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CAPES

Volume 18, Número 1, Jan/Mar - 2014



DOI: 10.5935/1414-8145.20140020

Pesquisa

Espiritualidade e religiosidade nos cuidados paliativos: conhecer para governar

Aline Fantin Cervelin 1
Maria Henriqueta Luce Kruse 1


1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre - RS, Brasil

Recebido em 13/09/2012
Reapresentado em 24/05/2013
Aprovado em 06/07/2013

Autor correspondente:
Aline Fantin Cervelin
E-mail: alinefcervelin@gmail.com

RESUMO

O objetivo deste estudo foi conhecer os discursos sobre espiritualidade e religiosidade que circulam nos livros sobre Cuidados Paliativos, e saber como tais dispositivos operam produzindo verdades.
MÉTODOS: É uma análise textual e realiza uma aproximação com o campo dos Estudos Culturais. O corpus de análise é composto por seis livros e um manual. A coleta dos dados foi feita a partir da leitura interessada dos livros. Para realizarmos as análises, apoiamo-nos no referencial de Foucault, desta forma utilizamos seu entendimento acerca de discurso, poder e governo.
RESULTADOS: A pesquisa destaca os livros sobre Cuidados Paliativos como importantes artefatos da mídia, que proporcionam a circulação de discursos tidos como verdadeiros.
CONCLUSÃO: Os livros apontam vantagens de ser religioso e/ou espiritualizado. Observa-se o governo dos sujeitos por meio da religião e da espiritualidade, de forma a conduzir suas condutas e influenciar o seu modo de ser e agir.


Palavras-chave: Religião; Espiritualidade; Cuidados paliativos; Enfermagem.

INTRODUÇÃO

Espiritualidade e religiosidade são conceitos relacionados que, apesar de muitas vezes serem utilizados como sinônimos, não têmo mesmo significado. A espiritualidade engloba as necessidades humanas universais, ela pode ou não incluir crenças religiosas específicas e fornece uma filosofia ou perspectiva que norteia as escolhas da pessoa1. Já a religião pode ser entendida como um grupo ou sistema de crenças que envolve o sobrenatural, sagrado ou divino, e códigos morais, práticas, valores, instituições e rituais associados a tais crenças2.

A Organização Mundial da Saúde define Cuidado Paliativo como uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes e das famílias que enfrentam problemas associados a doenças ameaçadoras de vida, através da prevenção e do alívio do sofrimento, por meio de identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e de outros problemas físicos, psicossociais e espirituais3. No Cuidado Paliativo,o limite da vida é aceito e o objetivo é o cuidado, e não a cura. Ele visa o respeito à dignidade humana e deve ser iniciado desde o diagnóstico de doenças graves, progressivas e incuráveis, destinando-se a proporcionar conforto e bem-estar ao indivíduo.

A filosofia dos Cuidados Paliativos está bem estabelecida. Os processos de morrer, morte e luto e os princípios bioéticos aplicados aos cuidados paliativos já foram bastante estudados. Contudo, há lacunas quando o assunto se refere à espiritualidade e à religiosidade, tais como: seu papel nas situações de luto e morte, estratégias para aliviar o sofrimento espiritual e formas de estabelecer o diálogo referente a esses assuntos4. Deste modo, pensamos que é importante conhecer a produção de conhecimentos sobre o tema, na medida em que os profissionais da área de saúde poderão se apropriar deste assunto e aplicá-lo na sua prática assistencial.

Desde que o ser humano se reconhece por ser pensante, ele se preocupa em entender o significado da vida e da morte, o porquê da sua presença no mundo, procurando estratégias para lidar com as dificuldades. Tais estratégias são geralmente associadas ao tema da espiritualidade e religiosidade e vêm se fazendo presenteno cotidiano das pessoas, principalmente quando se encontram em situações de fragilidade devido à doença.

Em um estudo realizado com idosos, a prática religiosa foi referida por 94,27% dos participantes. Segundo esse estudo a espiritualidade e a religiosidade são importantes fontes de apoio emocional, influenciando a saúde física e mental5. De acordo com a literatura, durante doenças crônicas ou terminais, pacientes e familiares frequentemente se apoiam em crenças religiosas ou espirituais como forma de encarar as dificuldades, encontrar conforto, esperança e força6. Por isso, a espiritualidade e a religiosidade são aspectos importantes no cuidado de pessoas que têm doenças sem possibilidade de cura. Por outro lado, tais enunciados geram uma rede discursiva que produz efeitos de verdade.

Segundo Foucault, as verdades são entendidas como um conjunto de regras pelasquais se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder. Assim, esses discursos não podem ser vistos apenas como associação de coisas e palavras, já que surgem submetidos a um determinado conjunto de regras que definem seu regime de existência e suas correlações com outros enunciados,constituindo o objeto e compondo uma determinada formação discursiva7.

Não pretendemos aqui apontar os efeitos da espiritualidade e da religiosidade no desfecho dos tratamentos ou questionar se praticá-las é certo ou errado. Ao expormos como nos constituímos a partir da cultura na qual estamos inseridos, questionamos os saberes sobre espiritualidade e religiosidade e o modo como são organizados e como vamos sendo incluídos nos discursos que nos atravessam. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é conhecer os discursos sobre espiritualidade e religiosidade que circulam nos livros-textos sobre Cuidados Paliativos, esaber como tais dispositivos operam produzindo sentidos que produzem verdades.

METODOLOGIA

O estudo é uma análise textual que propõe uma aproximação com o campo dos Estudos Culturais, especificamente na vertente pós-estruturalista, que se desenvolve a partir da perspectiva pós-moderna. A análise textual pode ser entendida como um dos caminhos investigativos inventados para compor os objetos de estudo, percorrendo disciplinas e metodologias para dar conta das preocupações, motivações e interesses teóricos e políticos. De acordo com os Estudos Culturais, os discursos e textos têm caráter produtivo e constitutivo de experiências cotidianas, visões de mundo e identidades culturais8. A cultura compreende uma rede de práticas e representações como textos, imagens, conversas e códigos de comportamento que influenciam aspectos da vida social; sendo assim, os Estudos Culturais enfatizam as questões ou os problemas em circulação entre vários meios de comunicação9. A perspectiva pós-moderna propõe uma analítica externa aos conceitos da racionalidade moderna, desconfiando das verdades da modernidade.

O corpus de análise é constituído por seis livros e um manual de Cuidados Paliativos. Essas publicações foram escolhidas por serem frequentemente referenciadas nos artigos e cursos dos profissionais de saúde e terem ampla circulação em nosso meio. Relacionamos a seguir a lista das publicações:

 Campbell ML. Nurse to nurse: cuidados paliativos em enfermagem. Porto Alegre: AMGH; 2011.

 Manual de Cuidados Paliativos. Rio de Janeiro: Diagraphic; 2009.

 Santos FS. Cuidados Paliativos: discutindo a vida, a morte e o morrer. São Paulo: Atheneu; 2009.

 Ferrel BR, Coyle N. Textbook of Palliative Nursing. 2ª ed. New York: Oxford University Press; 2006.

 Pimenta CAM, Mota DDCF, Cruz DALM. Dor e cuidados paliativos: enfermagem, medicina e psicologia. Barueri, SP: Manole; 2006.

 Alvarenga RE. Cuidados paliativos domiciliares: percepções do paciente oncológico e de seu cuidador. Porto Alegre: Moriá; 2005.

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A coleta dos dados foi realizada a partir da leitura interessada dos livros textos para avaliar "aquilo que podemos aproveitar e aquilo que podemos descartar, deixar passar ou deixar de lado"10:17. Os excertos dos livros que constituíram o corpus de análise estão identificados em itálico no corpo do artigo, na seção de resultados e discussão. Considerando que este é um estudo de referencial pós-estruturalista, esta seleção é tida como uma hipótese de leitura das autoras. Assim, outras leituras podem ser feitas, dependendo daqueles que leem.

Optamos por fazer a leitura de livros textos entendendo-os como dispositivos que produzem identidades e veiculam discursos tidos como verdadeiros. Para tanto, nos apoiamos no referencial de Michel Foucault, que se destaca por pensar de outra forma processos que são muitas vezes naturalizados, possibilitando outros modos de pensar. Desta forma, utilizamos seu entendimento acerca de discurso, poder e governo. Foucault concebia seus livros como uma caixa de ferramentas, na qual os leitores poderiam ir à busca daquela que precisavam para pensar e agir. Para nos aproximarmos da intenção de Foucault, "é útil que estejamos dispostos a questionar a ordem social firmemente estabelecida, a abrir mão de todas as verdades petrificadas"11:07.

Em relação às questões éticas destacamos que aspublicações utilizadas para a análise textual são de caráter público, eesta pesquisa faz parte do projeto intitulado "Implementação do Núcleo de Cuidados Paliativos em um hospital de ensino público", aprovado pelo comitê de ética em pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre sob o número 09-320 em outubro de 2009.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao longo da leitura fomos percebendo os textos sobre Cuidados Paliativos como poderosos artefatos da mídia, que fazem circular discursos que se propagam pelos meiosprofissional e acadêmico. Dessa forma, os textos dirigem condutas, ensinam modos de ser e de agir, produzindo subjetividades e definindo papéis aos profissionais e pacientes.

Os livros apontam que crenças religiosas estão relacionadas com melhor saúde - tanto física como mental - e qualidade de vida, assinalando que pessoas religiosas têm menos depressão. Ressaltam que estar apoiado na fé em Deus e no suporte da comunidade religiosa leva o indivíduo a experimentar maior bem-estar, senso de pertencer, ter dignidade e paz, além da certeza de que será acompanhado até o fim de seus dias. Também destacam o fato de que saber que sua família continuará recebendo suporte espiritual ajuda o enfermo a ter paz e encontrarconforto e força para lidar com essa situação12,13,14.

Um dos livros relata que:

as crenças religiosas estão relacionadas com melhor saúde e qualidade de vida. Estudos científicos têm identificado uma relação contrária entre depressão e religiosidade. Esses estudos afirmam que ter uma religião e/ou pertencer a um grupo religioso melhora o suporte social, a saúde física, diminuindo gastos com a enfermidade12:239.

Os livros também relatam que muitos indivíduos têm na religião a ajuda para entender o sofrimento, a significação e a incerteza de sua vida. O bem-estar espiritual está associado a menores índices de depressão, desespero, ideação suicida, desejo de morte prematura e desesperança em pacientes terminais12,13.

Além disso, "parece que o envolvimento religioso positivo e espiritual está associado a uma vida mais longa e saudável e a um sistema imunológico mais eficaz"14:270. Estudos demonstram que o "estresse religioso negativo pode piorar o estado de saúde"14:270, e alguns estudiosos colocam a atenção aos aspectos espirituais em Cuidados Paliativos como "maior indicador de boa assistência ao paciente no final da vida"14:270.

Deste modo, podemos perceber o governo dos indivíduos através da religião e da espiritualidade. O governo é uma forma de conduzir condutas - dos outros e de si mesmo - e governar envolve oferecer motivos pelos quais os sujeitos governados deveriam fazer o que lhes é dito11. Isso é perceptível nos livros analisados, quando afirmam que quem tem religião/espiritualidade terá uma vida com melhor qualidade e menos problemas físicos e mentais.

No final do século XVIII, surge a ideia de que o Estado deve cuidar da saúde da população. Esta política do Estado moderno é chamada por Foucault de biopolítica. A saúde, a longevidade e o bem-estar físico da população em geral passam a ser um dos objetivos do poder político. Essa tecnologia de poder, a biopolítica, implanta mecanismos de previsões, de estimativas estatísticas e de medidas globais, intervindo nos fenômenos gerais, ou seja, surgem estimativas demográficas, cálculo de taxas e comparações. O resultado é a crescente intervenção do Estado na vida das pessoas, nos mais diversos aspectos15. A biopolítica não é centrada no corpo, mas na vida, é uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas próprios da população, que procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer numa massa viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo o caso compensar seus efeitos15:297.

Os textos se utilizam da linguagem matemática para ressaltar a relevância das informações, quando referem que:

95% dos americanos creem em alguma força superior e 93% gostariam que seus médicos abordassem essas questões se ficassem gravemente enfermos. [...] Entre os idosos, a quase totalidade acredita em Deuse 95% consideram a religião importante. Estudos com pacientes internados demonstram que 77% gostariam que seus valores espirituais fossem considerados pelos seus médicos e 48%, que seus médicos rezassem com eles. Contraditoriamente, a maior parte dos pacientes disse que seus médicos jamais abordaram o tema15:309.

A estatística é um conhecimento científico indispensável para um bom governo, pois através da quantificação pode-se esquadrinhar e ordenar a vida da população, situando aqueles que necessitam de intervenção. O excerto também faz uma comparação ao relatar que 77% dos pacientes gostariam que seus valores espirituais fossem considerados pelos seus médicos, mas que a maior parte dos pacientes afirma que seus médicos jamais abordaram o tema.

Deste modo, há a comparação de informações para identificar as prioridades e necessidades destes pacientes. A comparação é uma técnica atrelada ao saber estatístico como tecnologia para governar, já que para conduzir, regular e normalizar uma população, há a necessidade de se produzir registros sobre ela, que possibilitem acompanhar e avaliar intervenções. Através da quantificação de suas características pode-se extrair saberes de modo a se tornar uma população governável16.

A biopolítica foca na vida saudável e investe na população. Sendo assim, a religiosidade e a espiritualidade são úteis na medida em que influenciam o modo de ser e de agir, o que é destacado também por outro autor, quando afirma que a espiritualidade e a religiosidade estão associadas a melhor qualidade de vida, mais longevidade e menos doença física e mental, pois essas "associações podem ser explicadas pelo menor consumo de álcool, tabaco e carne vermelha, maior apoio social e prática de exercícios que são influenciados por diretrizes religioso-espirituais"14:375.

Desta forma, a religião e a espiritualidade são estratégias biopolíticas, que enquanto governam condutas servem como instrumento para melhorar a saúde da população, sendo assim, estratégicas, utilitárias e produtivas.

Os livros também se utilizam de bases científicas e pesquisas para convencer os leitores ao dizerem que:

"[...] milhares de artigos vêm sendo publicados em revistas médicas de todas as áreas da medicina, mostrando, na sua maioria, uma associação positiva entre práticas espirituais e saúde, seja ela física, seja mental"14:374.

Além disso, há explicações fisiológicas e científicas para esclarecer a relação da espiritualidade e da religiosidade com a melhor qualidade de vida. Certo livro afirma que a associação entre espiritualidade/religiosidade e saúde pode ser entendida por vários caminhos biocomportamentais e

a hipótese hoje mais aceita pela comunidade científica é que a espiritualidade atue, através dos neurotransmissores, em três sistemas: cardiovascular, endócrino e imunológico. Por intermédio dos sistemas nervosos simpático e parassimpático, a prática da espiritualidade agiria diminuindo a frequência cardíaca e a pressão sanguínea, favoreceria a diminuição da produção de cortisol, melhor vigilância e função das células de defesa14:375.

Nota-se aqui a abordagem das questões fisiológicas relacionadas à espiritualidade para reforçar a ideia de que quem possui espiritualidade/religiosidade tem uma vida com mais saúde e qualidade de vida. Além disso, pode-se perceber que os autores destes discursos são indivíduos tidos como importantes pessoas do meio científico, detentores de saber sobre o assunto.

Para Foucault17, o que o sujeito que está em um lugar de poder diz torna-se um saber confiável, destacando que existem sujeitos que têm a permissão de falar sobre determinados assuntos, os denominados "experts". Deste modo, percebe-se que o discurso religioso se associa ao discurso dos profissionais de saúde, formando uma rede da qual é difícil escapar. Os textos produzem verdades que nos subjetivam e governam, de modo a ser e agir de uma determinada maneira.

Os livros apontam a importância dada às crenças religiosas afirmando que elas influenciam as decisões dos pacientes sobre seu tratamento, bem como a

dieta, cooperação com o tratamento médico, quimioterapia ou radioterapia, aceitar transfusão de sangue, vacina das crianças, cuidados pré-natal, tomar antibióticos e medicamentos, mudança do estilo de vida, aceitar o encaminhamento a um psicólogo ou psiquiatra, bem como retornar à consulta médica14:378.

Percebe-se que os autores apontam razões para se abordar a espiritualidade/religiosidade, justificando a relevância destas no tratamento dos pacientes. Os discursos encontram no poder as suas condições de existência, tais falas são articuladas por pessoas tidas como conhecedoras do assunto e produzem efeitos de verdade sobre a abordagem da religião/espiritualidade com pacientes.

Os livros relatam que o profissional deve colher uma história espiritual do paciente antes de começar a apoiá-lo nas suas necessidades espirituais; relatam que as questões espirituais e religiosas dos pacientes devem ser abordadas no início do acompanhamento, para que medidas necessárias sejam tomadas a fim de resolver questões tanto do paciente como de sua família. Referem que os "profissionais da saúde deveriam colher uma história espiritual de todos os pacientes com doenças sérias, crônicas e quando da perda de pessoas amadas"14:378. Afirmam ainda que, durante a anamnese religiosa/espiritual, devem ser abordados "possíveis conflitos com o Criador, religiosos, familiares, pendências com relação a ritos, sacramentos, obrigações e promessas, perda do significado maior da existência"12:311.

Os livros enfatizam a história espiritual, como deve ser abordada e em quemomentos deve ser feita, tal como:

durante a coleta da anamnese de um paciente novo; de pacientes com doenças crônicas e graves, bem como quando houver morte e o luto estiver presente; quando o paciente for ao hospital por um problema novo ou exacerbação de uma condição antiga; na admissão em uma casa de repouso ou instituição de longa permanência; durante um check-up para manutenção da saúde; quando decisões médicas precisarem ser feitas e puderem afetar as crenças religiosas/espirituais do paciente14:381.

Deste modo, apresentam itens para os quais a equipe deve estar atenta. Por meio disso, pretende-se conhecer ao máximo possível o paciente para que se possa governá-lo.

Os livros referem vários métodos para a avaliação espiritual do paciente. Percebemos, assim, a importância que é dada a esses instrumentos, pois através deles poderemos saber como governar o paciente, uma vez que para poder governar é necessário conhecer a população com a qual se está lidando. Esse olhar científico lançado sobre os sujeitos tem a finalidade de esmiuçar e categorizar suas características e condutas para torná-los passíveis de ação governamental, sendo, dessa forma, constituídos como uma população governável18. Apresentamosa seguir três exemplos de instrumentos relatados nos livros que sugerem uma abordagem inicial para a avaliação.

O instrumento chamado FICA é apresentado como capaz de avaliar os domínios fé, importância, comunidade e abordagem. Para abordar tais assuntos são propostos os seguintes questionamentos:

Você se considera uma pessoa religiosa ou espiritualizada? Tem alguma fé? Se não, o que dá sentido a sua vida? A fé é importante em sua vida? Quanto? Você participa de alguma igreja ou comunidade espiritual? Como nós (equipe) podemos abordar e incluir essa questão no seu atendimento1:52, 12:310, 13:584, 14:273?

Outros livros relatam o instrumento SPIRIT que corresponde aos respectivos domínios: spiritual belief system (afiliação religiosa), personal spirituality (espiritualidade pessoal), integration within spiritual community (integração em comunidades espirituais ou religiosas), ritualized practices and restrictions (rituais e restrições), implications for medical care (implicações médicas) e terminal events planning (planejamento do fim). Dentro destes domínios são abordadas as seguintes questões:

Qual é sua religião? Descreva as crenças e práticas de sua religião ou sistema espiritual que você aceita ou não. Você pertence a alguma igreja, templo ou outra forma de comunidade espiritual? Qual é a importância que você dá a isso? Quais são as práticas específicas de sua religião ou comunidade espiritual (exemplo: meditação ou reza)? Quais os significados e restrições dessas práticas? Qual desses aspectos espiritual-religiosos você gostaria que eu estivesse atento? No planejamento do final da sua vida, como sua fé interfere nas suas decisões 1:52, 12:310, 13:584, 14:273?

Por fim, apresentamos o instrumento HOPE que corresponde aos seguintes domínios: source of hope (fonte de esperança), organized religion (organização religiosa), personal spirituality or spiritual practices (espiritualidade pessoal ou práticas espirituais) e effects on medical care and/or end-of-life issues (efeitos sobre a assistência médica e/ou questões do final da vida), sendo feitas as seguintes perguntas para avaliar estes domínios:

O que ou quem é que lhe dá esperança? Você faz parte de um grupo de fé? O que é que este grupo faz por você como pessoa? Que práticas espirituais pessoais, como oração ou meditação, ajudam você? Você tem crenças que podem afetaro modo como a equipe de cuidadores de saúde cuida de você 13:585?

Os instrumentos relatados nas publicações servem para guiar o cuidado ao paciente, de acordo com seus autores. Porém, todos têmpraticamente a mesma abordagem. No geral, eles orientam que osprofissionais perguntem aos pacientes se estes têm fé ou espiritualidade, quais são suas práticas religiosas/espirituais e como a fé/religião influenciam o modo de enfrentar o final da vida. Ou seja, parte-se do princípio de que são iguais e têm as mesmas necessidades.

Trata-se de um instrumento que pretende normalizar os pacientes e os profissionais e constituí-los de determinada forma. Tais instrumentos pretendem normalizar corpos e atitudes, produzindo modos de pensar e agir que não permitem pensar a vida/morte fora da fé, da religiosidade e da espiritualidade. Dessa forma, instituem um regime de verdades que produz certo tipo de profissional e de paciente.

Certo livro relata, também, que, caso o paciente não seja religioso, pode-se abordar o significado existencial através dos seguintes itens:

Como o paciente está lidando com a doença? O que dá significado ou propósito na atual situação de doença? O que ou quais crenças culturais são usadas e que podem influenciar o tratamento? Quais são os recursos sociais disponíveis para apoiá-lo em casa ou no hospital14:380 ?

Os livros mostram vários métodos para a abordagem religiosa/espiritual, utilizam desde instrumentos de fácil memorização e aplicação, abordagens gerais, avaliações simplificadas até a autoavaliação do paciente. E para quem não tem religião/espiritualidade, existem perguntas que devem ser feitas, pois o assunto deve ser abordado. Todos devem estar incluídos, mesmo que apresentem condições diferenciadas de jogo, ou seja, ninguém pode ficar fora das redes de poder18.

Trazer pacientes terminais a uma unidade de Cuidados Paliativos possibilitou conhecer indivíduos que antes eram afastados, segregados e, muitas vezes, excluídos do convívio social. Quando incluídos, esses indivíduos se tornam observáveis, explicáveis e governáveis. Tal inclusão, além de aproximar os sujeitos, desenvolve saberes sobre essa população para saber onde intervir, de modo a governá-los18.

Certo livro cita que "as enfermeiras estão na posição de linha de frente, no papel de coordenação, têm intimidade com as preocupações dos pacientes, e têm a perspectiva holística do cuidado"13:582. Sendo assim, as enfermeiras "são os profissionais ideais para realizar a avaliação espiritual"13:582. Outro livro afirma que não devemos fazer suposições a respeito de crenças e costumes, e que, se não temos conhecimento, devemos perguntar. Ele indica algumas sugestões para a comunicação, tais como:

Existe algum ritual ou costume de sua família que eu precise conhecer? Sua mãe está com um rosário. Ela é católica? Será que ela deseja receber a Unção dos Enfermos? Percebi que você está com uma Bíblia. Você quer que nosso capelão venha fazer uma oração1:137 ?

Deste modo, são ensinadas estratégias para escrutinar detalhes da vida pessoal dos pacientes que ajudariam a melhor cuidá-los.

Os livros lembram que os profissionais de saúde devem ser treinados para aceitar os diferentes valores religiosos e espirituais. Os valores do profissional não podem ser impostos aos pacientes, eles devem respeitar e incentivar a participação do paciente e seus familiares em sua própria espiritualidade12. Além disso, afirmam que nessas conversas o fundamental é saber ouvir e respeitar os valores do paciente e as possíveis diferenças religiosas ou espirituais que existam entre o profissional de saúde e o paciente14. Deste modo, também podemos perceber o governo sobre os profissionais de saúde, que devem se comportar de determinada forma.

Os textos ainda mencionam que o cuidado espiritual exige a avaliação e monitorização de diversos aspectos da vida do paciente e sua família, podendo incluir revisão da vida, significados, culpa, perdão, medos, e crenças na vida após a morte. Este cuidado

valoriza a singularidade de cada indivíduo. Reconhece e respeita as crenças, os valores, as práticas e os rituais de cada um, estando totalmente aberta a reformulação, revelação e experimentação. Aborda as questões do fim da vida de uma forma coerente com os valores culturais e religiosos e espirituais do doente terminal. Os pacientes e seus familiares são incentivados a exibir seus símbolos espirituais e religiosos e devem ser capazes de praticar seus próprios rituais espirituais e religiosos em uma atmosfera de aceitação. O uso de símbolos religiosos por funcionário e pelas instituições deve ser sensível a diversidade cultural e religiosa1:230.

Os livros analisados relatam, igualmente, a importância de se realizar uma avaliação espiritual adequada no paciente, pois

[...] identificar necessidades espirituais pode reforçar a habilidade do paciente em lidar melhor com a doença, melhorar a relação paciente-profissional, fortalecer a adesão e a crença no tratamento, aumentar o apoio e a monitoração na comunidade; portanto, melhorando o aumento da satisfação com o cuidado e acelerando a recuperação da doença14:382.

Além disso, "o sofrimento espiritual pode externar ou aumentar a intensidade dos sintomas físicos. Ocorre quando o indivíduo é confrontado com os desafios que ameaçam suas crenças, seus significados ou propósitos"1:230.

Os textos analisados revelam como ocorre o controle e governo dos indivíduos. Primeiramente devemos conhecê-los, ou seja, devemos esquadrinhá-los e extrair saberes para que, deste modo, possamos governá-los e cuidá-los do melhor modo possível. Nota-se um encadeamento dos discursos, que se apoiam e acabam produzindo as mesmas verdades, com as quais somos subjetivados, fazendo com que pensemos e nos comportemos de determinado modo e não de outro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os livros textos sobre Cuidados Paliativos colocam a religiosidade e a espiritualidade na ordem do discurso sobre o cuidado à pessoa no final da vida, construindo uma rede de saberes sobre o tema que constitui pacientes e profissionais. Neste estudo procuramos colocar sob suspeita tais discursos que nos atravessam, ou seja, as verdades que estão circulando sobre a espiritualidade e religiosidade de pessoas no final da vida. Procuramos mostrar que tais discursos, aceitos como naturais, resultam de uma trama que se propõe a educar pacientes e profissionais de enfermagem. Ao analisar as verdades dessa rede discursiva tentamos desnaturalizar esses discursos, lançando um olhar diferente sobre esse assunto, ao mesmo tempo antigo e atual.

Os livros divulgam que pacientes que se encontram em final de vida devem ser indagados sobre como estão se sentido neste momento, e as enfermeiras são estimuladas a descobrir modos de ajudá-los nesta fase. Os profissionais de saúde devem estar preparados para essa atividade e devem realizá-la, nem que seja somente para fornecer uma abordagem inicial para após encaminhá-lo a uma pessoa especializada. Deste modo, os livros afirmam que os profissionais devem colher a história espiritual do paciente no início do acompanhamento. E,para isso, mostram como deve ser essa abordagem, em que momentos ela deve ser feita, itens que a equipe deve estar atenta,e relatam instrumentos para realizar a avaliação espiritual.

Destacamos a associação do discurso religioso com o discurso dos profissionais de saúde, pois, de acordo com os textos, o paciente que tem religião/espiritualidade tem uma vida com menos problemas relacionados à saúde e, portanto, com melhor qualidade. Os textos produzem verdades através de inúmeros artifícios, tais como: estatísticas, resultados de pesquisas e repetições. Relatam uma série de instrumentos de avaliação espiritual que escrutinam a vida dos pacientes com a finalidade de governá-lo. Assim, observa-se o governo dos sujeitos através dos dispositivos da religião e espiritualidade, de forma a conduzir suas condutas e influenciar o seu modo de ser e agir.

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