ISSN (on-line): 2177-9465
ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
COPE
ABEC
BVS
CNPQ
FAPERJ
SCIELO
REDALYC
MCTI
Ministério da Educação
CAPES

Volume 7, Número 3, Set/Dez - 2003

ARTIGOS DE PESQUISA

 

O trabalho da enfermeira na triagem clínica em hemoterapia: por uma especialização

 

The work of the nurse in the clinical selection in hemotherapy: an specialty

 

O el trabajo de la enfermera en el triage clínica en hemoterapia: por una especialidad

 

 

Glaucia Valente ValadaresI; Lígia de Oliveira VianaII

IMestre em Enfermagem pela EEAN / UFRJ, Enfermeira do Hospital Universitário Pedro Ernesto e Professora Coordenadora do Curso de Enfermagem / Campus AKXE da Universidade Estácio de Sá
IIDoutora em Enfermagem, Professora Adjunta do Departamento de Metodologia da EEAN / UFRJ e Membro do Núcleo de Pesquisa Educação, Gerência e Exercício Profissional em Enfermagem - NUPEGEPEN

 

 


RESUMO

Este estudo tem como objeto o trabalho da enfermeira na triagem clínica de doadores. Foi realizado em um instituto de referência em hemoterapia situado na Cidade do Rio de Janeiro. Os objetivos que orientaram a pesquisa foram: caracterizar o trabalho da enfermeira na triagem clínica de doadores e discuti-lo enquanto uma prática especializada. O referencial baseou-se nas idéias de Patrícia Benner, que discorre sobre os níveis de conhecimento da enfermeira e sobre a prática especializada. Do ponto de vista metodológico, privilegiou-se o estudo de caso, com abordagem qualitativa. Para a coleta de dados foram utilizados alguns instrumentos: a entrevista semi-estruturada e a observação participante. Os resultados sugerem que, o trabalho desenvolvido pela enfermeira na triagem clínica de doadores de sangue é uma prática especializada, tendo em vista o campo específico de atuação, o trabalho minucioso, dotado de vários aspectos peculiares, exigindo a flexibilização de múltiplos conhecimentos frente às reais necessidades do cliente em hemoterapia.

Palavras - chave: Papel da Enfermeira. Trabalho. Especialidade. Triagem de Pacientes. Banco de Sangue.


ABSTRACT

This study it has as object the job of nurse in the clinical selection of givers and was carried through in the State Institute of Hemotherapy. The objectives that had guided the research had been: to characterize the work of the nurse in the clinical selection of givers and to argue it while one practical specialist. The referencial if gave to the light of the ideas of Patrician Benner, that discourses on the levels of knowledge of the nurse and on the practical specialized. Of the methods point of view, the case study was privileged, with qualitative boarding. For the collection of data the half-structuralized interview and the participant comment had been used. The results suggest that, the work developed for the nurse in the clinical selection of givers, is one practical specialized, in view of the specific field of performance, the minute work, endowed with some peculiar aspects, demanding the flexibilizacion of multiple knowledge front to the real necessities of the customer in hemotherapy.

Keywords: Nurse' s Role. Work. Specialism. Triage. Blod Banks.


RESUMEN

Este estudio que tiene como objeto el oficio de enfermera en la selección clínica de donantes y que se realizó en un hospital de referencia em hemoterapia. Los objetivos que dirigieron la investigación habían sido: para caracterizar el trabajo de la enfermera en la selección clínica de donantes y discutirlo como un especialista práctico. El referencial tomó como base as ideas de Patrician Benner, que discurre sobre los niveles del conocimiento del enfermero y sobre la práctica especializada. Del punto de vista metodológico, el estudio de caso era privilegiado, con abordaje cualitativo. Para levantar los datos se utilizó la entrevista semi estructurada y la observación participante. Los resultados sugieren que, el trabajo desarrollado para la enfermera en la selección clínica de donantes, es una práctica especializada, considerando el campo específico de atuación, el trabajo minucioso, dotado de varios aspectos peculiares, que exige la flexibilización de múltiples conocimientos frente a las reales necesidades del clinte en hemoterapia.

Palabras Clave: Rol de la Enfermera. Trabajo. Especializacion. Triaje. Bancos de Sangre.


 

 

INTRODUÇÃO

O presente estudo teve início a partir de reflexões durante a prática assistencial de enfermagem. O estudo tem como objetivos: caracterizar o trabalho da enfermeira na triagem clínica de doadores e discuti-lo enquanto uma prática especializada. Tendo em vista a complexidade do tema, fez-se necessário uma abordagem abrangente, na qual vários aspectos relacionados ao sangue foram apontados.

Com relação à realidade brasileira, esta área vem ganhando destaque e o país tem demonstrado grande interesse considerando a transfusão e o desenvolvimento de planos e sistemas que visem garantir sua qualidade e segurança. Para isso, o Ministério da Saúde (1993) publicou Normas1 regulamentando a utilização de sangue, componente e hemoderivados, com a finalidade de proteger tanto o doador quanto o receptor, evitando a contaminação deste e garantindo a saúde de ambos.

Com relação à inserção da enfermeira no trabalho em hemoterapia nos dias atuais, é notório que esta profissional vem conquistando um espaço significativo na área e participando com expressividade da equipe multidisciplinar. Sendo assim, a atividade profissional da enfermeira na hemoterapia foi legalizada através da Resolução COFEN-2OO, de 15 de abril de 1997. Ela estabelece a atuação dos profissionais de Enfermagem em hemoterapia e transplante de medula óssea, segundo as Normas Técnicas estabelecidas pelo Ministério da Saúde.

Dessa maneira, este estudo se insere na linha de Pesquisa Educação, Gerência e Exercício Profissional em Enfermagem - NUPEGEPEN, está cadastrado no Núcleo de Pesquisa do Departamento de Metodologia da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e apresenta reflexões sobre a prática em enfermagem tendo em vista as especialidades.

Como se pode notar, trata de um estudo oportuno que faz uma discussão bem atual sobre a enfermeira que trabalha em hemoterapia, convidando o leitor para a reflexão sobre os desafios que são impostos no mundo do trabalho, e em especial, no que se refere à prática especializada.

 

O CAMINHAR TEÓRICO-METODOLÓGICO

O referencial baseou-se nas idéias de Patrícia Benner (1984), em sua obra: "From Novice to Expert", que discorre sobre os níveis de conhecimento da enfermeira e sobre a prática especializada. Assim, tendo o cuidado de discutir essa a prática, sem perder a importância ímpar da visão holística, a autora refere que a perícia nas tomadas de decisão é essencial para o desenvolvimento da prática da enfermagem como ciência.

No que tange a abordagem metodológica, tratou-se de um estudo de natureza qualitativa, desenvolvido através do estudo de caso, com a finalidade de descrever, interpretar e fazer correlações entre os achados. Preocupou-se em descrever a complexidade do problema analisando, compreendendo e classificando os processos dinâmicos vividos pelos atores sociais.

Retomando a questão da delimitação do estudo, a metodologia escolhida tornou-se uma trilha propícia para a abordagem da realidade, que tem como finalidade pontuar o trabalho da enfermeira em hemoterapia, especificamente, na triagem clínica de doadores para a identificação de características relacionadas a prática especializada.

Dessa forma, para desenvolver o estudo foi escolhida uma instituição considerada como de referência em hemoterapia, situada na Cidade do Rio de Janeiro.

Os atores sociais foram onze enfermeiras que desenvolvem atividades na triagem clínica de doadores.

Para iniciar o estudo foi necessário apresentação do projeto de pesquisa para análise do Setor de Educação Continuada da Instituição, que encaminhou para o Centro de Estudos e Comissão de Pesquisa Científica tendo em vista a análise e o parecer quanto a realização da pesquisa. Após um mês, a pesquisa foi aprovada.

É importante esclarecer, que o estudo respeitou os aspectos apresentados na Resolução CNS nº196/96 que versa sobre a Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, tendo sido atendido o anonimato das depoentes. Para tal, optou-se pelo uso de pseudônimos relacionados à temática em questão. Sendo assim, as entrevistadas receberam nomes referentes aos grupos sangüíneos e sistemas em hemoterapia.

É importante destacar que a coleta de dados realizou-se nas salas onde acontecia a triagem clínica de doadores.

Para a coleta de dados foram utilizados alguns instrumentos, de modo a conseguir melhor apreensão possível do real. Foram eles: a observação participante assistemática registrada em o diário de campo e a entrevista semi-estruturada. O período de coleta foi encerrado quando ocorreu a saturação de conteúdo. Para validação do resultado foi utilizada a técnica da triangulação de dados.

 

O TRABALHO DA ENFERMEIRA NA TRIAGEM CLÍNICA DE DOADORES

A Triagem Clínica é uma fase do ciclo do sangue, na qual o candidato à doação será avaliado criteriosamente quanto ao seu comportamento e estado de saúde. Isso inclui a realização de uma entrevista, com perguntas sobre patologias atuais e pregressas, fatores de risco para doenças infecciosas, história sexual, entre outras. Além disso, também é realizada uma anamnese dirigida para a avaliação de peso, altura, pressão arterial, pulso, temperatura e a determinação do hematócrito, com o objetivo de detectar algum fator que aponte para uma possível inaptidão. Essa triagem é passo fundamental na determinação de um ciclo do sangue de qualidade para o receptor e também, preserva a integridade física do doador em potencial, bem como, orienta o doador que não está apto para a busca de um cuidado de saúde específico.

Com relação à atuação da enfermeira na triagem clínica é importante salientar que, a entrevista realizada com o doador é um contato único, que tem a duração de aproximadamente cinco minutos, durante os quais, são abordadas questões muito especiais, que vão desde a situação clínica do doador, bem como, o seu comportamento no que se refere a situações muito pessoais, em muitos casos, confidenciais, como àquelas relacionadas à sexualidade. Assim, no que tange as essas situações mais íntimas relacionadas ao comportamento sexual, segue a fala:

Eu agora triei um doador e ele colocou que teve uma relação homossexual há dois anos. Ele já tinha doado em outro local. Eu perguntei: você falou com a minha colega sobre isso? Ele respondeu que sim. Aí eu disse: só que agora comigo você não vai doar. 'Ah! Mas, eu vou doar.', disse o doador. Aí eu falei: você não vai doar ...(B Rh negativo).

Em consonância ainda com esta idéia, Frias (1997, p. 44) afirma que a triagem consiste na avaliação clínica e pesquisa do comportamento do doador de sangue, com o objetivo de afastar riscos que possam comprometer o receptor ou ainda o próprio doador, assegurando a qualidade da doação. Esse trabalho é realizado através da verificação dos sinais vitais e de dados antropométricos, da dosagem de hemoglobina, do exame físico sucinto e de indagações pertinentes a possíveis comportamentos de risco para várias doenças, da saúde pregressa e atual do indivíduo e do seu parceiro.

Um outro ponto de destaque a esse respeito, é que as enfermeiras demonstram familiaridade com as perguntas do questionário e tendem a uma postura de total atenção ao momento da entrevista, no que se refere a expressões do doador que possam denunciar algo a ser melhor investigado. Isto pode ser observado na fala a seguir:

Por exemplo, eu tenho que conferir o questionário, analisar as respostas que o possível doador marcou como positivo, e ver se é positiva mesmo. Olha, isso exige uma perspicácia tamanha. Na verdade, você mergulha no questionário tentando achar as respostas verdadeiras. Eu diria que a triagem clínica de doadores é uma consulta de enfermagem, acrescida de conhecimentos típicos da hemoterapia (O Rh negativo).

Assim, algumas das respostas dadas pelo doador ao questionário são conferidas cuidadosamente. Dentre elas destacam-se: Teve algum problema após a doação? Já fez sexo por dinheiro? Freqüenta termas ou casas de massagem? Já teve relações sexuais com pessoa que usa ou já usou droga na veia? Quantas parceiras (os) sexuais teve de um ano para cá? Usa ou já usou drogas? Já teve relação sexual com outro homem? Enfim, são questões muito especiais considerando que se tenta fazer uma análise que envolve a intimidade do doador. A respeito desses tipos de questionamentos e as suas implicações observe a fala que se segue:

Uma das maiores dificuldades que eu vejo na triagem é quando o indivíduo é promíscuo. Quando você tem que dizer para ele, que ele não vai doar porque tem mais de cinco parceiras. Quando ele não transa com preservativos. Quando ele tem um relacionamento homossexual. Porque, ele diz para você que não é homossexual. Ele só penetrou no homem, entendeu? Mas, para ele não é homossexual (A Rh negativo).

Percebe-se que na triagem clínica, as enfermeiras precisam lidar com questões que se referem à intimidade do doador. Isso exige um grande preparo tendo em vista que, ao mesmo tempo em que a sua entrevista precisa ter fatos verdadeiros, a enfermeira não pode desrespeitar a individualidade do candidato à doação.

Desse modo, Lopes (2000, p. 54) refere que é muito importante estabelecer uma relação de confiança transmitindo para o doador segurança, para que o mesmo acredite na relação sigilosa que está se estabelecendo. Para tal, alguns pontos precisam ser garantidos, tais como: uma sala reservada, onde a privacidade possa ser respeitada. O profissional precisa mostrar ao doador que o seu papel é assegurar tanto a saúde do receptor do sangue, quanto a própria saúde do doador. Isso, precisa realmente ficar claro. A linguagem utilizada para manter a comunicação deve ser adequada à condição cultural do doador. A enfermeira precisa compreender que cada doador tem a sua individualidade e precisa ser respeitado em suas diferenças. Cardoso (2000, p. 42) refere que, todo investimento no conhecimento sobre a vida do doador justifica-se uma vez que:

No caso da doação de sangue, toda esta investigação social tem se justificado pela existência da janela imunológica - período durante o qual a pessoa pode ser portadora do vírus, sem que os exames o revelem. Em relação à AIDS, por exemplo, isto representa um prazo de 20 a 25 dias; no caso da hepatite B, de 35 a 40 dias. Portanto, a triagem cumpre o papel de impedir que estas pessoas doem sangue, já que os exames não identificariam a contaminação do sangue doado neste período da janela imunológica.

Ainda na discussão da história clínica, é importante salientar também, que toda a investigação que ocorre na Triagem Clínica de Doadores, tem como base a Norma 1.376 do Ministério da Saúde (1993). Assim, procura-se realizar uma história clínica abrangente e um exame físico direcionado do possível doador. Essa avaliação tem um papel importantíssimo no ciclo do sangue, haja vista que determinará se o doador poderá ou não doá-lo.

Além da avaliação das respostas do doador, as enfermeiras do Instituto realizam um sucinto exame físico e também analisando: o aspecto geral do doador (deve apresentar um bom estado geral); peso (deve ser igual ou maior do que 50Kg); temperatura arterial (não deve estar acima de a 37º C); pulsação arterial (deve estar entre 60 a 110 batimentos por minuto); pressão arterial (a pressão arterial sistólica deve estar entre 90 a 180 mm Hg e a pressão diastólica 100 a 110 mm Hg); hemoglobina/hematócrito (deve estar igual ou acima 12,0g / 38%, para mulheres, e 13,0g / 40%, para homens, respectivamente, lesões cutâneas (a área anticubital deve ser observada para verificação do possível uso de drogas ou a presença de rasch).

É preciso destacar o grande preparo técnico e emocional que as enfermeiras responsáveis pela triagem clínica precisam ter, haja vista que cada doador tem uma história de vida diferente. Considerando a curta duração de cada período de triagem, associado ao fato de que a maior parte das enfermeiras trabalha em regime de plantão, o quantitativo de doadores atendidos por cada enfermeira é bastante significativo, ou seja, em torno de 120 pessoas a cada 10 horas. Logo, 120 histórias que precisam ser analisadas a cada plantão. A fala abaixo assinala este aspecto:

A minha prática assistencial é muito legal. É um outro espaço que o enfermeiro conseguiu, pois antigamente era um trabalho que só o médico fazia, hoje em dia é o enfermeiro que está fazendo. Agora, a triagem, em especial, é um serviço muito cansativo, rotineiro, que exige muito do profissional. A gente sempre pede a chefia que faça um rodízio. A gente atende, às vezes, 120 pessoas por dia. Imagina isso? A gente podia atender até 200, mas com intervalos se houvesse troca, se a gente pudesse trocar, ou ir para o descanso. O local onde a gente trabalha é todo fechado, não tem ventilação, não tem nada. A gente fica presa e fazendo muitas perguntas (O Rh positivo).

Após a triagem clínica, para o doador existem dois caminhos: o doador inapto é orientado e encaminhado para outras instituições tendo como base o motivo que o impediu de doar; e o doador apto é orientado a aguardar a sua chamada para a sala de coleta, pelo painel. Enquanto isso, também é orientado a ingerir refresco ou café com biscoitos, no balcão da hidratação. Durante esse período, o mesmo poderá receber algumas informações de assistentes sociais, que circulam na sala comum.

É importante enfocar o papel educativo da enfermeira na triagem clínica de doador, tendo em vista que ela deverá esclarecer possíveis dúvidas do doador e, em caso de não aptidão, deverá também orientá-lo sobre o seu estado, assim como, os motivos que o impedem de doar o sangue. Lembrando que o objetivo do candidato é doar o sangue, logo a negação levantará uma série de questões e valores, com significados que podem variar de acordo com cada indivíduo.

O entrevistador precisa ter fácil acesso às normas técnicas de Hemoterapia e ao manual de procedimentos, que devem ser seguidos atentamente. Todos os aspectos do processo de doação precisarão ser explicados para o doador. Neste momento, ele terá a oportunidade de ser informado sobre o procedimento e, até mesmo, se recusar a doar. Essas informações precisarão também ser fornecidas por escrito, em documentos próprios de informação pré-doação e pós-doação. O doador deve autorizar, por escrito, a doação.

Assim, os delineamentos citados revelam que as atividades realizadas na hemoterapia são específicas. Trata-se de um importante ganho para a categoria em termos de uma possível especialidade em hemoterapia, tendo em vista que a enfermeira passa a deliberar a aptidão ou a não aptidão do candidato à doação de sangue destacando-se em sua atividade, o processo decisório e o poder de atuação. Isto fica bem elucidado na fala que se segue:

Aqui no Hemorio muita coisa mudou. Agora somos nós enfermeiras que realizamos a triagem, e isso não é um ganho importante para a categoria? Queira ou não somos nós quem dizemos se o doador vai ou não doar (A Rh negativo com CDE positivo).

Tendo em vista a análise da prática em especialidades, as enfermeiras especialistas conseguem realizar uma avaliação completa da saúde, demonstrando elevado grau de competência e tendo um verdadeiro poder de atuação no diagnóstico e no tratamento de respostas complexas por parte dos clientes, frente a problemas reais ou mesmo potenciais. Essas profissionais integram educação, investigação, liderança e consultoria no desempenho das suas atividades. Seu papel é dotado de essencialidade, podendo ela apenas ser substituída por profissionais que estejam no mesmo patamar. Essa peculiaridade é compreensível e leva a supor que, em função da complexidade e especificidade do trabalho, as enfermeiras são levadas a uma atuação direta, não podendo delegar funções. Acompanhe a seguinte fala:

O papel da enfermeira é simplesmente essencial na triagem. Não podemos colocar lá um técnico ou auxiliar de enfermagem, ou até mesmo uma enfermeira novata. A coisa não é fácil assim. Os doadores são muitos e precisam ser atendidos com uma certa rapidez e com qualidade de atendimento (O Rh negativo CDE positivo).

Dessa forma, sobre o nível de enfermeira novata, Benner (1984, p.10) afirma que, as novatas ou iniciantes não têm nenhuma experiência para atender ao que é esperado delas. Elas são orientadas em termos de atividades pontuais como: peso, pressão arterial, pulso, e outros, que são parâmetros relativos às condições dos clientes, isto é atividades incluídas no mundo de tarefas que podem ser desenvolvidas sem experiência.

Por outro lado, a enfermeira especialista, com grande experiência - "background", desenvolve uma consciência intuitiva e não perde tempo com diagnósticos inapropriados ou condutas infrutíferas. Acredita-se que essas profissionais possuem um conhecimento dotado de perícia, refinado, com: proposições, hipóteses e princípios baseados em situações práticas. Sendo assim, a experiência é um requisito básico para a prática de especialidades. Nesse caminho, Benner (1984, p. 13), refere que a profissional especialista está voltada para uma área específica. Entretanto, ela faz uso de múltiplas variáveis, para melhor adequação às necessidades do cliente.

Com relação à qualificação para o trabalho em hemoterapia, é importante destacar que grande parte das enfermeiras recebeu capacitação teórica na instituição para a realização dessa atividade, e, freqüentemente participam de cursos de aprimoramento e aperfeiçoamento. Isso se deve ao fato da hemoterapia possuir assuntos específicos, que não são abordados durante a formação na Graduação em Enfermagem, tendo em vista que o curso concentra-se em uma formação generalista.

Entretanto, ao se referir às estratégias utilizadas para o aperfeiçoamento, as enfermeiras resgataram a importância do conhecimento geral adquirido nos meios acadêmicos. Essa formação geral é definitiva para uma prática profissional adequada, pois constitui a base para o aprofundamento dos conhecimentos específicos, quando elas se incorporam ao mercado de trabalho.

Neste ponto, não se pode esquecer que, para que se forme um profissional especialista, é necessário que o mesmo detenha de sólido embasamento em termos de conhecimentos gerais. Entretanto, ficou bastante claro que, na graduação, essas enfermeiras não tiveram qualquer contato com assuntos relacionados a sua experiência vinculada diretamente à hemoterapia e o contato com as questões relativas ao sangue, componentes e hemoderivados ficou restrito ao desenvolvimento do seu trabalho no Instituto. Observe a fala a seguir relacionada aos delineamentos acima descritos:

Eu não tive contato com a hemoterapia na faculdade. Se eu disser para você que foram noções básicas, eu te garanto que eu não me lembro de nenhuma noção básica que eu tenha aprendido na faculdade. E quanto à triagem, aí que eu não sabia de nada mesmo (AB Rh negativo CDE positivo).

Com relação ao domínio do conhecimento específico que as enfermeiras tiveram que aprender; a fala a seguir é ilustrativa:

Mesmo tendo feito vários cursos no Hemorio, eu acho que para triar bem, é preciso passar algum tempo realizando essa atividade. Sei lá, hoje quando entra um doador na minha sala, eu rapidamente, e quase que instantaneamente, faço um perfil do mesmo, obviamente que poderá ou não ser confirmado. Mas, sabe... quase sempre é confirmado. Acho que tem uma questão relativa à experiência do profissional em realizar a triagem. Logo que eu entrei aqui, tinha muitas dúvidas e precisava, muitas vezes, do apoio das minhas colegas. Agora não, me sinto apta (AB Rh negativo).

Este depoimento chama atenção para o tempo como uma variável importante para o estabelecimento do conhecimento complexo e específico necessário à realização da triagem. O Conselho Federal de Enfermagem e as Sociedades de Especialistas reconhecem a importância desse fator e exigem, entre outros, um mínimo de cinco anos de experiência prática para que a enfermeira possa obter o título de especialista. Além disso, a fala de AB Rh negativo sugere que, antes de chegar ao patamar de experiência que a profissional possui na atualidade, o conhecimento era incipiente e o processo de construção desse conhecimento demandou um certo amadurecimento.

Sobre isto, Kuhn (1970) e Polany (1958) citados por Benner (1984, p. 2) afirmam que o conhecimento adquirido com a experiência prática, denominado "Know-how", pode desafiar ou ainda estender uma proposição teórica. Contudo, o desenvolvimento de conhecimento em uma dada área, consiste na extensão do conhecimento prático através da teoria baseada em investigações científicas, da observação de práticas que vem sendo desenvolvidas e da experiência na prática em situações reais.

Neste ponto, cabe enfocar, que o termo experiência como aqui empregado, não significa a mera passagem de tempo ou longevidade. Trata-se do refinamento de noções e de teorias pré-concebidas tendo em vista os encontros com muitas situações práticas, que acabam acrescentando tons, sombras, que fazem, então, a diferença. A teoria oferece o que pode ser feito em termos formais, mas a prática é bem mais complexa e apresenta muito mais realidades que a teoria pode identificar.

Para Benner (1984, p. 3), o conhecimento especializado é desenvolvido quando a profissional testa e refina as suas proposições, hipóteses, e princípios baseados em situações práticas. Ela tem um conhecimento dotado de perícia, a partir do qual tem uma visão apurada da situação. Neste tipo de conhecimento, a experiência é um requisito básico. Pode-se dizer que a maneira como um problema é resolvido por uma enfermeira iniciante, difere daquele resolvido por uma enfermeira com conhecimento apurado, haja vista como mencionado, o componente da experiência, que realmente tende a fazer com que esta última mova-se para a solução do problema com maior eficiência. Esta autora ainda afirma que, a enfermeira especialista percebe a situação como um todo, usa sua experiência adquirida em situações concretas vividas anteriormente, atingindo a região certa do problema, deixando para trás um grande número de possibilidades de resolução menos eficazes. Nesta perspectiva, observe a fala a seguir:

Eu trabalho aqui no Hemorio há 16 anos. Conheço esse hospital de trás para frente. Já passei por muitas chefias, por muitos cursos e por muitos setores. Quando eu iniciei tinha muita dificuldade para lidar com as questões da hemoterapia, tudo era novo, e de vez em quando, eu tinha que recorrer a pessoas mais experientes. Hoje, eu percebo que realmente entendo, e é muito difícil ter que pedir ajuda em alguma situação (A Rh negativo).

Ainda neste enfoque da triagem clínica de doador, a perícia da enfermeira é essencial para o desenvolvimento da atividade com eficiência, destacando-se as habilidades adquiridas com a experiência. Isto pode ser elucidado na fala a seguir:

Eu acho que aqui na triagem o que vale mesmo, é a experiência. Vou te dar um exemplo clássico. O doador entra e de alguma forma eu percebo um detalhe tendencioso que aponta para um comportamento homossexual. Eu não posso simplesmente dizer que vou inaptá-lo devido a este fato. Não vale o que eu acho e sim o que diz o doador. Então, eu aperto às perguntas. Começo a realizar indagações sobre a vida sexual para então descobrir os fatos reais e tomar a minha decisão. Agora, essa distinção é de grande subjetividade, e somente com o tempo alcançamos. Até porque não está escrito na testa quem é gay (AB Rh positivo).

Para Heidegger (1962) e Gadamer (1975, citados por Benner, (1984, p. 8), as experiências concretas passadas guiam as percepções e as ações das enfermeiras ditas especialistas e permitem uma rápida compreensão da realidade. Esse tipo de conhecimento avançado é mais efetivo do que qualquer tentativa teórica, desde que o profissional compare a situação passada com a vivida na atualidade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na triagem clínica de doadores, o trabalho da enfermeira é minucioso e dotado de vários aspectos específicos. Trata-se de um encontro único e singular com o doador, durante o qual o mesmo será avaliado, tendo como premissa a flexibilização entre a visão holística e as necessidades relacionadas à área em questão.

Durante esse encontro são analisados o comportamento e o estado de saúde do doador e muitas situações confidenciais são abordadas. A enfermeira procura realizar uma atenta anamnese e um exame físico direcionado. Ao final da triagem clínica, ela delibera sobre a aptidão ou não do candidato à doação de sangue. Destacam-se nesta atividade, o processo decisório e o poder de atuação da enfermeira.

A combinação do conhecimento teórico com o conhecimento prático e o tempo de experiência da enfermeira na triagem clínica produzem um conhecimento apurado, que vai orientar a resolução dos problemas de uma maneira muito mais acurada. Nesse caminho, a prática das enfermeiras na triagem clínica de doadores desenvolve-se de forma integral e humanizada, utilizando técnicas específicas pertinentes à área da hemoterapia, diferenciada de práticas clássicas da enfermagem, como àquelas da enfermagem fundamental. Sob esse ponto de vista, essas peculiaridades decorrem das condições e características dos doadores na triagem, que são objetos do trabalho da enfermeira.

A complexidade do trabalho da enfermeira na triagem clínica de doadores sugere a necessidade dessa prática ser realizada por uma profissional com conhecimento dotado de perícia. Por outro lado, destaca-se a importância da dimensão do tempo para a formação específica da enfermeira e para o processo que culminará com a prática característica de uma especialidade.

Assim, compartilhamos da idéia de que os serviços de saúde devem estar voltados para o atendimento das necessidades da população, devem ser de qualidade, devem respeitar o homem em sua individualidade e integralidade, ter recursos humanos adequados formados por profissionais capacitados e valorizados e com total compreensão de suas responsabilidades sabendo potencializar as suas especificidades através do trabalho em equipe.

Esses princípios são compatíveis com a busca cada vez maior pelo conhecimento, para que se tenham pessoas realmente preparadas para o trabalho com o sangue e seus derivados, que ainda são marcados pelo misticismo, o medo, a emoção. Esse tipo de trabalho também demanda o rigor técnico-científico necessário para a garantia de uma doação segura.

Este estudo buscou contribuir para o entendimento do trabalho da enfermeira em hemoterapia, bem como aponta para outras possibilidades. A realidade é vista como uma construção humana, e, portanto todos estamos a repensar e a interferir no presente para que possamos seguir em direção a um futuro melhor.

 

REFERÊNCIAS

BENNER, P. From novice to expert: excellent and power in clinical nursing practice. California: Addison Wesley, 1984. p.13-307.

BRASIL. Portaria nº 1.376, de 19 de novembro de 1993. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 2 dez. 1993.

CARDOSO, Márcia Valéria Guimarães. Psicologia: um olhar sobre a hemoterapia. In: ESCOLA TÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM (Org). Textos de apoio em hemoterapia. Rio de Janeiro: Ed. da FIOCRUZ, 2000. 168p (Série Trabalho e Formação em Saúde).

CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM. Resolução nº200, de 15 de abril de 1997. Dispõe sobre a atuação dos profissionais de enfermagem e transplante de medula óssea.

FRIAS, Karla Maria Guimarães et al. Atuação da Enfermagem em hemoterapia. Revista IEHE, Rio de Janeiro, 1997, p. 44-45, Suplemento.

LOPES, Maria Inês. A doação de sangue. In: ESCOLA TÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM (Org). Textos de apoio em hemoterapia. Rio de Janeiro: Ed. da FIOCRUZ, 2000. 168p. (Série Trabalho e Formação em Saúde).

 

NOTAS

1Portaria Nº 1.376 de 19 de novembro de 1993, que aprova a Portaria Nº 721de 09 de agosto de 1989.

 

 

Recebido em 09/05/2003
Reapresentado em 10/10/2003
Aprovado em 09/12/2003

© Copyright 2024 - Escola Anna Nery Revista de Enfermagem - Todos os Direitos Reservados
GN1