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CAPES

Volume 8, Número 1, Jan/Abr - 2004

ARTIGOS DE REFLEXÃO

 

Identidade da enfermagem e identidade profissional da enfermeira: tendências encontradas em produções científicas desenvolvidas no Brasil

 

Nursing's identity and nurse's professional identity: tendecies found on the scientific productions developed in Brazil

 

Identidad de la enfermería e identidad profesional de la enfermera: tendencias encontradas en las producciones científicas desarrolladas en el Brasil

 

 

Isaura Setenta Porto

Professora Adjunta e Doutora em Enfermagem do NUPENH e Departamento de Enfermagem Médico - Cirúrgica da Escola de Enfermagem Anna Nery / UFRJ. Pesquisadora do CNPq

 

 


RESUMO

Esta reflexão trata da identidade da Enfermagem e da identidade profissional da Enfermeira como entidades virtuais e dinâmicas, com a finalidade de comparar conteúdos de produções científicas sobre essas temáticas. A análise de 22 produções desenvolvidas no Brasil mostrou como resultados: a constituição dessas identidades como próximas, embora revelando diferenças vinculadas à enfermeira como portadora de identidade e à profissão com uma identidade derivada de influências contextuais sobre organização e divisão técnica do trabalho, condicionantes históricos e modelos assistenciais; e as semelhanças e diferenças de sua identidade profissional forjada durante a formação profissional e durante sua inserção no mercado de trabalho. Como construção social, a Enfermagem deve contrapor o pólo do ser (herança histórica) ao pólo do fazer (trabalho, carreira e cultura técnica). Assim, a identidade profissional da enfermeira emergirá de um processo dinâmico de construção, desconstrução e reconstrução constantes, dependente também de outros e do contexto de inserção dessa profissional.

Palavras-chave: Identidade. Enfermagem. Identidade profissional. Enfermeira.


ABSTRACT

This reflection is about the Nursing's identity and the professional indentity of the nurse as virtuals and dynamics entities, with the purposal of to compare contents of scientific productions about these themes. The analysis of 22 productions developed in Brazil showed as results: the constitution of these indentities as close, altough showing differences linked to the nurse as carrier of identity and to the profession with an identity proceeding from contextuals influences about organization and technical division of the work, historicals stipulations and assistencial models; and the resemblances and differences in the professional indentity of the nurse forged during the professional formation and in the insertion of this professional in the labour market. As social construction, the Nursing must oppose the border of being (historical inheritance) to the border of making (work, career and technique culture). Therefore, the professional identity of the nurse will emerge of a dynamic process of constant construction, desconstruction and reconstruction, that will be dependent also of anothers and of the context of insertion of this professional.

Keywords: Identity. Nursing. Professional identity. Nurse.


RESUMEN

Esta reflexión es acerca de la indentidad de la Enfermería y de la identidad profesional de la enfermera como entidades virtuales y dinámicas, con la finalidad de comparar contenidos de las producciones científicas acerca de esas temáticas. El análisis de 22 producciones desarrolladas en el Brasil mostró como resultados: la constitución de estas indentidades como cercanas, sin embargo revelando diferencias vinculadas a la enfermera como portadora de identidad y a la profesión con una identidad de diferencias contextuales sobre organización y división técnica del trabajo, condicionantes históricos y modelos asistenciales; y las semejanzas y diferencias en su indetidad profesional forjada durante la formación profesional y durante su inserción en el mercado de trabajo. Como construcción social, la Enfermería debe oponer el pólo del ser (herencia histórica) del pólo del hacer (trabajo, carrera y cultura técnica). Así, la identidad profesional de la enfermera emergerá de un proceso dinámico de construcción, desconstrucción y reconstrucción constantes, dependiente también de otros y del contexto de inserción de esta profesional.

Palabras clave: Identidad. Enfermería. Identidad profesional. Enfermera


 

 

INTRODUÇÃO

1. As identidades e a identidade profissional

Esta reflexão trata da identidade profissional da Enfermeira brasileira considerando sua inserção nos contextos social, cultural e histórico nacional, nos quais ela vem se desenvolvendo. Ela tem a finalidade de descrever as tendências encontradas nas produções científicas brasileira sobre a temática da identidade profissional da enfermeira e as diferenças encontradas no seu interior e entre ela e a identidade da Enfermagem.

Entretanto, antes de aprofundar a questão da identidade profissional, é necessário compreender o termo identidade no que concerne à sua origem. Neste sentido, a partir de meados do século XIX, o termo identidade veio constituindo-se de maneira mais marcante, a partir das teorias marxista, weberiana ou durkheimiana, que definiam a identidade de um grupo de acordo com o posicionamento de seus membros. Essas teorias destacavam respectivamente o antagonismo entre capital e trabalho, a renda e "status" adquiridos e as representações coletivas socialmente consolidadas (Santos1).

Frente à insuficiência desses conceitos tradicionais em dar conta da pluralidade de novos movimentos sociais, de seus desafios à identidade associada a esses conceitos e da diversidade de questões que esses movimentos levantam na legitimação de suas reivindicações, o termo identidade foi objeto de estudos desde o início do século XX até a atualidade. Entre os produtos desses estudos destacam-se aqueles sobre memória e identidade coletiva (Halbwachs2, 3, 4, 5), identidade cultural e etnia (Lévi-Strauss6), identidade coletiva e interações sociais (Goffman7), identidade cultural e pós-modernidade (Hall8), identidade cultural, informação e globalização (Miranda9, Agier10).

Esses estudos evidenciam a passagem de uma concepção de identidade inicialmente mais rigidamente estabelecida e estruturada para o entendimento da identidade forjada e inserida em um contexto mais dinâmico. Esta última identidade implica a compreensão dos processos identitários de maneira contextualizada, sem ignorar suas diversas influências mais amplas.

A identidade é entendida como um componente universal que funda a unidade do humano, ao mesmo tempo em que ela se divide em uma profusão de elementos próprios e escondidos, específicos de cada sociedade e cultura. A identidade é forjada a partir de contextos, como uma espécie de abrigo virtual indispensável para a explicação de inúmeras coisas, não tendo jamais uma existência real. As razões para a identidade devem então ser buscadas nos limites, nas fronteiras, nos contatos/na alteridade (Lévi-Strauss6).

Nesse sentido, inexiste uma definição de identidade em si mesma. Sua constituição através de processos identitários relativos a algo específico que está em jogo acontece sempre dentro de um contexto, como, por exemplo, o acesso ao mercado de trabalho. O que está em jogo pode ser detectado através de pesquisa empírica, que busca tudo o que cerca a questão identitária chegando à identidade como um processo localizado e datado. Por isso, o objeto de estudo identidade deve ser abordado de maneira contextual, relacional, construtivista e situacional (Agier10).

Essa maneira de abordar a identidade individual ou coletiva pressupõe o fato de que somos sempre o outro para alguém, implicando a dependência de um olhar externo para pensar em nós mesmos. Os encontros/relacionamentos entre indivíduos, cada um em seus grupos de pertença-étnicos, profissionais, religiosos ... , suas diversas origens e suas redes de relações sociais, familiares e extrafamiliares (aqui destacando-se o trabalho), proporcionam alterações ou modificações nesses pertencimentos atingindo os códigos de conduta, as regras da vida social, os valores morais, a língua, a educação e as demais formas culturais que orientam a existência de cada um no mundo.

Nos processos identitários, nossa dependência da relação com os outros indivíduos torna a cultura problemática levando-a a transformações. Mas a situação de mudança social acelerada também aponta para a recomposição de estatutos sociais e a redefinição rápida da posição dos indivíduos. Nesse caso, a questão identitária torna-se um problema de ajuste ao mesmo tempo social, na sua definição, e individual, na sua experiência (Agier10).

A idéia mais recente envolvida nas concepções de identidade cultural é a do "sujeito sociológico", que se forma nas relações com as outras pessoas que mediam os valores, sentidos e símbolos expressos em uma cultura. À medida em que internalizamos os significados e valores alinhando nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural, é que projetamos a nós mesmos nessas identidades culturais (Miranda9).

Nesse sentido, a identidade pode ser descrita como um caldeirão de enunciados ou declarações de identidade alimentadas com o alhures, o antes e os outros, que enviam feixes de informações heterogêneas dando-lhe diversidade. Assim, o essencial da identidade realizado do interior do indivíduo pode ser construído do exterior para [seu] interior (Agier10).

Em outras palavras, o mundo exterior estaria fragmentando o indivíduo fazendo-o assumir várias identidades, em um ambiente considerado provisório e variável. Então, o entendimento da identidade cultural refere-se à soma de significados que estruturam a vida de um indivíduo, grupo ou povo. Por isso, a identidade nunca é consolidada definitivamente. O sujeito não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente em função de sua definição histórica. Ele assume diferentes identidades em diversos momentos e pode sofrer formações e transformações que o condicionam. A partir das influências dos sistemas culturais constituídos pelos processos de socialização e globalização dos meios de comunicação e informação, esse condicionamento acontece e o sujeito pode simultaneamente apresentar várias identidades contraditórias e conflitantes às vezes, e pode mudar sua identidade quando é interpelado ou representado (Miranda9).

Como resultado, ao invés de falar em identidade como uma coisa acabada, deve-se falar em identificação e processos identitários nunca plenos dentro do indivíduo precisando ser conquistados, preenchidos e desenvolvidos. Toda declaração identitária, tanto individual como coletiva, é múltipla, inacabada, instável e sempre experimentada mais como uma busca do que como um fato (Agier10).

Assim, a noção de identidade, que rompe com as dicotomias entre o indivíduo e sociedade, passado e presente, ciência e prática social, também está associada à idéia de memória entendida como um sentido de continuidade e permanência presentes em um indivíduo ou grupo. Assim, a identidade passou a ser considerada como parte de um processo social composto pela interligação entre os aspectos da psique e os determinantes sociais. Como conseqüência, a memória também passou a ser um dos elementos constitutivos do processo de construção de identidades coletivas (Santos1).

Assim, a identidade é o processo através do qual um ator social se reconhece e constrói significados, principalmente com base em determinado atributo cultural ou conjunto de atributos interrelacionados, os quais prevalecem sobre outras fontes de significado, a ponto de excluir uma referência mais ampla a outras estruturas sociais (Castells11).

Entretanto, a identidade não é transmitida por uma geração para a geração seguinte. Ela é sempre construída pelo sujeito ou pelo grupo, que tomam por base as categorias e posições herdadas das gerações precedentes, para construir significados a partir do emprego de estratégias identitárias desenvolvidas pelos indivíduos em suas instituições, nas quais contribuem para uma transformação real (Dubar12).

Entendendo a cultura como engendrada pelas sociedades, é pertinente considerar também a identidade como um processo social. Assim, a identidade social pode ser entendida como um conjunto de circunstâncias e qualidades que diferenciam uma pessoa ou um grupo de pessoas resultando em um reconhecimento recíproco, ou seja, o conhecimento do fato de que a identidade do eu se torna possível graças à identidade do outro que me reconhece. Ela não depende somente do conhecimento da pessoa sobre si mesma, que somente sabe quem é através do olhar do outro (Dubar12).

Os processos de socialização referidos são essenciais para a compreensão da identidade profissional como o processo de construção de um grupo social, na busca de uma identidade coletiva. Nesse sentido, no interior do processo que cobre o ciclo vital do ser humano desde o nascimento até a morte, as pessoas constróem, desconstróem e reconstróem suas identidades através dos processos de socialização.

No caso específico da identidade profissional da enfermeira, é indispensável compreender os processos de socialização ocorridos durante a formação dessa profissional e a sua inserção no mercado de trabalho. Também é imprescindível considerar os significados da identidade da Enfermagem em separado da identidade profissional da enfermeira, pois com certa freqüência essas identidades são entendidas como sinônimos. A identidade profissional é sempre de alguém, uma pessoa ou grupo de pessoas. Ela está inserida e imbricada com a identidade da profissão, pois a Enfermagem inclui aspectos que extrapolam o âmbito da identidade profissional, tais como as influências contextuais sobre a organização e a divisão técnica do trabalho, condicionantes históricos e modelos assistenciais, entre outros aspectos.

2. As produções científicas sobre identidades na Enfermagem

Para dar conta da finalidade desta reflexão, foi realizado em primeiro lugar um levantamento em bancos de dados bibliográficos eletrônicos internacionais, um deles sediado no Brasil (Bireme) e dois deles sediados no exterior (Medline e Embase). O período considerado foi o da cobertura temporal desses bancos de dados.

A finalidade desse levantamento foi a de resgatar indicações de produções científicas de autores brasileiros ou estrangeiros, cujos estudos foram desenvolvidos no Brasil. O critério para a seleção realizada foi que essas produções apresentassem o termo identidade, em seus resumos ou palavras-chave. Os conteúdos das produções científicas de outros autores estrangeiros foram consideradas no sentido de análises comparativas preliminares, tendo em vista a abrangência nacional estabelecida para a análise desenvolvida nesta reflexão.

Os resumos e a origem dessas produções apresentaram algumas indicações interessantes, por mostrarem algumas tendências. Foram identificados 16 produções científicas de autores estrangeiros, sendo que sete delas eram das Américas (01 mexicana, 01 colombiana e 05 norte americanas); cinco produções eram da Europa (03 francesas e 02 suecas); três produções eram da Oceania (02 australianas e 01 neozelandesa) e uma delas era da Ásia (japonesa).

Dessas 16 produções, 12 referiam-se predominantemente à identidade profissional da enfermeira, sendo que uma delas foi desenvolvida com estudantes de graduação em enfermagem e 11 produções foram desenvolvidas com enfermeiras e/ou documentos. E quatro produções eram majoritariamente relacionadas à identidade da Enfermagem e foram desenvolvidas com enfermeiras.

Depois, a partir do critério adotado para a seleção das produções científicas desenvolvidas no Brasil, o resgate possível da bibliografia foi realizado: das 23 produções identificadas, 22 foram resgatadas e 21 eram de autores brasileiros e uma de autor peruano. Dessas produções, 14 tratavam majoritariamente da identidade da Enfermagem e 08 contemplavam a identidade profissional da enfermeira. Nessa etapa do levantamento, uma produção foi afastada da análise desenvolvida, uma vez que ela tratava da identidade da Enfermagem de forma tangencial. As outras 21 produções restantes transformaram-se em corpus de dados para esta reflexão e foram desenvolvidas tendo como fontes de dados: 13 com documentos, cinco com estudantes de enfermagem e três com enfermeiras.

A comparação entre o grupo de produções de autores nacionais e estrangeiros evidencia destaques diferentes, no que concerne aos focos desses estudos. Enquanto a maioria das produções de autores estrangeiros enfatizavam a identidade profissional da enfermeira, em estudos desenvolvidos predominantemente com essa profissional, as produções de autores nacionais referiam-se predominantemente à identidade da Enfermagem, em estudos desenvolvidos majoritariamente com documentos.

Em uma análise sobre as diferentes fontes de informação desses estudos (enfermeiras, estudantes de graduação em enfermagem ou documentos) e os objetos de estudo adotados (identidade da profissão ou identidade profissional da enfermeira) aponta para diferentes orientações de interesses entre os estudos de autores brasileiros e estrangeiros. As influências dos diferentes contextos e culturas onde eles foram desenvolvidos tornaram-se bastante visíveis.

Certamente, uma análise mais acurada dos textos originais dessas produções poderia estabelecer quais foram as influências sociais, culturais, econômicas, políticas e outras determinantes para as marcas e as escolhas das direções desses estudos e responsáveis pelas diferenças identificadas. Mas esse achado remete para estudos posteriores, dada a finalidade da presente reflexão.

3. A identidade da Enfermagem e a identidade profissional da enfermeira

3.1. A identidade da Enfermagem

A partir do marco fundador da Enfermagem moderna estabelecido pelas iniciativas, experiências e estudos desenvolvidos por Florence Nightingale, na Inglaterra vitoriana, na segunda metade do século XIX, a Enfermagem brasileira desenvolveu-se segundo esse modelo profissional, modificado pela sua origem norte-americana, no início do século XX. Todas as produções científicas brasileiras que tratam da identidade da Enfermagem de um ponto de vista evolutivo recorreram a este marco fundador enfatizando a permanência de suas características e princípios, tais como rompimento com uma identidade preexistente para a enfermeira, a ruptura com o pré-saber da profissão, a influência marcante da tradição religiosa judaico-cristã e o modelo específico de ensino, entre outros.

Outro ponto de destaque encontrado nessas produções incidiu sobre o entorno da Enfermagem em diferentes épocas considerando as condições internacionais, políticas, econômicas, culturais e sociais como fundamentais sobre a área da saúde, que acabaram por contribuir para sua evolução de uma determinada maneira, e não de outra. Com maior ou menor ênfase, essas produções também ressaltaram o surgimento de uma nova profissão para mulheres ou a compreensão da profissão como marcada pela questão de gênero feminino.

Algumas das produções científicas mostraram os processos de luta desenvolvidos para organizar a profissão, através da criação de suas entidades representativas, e para assegurar os direitos profissionais e de cidadania para seus trabalhadores. Outras destacaram questões relativas: à interdição da sexualidade na Enfermagem; às relações de poder entre seus profissionais e sua clientela; às relações de poder entre os profissionais de enfermagem e outros profissionais da área de saúde; ao entendimento da profissão como uma prática social; à organização do processo de trabalho; às transformações da prática profissional e ao padrão para a formação profissional.

Assim, a identidade da Enfermagem configura-se de forma muito mais abrangente e ampla, até mesmo contextual, do que a identidade profissional da enfermeira. Sua constituição como campo apresenta óticas diversificadas na dependência das temáticas e dos objetos de estudo selecionados.

3.2. A identidade profissional da enfermeira forjada durante a formação

As produções científicas que exploraram a identidade profissional da enfermeira partiram do pressuposto de que as posições de estudantes de enfermagem sobre ela se fundavam nas visões parciais que tinham sobre a questão, já que eles estavam no início, meio ou final do curso de graduação.

Apesar disso, os resultados da análise sobre essas produções apresentaram dimensões comuns e interdependentes derivadas do momento do curso em que as(os) estudantes estavam. Assim, encontrou-se a evidência de que essa identidade, ou pelo menos partes dela, existiam antes do ingresso no curso, perpassaram todo seu desenvolvimento e mantiveram-se presentes depois. Assim, algumas dimensões que agrupam os constituintes da identidade profissional da enfermeira puderam ser encontrados na posição de estudantes de enfermagem. Essas dimensões foram denominadas por analogia às dimensões criadas por ESPÍRITO SANTO13 e apresentam as seguintes características:

(a) dimensão profissional caracterizada, por exemplo, pela diversidade de cenários de exercício profissional (âmbitos das instituições hospitalares e comunidades), pelo trabalho assalariado em contraposição ao exercício liberal da profissão, pelas condições precárias de trabalho decorrente da situação adversa do sistema de saúde e os salários insatisfatórios encontrados na prática do exercício profissional, pela busca de modelos profissionais em enfermeiras docentes e assistenciais e rejeição daqueles modelos avaliados como inadequados e preocupações com a futura inserção no mercado de trabalho;

(b) dimensão do conhecimento caracterizada por exemplo, pelo reconhecimento da necessidade de estudos continuados sistematizados mesmo após a graduação, incluindo os cursos de pós-graduação "stricto sensu" (especialização) e/ou "lato sensu" (mestrado e doutorado);

(c) dimensão do afeto caracterizada por exemplo, pela permanência de uma tradição judaico-cristã indicativa de vocação, virtude, bondade e amor para com o próximo que é cuidado, ao lado de um talento relacionado ao interesse, à solidariedade, sensibilidade, criatividade inerentes ao desenvolvimento de uma arte de enfermagem situada no âmbito da estética;

(d) dimensão da prática caracterizada por exemplo, pela divisão social e técnica do trabalho de enfermagem (trabalho em equipe) e centralidade do cuidado de enfermagem entendido como foco do trabalho da enfermeira (um "cuidado de cabeceira") e pela busca de uma competência técnica.

Para as(os) estudantes, na identidade profissional da enfermeira coexistem o novo e o antigo, a imaturidade e a maturidade mostrando que o processo de socialização implicado na formação profissional incorpora as tradições ao lado de conteúdos mais inovadores-modernos ou pós-modernos. Essa identidade profissional da enfermeira na visão das(os) estudantes apresenta um certo idealismo e uma utopia característicos de uma perspectiva de um porvir profissional, embora ligados a uma realidade concreta vivida pelas(os) estudantes nas experiências desenvolvidas no seu cotidiano de aprendizagem.

3.3. A identidade da enfermeira forjada no mercado de trabalho

As produções científicas que exploraram a identidade profissional da enfermeira a partir das(os) próprias(os) enfermeiras(os) mostraram que suas posições, visões, representações e expectativas estavam fundadas em uma experiência profissional mais recente ou mais antiga. Ainda que sejam mais amadurecidas e baseadas em uma consciência pautada na prática profissional, essas posições, visões, representações e expectativas também puderam ser agrupadas nas mesmas dimensões identificadas junto as(aos) estudantes. Assim, as dimensões agrupam os constituintes da identidade profissional da enfermeira encontrados na posição de enfermeiras inseridas no mercado de trabalho e foram denominadas por analogia às dimensões criadas por ESPÍRITO SANTO13, caracterizadas a seguir:

(a) dimensão profissional caracterizada, por exemplo, por uma postura crítica sobre as condições precárias de trabalho decorrente da situação adversa do sistema de saúde e os salários insatisfatórios encontrados na prática do exercício profissional causadores de dupla ou até tripla jornada de trabalho, a busca de desenvolvimento na carreira inerente aos cargos ocupados pelas enfermeiras no mercado de trabalho;

(b) dimensão do conhecimento caracterizada, por exemplo, pelo investimento em estudos continuados de pós-graduação "lato sensu" (especialização) ou "stricto sensu" (mestrado e doutorado);

(c) dimensão do afeto caracterizada, por exemplo, pela permanência menos acentuada de características de vocação, virtude, bondade e amor para com o próximo que é cuidado, ao lado de um talento mais enfatizado e relacionado ao interesse, à solidariedade, sensibilidade, criatividade inerentes ao desenvolvimento de uma arte de enfermagem situada no âmbito da estética, uma transcendência da ênfase nas necessidades biológicas da clientela, durante as atividades assistenciais, que é consistente com uma valorização dos aspectos sociais, culturais, psíquicos e espirituais da clientela, e a busca de competência para atendê-la nessas necessidades;

(d) dimensão da prática caracterizada, por exemplo, pelo entendimento mais amplo do cuidado de enfermagem como foco do trabalho da enfermeira (cuidado direto - de "cabeceira" e cuidado indireto - gerência do cuidado), pela visão mais acurada, abrangente e equilibrada das atividades cotidianas desenvolvidas nos cenários de prática profissional, pelo reconhecimento de seu papel de líder da equipe de enfermagem e pela valorização da educação em saúde como uma esfera própria e privativa de sua atuação.

Entre as diferenças encontradas nas dimensões resgatadas das produções desenvolvidas com enfermeiras pode-se destacar que na sua identidade profissional surge um processo de amadurecimento responsável pelo alargamento de sua perspectiva sobre a profissão, inexistente na identidade da enfermeira encontrada nas produções desenvolvidas com estudantes, embora as dimensões adotadas na análise das produções desenvolvidas com estudantes e enfermeiras tenham sido as mesmas. Essa perspectiva implica considerar tanto na aquisição de uma bagagem maior de experiências acumuladas pela enfermeira, como a possibilidade de que ela esteja incorporando a habilidade de desenvolver a reflexividade (mais "inconsciente")que, diferente da reflexão (mais "consciente"), é um processo iniciado durante sua inserção no grupo profissional, mantendo-se ao longo de sua permanência no exercício da Enfermagem.

Entretanto, também pode-se destacar algumas semelhanças existentes entre as dimensões adotadas na análise das produções desenvolvidas com estudantes e enfermeiras, quais sejam: o mercado de trabalho futuro ou presente, a coincidência de características encontradas na dimensão do afeto, a maior ou menor marca do modelo vocacional (influências judaico-cristãs) e o entendimento sobre o cuidado de enfermagem como um foco fundamental de suas atividades. Embora existam outras diferenças, as aqui destacadas merecem maior ênfase por conta das marcas fundamentais que possam vir a imprimir à evolução tanto da identidade profissional da enfermeira como na identidade da Enfermagem.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

4. Por um redirecionamento das produções científicas

A identidade profissional da enfermeira constitui-se a partir do processo pelo qual as enfermeiras estabelecem e integram significados tomando como base suas experiências pessoais, familiares, sócioculturais e profissionais, que perpassam toda a trajetória de suas vidas. Esses significados existem dentro de um processo de construção, desconstrução e reconstrução, considerado como produto de socializações contínuas.

Alguns aspectos encontrados na identidade da Enfermagem também apareceram na constituição da identidade profissional da enfermeira, ambas entendidas com um sentido de identidades coletivas, embora sem as mesmas características. Isto se deve à imbricação necessariamente existente entre o contexto (Enfermagem) e o sujeito deste contexto (enfermeira). Ficaram evidentes também, as influências das condições mais amplas e presentes na sociedade (sociais, culturais, políticas, econômicas) sobre a constituição de ambas as identidades.

Entretanto, devemos sempre pensar que a utopia é o germe de transformações necessárias ao entendimento cada vez mais profundo sobre as questões profissionais da Enfermagem. Nesse sentido, olhar para as identidades apenas do "interior" da Enfermagem parece não bastar mais, apesar desse olhar apresentar encaminhamentos coerentes e consistentes com o entendimento da profissão como uma ciência-em-vias-de-se-fazer (CARVALHO14).

Assim, é interessante considerar um olhar "externo" à Enfermagem, que ultrapasse as fronteiras até agora consideradas nas análises empreendidas sobre as identidades da Enfermagem e da enfermeira. Esse olhar pode levar a profissão a avançar para além das explicações estabelecidas, talvez cristalizadas ou congeladas e centradas em antagonismos e antinomias como, por exemplo, a hegemonia médica e a opressão da Enfermagem e da enfermeira, o feminino e o masculino, o distanciamento da enfermeira do cuidado direto (de "cabeceira") de sua clientela e a delegação desse cuidado aos outros profissionais da equipe de enfermagem (FONSECA E PENNA15).

Como profissão, a Enfermagem é uma construção social e como tal apresenta um polo do ser (sangue e herança), que deve ser contraposto ao pólo do fazer - o poder do trabalho, da construção profissional de si (da enfermeira) através da carreira, enquanto pessoa(s) e grupo(s), e de uma cultura técnica associada a uma busca de um conhecimento cada vez mais profundo e explícito das especificidades profissionais. Quem sabe, daqui a algum tempo, outros estudos sobre a identidade profissional da enfermeira possam mostrar outras evidências mais concordantes com a ambição de uma Enfermagem - Ciência.

 

REFERÊNCIAS

1. Santos MS. Sobre a autonomia das novas identidades coletivas: alguns problemas teóricos. Rev. Bras. Ciências Sociais, São Paulo, 13(38):1-16, out.1998.

2. Halbwachs M. Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Press Universitaires de France, 1925.

3. Halbwachs M. La mémoire collective chez les musiciens. Revue Philosophique, 127:136-165,1939.

4. Halbwachs M. La topographie légendaire de évangiles em Terres Saintes: étude de mémoire collective. Paris: Presses Universitaires de France, 1941.

5. Halbwachs M. La mémoire collective. Paris: Presses Universitaires de France, 1950.

6. Lévi - Strauss C (Ed.). L'Identité. Paris: PUF, 1977.

7. Goffman E. The representation of self in everyday life. New York: Doubleday Anchor Books, 1959.

8. Hall S. A identidade cultural na pós-modernidade. 4.ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

9. Miranda A. A sociedade da informação: globalização, identidade cultural e conteúdos. Ciência da Informação, Brasília, 29(2):78-88, maio / ago. 2000.

10. Agier, M. Distúrbios identitários em tempos de globalização. Mana, 7(2):7-33,2001.

11. Castells M.O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

12. Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. Lisboa - Portugal: Porto Editora, 1997.

13. Espírito Santo FH. Saberes e fazeres de enfermeira(os) novatas(os) e veteranas(os) sobre o cuidado de enfermagem no cenário hospitalar. Tese (doutorado). Orientador: Isaura Setenta Porto. Rio de Janeiro: EEAN / UFRJ, 2003.

14. Carvalho V. Sobre os constructos epistemológicos nas ciências: uma contribuição para a Enfermagem. In: Anais do 11.º Seminário Nacional de Pesquisa em Enfermagem. Belém - Pará: ABEn, 2001 (disponível em CD).

15. Fonseca VS, Penna LHG. A perspectiva do arquétipo feminino na Enfermagem. Rev. Bras. Enferm. Brasília, 53(2):223-32, abr./ jun.2000.

 

NOTA

Este artigo foi apresentado originalmente em 14 de agosto de 2003, na modalidade de aula inaugural do 2.º período letivo da Escola de Enfermagem Anna Nery / UFRJ, como parte do calendário comemorativo de seus 80 anos de existência.

 

 

Recebido em 18/112003
Reapresentado em 10/02/2004
Aprovado em 18/02/2004

 

 


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