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CAPES

Volume 8, Número 1, Jan/Abr - 2004

REVISÃO CRÍTICA

 

Do cuidado da mulher: questões de gênero e sua incorporação no contexto do HIV/AIDS

 

Woman care: gender questions and her place in HIV/AIDS context

 

Del cuidado de la mujer: cuestiones de género y su incorporación en el contexto VIH/SIDA

 

 

Diego SchaurichI; Stela Maris de Mello PadoinII

IAcadêmico do 7º semestre de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS); Bolsista PIBIC - CNPq em 2002; Participante do Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão AIDS, Educação e Cidadania: uma proposta de promoção à saúde e à qualidade de vida de 2000 - 2003; Membro do GEPES - Grupo de Estudos e Pesquisa em Enfermagem e Saúde
IIProfessora Assistente no Departamento de Enfermagem da UFSM - RS; Mestre em Assistência em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC / SC); Coordenadora do Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão "AIDS, Educação e Cidadania: uma proposta de promoção à saúde e à qualidade de vida"; Docente orientadora da pesquisa PIBIC - CNPq; Membro do GEPES

 

 


RESUMO

Este trabalho, realizado no âmbito do projeto de pesquisa "AIDS e a Mulher: conhecendo o seu perfil epidemiológico e a sua vulnerabilidade social e individual à Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (HIV/AIDS)", financiado pelo PIBIC - CNPq, apresenta uma breve revisão de literatura acerca do ser-mulher através dos tempos, do processo de cuidar/cuidado por ela desenvolvido e as questões de gênero, culminando em sua incorporação no contexto HIV/AIDS. Importante faz-se salientar que essas discussões ora apresentadas foram embasadas na literatura pertinente às temáticas (AIDS e mulher), na vivência e/ou experiência dos autores em projetos de ensino, pesquisa e extensão e no olhar fenomenológico que suscita a reflexão do ser-homem em (como) ser, agir e pensar.

Palavras-chave: Saúde da Mulher. Síndrome de Imunodeficiência Adquirida. Cuidado de Enfermagem.


ABSTRACT

This work, accomplished in the sphere of the research project named "AIDS and the Woman: knowing her epidemic profile and her social and individual vulnerability to the Acquired Immunodeficiency Syndrome (HIV/AIDS)", financed by PIBIC - CNPq, presents a brief literature review about the being woman through time, in the "to care of" and "care" process developed by her and the questions of the gender, ending with her incorporation in the HIV/AIDS context. It is important to emphasize that these discussions that are presented now were based on the literature related to this theme (AIDS and woman), on the living and /or experience of the authors of the teaching projects, research and extension and in the phenomenological look that excites the reflexion on the being man in (how) to be, to act and to think.

Keywords: Woman's Health. Acquired Inmunodeficiency Syndrome. Nursing Care.


RESUMEN

Este trabajo, realizado en el ámbito del proyecto de investigación "SIDA y la Mujer: conociendo su perfil epidemiológico y su vulnerabilidad social e individual del Síndrome de Inmunodeficiencia Adquirida (VIH/SIDA)", financiado por el PIBIC - CNPq, presenta una breve revisión teórica y reflexiva del ser-mujer a través del tiempo, del proceso de cuidar/cuidado por ella desarrollado y las cuestiones del género, culminando en su incorporación en el contexto VIH/SIDA. Es importante salientar que esas discusiones ahora presentadas han sido embasadas en la literatura concerniente a las temáticas (SIDA y mujer), en la vivencia y /o experiencia de los autores en proyectos de enseñanza, investigación y extensión, y en la mirada fenomenológica que suscita a la reflexión del ser-hombre en (como) ser, actuar y pensar.

Palabras clave: Salud de la Mujer. Síndrome de Inmunodefíciencia Adquirida. Cuidado de Enfermería.


 

 

DA INSERÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO AO CUIDADO HUMANO E CIENTÍFICO: PERPASSANDO AS DISCUSSÕES DE GÊNERO

Ao longo dos tempos, a humanidade vem sofrendo profundas e consideráveis transformações. Essas mudanças principiam com o homem-ser social, político, econômico, cultural e psicológico, que evoluiu, se aperfeiçoou e se especificou, de tal modo e com tal complexidade, acabando por forçar alterações sociais e individuais em âmbito global.

Assim sendo, pode-se dizer que o contexto histórico-cultural no qual a sociedade desenvolveu-se construiu a imagem e o papel da mulher no decorrer dos séculos. Ou seja, a mulher do século XXI é o reflexo de uma figura feminina que, ao longo dos tempos, foi sendo construída por uma mentalidade paternalista de ser, agir e pensar. A organização e construção pelas quais essa mentalidade passou e ainda passa provavelmente expressam as origens das inquietações e reivindicações e dos problemas enfrentados pelas mulheres na atualidade.

E, a partir dessa percepção, é que atualmente o ser-mulher procura reconstruir sua trajetória histórica, paralelamente à própria evolução da história humana, com o intuito de despertar e instigar reflexões e inquietações em um contexto que, muitas vezes, a exclui e incomoda, tanto socioculturalmente quanto economicamente, de uma sociedade masculina e hierárquica por gênese e desenvolvimento.

Dessa forma, em consonância com a posição de Saffioti e Vargas1, percebe-se que a mulher do século XVIII preocupava-se com a Revolução Industrial incipiente, estava atarefada com as questões do lar, antecipava sua futura entrada no mercado de trabalho impulsionado pelas novas e importantes tecnologias. Entretanto, durante muitas décadas, ela foi explorada, permanecendo subalterna ao homem. Aquela mulher muito se diferencia da mulher do século XXI, arrojada, batalhadora e decidida. Mas, herdeira de seu passado, nem tão longínquo assim, ainda pode apresentar uma postura de submissão econômica e socialmente, e, por vezes, é explorada e humilhada em termos políticos e culturais.

Desse modo, no cotidiano da sociedade contemporânea, vislumbra-se que a cultura arraigada ao processo de formação do ser humano apresenta-se extremamente masculina, quando visualizada a partir da compreensão de gênero. Isso quer dizer que o ser-homem - entendido aqui como ser do sexo masculino, configura-se como elemento central e principal no que tange à construção da história e da sociedade (Petersen2; Jacques3).

É importante salientar que o contexto histórico-cultural da humanidade muito influenciou e auxiliou na consolidação de uma resposta social altamente desigual e excludente, que percebe o ser feminino sob uma perspectiva inferior e desprestigiada. Entretanto, muitos avanços já ocorreram com a ampliação do acesso da mulher à educação, ao mercado de trabalho e espaço político, porém, ainda pouco suficientes (Petersen2).

Dessa forma, os estudos sobre questões de gênero mais recentes vêm tentando explicar as relações que se estabeleceram e se mantêm entre os sexos, a fim de proporcionar uma melhor compreensão social, bem como solucionar ou minimizar problemas de submissão e/ou negação da figura feminina (Gelbcke4).

Atualmente, as teorias que se baseavam no marxismo, no patriarcado e até mesmo na psicanálise para explicar a dominação masculina e a conseqüente subordinação feminina foram suprimidas e rejeitadas frente à busca e formulação de novas teorias que se utilizam de outras ciências para analisar a dimensão das relações entre os sexos (Saffioti e Vargas1). Assim, pode-se perceber que algo se constrói para que os seres humanos (masculino e feminino) tenham direitos e deveres iguais perante a sociedade, sem que haja idéias preconcebidas e atitudes de discriminação por diferenças que se apresentam meramente em âmbito biológico, anatômico e psicológico do ser.

É necessário destacar que essa divisão e diferenças entre os sexos sempre existiram, estando presentes desde o princípio dos tempos, não apenas no sentido biológico do ser, mas, fundamentalmente, no sentido social de ser e (se) compreender. Fonseca (apud Rocha5:106) acrescenta que o sexo social e historicamente construído é produto das relações sociais entre homens e mulheres e deve ser entendido como elemento constitutivo destas mesmas relações nas quais as diferenças são apresentadas como naturais e inquestionáveis. Esse autor ainda pontua que frente a uma análise mais profunda de tais relações revela-se o contrário, ou seja, condições extremamente desiguais de exercício de poder, visto que as mulheres vêm ocupando posições subalternas e secundárias em relação aos homens.

Como a percepção da categoria gênero permite um profundo questionamento e análise dos conceitos normativos, verifica-se que por séculos eles foram enraizados no seio social, moldando atitudes e comportamentos dos gêneros masculino e feminino. Além disso, essa categoria permite contestar os conceitos universais, fixos e generalizantes presentes nas várias teorias do conhecimento como um meio de analisar as formas de discriminação e opressão existentes entre os seres humanos, conforme elucida Fonseca6.

Quando se visualiza esse complexo contexto que envolve a mulher, percebe-se que as mudanças e transformações pelas quais passa a sociedade configuram-se como resultantes de uma modificação interna do homem que, conseqüentemente, impulsiona a alteração, reestruturação e adaptação da própria humanidade. Assim, compreende-se que houve uma grande evolução em termos sociais. Mas também verifica-se que ainda se precisa apreender muito para que o ser-mulher e o ser-homem coabitem e se relacionem de forma mais digna e respeitosa.

Também compreende-se que o processo de trabalhar e o trabalho estão intimamente relacionados à questão de gênero feminino, quando o ser-mulher ocupa um cargo de representação inferior em relação à figura masculina, com salários mais baixos e desmerecedores, muitas vezes trabalhando de forma mais intensa e comprometida (Petersen2; Saffioti e Vargas1; Gelbcke4). Nesse contexto, deve-se mencionar que inúmeras vezes a mulher desenvolve uma dupla jornada de trabalho, pois além de cumprir suas atividades sociais e coletivas, ela ainda assume o trabalho doméstico e familiar, o qual inclui o cuidado dos filhos, do cônjuge e as demais atribuições a ela relacionadas.

Considera-se que a estrutura psicoemocional e a formação social da mulher foi sendo construída por uma sociedade que ainda a reconhece como um ser inferior em relação à figura masculina e desprestigiado em termos socioculturais. Dessa forma, atribuiu-se ao ser-mulher o cuidar da casa, dos filhos, do companheiro, dos familiares e, também, cuidar das questões de saúde e dos problemas de doença, entre outros, sem, muitas vezes, considerar seu trabalho e seus afazeres que perpassam o âmbito domiciliar.

Dessa maneira, o cuidado, durante muitos anos, ficou restrito a ambientes domiciliares e entendido pela sociedade como algo sem reconhecimento. Cabe salientar que séculos atrás o cuidado era vislumbrado como algo simples, que não exigia técnica específica ou conhecimento apropriado, cabendo esta tarefa à mulher.

Porém, percebe-se que o processo do cuidado evoluiu diante da profissionalização e institucionalização da Enfermagem, do avanço da tecnologia, das propostas de um sistema único de saúde e, para além disso, da necessidade de uma visão holística e menos fragmentada do ser humano, que deve apresentar seu princípio no cuidado de si e no cuidado ao Outro de forma prazerosa, comprometida, respeitosa e solidária.

No mesmo sentido, o processo de cuidado deverá ser compreendido e apreendido pelo ser humano como algo inerente a sua essência, uma vez que é uma necessidade humana essencial para a sobrevivência. Nesse sentido, Schaurich e Padoin19 consideram que para seu desenvolvimento será necessária uma ação que envolva amor, comprometimento, carinho e respeito, aspectos fundamentais para o cuidar de si mesmo, amar a si mesmo, aceitar a si mesmo e, conseqüentemente, cuidar, amar e respeitar o Outro.

Lazure (apud Costenaro e Lacerda7:53) apresenta a idéia de cuidado e respeito dentro da seguinte visão: respeitar-se é acreditar que enquanto seres humanos, somos únicos e temos capacidade de decidir o que é melhor para nós. Respeitar-se, é ser verdadeiro consigo próprio e com os outros. Corroborando essa idéia, acredita-se que o primeiro passo para desempenhar o cuidado é desenvolvendo o respeito que deve perpassar as relações humanas e o próprio eu. Somente após alcançar o respeito por si mesmo e compreender as capacidades e limitações do próprio ser, conseguiremos compreender que o Outro revela-se de igual maneira.

Considera-se, portanto, que o processo de cuidado não apresenta modelo que mostre prescrições através de regras ou normas, uma vez que corresponde a algo mais amplo que leva em consideração a individualidade e a singularidade da pessoa e suas relações com o mundo, ultrapassando as concepções apenas técnicas e científicas. Esse processo permite um crescimento a partir do compartilhamento de experiências e/ou vivências, tanto de quem cuida quanto de quem é cuidado, num processo de interação, como destacam Paterson e Zderad8.

Dessa forma, compreende-se que o cuidado vem, juntamente com a evolução histórica da sociedade, apresentando transformações, uma vez que se acreditava que ele estava apenas restrito ao ambiente domiciliar e associado a um conhecimento simplista, não - técnico. No entanto, hoje vislumbra-se que ele superou obstáculos e fronteiras, atingindo o âmbito da rede social e dos serviços sociais, além de exigir cada vez mais um conhecimento atualizado, altamente científico e principalmente humanizado.

Entretanto, para que o cuidado contemple o ser humano em sua totalidade faz-se imprescindível que aconteça o encontro com-o-Outro (Paterson e Zderad8), mediado pelo diálogo e interação, só possível na experiência existencial com o Outro. É importante, ainda, explicitar que esse Outro não é denominado apenas como ser-humano, mas sim aquele no qual me espelho para ser e existir como "eu-pessoa", uma vez que somente existimos como ser-no-mundo porque o Outro nos dá condições de experiências, vivências, transformações e adaptações interiores e exteriores possíveis na relação binominal "EU - TU" (Buber9).

Considerando esse processo que engloba o processo do cuidado relacionado ao ser-mulher, que pode também ser compreendido a partir das discussões sobre gênero, o qual está intimamente interligado às questões de dominação e supremacia de um sexo sobre o outro, é que se percebe a necessidade do ser-mulher persistir na busca de sua afirmação, como ser histórico; de sua admiração, como ser sociocultural e de seu reconhecimento, como ser profissional.

 

SER-MULHER: DO CUIDADO À INCORPORAÇÃO NO CONTEXTO DO HIV/AIDS

Em meio a esse conturbado processo, surge, no início da década de 80, uma nova epidemia, momento em que a mulher começa a se inserir no mercado de trabalho de forma mais ativa; em que a sociedade começa a repensar questões ligadas ao sexo e à sexualidade; em que o ser feminino passa por profundas transformações desencadeadas pela intensificação dos movimentos feministas.

Nesse contexto, a epidemia da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS ou SIDA) aflora, estando inicialmente associada a homossexuais do sexo masculino, usuários de drogas injetáveis e indivíduos portadores de hemofilia, representando desafio para muitos pesquisadores e estudiosos, visto que se manifestava de maneira diferenciada das demais patologias, pois não se revelava como uma doença em específico, mas sim como um conjunto diversificado de manifestações clínicas.

Assim, durante os primeiros anos da história do HIV/AIDS, predominou o conceito de "grupo de risco", o qual incluía indivíduos com comportamentos e/ou atitudes desvinculados dos padrões sociais, como homo/bissexuais e profissionais do sexo. Tal fato desencadeou várias respostas da sociedade da época, entre elas a de que as pessoas que adquirem a doença são pessoas que "merecem" ou "procuram" (Padoin10) e que a doença nada mais seria do que um "castigo de Deus", o que auxiliou em muito a vinculação de preconceitos e atitudes discriminatórias à epidemia.

Tempos mais tarde, observou-se uma importante evolução de pensamento, período em que a visão "grupal" foi ampliada para uma visão "comportamental" de ser e agir, incluindo indivíduos que apresentavam um comportamento que os tornava mais suscetíveis à infecção viral, como profissionais do sexo, homo, bi e heterossexuais e seus parceiros, usuários de drogas injetáveis e seus parceiros e um número significativo de crianças.

Em relação a crianças, observou-se um aumento considerável nos casos de notificações de AIDS, o que passou a ser denominada AIDS Pediátrica (Della Negra11). Hoje, sabe-se que elas apresentam as mesmas formas de transmissão do HIV que os adultos (porém, com percentagens diferenciadas), além da transmissão materno-infantil, que pode ocorrer durante a gestação, no momento do parto e através do aleitamento materno, e que responde por cerca de 90,2% dos casos notificados junto ao Ministério da Saúde (Brasil12), o que tem sido foco de muitas preocupações.

Ao atingir as crianças, percebeu-se que, naquele momento, a epidemia HIV/AIDS apresentava uma mudança em seu perfil epidemiológico, sendo então superado os conceitos de "grupo" e "comportamento de risco". Observava-se também que a AIDS atingia cada vez mais mulheres donas-de-casa, com parceiro fixo e em relação estável e, concomitantemente, um número cada vez maior de crianças. Concluía-se que a vulnerabilidade é o resultado de uma situação social de risco que envolve todas as pessoas, trazendo para reflexão, o que significa ser vulnerável à AIDS. O conceito de vulnerabilidade despontou no instante em que pesquisadores e estudiosos, comprometidos com as mais diversas esferas referentes ao contexto da epidemia, vislumbraram que somente evoluir de uma visão "grupal" para uma visão "comportamental", não era suficiente, apesar de ser um avanço indiscutível.

Vários questionamentos começaram a surgir, tais como: que "comportamento de risco" tem um feto em vida intrauterina? Mulheres com relacionamento estável ou com parceiro único apresentam ou não "comportamento arriscado", no que tange ao risco de infecção pelo HIV? Em meio a essas discussões, foi que surgiu a definição de vulnerabilidade (Ayres13), como sendo a procura em reconhecer as "diferentes susceptibilidades de indivíduos e grupos populacionais a AIDS, resultantes do conjunto das condições individuais e coletivas que os põem em maior ou menor contacto com a infecção e com as chances de se defender dela".

Em outras palavras, ser vulnerável à AIDS pode ser percebido dentro da perspectiva do homem como ser único e singular, relacionada à consciência do indivíduo frente ao contexto HIV/AIDS, e do homem como ser social, referente ao acesso à informação, grau de escolaridade e questões culturais, entre outros fatores associados.

Essa nova forma de olhar a AIDS culminou com uma importante e relevante mudança epidemiológica, representada pelos processos de: interiorização, em que o vírus cada vez mais atinge cidades de pequeno e médio porte no interior do país; feminilização, momento no qual a parcela feminina da população é acometida; juvenilização, atingindo populações cada vez mais jovens e em idade reprodutiva; e pessoas em estado de pobreza e/ou miséria avançadas, com baixos graus de escolaridade, o que se denominou de pauperização da epidemia (Castilho e Chequer14).

Assim sendo, compreende-se que tais situações sociais de risco somam-se às questões de estigma, preconceito e discriminação, desencadeados pelos temas que emergem, quando nos referimos ao contexto HIV/AIDS tais como sexo e sexualidade, drogadição, relação vida/morte, integridade e valorização do corpo e questões de gênero, fortalecendo as dificuldades no enfrentamento, controle e prevenção de uma epidemia que, por vezes, demonstra traços pandêmicos, uma vez que representa a única doença que atingiu simultaneamente cinco continentes.

Após 20 anos das primeiras notificações, o mundo vivencia uma nova fase em que a epidemia mostra não ter prioridade por nenhum grupo humano, atingindo homens, mulheres, jovens, adolescentes, crianças e idosos independentemente de status social, religião, sexo, raça, credo ou opção sexual.

A epidemia HIV/AIDS é considerada por pesquisadores de diferentes áreas do contexto da saúde como um dos maiores problemas enfrentados pela humanidade nos últimos séculos, ou ainda, poderá ser o maior desafio vivido pela humanidade nos últimos tempos. Desafio que, segundo Westrupp15:53, "perpassa por sentimentos de amor e de ódio, por comportamentos de discriminação e acolhimento, por direitos individuais e coletivos e por direito ao exercício da sexualidade na sua forma mais variada".

Contudo, pode-se concluir que, atualmente, essa epidemia não diz mais respeito a apenas alguns grupos populacionais, como homossexuais ou os próprios soropositivos para o HIV, mas sim se constituindo em um problema de ordem social, acarretando responsabilidades, direitos e deveres para todos, como ser-no-mundo e ser - com (Lopes e Souza16).

Sendo assim, ao voltar-se o olhar para o contexto HIV/AIDS, visualiza-se que o ser - mulher, que levou séculos até conquistar um espaço na sociedade, incorporou-se na epidemia rapidamente, já que em 1984, a proproção era uma mulher doente de AIDS para 121 homens. Atualmente, essa proporção estreitou-se e os dados revelam que há uma mulher para dois homens. Em alguns centros metropolitanos, estes números já chegam a equivalência de uma mulher doente de AIDS para um homem doente de AIDS (Brasil17).

Essa situação de expansão da AIDS em mulheres, considerada de grande proporção, traz vários pontos para reflexão, entre eles as campanhas de prevenção da década de 80, que se apresentavam voltadas exclusivamente para o sexo masculino e para os homossexuais, associadas às precárias políticas públicas de saúde destinadas à mulher.

Outra percepção, que somente dificulta ainda mais esse contexto, em relação à união existente entre o ser-mulher e o HIV/AIDS, é apresentada por Paiva18:8,quando ela refere que:

Compreender a complexidade das questões relacionadas à expansão da AIDS em mulheres não é tarefa fácil, pois ela carrega consigo o estereótipo de uma doença vergonhosa, fortemente associada a conotações desvalorizadas moral e socialmente.

Aliada a tais afirmações, esta autora ainda sustenta que, em relação às discussões de gênero existentes e a condição da mulher na sociedade contemporânea, "a prevenção da AIDS está ligada ao controle do comportamento sexual, e este guarda relação com a reprodução e os papéis de gênero" (Paiva18:8).

Diante do exposto, embora ambos os gêneros sejam vulneráveis ao HIV/AIDS, compreende-se que o ser - mulher apresenta maior vulnerabilidade em relação ao ser-homem, uma vez que a ela estão associados fatores biológicos, individuais e sociais fortemente arraigados à evolução histórica da humanidade. Dessa forma, será imprescindível, para um enfrentamento eficaz dessa infecção, que o ser-mulher adote medidas preventivas em seu cotidiano de vida sexual, principalmente no que se refere ao sexo seguro, ou seja, o uso de preservativo, masculino ou feminino.

Portanto, estar vulnerável requer do ser - homem ou mulher a responsabilidade e respeito à vida, consigo mesmo e com o Outro, uma vez que enquanto prevaleciam os conceitos de "grupo" e "comportamento de risco" esperava-se apenas que o Outro tomasse atitudes preventivas; esperava-se apenas que o Outro fosse responsável. Hoje, o que se percebe é que a vulnerabilidade exige escolhas responsáveis de cada ser.

Contemplando o complexo contexto vivenciado pelo ser-homem e ser-mulher na atualidade, é que olhares voltam-se para uma mudança urgente e necessária em âmbito pessoal e social, a fim de compreender a falha existente entre a informação fornecida e a conscientização sobre as medidas de prevenção. Isso é necessário para que se consiga compreender qual a lacuna que há entre aquilo que é falado e que é feito, ou seja, buscar o vácuo existente entre a verbalização e a ação por si mesma (Schaurich e Padoin19).

 

APRENDIZADO HUMANO: CONSIDERAÇÕES QUE NÃO SÃO FINAIS ...

Atualmente, vislumbra-se que a compreensão inicial de que a AIDS estava associada e relacionada apenas ao gênero masculino é incorreta e que a exclusão do gênero feminino das campanhas educativas e das medidas de prevenção serviu apenas para dificultar e velar o reconhecimento de sua vulnerabilidade à epidemia, bem como a percepção do crescente número de casos notificados de AIDS em mulheres.

Esse processo não se encerra, pois concomitantemente à população feminina, avulta-se diante de nossos olhos a crescente infecção de crianças, denominada a AIDS pediátrica. Hoje, a primeira geração de crianças filhas e filhos de mulheres soropositivas para o HIV, que nasceram no início da década de 80 e 90, convivem desde o nascimento com o preconceito e estigma, as atitudes discriminatórias, o uso de medicações, os exames regulares, as hospitalizações e a exclusão do processo educativo em escolas e creches. E, ao vivenciar esse contexto, percebe-se que o ser-mulher, portadora ou não do HIV, é o principal ser cuidador.

A vivência com o ser portador AIDS tem trazido à reflexão que o homem, em suas múltiplas possibilidades de vir-a-ser, necessita refazer seu contexto de vida, a fim de permitir a perpetuação da espécie e, ao mesmo tempo, proteger-se de uma epidemia que hoje encontra-se irremediavelmente em expansão, fugindo, muitas vezes, ao controle individual e/ou social. A AIDS mostra que o homem não é um ser indestrutível e invencível, uma vez que ele precisa evoluir muito para descobrir estratégias de prevenção, objetivando, num futuro próximo, o controle da epidemia. E, ainda, compreende-se que conviver com a pessoa portadora de HIV/AIDS requer de todos atitudes distintas no que tange ao autoconhecimento, à valorização da vida e à compreensão do processo de morrer.

A partir da constatação de que há uma forte relação entre a mulher, as questões de gênero e a epidemia da AIDS, espera-se que ela conquiste a sua autonomia. Experimentar a autonomia é também perceber a solidão existencial, conforme ressalta Lerner (apud: Fonseca20:35-36). Este autor ainda ressalta que, precisamos reconhecer que determinamos nossas próprias escolhas, decidimos sobre nossos próprios riscos e assumimos a responsabilidade primária sobre nosso próprio crescimento e desenvolvimento (Fonseca 20:35-36). Para ser autônoma e conquistar autonomia, a mulher deve desenvolver práticas preventivas para minimizar sua vulnerabilidade individual e social, no contexto do HIV/AIDS.

Dessa forma, para melhor compreensão acerca do importante papel da mulher na sociedade, precisa-se buscar a compreensão de seus mundos, a fim de entender mais precisamente suas angústias e decepções, bem como suas glórias e conquistas. O conhecimento das diferentes formas de subalternidade a que a mulher vem sendo submetida e como ela se expressa diante do processo saúde-doença é necessário, para que ações relevantes possam ser implantadas e/ou implementadas objetivando-se a construção de um sermulher mais crítico, independente e respeitado, além da busca de ser mais e estar - melhor (Paterson e Zderad8).

Para que a situação da mulher no contexto do HIV/AIDS apresente alguma alteração ou mudança, acredita-se na necessidade de que a sociedade repense e reorganize seus valores e suas crenças, a fim de desenvolver atitudes humanas e humanizadoras para proporcionar ao ser - com HIV/AIDS uma vida mais digna e com mais qualidade. Faz-se necessário desenvolver o conhecimento de que indivíduo portador do HIV ou doente de AIDS:

(...) [é] percebido, (...) como tal, porque em cada percebido há um sujeito que vive uma determinada situação e que a ela doa sentidos. Portanto, este sujeito é um sujeito consciente, que tem a possibilidade de fazer a sua história e dela participar ativamente transformando-a ou não, conforme sua vontade (Hanan21:4).

Entende-se que a adesão dos diferentes e diversos segmentos sociais, principiando pela união de forças entre os gêneros, fortalecerá a sociedade como um todo, pois, a partir da compreensão de que não se é superior ou inferior em relação ao Outro por apresentar sexos, opções sexuais diferentes ou condições socioeconômicas diferenciadas, pode-se compreender que a importância do homem vem antes de qualquer condição patológica, sorológica ou simbólica de ser.

Considerando tais reflexões, faz-se necessário compreender que o ser humano (tanto o cuidador quanto o ser cuidado, uma vez que em algum momento da vida poderão assumir um ou outro papel) necessita ser percebido como um ser com potencialidades, capaz de ser mais através de escolhas responsáveis, de transformar e criar oportunidades, e que também é possuidor de sentimentos e de forças internas diante das mais diversas e diferentes situações que a vida impõe e/ou exige.

Por fim, entre as possibilidades para desenvolver uma Enfermagem Humanística, conforme apontada por Paterson e Zderad8, encontra-se o diálogo, o carinho, o amor, o respeito, a informação, a solidariedade e a chance de dar possibilidades de escolhas responsáveis ao ser cuidador e àquele que é cuidado.

 

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Recebido em27/03/2003
Reapresentado em 29/03/2004
Aprovado em 19/04/2004

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