Volume 18, Número 1, Jan/Mar - 2014
Pesquisa
Integralidade do cuidado em enfermagem para a mulher que
vivenciou o aborto inseguro
Simone Mendes Carvalho
1
Graciele Oroski Paes
2
1 Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil
2 Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro - RJ, Brasil
Recebido em 26/05/2013
Reapresentado em 24/10/2013
Aprovado em 28/11/2013
Autor correspondente:
Simone Mendes Carvalho
E-mail:
smendescarvalho@gmail.com
RESUMO
O objetivo deste estudo foi discutir o cuidado de enfermagem para a mulher que
realizou o aborto inseguro na perspectiva da integralidade do cuidado e da promoção
da saúde reprodutiva.
MÉTODOS:
Abordagem qualitativa mediada por entrevistas semiestruturadas realizadas com 16
mulheres jovens de 18 a 29 anos atendidas em serviço público de Saúde da Família.
RESULTADOS:
Das 44 gravidezes destas jovens, a metade evoluiu para o aborto. Os resultados
mostraram a dificuldade no acesso e utilização dos métodos contraceptivos e aos
serviços de planejamento reprodutivo.
CONCLUSÃO:
O enfermeiro, como o profissional que atua na educação em saúde, tem como uma de
suas responsabilidades a prevenção da prática do aborto, utilizando como
instrumento a promoção da saúde reprodutiva e a integralidade do cuidado,
incluindo nesse processo a inserção social e o acolhimento dessas mulheres.
Palavras-chave: Aborto; Saúde reprodutiva; Enfermagem; Saúde da mulher.
INTRODUÇÃO
A integralidade é um princípio doutrinário do Sistema Único de Saúde (SUS) e, como uma concepção emergente, seu conceito é complexo e multidimensional, sendo caracterizado como um dos maiores desafios para operacionalização do SUS. No que se refere às mulheres que vivenciaram o aborto, é fundamental uma abordagem visando a integralidade do cuidado e a promoção da saúde no sentido de evitar novas práticas de aborto inseguro.
Atualmente, as decisões reprodutivas acontecem em contextos difíceis, marcadas por condições materiais inadequadas devido ao crescente desemprego e a baixa escolaridade e, sobretudo, por relações de afeto instáveis e conflituosas em cenários de violência.
Estudos que abordam o tema aborto clandestino consideram o cálculo relativo à magnitude do aborto no Brasil um desafio para as pesquisas relacionadas a esse assunto devido a dificuldade de acesso a dados fidedignos e ao alto número de mulheres que omitem ter induzido um aborto em questionários com perguntas diretas. Em 2005, estimativas sugerem que ocorreram 1.054.243 abortos no Brasil1.
Dados do Sistema único de Saúde (SUS) revelam que ocorreram 223.350 internações pós-aborto no Brasil em 2006. O painel de indicadores do SUS sobre o tema da Saúde da Mulher, no que se refere ao seu adoecimento e morte, aponta que, em 2006, mais de 2 milhões de mulheres de 10-49 anos de idade foram internadas nos hospitais do SUS. Destas, 233 mil em decorrência de aborto e 120 mil por causas violentas. O abortamento, no mesmo ano, foi a terceira maior causa de internação entre esse segmento populacional, sendo que, no ano anterior, 1619 mulheres de 10 a 49 anos de idade morreram por problemas relacionados a gravidez, parto, puerpério e aborto2.
Um estudo sobre aborto e saúde pública - 20 anos no Brasil, ressalta um crescimento na quantidade de estudos sobre aborto e adolescência como consequência das pesquisas emergentes sobre reprodução e sexualidade nesse grupo. Há uma concentração da prática de aborto induzido entre adolescentes, no segmento de 17 a 19 anos. Do total de abortos induzidos na adolescência, os estudos registram uma concentração entre 72,5% e 78% nessa faixa etária3.
Esse quadro mostra, portanto, a necessidade de ações estratégicas que garantam condições desejadas e seguras para as práticas sexuais e reprodutivas de adolescentes e jovens. No que se refere aos adolescentes mais jovens, enfrentamos grandes desafios devido à necessidade em ampliar e oferecer acesso aos serviços de saúde com atendimento integral, antes mesmo do início de seu primeiro intercurso, com garantia de privacidade, confiabilidade e atendimento que dê apoio, sem emitir juízo de valor3.
O aborto clandestino não acontece como uma prática isolada, rara e desconhecida visto os números de abortos no país e as estimativas de mortalidade materna por essa causa. No entanto, é uma prática que é criminalizada no Brasil, e as pessoas que a praticam acabam sendo estigmatizadas. Estudo internacionais mostram que os abortos inseguros aumentam em regiões em que a prática do aborto é ilegal4.
Considerando que o aborto é um problema de saúde pública e uma das causas de mortalidade materna, a enfermagem, como integrante da equipe na Atenção Básica, tem importante papel no que se refere à orientação e acolhimento dessas mulheres, seja na ocasião da consulta de enfermagem ou nos grupos de planejamento reprodutivo. Para tanto, o estudo em tela objetiva discutir o cuidado de enfermagem à mulher que realizou o aborto inseguro na perspectiva da integralidade do cuidado e da promoção da saúde reprodutiva.
METODOLOGIA
Trata-se de uma pesquisa qualitativa que se fundamentou nas especificidades inerentes à pesquisa social, compatível com o tratamento do tema do abortamento clandestino em jovens como fenômeno social complexo. A entrada no campo da pesquisa social é penetrar em um mundo onde há questões não resolvidas e onde o debate tem sido perene e não conclusivo5.
Participaram da pesquisa três Unidades de Saúde da Família do município de Cabo Frio, R.J. O processo de coleta dos dados qualitativos utilizou como técnica principal a entrevista individual semiestruturada. Considerando as especificidades ético-profissionais e jurídicas do abortamento, as entrevistadas foram realizadas mediante a apresentação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em conformidade com a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Além disso, houve consulta prévia às participantes sobre a autorização de gravação em áudio da entrevista com a garantia do anonimato e confidencialidade das respostas.
Foram entrevistadas 16 mulheres com idades entre 18 e 29 anos, as quais tinham realizado aborto em algum momento de suas vidas. As mulheres foram abordadas naocasião da consulta de enfermagem já agendada na unidade de saúde. Tanto a abordagem para participar do estudo quanto asentrevistas foram realizadas no sentido de manter o sigilo e a proteção das entrevistadas, de forma que ficasse impedida, especialmente, a sua realização napresença de acompanhantes, parceiros e/ou outros familiares, usuários e/ou profissionais, devido à especificidade do tema.
Ressaltamos que a entrada no campo e o início da coleta de dados só foram realizados após a aprovação do projeto de pesquisa no Comitê de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/FIOCRUZ). O projeto foi aprovado pelo CEP/ENSP nº 88/08 e contou com financiamento do CNPq. O recorte destacado neste estudo caracteriza-se como a terceira fase da pesquisa intitulada "Mulheres jovens e o processo do aborto clandestino - uma abordagem sociológica" e refere-se às consequências vivenciadas pelas mulheres após aborto bem como a atenção e acesso aos serviços de saúde.
Para início da coleta, foi solicitada autorização à Coordenação do PSF do município de Cabo Frio onde foram expostos a relevância do objeto e os objetivos da pesquisa.
As entrevistas foram transcritas e o material discursivo foi categorizado utilizando-se da análise sócio-histórica, que é uma das formas de investigação baseada na hermenêutica de profundidade, a qual se apresenta como um referencial metodológico geral que tem como objeto de análise uma construção simbólica significativa, que exige uma interpretação6.
RESULTADOS
Foram relatados pelas mulheres entrevistadas 44 casos de gravidezes sendo que 22 delas resultaram em aborto. Algumas tiveram mais de um aborto na trajetória de sua vida reprodutiva e não necessariamente dentro do mesmo relacionamento sexo-afetivo.
A idade na ocasião da entrevista do grupo pesquisado era entre 18 e 29 anos,e a idade na ocasião dos abortos variou entre 14 e 29 anos, sendo maior na faixa etária entre 18 e 25 anos, considerando jovens adultas.
Analisamos as 44 gravidezes e os 22 casos de aborto induzidos, incluindo os condicionamentos e as relações sociais dos envolvidos, e considerando a participação masculina nesta decisão.
Do total de 44 gravidezes, 26 delas ocorreram antes dos 20 anos de idade, com 12 casos de aborto. Quinze gravidezes ocorreram antes do 18 anos com 6 casos de aborto.
No que se refere à situação relacional com o parceiro na ocasião da gravidez, apenas 19 mulheres moravam com o parceiro, tendo ocorrido 6 casos de aborto. Vinte e cinco mulheres não moravam com o parceiro, ocorrendo 16 casos de aborto. Podemos perceber que o número de abortos é maior nas situações em que as mulheres não moravam com os seus parceiros, traduzidas em relações instáveis como namoro, ou "ficar".
No que se refere à situação econômica, a maioria (34) das gravidezes ocorreram em situações consideradas pelas mulheres como difíceis e inadequadas para se ter um filho, ocorrendo 19 abortos.
Com relação à aceitação da gravidez, em 23 casos houve rejeição da gravidez por parte dos parceiros ou das famílias dessas mulheres, principalmente das mães. Dessas 23 gravidezes, 11 evoluíram para o aborto. Percebemos que o cenário em que as gravidezes acontecem são heterogêneos e que os abortos têm uma relação direta com aspectos das vivências dessas mulheres, seja com o parceiro ou com a família, assim como a questão do emprego, renda e situação conjugal.
Complicações pós-aborto
O aborto realizado em condições inseguras tem maior probabilidade de ter complicações, sendo essa a causa da maioria das mortes de mulheres que realizam o aborto de forma clandestina. Dos 22 casos de aborto, 12 tiveram algum tipo de complicação, sendo que nove ocorreram no primeiro aborto e três nos subsequentes. A mais citada foi a hemorragia (08) assim como cólica, desmaio, febre e dores:
Muita, porque a criança estava muito grande, com 5 meses, estava enorme toda formada, então tive sangramento, e, no meu caso, o que agravou ainda mais é que eu descobri no hospital que eu tinha anemia falciforme, que é uma anemia grave, então eu podia ter morrido (E1).
Em dois casos, as entrevistadas descobriram por meio do atendimento hospitalar, pós-aborto, que tinham anemia, sendo que uma delas era anemia falciforme causada por uma deformação das hemácias que ficam em forma de foice:
Eu quase morri mesmo, perdi muito sangue e fui na ambulância sangrando e a criança já morta. apesar de toda formadinha ela estava bem vermelha quase roxa; ele enrolou a criança e fomos para o hospital (...) Eles fizeram curetagem e colheram o exame de sangue; descobriram que eu já estava com anemia. Então, como eu perdi muito sangue, e eu fiquei muito fraca e muito tonta, eu estava com anemia, acho que o que causou o desmaio foi essa anemia; anemia muito forte acho que na gravidez já dá. Eu não estava fazendo pré-natal não estava fazendo nada até porque eu não sabia que estava grávida (E6).
Os casos de aborto realizado por "curiosas" apresentaramas complicações mais graves e perigosas quanto ao risco de morte:
Ah, eu passei muito mal, pensei que eu fosse morrer. Ela colocou um plástico lá na cama dela, eu fiquei lá a noite toda. Ela abriu com "bico de pato" e colocou uma borrachinha um negócio de sonda e amarrou, eu dormi com aquilo, só que no outro dia de manhã eu perdi muito sangue e não tava conseguindo levantar, aí eu fiquei gritando lá para alguém me ajudar ir ao banheiro (...) saiu uns pedaços de sangue, umas placas, junto com a borrachinha. Fiquei uma semana perdendo sangue (E10).
Sentimentos após a realização do aborto
Quando questionadas sobre como se sentiram na ocasião do aborto, em nove casos as mulheres declararam sentimentos de tristeza, arrependimento, desespero e de consciência "pesada" por ter tirado uma vida:
Com a consciência muito pesada, tirei uma vida, ainda mais eu por ser de uma família muito religiosa até hoje eu penso muito nisso (E14).
Em 13 casos, as mulheres tiveram sentimentos de alívio, tranquilidade e indiferença, pois conseguiram o seu objetivo que era o aborto:
Me senti normal. Tranquila. Tudo bem... (E11).
No segundo eu me senti aliviada porque deu tudo certo (E15).
Percebe-se que os depoimentos em que são relatados sentimentos de tristeza, arrependimento e desespero estão relacionados ao fato de "tirar a vida" de uma criança, fato esse que é julgado e criminalizado pela sociedade. Já os que relatam alívio, indiferença e tranquilidade remetem-se ao fato do objetivo ter sido alcançado e de estarem "livres" de uma gravidez não desejada.
Acesso e atenção recebida nos serviços de saúde
Um estudo brasileiro sobre a visão de 13 mulheres internadas em situação de pós-abortamento sobre o cuidado de enfermagem evidenciou a insatisfação, na ótica dessas mulheres, por ser estritamente clínico e voltado para o aspecto biológico, desconsiderando o contexto individual, com informações incompletas e preconceitos perante as evidências de aborto provocado7.
Quando questionadas se procuraram algum serviço de saúde após a prática do aborto, 10 delas responderam que sim, devido às complicações:
Procurei uma ginecologista, aí elapassou um remédio para cessar a hemorragia, fiquei uma semanadireto sangrando tive que ir ao hospital (E8).
A atenção recebida nesses serviços de saúde foi relatada como péssima ou ruim, ressaltando a discriminação e o mau atendimento pelos profissionais de saúde quando percebem que o aborto foi provocado, inferindo pré-julgamentos.
Ah, foi a pior possível porque foi um aborto provocado, não foi espontâneo entendeu? Então eles não te tratam bem. Te deixam sofrendo, a minha curetagem foi sem anestesia (E3).
Em apenas dois casos a atenção recebida foi classificada pelas entrevistadas como sendo boa e adequada, porém na opinião delas os profissionais "fingiram" que não souberam que era um aborto provocado ou apenas preferiram não comentar sobre o assunto:
A princípio eu não sei se eles sabiam que tinha sido um aborto provocado, pois em momento algum eles comentaram isso (...) eu não sei, só sei que eu fiquei com muito medo porque quem ia preso era meu namorado porque foi ele que me acompanhou, eles até perguntaram "(...) tomou alguma medicação (...)" aí eu falei que não, né, que eu estava sentindo muita cólica e que aconteceu que eu fui para o banheiro e aconteceu aquilo (E6).
Em 12 casos de aborto, as mulheres não procuraram o serviço de saúde por diversos motivos, entre eles: o medo e insegurança de como seriam recebidas pelos profissionais de saúde; receio de serem criminalizadas e por não apresentarem complicação.
Não, e o medo, o medo de denunciarem e eu ser presa... (E2).
Com relação à questão de orientação pós-aborto, perguntamos "Alguém te deu informações sobre como evitar gravidez ou sobre serviços para métodos?" Apenas cinco mulheres receberam algum tipo de informação: foram orientadas a procurar um serviço de planejamento familiar e a iniciar o anticoncepcional oral:
Sim, de planejamento familiar. Eu pegava remédio no posto todo mês. Hoje em dia eu sou ligada não preciso mais (E2).
Das cinco que foram orientadas a procurar o serviço de saúde para realizar o planejamento familiar, três entrevistadas relataram dificuldade para conseguir vaga e acompanhar o programa.
Sim, mas não é fácil, as reuniões são em horários que pra mim não dá para vir por causa do trabalho, mas sempre que dava eu ia" (E15).
A entrevistada a seguir ressalta que procurou o serviço e não houve indicação de nenhum anticoncepcional, apenas o preservativo. Isso reflete a falha nas orientações sobre os métodos, pois para ela o preservativo não é encarado como um contraceptivo:
Aí procurei e eles nem me indicaram anticoncepcional nenhum, só me indicaram o preservativo (E13).
Dados da pesquisa GRAVAD ressaltam as mudanças e permanências na utilização de contracepção após o nascimento do primeiro filho na adolescência, em que 37,6% dos homens e 45,6% das mulheres passaram a usar algum método e respectivamente 19,7% e 21,5% destes mantiveram-se em relações sexuais desprotegidas, o que chama atenção para o número mais expressivo de jovens que engravidaram novamente, correspondendo a uma razão de um em cada quatro jovens adolescentes8.
Abordar a visão dessas mulheres na atenção pós-aborto imediata traz questõesimportantes sobre a assistência à saúde referente ao aborto, e que podem refletir também na tomada de decisão dessa mulher de procurar o serviço de saúde para orientações e informações sobre o planejamento familiar.
DISCUSSÃO
O presente estudo revelou queapós o processo abortivo, as mulheres apresentaram reações negativas como remorso/consciência pesada, arrependimento e sensação de perda, refletindo na culpabilização. Além disso, são estigmatizadas e muitas têm medo de procurar os serviços de saúde com medo de serem criminalizadas.
A integralidade é um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) que contribui consideravelmente para a reforma do sistema de saúde brasileiro, considerando uma visão ampliada do cuidado e algumas especificidades no que se refere às práticas profissionais e à organização dos serviços9.
Esse princípio é referido na Constituição Brasileira como uma diretriz regida pelo atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais10. Nesse contexto, acredita-se que a Constituição Brasileira propõe uma prática profissional em saúde focada nas necessidades do sujeito, não se resumindo, apenas, no cumprimento de protocolos e rotinas que visam o oferecimento de ações ou procedimentos preventivos.
Considerando os programas voltados para a atenção à saúde da mulher, destaca-se como marco histórico o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) que foi formulado em 1983 e divulgado em 1984 pelo Ministério da Saúde (MS), considerado um dos mais completos e conceitualmente avançados do mundo no que se refere à saúde da mulher.
Em 1994, o Ministério da Saúde incluiu o conceito de saúde reprodutiva nesse programa, e sua inovação consistiu na proposição do atendimento à saúde reprodutiva em contexto de ação integral, bem como no reconhecimento dos direitos reprodutivos da mulher. Desse modo, o programa contemplou os aspectos da saúde reprodutiva feminina desde a adolescência até a menopausa, incluindo a assistência pré-natal, as doenças sexualmente transmissíveis e as ações integradas de planejamento familiar. O PAISM veio com a proposta de inserir o conceito de atenção integral à saúde da mulher, redimensionando o significado do seu corpo no contexto social, expressando uma mudança de posição das mulheres.
A Pesquisa Nacional sobre Aborto realizada em 2010 infere que essa é uma prática comum no Brasil e que, ao completar quarenta anos, mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto. Portanto, a prática do aborto é realizada nas idades que compõem o centro do período reprodutivo feminino, isto é, entre 18 e 29 anos. Outra particularidade é a ocorrência entre mulheres de menor escolaridade, fato que pode estar relacionado com outros determinantes sociais11.
As mulheres em situação de aborto querem ser compreendidas nesse contexto, já que julgamentos morais e situações de reprovação não resolvem o problema. É necessário, portanto, que os profissionais de saúde acolham essas mulheres de forma que se sintam protegidas e seguras para que superem esse difícil momento em suas vidas7.
O enfermeiro, ao acolher essa mulher nos serviços de saúde, deve atentar para as especificidades desse atendimento,procurando prestar o cuidado de forma integral, principalmente no que se refere ao apoio e orientação dessa mulher para o planejamento reprodutivo e prevenção de novos episódios de aborto.
A prática do acolhimento é uma das dimensões da integralidade expressa pela capacidade dos profissionais em atender ao sofrimento manifesto, que resulta na demanda espontânea. Portanto, a existência da prática dialógica no atendimento a essa demanda é o que confere às práticas de saúde um caráter de prática de conversação, na qual os profissionais de saúde utilizam seus conhecimentos para identificar as necessidades de ações e serviços de saúde para cada sujeito12.
Mais do que um princípio relacionado à intervenção, a integralidade é traduzida para uma noção de cuidado, visto que, no contexto da sua construção, os procedimentos e técnicas tornam-se secundários às relações com o sujeito. O cuidar requer a aceitação do outro, entendida como uma dimensão humana no plano da intersubjetividade12. As ações de enfermagem remetem-nos à integralidade, quando essas consideram o cuidado além da objetividade da assistência à saúde, alcançando a subjetividade da vivência coletiva do sujeito envolvido13.
Desta ótica, ressaltamos que a decisão de realizar o aborto não é individual,e sim um processo que envolve fatores sociais e outros participantes, como a família e o parceiro. Apesar da complexidade desse fenômeno social, observamos que a sociedade tende à responsabilização individual da mulher por suas escolhas reprodutivas. Em um estudo realizado com mulheres que tinham antecedentes de aborto(s) induzido(s) revelou-se que o principal interlocutor, na maioria das vezes, é o parceiro, e que, mesmo quando o homem omite sua opinião sobre a decisão de abortar, insistindo que esta é responsabilidade da mulher, ele participa de alguma forma dessa decisão14.
Nesse sentido, a aceitação pelo enfermeiro da mulher que vivenciou o aborto inseguro como objeto do seu cuidado é o primeiro passo para que ele construa o seu planejamento voltado para a promoção da saúde reprodutiva no âmbito da integralidade.
CONCLUSÕES
Neste estudo trabalhamos com categorias relacionadas ao aborto inseguro, incluindo a atenção à saúde, reconhecendo a importância da interação metodológica da pesquisa com o complexo objeto saúde-cuidado-atenção, indicando as diversas possibilidades de análise que aí se vislumbram a partir dos relatos e experiências vivenciadas por essas mulheres no processo do aborto clandestino.
Com relação aos serviços de saúde, as informações e orientações sobre os métodos contraceptivos, segundo as entrevistadas, são pouco difundidas e com falhas quanto ao trabalho de prevenção e promoção da saúde dessas mulheres. Esse quadro mostra a necessidade de ações estratégicas que melhorem as condições para as práticas sexuais e reprodutivas de mulheres, sobretudo das jovens, incluindo o atendimento em situação de pós-aborto.
A promoção da saúde inserida no contexto da integralidade tem como compromisso a transformação do modo de produzir saúde por meio da pró-atividade dos sujeitos envolvidos. Ressaltamos,como desafio para a promoção da saúde reprodutiva de modo integral, as questões de gênero como concepção que nos permita compreender as desigualdades dentro da universalidade e integralidade na prestação de serviços disponíveis na área de saúde voltados à mulher15.
Considerando tais aspectos, a integralidadedo cuidado é um importante instrumento para que o enfermeiro fundamente a sua prática e possa oferecer a essa mulher apoio e alternativas para que ela tenha acesso aos serviços de planejamento reprodutivo, incluindo a prevenção de novos episódios de aborto.
Agradecimento
Estes resultados são fruto de um trabalho apoiado pela Pró Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
REFERÊNCIAS