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CAPES

Volume 8, Número 1, Jan/Abr - 2004

ARTIGOS DE PESQUISAS

 

A influência dos meios sociocultural e científico no uso de plantas medicinais por estudantes universitários da área da saúde

 

Sociocultural and scientific contexts influencies in the use of medicinal plants by universitary students of health field

 

La influencia de los contextos sociocultural y cientifico en el uso de plantas medicinales por estudiantes universitários del area de la salud

 

 

Amanda Ayres ViveirosI; Patrícia de Faria GoulartI; Neide Aparecida Titonelli AlvimII

IAlunas do Curso de Graduação da Escola de Enfermagem Anna Nery/Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsistas IC Balcão - CNPq. Membros do Núcleo de Pesquisa de Fundamentos do Cuidado de Enfermagem (Nuclearte), do Departamento de Enfermagem Fundamental da Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ
IIProfessora Adjunta e Doutora em Enfermagem do Departamento de Enfermagem Fundamental e Membro da Diretoria Colegiada do Nuclearte da Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ

 

 


RESUMO

A pesquisa teve por objetivos identificar o uso de plantas medicinais por estudantes universitários de diferentes áreas da saúde; e analisar as influências dos saberes e práticas socioculturais e da academia no emprego terapêutico dessas plantas. Pesquisa do tipo quanti-qualitativo, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Participaram estudantes de enfermagem, medicina, odontologia, farmácia, nutrição e biologia. Nos resultados, 82% dos estudantes relataram conhecer as propriedades medicinais de algumas plantas, sendo que 59% deles as utilizam cotidianamente. A referência para o uso é predominantemente advinda do meio sociocultural, apesar de os resultados da pesquisa terem apontado que a academia já vem ocupando-se de estudos sobre as plantas aplicadas à saúde humana. Foi possível discutir com esses estudantes os cuidados que são fundamentais no emprego das plantas, considerando tanto o seu autocuidado quanto a importância de se valorizar o saber do outro no cuidado à saúde.

Palavras-chave: Educação à saúde. Planta medicinal. Estudante universitário.


ABSTRACT

The research has as proposal to identify the use of medicinal plants by universitary students of diferent health career and to analyse the influences of the socioculturals and academic wisdom and practices in the terapeutic use of this plants. Quanti-qualitative research, aproved by Comitê de Ética em Pesquisa of NESC/UFRJ. Freire's dialogic education principles were used. Nursing, medicine, odontology, chemist, nutrition and biology students took part in. 82% related to know the medicinal properties of some plants; 59% of them use the plants daily. The reference to use is come to socio-cultural ambit, predominately, in spite of the research results have appointed to the studies done in academy about plants in the human health. Discussing with this students the fundamental care in the plants use was possible, considering as the autocare as the importance of to valorize the other's wisdom in health care.

Keywords: Health education. Medicinal plants. Universitary student.


RESUMEN

La investigación tuvo como objetivos identificar el uso de plantas medicinales por estudiantes universitários de las diferentes carreras de la salud; y analisar las influencias de los saberes y prácticas socioculturales y de la academia en el uso terapéutico de esas plantas. Pesquisa del tipo cuantitativa y cualitativa, aprobada por el Comitê de Ética en Pesquisa del Núcleo de Estudios en Salud Coletiva de la Universidad Federal de Rio de Janeiro - Brasil. Participaron estudiantes de enfermería, medicina, odontología, farmacia, nutrición y biologia. 82% de los investigados relataron conocer las propiedades medicinales de algunas plantas, de estos, 59% de ellos las utilizan cotidianamente. La referencia para el uso es principalmente del medio sociocultural a pesar de los resultados de la pesquisa apuntar que la academia ya hace estudios sobre las plantas medicinales aplicadas a la salud humana. Fué posible discutir con esos estudiantes los cuidados que son fundamentales en el empleo de las plantas, considerando tanto su autocuidado cuanto la importancia de valorizarse el saber del otro en el cuidado a la salud.

Palabras claves: Educacion en salud. Planta medicinal. Estudiante universitario.


 

 

1. INTRODUÇÃO

O objeto do presente estudo é o uso de plantas medicinais por estudantes universitários da área da saúde: influências do contexto sociocultural e científico1. Trata-se de um recorte da pesquisa que desenvolvemos como bolsistas de iniciação científica do CNPq, acerca da monitoração de plantas medicinais pela clientela usuária.

O nosso interesse pela temática emergiu das atividades práticas realizadas no âmbito de um programa de ensino denominado Programa Curricular Interdepartamental III II do Curso de Graduação, no qual tivemos a oportunidade de participar do projeto de extensão "Cuidando Naturalmente da Saúde". Esse projeto inclui, entre outros aspectos, aqueles relativos aos cuidados básicos necessários ao emprego adequado da alimentação alternativa e do reaproveitamento alimentar; e a utilização de plantas medicinais como recurso terapêutico, ressaltando seus princípios ativos, formas de preparo, diferentes circunstâncias de uso; e ainda, as possibilidades de toxicidade das plantas, se usadas de modo inadequado ou indiscriminadamente.

Pudemos observar a importância que a clientela adulta atribui às práticas naturais de saúde, momento em que aproveitávamos para obter informações acerca do emprego de plantas medicinais, pois, como é notório, trata-se de um recurso natural amplamente utilizado com base na sabedoria popular. A partir de então, sentimos a necessidade de aprofundar nossos conhecimentos sobre o assunto, o que aconteceu com o incentivo da bolsa de IC.

Face a essas considerações, esta pesquisa tem como objetivos: identificar o uso de plantas medicinais por estudantes universitários de diferentes áreas da saúde; e analisar as influências dos saberes e práticas sócio-culturais e da academia no emprego terapêutico dessas plantas.

Nossa opção por enfocar os estudantes universitários justifica-se pelo fato de, na atualidade, essa terapêutica estar sendo amplamente difundida, não somente nos meios populares, mas também na academia. Pensamos que, para que possamos refletir melhor sobre as possíveis intermediações dos saberes e práticas próprios desses dois universos e suas contribuições para a saúde humana, é mister trazer essa discussão para o âmbito acadêmico, para que estudantes e docentes estejam aptos a dialogar com a clientela por eles assistida sobre a aplicabilidade e a eficácia de determinadas práticas de saúde. Nesse ponto, torna-se visível a necessidade de se conhecer, pesquisar e valorizar os recursos que a população possui e acredita.

Assim, quando nos propusemos a privilegiar os estudantes universitários da área de saúde, foi justamente por reconhecer neles educadores em potencial e, principalmente, por entender o ato de pesquisar como um espaço que também congrega o educar e o cuidar. Desse modo, produzindo dados na/para a pesquisa, criamos um momento legítimo de diálogo com os nossos sujeitos, no caso, os estudantes. Nesse ambiente, tivemos a oportunidade de identificar o emprego que fazem de plantas medicinais e, junto com os estudantes, analisamos as influências que o meio sociocultural e o da academia têm sobre o uso que fazem das plantas, na medida em que esse grupo recebe influências desses dois espaços no seu cotidiano de vida.

 

2. METODOLOGIA

O tipo de estudo foi descritivo-exploratório, com abordagem quanti-qualitativa. Os sujeitos foram 56 estudantes de saúde de uma universidade pública do Rio de Janeiro, selecionados por conveniência, considerando as especificidades de seu curso de formação profissional, assim distribuídos: Enfermagem (17,86%), Medicina (10,7%), Odontologia (17,86%) Farmácia (17,86%), Nutrição (17,86%) e Biologia (17,86%).

Os alunos de biologia fizeram parte deste estudo pela sua relação estreita com a natureza, seu envolvimento no estudo de seres vivos, entre eles, os vegetais. Os de farmácia, pela manipulação de medicamentos, sintéticos e naturais, feitos a partir do princípio ativo de plantas. Os de enfermagem, medicina e odontologia foram selecionados devido ao seu envolvimento com a assistência à saúde da clientela.

A coleta de dados foi realizada por meio de um formulário de entrevista semi-estruturado contendo dados de: identificação pessoal, dados socioeconômicos, origem do conhecimento sobre plantas medicinais, forma de aquisição e preparo de plantas medicinais e finalidades e resultados alcançados com seu uso.

Todas as entrevistas foram realizadas ao ar livre, no campus universitário, sem marcação prévia dos encontros. A coleta de dados ocorreu durante o período de fevereiro a maio de 2003.

Informamos que, em respeito à Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, que dispõe sobre os princípios éticos em pesquisas com seres humanos, os sujeitos aceitaram participar do estudo formalmente, através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Seguindo a recomendação da referida Resolução, todos os participantes foram esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa e também sobre o fato de que somente as informações por eles fornecidas seriam divulgadas para fins de pesquisa e outros estudos, permanecendo sigilosa sua identificação. Informamos ainda que esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ.

 

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Caracterização dos sujeitos do estudo

Do total de participantes, 30,4% eram do sexo masculino e 69% do sexo feminino. Destes participantes, 51,8% residem em moradias verticais e 48,2% em residências do tipo horizontal. Todas possuem saneamento básico, o que consideramos de suma relevância, não somente para o cultivo de plantas, mas sobretudo para a manutenção básica da saúde.

A residência do tipo horizontal oferece maior facilidade para o cultivo de plantas. No entanto, as do tipo vertical não se caracterizam como obstáculo para o cultivo, pois há plantas de fácil cultivo, que se adaptam a vários ambientes, além de existirem formas alternativas de plantio, como os jardins domiciliares, ou cultivadas em vasos, latas, sacos resistentes e jardineiras. Ressaltamos ainda que é de grande valia o cultivo de plantas pelos próprios usuários, pois assim se garante a boa procedência e outros cuidados com as mesmas.

O número de moradores variou de 1 a 7 por residência. A religião também foi um aspecto bastante variado, com destaque para a católica (17%), a espírita (8,9%) e a protestante (3,6%). Esse aspecto religioso tem base histórica e, ainda hoje, guarda estreita relação com o emprego terapêutico de plantas derivado do senso comum, como podemos verificar no tópico a seguir.

A influência mágico-mística no uso de plantas medicinais

Historicamente, no Brasil, as raízes culturais, incluindo as crenças religiosas, sempre estiveram presentes no uso de plantas medicinais para fins terapêuticos. Desde o período colonial, os catequistas já reconheciam a superioridade da terapêutica indígena brasileira, levando, para a Europa, receitas à base de plantas para tratar doenças:

Os índios precedem de laboratórios, ademais, sempre tem à mão sucos verdes e frescos de ervas. Enjeitam os remédios compostos de vários ingredientes, preferem os mais simples, em qualquer caso de cura, visto que por estes medicamentos os corpos não ficam tão irritados (1).

Essa prática permaneceu por muito tempo apenas relacionada ao pensamento mágico-místico, num ritual que envolvia a cura do corpo, da mente e do espírito. Fenômenos naturais de saúde e doença eram interpretados como resultantes da intervenção divina; isto é, a ira ou o castigo dos deuses causavam doenças, enquanto que a prática da benevolência levava à cura.

Para tratar as enfermidades, fazia-se necessário um intermediário entre os homens e os deuses, ficando tal incumbência para pajés, xamãs, feiticeiros e sacerdotes. Eles eram responsáveis por "identificar as doenças e desenvolver rituais curadores, redentores e afugentadores de maus-espíritos" (2:21). Em suas intervenções de cura, empregavam poções mágicas, oferendas, sacrifícios e amuletos. E as doenças eram assim transferidas para o corpo de animais em cerimônias de exorcismo de maus espíritos.

A flora nativa brasileira era a fonte da farmácia indígena e seu fundamento terapêutico baseava-se na observação de animais que comiam determinadas ervas quando estavam doentes. Plantas, animais e algumas substâncias eram utilizados para tratar as enfermidades:

sangue como reconstituinte, saliva como cicatrizante, urina como irritante e vomitativa; a mandioca era vista como incompatível com o milho e nunca misturavam com os resíduos calcinados de cobra cascavel. Reduzidos a pó entre duas pedras, depois dissolvidos em água ou em diversos sucos, os remédios tomavam-se geralmente quentes, após decocção (3:106-7).

Com a colonização no Brasil, doenças antes desconhecidas, tais como a varíola, a tuberculose e o sarampo, foram transmitidas aos índios. A assistência à saúde passou a ser exercida não apenas pelos pajés, curandeiros e entendidos, mas também por físicos e cirurgiões-barbeiros, profissionais formados em universidades na metrópole que chegavam à colônia com as expedições.

O trabalho desses profissionais pouco se diferenciava daquele desenvolvido pelos práticos e demais executores de saúde nacionais. A respeitabilidade e o crédito popular dos práticos eram provenientes da eficácia de suas práticas: vinham da confiança que inspiravam no grupo social do qual faziam parte, do conhecimento mútuo da realidade do grupo e da constatação da eficiência das técnicas e medidas empreendidas por eles (2:45).

No início do século XIX, a medicina, como disciplina legitimada pelos cânones da ciência, teve um grande impulso no país, devido à necessidade de controle das epidemias. Ela se institucionalizou, em decorrência da absorção pelo ensino formal dos conhecimentos populares sobre as práticas de saúde e também pela organização de associações que estabeleciam regras para o exercício profissional, além da mudança do cenário de cuidar, que migrou da assistência domiciliar para o âmbito hospitalar e de saúde pública.

Com a institucionalização da medicina, o aparato derivado do saber médico hegemônico perseguiu e proibiu as práticas não oficiais, os charlatães, os sangradores, e tantas outras pessoas do povo, por considerá-los incapazes de exercer a arte de curar, impondo-se o reconhecimento social e a valorização do saber médico. A atuação dos executores da assistência à saúde passou a se constituir em uma ameaça aos médicos, no que se referia ao reconhecimento de sua prática como profissão. Ainda assim, até o fim do século XIX, predominou o saber de base metafísica, tanto no ensino quanto na prática médica, segundo o qual as doenças eram causadas pelo meio ambiente.

Com a consolidação do positivismo no início do século XX, houve uma ruptura com esse conhecimento metafísico e uma ênfase no desenvolvimento da pesquisa experimental (4). Todo o conhecimento anteriormente existente foi negado por não ter base científica. E o saber e a prática médica foram impostos à população como únicos, verdadeiros e superiores, sendo execrados os saberes e práticas não oficiais de saúde. Dessa forma, o positivismo foi uma influência que contribuiu amplamente para a marginalização das plantas medicinais, entre outras práticas de origem popular.

Mesmo assim, o aspecto mágico-místico até hoje mantém uma relação estreita com o uso de plantas medicinais pela sua inserção cultural, a exemplo do candomblé e da umbanda, que as utilizam como parte de seu ritual de cura, com o intuito de garantir a recuperação do corpo e do espírito. Os pais e mães-de-santo em centros espíritas representam os intermediários entre os pacientes e os orixás, reconhecidos como verdadeiros detentores de conhecimentos médicos. Entre outras práticas, eles prescrevem infusões, cataplasmas e curativos à base de ervas que agem num sistema de correspondência entre um orixá, uma parte do corpo e uma planta curativa(5).

No catolicismo - religião da maioria dos entrevistados - podemos destacar os curandeiros e rezadores como os responsáveis pela cura. Dotados de dons sobrenaturais e poderes que se manifestam em certas circunstâncias, eles são capazes de curar um número ilimitado de males, pois a cura é vista como uma questão de fé.

O saber científico das plantas segue outra lógica, do tipo racional, objetiva, que rege as práticas de saúde cunhadas com o modelo biomédico. Entretanto, quando se trabalha com o princípio da totalidade do ser humano, consideram-se os aspectos subjetivos que permeiam o processo de saúde e de doença incluindo a valorização das crenças, valores, emoções e outros aspectos que interferem e influenciam na saúde humana. No momento em que discutimos a influência dos meios sociocultural e científico no emprego de plantas medicinais, é importante considerarmos as diferentes razões e concepções que perpassam o uso das mesmas.

Conhecimento, uso e indicação das plantas medicinais pelos sujeitos do estudo

Dos 56 universitários participantes da pesquisa, 46 (82%) relataram conhecer as propriedades medicinais de algumas plantas; destes, 33 (59%) as utilizam no seu cotidiano. Os demais afirmaram fazer apenas o uso intermitente de plantas por desconhecê-las.

No diálogo com os entrevistados, ratificamos que o uso de plantas como recurso terapêutico está ligado especialmente à facilidade de acesso, ao baixo custo, às heranças culturais (familiares) e, também, às respostas satisfatórias dessa terapêutica para os interesses e necessidades de seus usuários. Então, 65% dos participantes destacaram que as indicações do uso das plantas são provenientes de familiares e amigos, 4,3% utilizam-nas por indicação médica ou por orientação advinda da academia e, ainda, 13% por auto-indicação.

Esse resultado revela o importante papel do meio sociocultural dos entrevistados na transmissão dos conhecimentos e práticas de cuidado à saúde. De fato, as redes sociais que se formam entre as famílias e as relações de vizinhança têm sido meios profícuos de troca e difusão das práticas populares de saúde.

Dos sujeitos que conhecem e não utilizam as plantas, alguns aspectos foram considerados explicativos, a exemplo da falta de credibilidade desse recurso como prática curativa, o sabor desagradável que algumas ervas apresentam ou ainda o "preconceito" que envolve essa prática, uma vez que não garantem "status" ou reconhecimento social para os profissionais de saúde.

Após o ingresso na universidade, o desinteresse pelas plantas medicinais pode advir do fato de que, ao penetrar na academia, o estudante depara-se com o mundo da cultura erudita científica, dicotomizada da cultura popular, o que não quer dizer que a cultura erudita/científica não faça parte de seu contexto de vida anterior ao seu ingresso na universidade. No entanto, naquele momento, o aluno passa a se comprometer com os ditames desse meio. Desse modo, por vezes, nesse espaço específico, ele pode negar, ignorar ou inibir os referenciais que reforçam sua cultura de origem (6,7).

Essa postura ideológica que perpassa a formação dos estudantes universitários fundamenta-se na influência do modelo biomédico, o modelo oficial de saúde no Brasil. Atendendo a interesses capitalistas, esse modelo apresenta-se sob uma visão restritiva do homem, na medida em que, nesta concepção, o ser humano é visto em partes fragmentadas, perdendo-se a noção de totalidade. Ele é concebido como máquina que necessita do reparo de suas peças, quando elas estão avariadas. Por assim se estruturar, a par dos benefícios inegáveis à saúde, o modelo tende a negligenciar os aspectos psicológicos, sociais e ambientais que influenciam os processos mórbidos que acometem o homem.

Historicamente, este modelo estruturou-se no Ocidente, no momento em que ocorreram fatos marcantes do ponto de vista da ciência e da economia nos séculos XVII e XVIII. Isso porque a Revolução Científica favoreceu o modo de produção capitalista após a Revolução Industrial, passando a ciência a ter grande responsabilidade por manter a força de trabalho ativa, para garantir a produção das fábricas. Nesse contexto, o homem concebido como máquina, cujas partes estivessem enguiçadas, necessitava de uma terapêutica capaz de restaurar o seu corpo físico para o seu retorno imediato ao mercado de trabalho. Isso levou a uma centralização das ações médicas, por conta da medicalização e do uso de equipamentos e de tecnologias cada vez mais sofisticados (6).

Diante dessas circunstâncias, o enfoque na assistência à saúde assumiu uma postura mecanicista, fragmentada, pautada nas partes do corpo físico doente. As práticas de saúde que fugiam aos interesses do capital foram sendo consideradas obsoletas e, portanto, renegadas. Essa situação se fundamentava, como vimos, na necessidade de restauração rápida da saúde do trabalhador que surgiu com o modo de produção capitalista, pois 'corpos' debilitados produzem menos e, conseqüentemente, geram um lucro menor.

Cabe destacar que, por atender aos interesses do capital e à prática médica, a indústria farmacêutica teve um notável crescimento nesse período. Os medicamentos alopáticos passaram a ser vistos como milagrosos por promoverem a 'restauração imediata'. Além disso, seu uso era favorecido pela praticidade mesma, uma vez que se encontravam prontos no mercado para o consumo. Dessa forma, a prática médica vinculou-se fortemente à indústria farmacêutica, na medida em que uma satisfazia os interesses da outra, tornando-se convenientes ao capitalismo. Assim, o poder de cura associou-se à medicalização e o conhecimento popular sobre as práticas naturais no cuidado à saúde humana foi sendo abandonado e marginalizado. A tecnologia sofisticada e os medicamentos alopáticos passaram a conferir status e reconhecimento social, tanto aos profissionais de saúde quanto aos usuários desses recursos (7).

 

 

Ressaltamos que não houve desencontros entre as plantas utilizadas por suas principais finalidades, destacadas pelos sujeitos da pesquisa, e a indicação científica das mesmas. No entanto, como já foi referido, não é aconselhável o uso indiscriminado de plantas para fins terapêuticos. Outro aspecto que merece atenção é a forma de preparo das plantas medicinais, que se, realizada de forma inadequada, pode acarretar, entre outros prejuízos, perda de princípio ativo da planta ou mesmo causar toxicidade ao organismo humano. (9)

 

 

Os dados revelaram que os participantes adquirem as plantas, tanto de maneira comercializada, quanto por outras formas de aquisição, como por exemplo, o cultivo no próprio domicílio, na vizinhança ou, ainda, em terrenos baldios. Destacamos que o diálogo com os sujeitos no decorrer das entrevistas oportunizou a reflexão sobre a atenção necessária à procedência das plantas, ou seja, que as mesmas não devam ser coletadas de locais poluídos, como beira de estradas e rios, próximo a fossas e esgotos ou em terras contaminadas por fezes de animais. Há também necessidade de identificação correta das plantas, para evitar possíveis efeitos tóxicos ou contrários aos desejados (8).

 

 

Foi possível constatarmos que, via de regra, os participantes da pesquisa utilizam as plantas cotidianamente. Alguns atribuem esse uso à ineficácia terapêutica de certos medicamentos alopáticos e também ao seu alto custo, o que sugere que o emprego de plantas pode ocorrer como alternativa ao medicamento alopático, entre outras razões, quando ele não produz o efeito desejado.

No nosso país, especialmente a partir da década de 80 e 90 do século XX, frente às várias mudanças engendradas pelo momento político, econômico e também da saúde, algumas práticas populares de saúde, entre elas as plantas medicinais, começaram a ser resgatadas no sentido de atuarem de maneira complementar às práticas de saúde alopáticas vigentes.

Entre as razões apontadas como motivadoras desse resgate, destacamos: a falência do modelo médico biologicista no tratamento de doenças; os efeitos iatrogênicos associados ao alto custo de determinadas drogas alopáticas; a eficácia de alguns recursos naturais já comprovada cientificamente, a exemplo do emprego de plantas medicinais; a consciência ecológica que eclodiu no país nos anos 90 do século passado, entre outras (9;7). Todos esses fatores, de algum modo, contribuíram para que a academia também começasse a privilegiar também esse conhecimento:

é necessário esclarecer que o fato de se valorizar no planejamento da educação e da assistência à saúde, recursos que a comunidade possui e nos quais acredita, não significa dizer que se vá incorporar à assistência, qualquer prática. Mas é fundamental discutir com a população sobre a eficácia de determinadas práticas, assim como os efeitos neutros e nocivos de outras(7).

Ao resgatar o saber popular sobre práticas naturais constituído socioculturalmente a exemplo das plantas medicinais e incorporá-lo ao conhecimento acadêmico-científico, haverá/houve uma intermediação de saberes que possibilitou a apreensão, utilização e reelaboração do saber popular. Esse saber integrado deve retornar à população, para que ela possa fazer melhor uso do mesmo evitando, assim, a degeneração desse conhecimento.

O estudo realizado sobre o conhecimento de alunos de enfermagem acerca do uso de plantas medicinais mostrou que ele é proveniente da experiência sociofamiliar. Após o ingresso do aluno na academia, novos saberes e práticas são incorporados, sendo suas ações muitas vezes dicotomizadas nesses dois universos - saber popular e acadêmico/erudito. No entanto, são frequentes os momentos de atuação desses acadêmicos, nos quais eles se deparam com o conhecimento popular utilizado na prevenção, tratamento e reabilitação da saúde. Até porque tal conhecimento os remete a seus próprios saberes, por vezes postos em estado de latência a partir de seu ingresso na academia. Assim, fica justificada a necessidade de se discutir o uso de plantas medicinais, associando o saber formal àquele advindo do senso comum(6).

Resultado terapêutico alcançado com o emprego de plantas medicinais pelos sujeitos

De acordo com a Tabela 2, quase que na totalidade das vezes que os estudantes universitários entrevistados utilizam as plantas medicinais, eles alcançam resultado totalmente ou parcialmente satisfatório, enquanto que em apenas um caso o resultado alcançado foi insatisfatório.

 

Com efeito, é oportuno considerar que, embora a maioria dos sujeitos afirme obter resultados totais ou parcialmente satisfatórios com o uso de plantas para os fins a que se propõem, isso não retira a importância de ter atenção aos devidos cuidados na aplicabilidade desse recurso, haja visto que boa parte deles relatou trazer esse conhecimento do universo comum de suas relações. Não queremos com isso renegar a origem desse saber. Mas há que se valorizar o incremento de estudos científicos sobre as plantas para que possamos validá-las também no meio acadêmico, ou seja, para que não fiquem apenas creditadas no senso popular, mas difundidas na academia como uma tecnologia possível no cuidado à saúde. A Tabela 3, apresentado a seguir, demonstra que a academia já vem apresentando interesse nesses estudos, o que foi ratificado na fala dos sujeitos, quando eles revelaram que parte da origem do conhecimento obtido sobre plantas medicinais foi fruto de sua inserção do meio científico.

 

Podemos constatar que o conhecimento que os acadêmicos relataram possuir sobre as plantas tem uma origem tanto popular quanto científica. Esse resultado aponta para uma abertura da academia relativa aos estudos e às pesquisas sobre essa terapêutica, o que, em nossa posição, possibilita a aproximação entre os conhecimentos resultantes das pesquisas científicas e aqueles acumulados nas experiências de vida comum das pessoas. Por muito tempo esse conhecimento comum foi desqualificado em prol da exaltação da ciência e seus exercentes(7). Desse modo, consideramos o fato de que, embora o saber científico e o popular tenham lógicas próprias, cada um deles oferece subsídios ao outro. Afinal, A ciência é uma especialização, um refinamento dos potenciais comuns a todos (10:12).

Para tanto, pensamos que a ação em saúde deve ser realizada numa ótica educativa e social que leve à libertação. Entendemos que o aluno, durante sua formação profissional, em contato com a clientela, não deve adotar uma postura alienada, mas uma conduta coerente e compromissada que possibilite a participação ativa e questionadora das pessoas na determinação de práticas terapêuticas que atendam a seus interesses de saúde e estejam adequadas à sua realidade, tal como ressaltado por Freire(11) , no campo de educação. Assim, o cliente passa a refletir criticamente, assumindo a condição de sujeito do cuidado que lhe é prestado.

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As estratégias de educação à saúde devem ser desenvolvidas com base no diálogo, ou seja, num intercâmbio entre o saber científico e o saber popular, no qual o profissional de saúde e o cliente têm muito a ensinar e a aprender. O que resulta dessa intermediação de práticas e saberes poderá reverter em benefícios à saúde das pessoas, na medida em que elas possam utilizar as plantas medicinais com propriedade, conscientes dos cuidados que são fundamentais, ao escolherem essa alternativa terapêutica. Desse modo, a opção por trabalharmos com estudantes universitários da área da saúde atendeu aos objetivos da pesquisa no sentido de analisar as influências da academia e do senso comum no uso que fazem de plantas medicinais.

Os resultados do estudo apontaram que a maioria dos estudantes universitários entrevistados possui conhecimento sobre as plantas medicinais e que ele tanto é oriundo do saber herdado do meio sociocultural como também do universo acadêmico. De algum modo, a ciência vem ocupando-se de estudos que resgatam essa tecnologia de cuidado. Ao utilizar esse recurso terapêutico, os estudantes o fazem tanto com base na sua herança popular, sem estabelecer critérios que denotem preocupação com os ditames científicos, como baseados em conhecimentos científicos.

Como dissemos, o espaço da pesquisa também foi um espaço de educação à saúde e, por conseguinte, um espaço de cuidado. Assim, foi possível discutir com esses estudantes os cuidados que são fundamentais no emprego das plantas para fins terapêuticos, tanto ao pensar no seu autocuidado como ao reconhecer também que, em contato com a clientela, várias situações emergem necessitando de uma visão crítica acerca da importância de valorizar o saber do outro, no cuidado à saúde. Afinal, nenhum saber, do ponto de vista dialético, pode ser considerado superior ao outro. De igual modo, não existe uma verdade absoluta. Ela é fruto do movimento histórico, político, social e econômico. Assim, "O senso comum e a ciência são expressões da mesma necessidade básica, a necessidade de compreender o mundo, a fim de viver melhor e sobreviver" (10). Trazendo essa visão para o campo do cuidado, é importante ressaltar que a pretensão é a de alcançar um bem maior: a saúde humana.

 

REFERÊNCIAS

1- PISO in PEREIRA.Disponível em <www.geocities.com/plantas_medicinais/historic.htm > Acesso em 06 out. 2002

2- PIRES D. Hegemonia Médica na Saúde e a Enfermagem. São Paulo (SP): Cortez; 1989.(p. 21,45).

3- SANTOS FILHO L. História geral da medicina brasileira. São Paulo (SP): HUCITEC; 1977. v.1 (p. 106-7).

4- CAPRA F. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo (SP): Cultrix; 1990.

5- LOYOLA MA. Médicos e curandeiros: conflito social e saúde. São Paulo (SP): Difel; 1984.

6- ALVIM NAT. Práticas e saberes sobre o uso de plantas medicinais na vida das enfermeiras: uma construção em espiral. Rio de Janeiro (RJ): EEAN/UFRJ; 1999.

7- Alvim, NAT, Cabral IE. O lugar das plantas medicinais nos espaços privado - domiciliar e acadêmico - profissional das enfermeiras. Esc. Anna Nery Rev. Enfermagem 1999 dez;3(3):90-103.

8- Alvim, NAT, Cabral IE. A aplicabilidade das plantas medicinais por enfermeiras no espaço do cuidado institucional. Esc. Anna Nery Rev Enfermagem 2001 ago;5(2):201-10.

9- ALVIM NAT. A enfermagem e as práticas naturais de saúde: um estudo das representações docentes. Rio de Janeiro (RJ): Grafline; 1997.

10- ALVIM NAT, FERREIRA MA. Cuidado de enfermagem pela plantas medicinais. In: FIGUEIREDO, NMA, organizadora. Práticas de Enfermagem: ensinando a cuidar em saúde pública. São Caetano do Sul (SP): Difusão Paulista de Enfermagem; 2003.

11- LUZ M. A arte de curar versus a ciência das doenças. História oral da homeopatia no Brasil. São Paulo (SP): Dynamis; 1996.

12- ALVES R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras. 2ª ed. São Paulo (SP): Brasiliense; 1982. (p. 12).

13- FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 33ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Paz e Terra; 1997.

 

 

Recebido em 08/12/2003
Reapresentado em 10/03/2004
Aprovado em 17/03/2004

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