força estão em jogo, produzindo e reproduzindo ações que representam a visão de cada agente envolvido na luta. A luta que se trava no interior do campo, entre os agentes, tem como suporte o capital cultural possuído por cada agente envolvido. Assim, cada agente estabelece relações de força para conquistar as melhores posições e disputar melhor o monopólio do poder (1989, p. 12).

Bourdieu (1989, p. 64 - 73) ainda considera que, cada agente possui um conhecimento, adquirido, uma disposição incorporada, duradoura e transferível. E, o contato com diferentes estruturas sociais transforma-se em um processo de aprendizado, moldando a pessoa e assim compondo o seu habitus.

O recorte temporal do estudo compreende o período de 1982 a 1984. O marco inicial, 1982, corresponde ao ano em que a Resolução CIPLAN nº 12 autorizou a criação do CEMO no INCa. O marco final, 1984, corresponde ao ano em que foi realizado o primeiro transplante de medula óssea.

Os dados provêm de fontes primárias que correspondem a documentos escritos pertencentes ao arquivo do INCa, tais como: artigos de jornais e revistas publicados entre 1982-1984 pertinentes ao tema, além de depoimentos de enfermeiros e médicos que participaram do processo de criação e implantação do Centro.

Os depoimentos foram coletados através de entrevistas gravadas em fitas magnéticas, após autorização escrita dos depoentes. Os sujeitos preferenciais foram oito enfermeiros que participaram do processo de criação e implantação do CEMO, consideradas pessoas "chaves" para a reconstrução da história. Todavia, foram também entrevistados três médicos, cuja atuação profissional e política foi relevante para assegurar o cumprimento daquela decisão governamental.

As fontes secundárias foram obtidas através de artigos, livros e teses sobre a Oncologia, História da Enfermagem e do Brasil.

Para viabilizar a coleta de dados, o projeto foi encaminhado à Coordenação de Ensino e Divulgação Científica e à Comissão de Ética do INCa. E após o mesmo receber aprovação da Instituição, foi desenvolvida a referida coleta. Os dados qualitativos foram classificados através de recortes temáticos pertinentes ao objeto de estudo agrupados no interior de uma única categoria denominada "Os desafios institucionais para a implantação do CEMO".

Os desafios institucionais para a implantação do CEMO

Durante a década de 70, o Instituto Nacional de Câncer atravessou uma fase de reestruturação em busca de novos horizontes, no que se referia ao desenvolvimento de pesquisas científicas sobre a evolução e tratamento do câncer. Resultados de trabalhos científicos sobre transplante de medula óssea realizados em outros países começaram a ser divulgados no Brasil. Isto estimulava novos estudos e a criação de outros centros de transplante, a exemplo do que ocorreu no Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Paraná, onde foi criado o primeiro Serviço de Transplante de Medula Óssea no Brasil, que iniciou as suas atividades em 1979, de forma pioneira na América Latina.

Mas, segundo Eurípedes Ferreira (O GLOBO, 1984, p. 7), o médico hematologista daquele Hospital:

[...] as precárias condições econômicas do Hospital das Clínicas - considerado uma espécie de modelo pelo INAMPS [...], não estavam [...] permitindo a ampliação do programa de transplante [...], porque faltavam recursos [...] para amparar as pesquisas e melhorar as instalações [...].

Por outro lado, nessa mesma matéria jornalística, o Centro Nacional de Transplante de Medula Óssea foi considerado como a

[...] 'menina dos olhos'do INCa [...], visto que [...] para sua instalação os Ministérios da Saúde e da Previdência Social investiram cerca de 280 milhões (de cruzeiros) [...].

Enquanto isso, no Rio de Janeiro, o Instituto Nacional do Câncer adequava o seu espaço físico para instalar a nova unidade. A posse do médico Ary Frauzino Pereira, como diretor da Instituição, em 1980, trouxe transformações. Esse diretor, com auxílio de verba oriunda do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), iniciou e concluiu obras como a reforma global do prédio e a adaptação do 7º andar, com 610 m2, para a instalação do CEMO.

Para possibilitar o pleno funcionamento do novo serviço, foi necessário realizar obras complementares, como a revisão e ampliação da rede geral e de oxigênio com sistema de alarme e a instalação da cozinha dietética estéril, criada exclusivamente para atender aos pacientes do Centro (GUIMARÃES, 2000). No Centro Cirúrgico, foi feita a ampliação de 300 para 800 litros por carga central de água esterilizada, de forma a permitir a sua utilização também pelo CEMO e foram realizadas obras de adaptação na sala destinada aos procedimentos de aspiração da medula óssea e instalação do sistema de filtragem, constituído de filtros HEPA (High Efficiency Press Absolut), responsáveis pela captação de partículas de 1 a 0,3 mícrons (BRASIL, 1973).

Mas foi necessário um período de dois anos (1982 - 1984) para que a equipe envolvida com o projeto, enfermeiros, médicos e nutricionistas entre outros, adquirissem a aprendizagem necessária para construir o corpus de saberes específicos (BOURDIEU, 1989, p. 169), indispensáveis ao desenvolvimento das diferentes atividades dos profissionais selecionados para o setor.

No entanto, a instalação de um outro centro de transplante de medula óssea no Brasil, não era um consenso. É certo que um dos motivos da criação do CEMO foi permitir que pacientes oncológicos tivessem acesso no Brasil, ao tratamento adequado ao seu problema de saúde. Neste sentido, vale resgatar as palavras do então Ministro Helio Beltrão, em entrevista ao Jornal O Globo (1984, p. 27), que admitiu ser o transplante de medula uma providência muito cara, com o agravante de que:

[..] esse tipo de tratamento era feito apenas no exterior e que os pacientes encaminhados pela Previdência custavam mais de Cr$ 20 milhões, cada um, na época. Em 1982, foram enviados 10 beneficiários e, em 1983, apenas 2 [...].

Contestando o teor desse depoimento, na mesma reportagem, Eduardo Augusto Bordalo, presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, disse que [...] este investimento poderia ser aplicado em programas mais urgentes na área de saúde que atingem uma população bem maior [...]. A Dra Mary Evelyn Flowers, coordenadora do projeto de implantação, durante entrevista para esta pesquisa, resgatou sua posição em entrevista publicada em 1982, também no Jornal O Globo (p. 27):

(...) se fossemos pensar assim, não existiria especialização no Brasil. Todos deveriam trabalhar na área da Saúde Pública. (...) A coisa não é dessa maneira, precisamos de cirurgiões, de pesquisadores, em todos os campos (...) O câncer pode não ser um problema prioritário no país, mas é, sem dúvida, fundamental (...).

As posições contrárias entrevistas nos conteúdos dos diferentes discursos dessas autoridades evidenciavam os diferentes interesses acerca de como deveria ser conduzida a saúde no país, e, portanto, caracterizavam a concorrência entre esses agentes. Nesse sentido, prevaleceu a posição do Ministro da Saúde, como autoridade mais expressiva nesse campo. Sua posição agregava a seu favor toda a força do coletivo, com consenso e do senso comum por ser conduzida por um mandatário do Estado, sendo ele, assim, o detentor do monopólio da violência simbólica legítima (BOURDIEU, 1989, p. 146).

Outro ponto importante de ser destacado refere-se à disposição física do CEMO, no interior do próprio INCa, embora ele fosse uma unidade autônoma. Para Bourdieu (1989, p. 161), a posição de um agente no espaço social exprime-se de algumas formas, entre elas, o lugar ocupado através de suas propriedades, ou seja, o consumo mais ou menos ostentatório [ostensivo] do espaço é uma das formas por excelência de ostentação do poder.

Assim, essa disposição física do Centro provavelmente capitalizava os lucros simbólicos já incorporados pelo Instituto, no que Bourdieu denomina de efeitos de lugar, pois as dimensões arquitetônicas desse hospital já impressionavam por seu tamanho. Nesse mesmo sentido, Bourdieu (1989, p. 163) entende que por ser o espaço social inscrito, ao mesmo tempo, nas estruturas espaciais e nas estruturas mentais, ele se caracteriza como um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce, sobre a forma mais sutil de violência simbólica, pois se dá de forma desapercebida.

A Resolução CIPLAN nº 12/82 autorizou a criação do Centro, sendo o mesmo inaugurado em junho de 1983. Convém destacar que, na época, a Enfermagem no Instituto Nacional de Câncer era estruturada como Serviço de Enfermagem, contando com 57 enfermeiros e 330 auxiliares, entre os quais auxiliares operacionais de serviços diversos, agentes de portaria, auxiliares de artífice, auxiliares de serviços e instrumentadoras, que em desvio de função, trabalhavam diretamente com o paciente na prestação de cuidados de enfermagem de baixa complexidade.

Em setembro de 1983, antes que o Centro recebesse o primeiro paciente, foram contratados dez enfermeiros. Esses enfermeiros recém-contratados realizaram o Curso de Treinamento Básico sobre transplante de medula óssea, com carga horária de 184 horas, para atuar no Centro, oferecido pelo Serviço de Enfermagem do INCa. Esse procedimento indica que o conhecimento técnico-científico de que dispunham esses enfermeiros recém contratados foi considerado como insuficiente. Eles precisavam incorporar saberes específicos relacionados à Oncologia, a fim de ampliar e solidificar o capital cultural já incorporado. A propósito do ensino e do aperfeiçoamento da equipe de enfermagem, Barreira (1992, p.103) diz ser uma

[...] função do Serviço de Enfermagem estimular o aperfeiçoamento do ensino de enfermagem [...], o que demonstra a preocupação em garantir a qualidade do pessoal a ser selecionado [...].

No entanto, essa não era a visão do então Diretor do INCa, Dr. Ary Frauzino, que, em entrevista ao Jornal O Globo (1982, p. 27), antes da inauguração, afirmara que [...] o atual corpo médico é suficiente para a implantação do novo sistema.. O INCa conta hoje com 150 médicos [...], 30 enfermeiras diplomadas e 200 auxiliares de enfermagem [...]. Tal afirmação foi contestada pela médica coordenadora do Centro à época, Drª Mary Evelyn Flowers, em depoimento para esta pesquisa, sob a alegação de que aquele quantitativo de enfermeiros era já insuficiente para atender às necessidades do próprio hospital, acreditando que a equipe de enfermagem do CEMO deveria ser constituída somente por enfermeiros. Assim, ela passou então a reivindicar junto à Direção do Instituto algumas medidas que solucionassem o problema, alertando inclusive para a especificidade do trabalho a ser desenvolvido, que requereria profissionais capacitados tecnicamente, sobretudo em relação ao transplante de medula óssea.

A criação do Centro forçou os integrantes da enfermagem a se prepararem tecnicamente. Para isso, o Serviço de Enfermagem recrutou recursos humanos para absorver as novas tecnologias que deveriam dominar. Essa necessidade de atualização do habitus profissional dos enfermeiros era evidenciada à medida em que surgiam novas características técnicas e profissionais, como produto de diferentes transformações e ajustamentos, devido ao treinamento especifico sobre medula óssea e à convivência diária entre os enfermeiros. Esse processo de inculcação, se por um lado ajudou a transformar as ações de enfermagem, porque incorporou novos conhecimentos e novas técnicas, por outro lado levou os enfermeiros do CEMO a assumir um comportamento distinto no interior daquela instituição.

O acordo para a implantação do Centro foi institucional, mas o Serviço de Enfermagem teve de se adequar para incorporar essa maneira de assistir, qualificando sua equipe e reconfigurando-a profissionalmente, pois foi a implantação do Centro que trouxe para o bojo da profissão a tecnologia mais avançada da época. Segundo Nascimento e Stipp (2002, p.190), os recursos humanos são o principal foco de atenção do enfermeiro gerente de unidade. Para os autores, uma equipe qualificada é condição vital para o efetivo trabalho da enfermagem.. Logo, a qualificação da equipe de enfermagem contribuiria para o sucesso do projeto.

Mas o processo de implantação do setor e, sobretudo, a inexperiência sobre o cuidar de pacientes submetidos ao transplante de medula óssea foram fatores que certamente contribuíram para causar expectativa e ansiedade entre os profissionais de enfermagem do INCa. A propósito desta análise, uma enfermeira da Instituição relembrou que (...) com relação ao pessoal do CEMO o que se ouvia comentar era que se queria apenas enfermeiras (...) formadas pela EEAN. Talvez, assim, para dizer, 'tem de vir a nata da nata'da enfermagem para trabalhar (...). Parece que os enfermeiros consideravam crucial para trabalhar no CEMO, um habitus profissional atualizado. A referência a enfermeiras da Escola de Enfermagem Anna Nery é perfeitamente compreensível, pois essa Instituição tinha um conceituado prestígio junto ao público, na formação de enfermeiras diplomadas, desde a sua criação em 1922.

Mas essa não era a proposta inicial da médica coordenadora do setor, a Drª Mary Evelyn. Para ela, era fundamental aumentar o número de enfermeiros contratados, sem, no entanto, descartar a experiência dos enfermeiros que já atuavam em outros setores do Hospital. Eles já possuíam um capital incorporado referente à Enfermagem Oncológica. Todavia, a equipe de enfermagem, quando consultada, não manifestou interesse no assunto, talvez receosa do insucesso.

Assim, em setembro de 1983, os enfermeiros contratados para atuarem no CEMO foram inicialmente alocados nos diversos setores do Instituto, mediante a certeza de serem remanejados para aquele Centro, tão logo fosse o mesmo ativado operacionalmente, o que aconteceu em 1984. Nesse sentido, outra enfermeira relata que (...) foi importante a solicitação de enfermeiros recém-formados, na época, sem vícios, sem experiência prévia (...), sob a justificativa de que:

(...) seria mais fácil preparar esse pessoal para trabalhar no transplante (..) Eles tinham muito o que aprender (...). O tipo de trabalho que ia ser desenvolvido, a proposta nova, o tipo de transplante de medula óssea (...) era totalmente novo (...).

A posição dessa enfermeira foi confirmada pelo relato de uma outra enfermeira do CEMO:

(...) Todos nós éramos recém-formados (...) e não tínhamos formação oncológica, nunca tínhamos estado num hospital desse porte como o INCa (...). Era muita novidade, muito desafio. (...). Na faculdade, essa parte de oncologia era uma coisa rápida, e aqui eu aprendi o que era radioterapia, quimioterapia, como era administrado, os efeitos colaterais, aprendi essa parte de microbiologia, que nós víamos muito na faculdade, mas não tínhamos essa prática (...).
Pelos relatos, é possível perceber que havia mesmo uma necessidade de os enfermeiros incorporarem saberes específicos relacionados à Oncologia, para ampliar o capital cultural, o que lhes garantiria o reconhecimento, ao mesmo tempo em que permitiria a cada um [...] sentir-se com o direito de exigir as coisas que, normalmente, estão associadas [...] às práticas [...] e aos correspondentes benefícios materiais e simbólicos [...] (BOURDIEU, 1989, p. 129).

O Serviço de Enfermagem buscou a atualização dos saberes já incorporados, resgatando o ideal da valorização profissional mediante aprimoramento dos conhecimentos dos enfermeiros no campo da Oncologia. Houve a necessidade de adaptarem-se aos movimentos contínuos do INCa, frente à requisição de pessoal habilitado para acompanhar os avanços tecnológicos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criação do CEMO foi um marco na área da Oncologia, assim como o treinamento que o Serviço de Enfermagem do INCa desenvolveu para seus profissionais foi um marco para a Enfermagem Oncológica, na aquisição de novos saberes, que possibilitou a reatualização do seu habitus profissional e a incorporação de capital cultural específico, em relação ao assistir o paciente que seria submetido ao transplante de medula óssea. A questão da qualidade na assistência era crucial para que projeto tivesse êxito, porque era uma unidade especializada que se propunha ser referência nacional. O empenho do Serviço de Enfermagem, na superação das dificuldades identificadas, contribuiu de forma significativa para remodelar o habitus profissional adotado e para haver o reconhecimento do grupo no campo da Oncologia.

A adequação do espaço físico e das instalações, a qualificação da equipe multidisciplinar, a criação de uma outra unidade - o CEMO, com um corpo clínico independente do INCa foram mudanças profundas. Mas qualquer mudança, seja de espaço físico ou social, afeta as pessoas de alguma forma. Dubar (1997, p. 187) relembrando Lastree (1989), afirma que isso ocorre porque a mudança [...] é uma sanção, e não um progresso [...], porque ela contribuiu para a destruição de parte dos [...] saberes práticos acumulados e incorporados com a experiência [...]. O Serviço de Enfermagem do INCa enfrentou o desafio inicial e acrescentou novos saberes aos saberes da Enfermagem já existentes.

Pode-se ainda perceber que na política de saúde vigente no Brasil, no início dos anos 80, havia entendimentos distintos em relação às ações de medicina preventiva e curativa, com predomínio desta última. A nomeação do cancerologista Ary Frauzino, pelo Ministro da Saúde, no início dos anos 80, para exercer o cargo de diretor daquele Instituto, foi marcante. Na sua administração, foi implantada a co-gestão administrativa e financeira entre o INCa e os Ministérios da Saúde e da Assistência e Previdência Social, o que permitiu que o Instituto recebesse recursos financeiros para manutenção de suas atividades. Gradativamente, a nova sistemática gerencial resultou na modernização das instalações físicas, reposição de material de consumo e contratação de profissionais técnicos e de apoio à infra-estrutura. Essas foram ações fundamentais para a implantação do CEMO.

A iniciativa do Serviço de Enfermagem de treinar os enfermeiros baseou-se na necessidade daquele grupo profissional em se adaptar aos movimentos contínuos do INCa, decorrentes do avanço tecnológico incorporado constantemente pela Instituição. Não se tratava apenas de contratar recursos humanos, mas de realizar a reciclagem de conhecimentos e / ou incorporação de saberes específicos relacionados ao transplante de medula óssea, ou seja, a Enfermagem Oncológica. A conseqüência do enfrentamento desses primeiros desafios com sucesso foi a valorização e o engrandecimento do Serviço de Enfermagem, através do aprimoramento profissional e do investimento institucional, resultando em ganhos simbólicos para toda a categoria.

 

REFERÊNCIAS

BARREIRA, I. de A. A enfermeira ananéri no país do futuro: a aventura da luta contra a tuberculose (1947-1977). 1992. 335p. Tese (Doutorado em Enfermagem). Escola de Enfermagem Anna Nery/Universidade Federal do Rio de Janeiro.

BELTRÃO, Hélio. Previdência gasta 280 milhões contra a leucemia. Jornal O Globo, Rio de Janeiro. 21 jan. 1984. Caderno Grande Rio. p. 7.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989. 309 p.

BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência Médica. Divisão Nacional de Câncer. Oncologia clínica. Rio de Janeiro, 1973. v. 1.

BRASIL, Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Assitência Médica da Previdência Social.Comissão Interministerial e Coordenação da Saúde. Resolução CIPLAN n.12 de 4 de agosto de 1982.

DUBAR, C. A. Socialização: construção das identidades sociais e profissionais. 2. ed. Porto, Portugal: [s.n.]1997. 240 p.

FERREIRA, Euripedes. No Paraná já se faz transplante desde 81. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 21 jan.1984. Caderno Grande Rio. p. 7.

FLOWERS, Mary Evelyn D. Com a realização do TMO no Brasil, nova fase no combate ao câncer. Jornal O Globo, Rio de Janeiro. 17 jul. 1982. p. 27.

FRAUZINO, Ari. Uma adaptação a realidade brasileira. Jornal O Globo, Rio de Janeiro. 17 jul. 1982. p. 27.

GUIMARÃES, D. S. Breve histórico do Instituto Nacional de Câncer desde sua criação até a presente data. 2000. 19 p. Mimeografado.

NASCIMENTO, M. T. F.; STIPP, M. C. Gerência de unidade de cuidado crítico. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem. Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 189 - 194, ago. 2002.

 

NOTAS

1Artigo extraído da pesquisa intitulada "A criação de um Centro de Transplante de Medula Óssea num Hospital Especializado: um desafio para o Serviço de Enfermagem do INCa (1982-1984)", realizada para obtenção do título de Mestre em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEAN / UFRJ), em .

2Participação administrativa e financeira igualitária do Ministério da Saúde e Ministério da Previdência e Assistência Social.

 

 

Recebido em 18/11/2002
Reapresentado em 05/07/2003
Aprovado em 11/10/2003

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