Volume 18, Número 1, Jan/Mar - 2014
Pesquisa
Prazer e sofrimento: avaliação de enfermeiros intensivistas
à luz da psicodinâmica do trabalho
Juliana Faria Campos
1
Helena Maria Scherlowski Leal David
2
Norma Valeria Dantas de Oliveira Souza
2
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro - RJ, Brasil
2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro - RJ, Brasil
Recebido em 05/11/2012
Reapresentado em 30/04/2013
Aprovado em 04/06/2013
Autor correspondente:
Juliana Faria Campos
E-mail:
jujufariacampos@yahoo.com.br
RESUMO
Este estudo teve como objetivo avaliar os fatores causadores de prazer e sofrimento
para o enfermeiro intensivista.
MÉTODOS:
Estudo descritivo, quantitativo, com amostra de 44 enfermeiros de um hospital
privado. Utilizou-se a escala de indicadores de prazer e sofrimento no trabalho.
Os dados foram analisados por meio de estatística descritiva e discutidos com base
na psicodinâmica do trabalho. Foi avaliada consistência interna do instrumento por
meio do Alpha de Cronbach.
RESULTADOS:
Para os fatores de prazer, a liberdade de expressão apresentou uma avaliação
satisfatória, e a realização profissional foi apreciada de maneira crítica. Para
os fatores de sofrimento, observou-se uma avaliação crítica para o esgotamento
profissional, e uma apreciação satisfatória para falta de reconhecimento.
CONCLUSÃO:
O estudo permitiu compreender melhor a subjetividade impressa no trabalho de
enfermagem e reafirmou a importância de analisar a natureza psicossocial do
trabalho para o fortalecimento das ações em saúde do trabalhador.
Palavras-chave: Enfermeiras; Saúde do trabalhador; Terapia intensiva.
INTRODUÇÃO
A centralidade atribuída ao trabalho na vida do homem contemporâneo é inquestionável e crescente. Muito mais que gerador de bens, de serviços e de meio de subsistência, o trabalho é visto como via de aquisição de identidade pessoal e como determinante para a qualidade de vida e para a construção de valores culturais, sociais, religiosos1.
A enfermagem como profissão insere-seno contexto de acumulação capitalista, em que os trabalhadores oferecem sua força de trabalho a ser objetivada e comprada de acordo com a demanda da função. O processo de trabalho do profissional de enfermagem é marcado por características tayloristas, como a) a fragmentação das tarefas; b) a exigência de dedicação extremada;e c) a monitoração constante por supervisores, profissionais da equipe de saúde, família e clientes2.
A prática de enfermagem em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) - cujo objeto de trabalho é uma clientela complexa e em alto grau dependente do profissional de enfermagem - representa um segmento especializado da assistência de enfermagem, em virtude das peculiaridades da estrutura física do setor e da dinâmica do processo de cuidar, altamente instrumentalizado, racionalizado e tecnológico. Exige-se também um ritmo de trabalho intenso, permeado de situações imprevistas e conflitantes, agilidade nas tomadas de decisão e um cuidado livre de danos. Além disso, o profissional de enfermagem está em contato constante com situações de sofrimento e morte de seres humanos, o que lhe remete às suas próprias angústias, gerando desgaste físico, psíquico e social3.
A saúde do trabalhador, diante da complexidade e fragmentação das organizações do trabalho, deve ser estudada sob uma ótica interdisciplinar, permitindo compreender o trabalho como um espaço de organização da vida social, em que os profissionais são sujeitos que pensam e agem sobre o trabalho, ainda que as relações capitais dificultem tais ações. Para isso, a Psicodinâmica do Trabalho torna-se uma abordagem apropriada na tentativa de desvendar a dinâmica das situações de trabalho e os possíveis agravos à saúde do trabalhador.
Baseando-se na importância do trabalho para o homem e considerando todas as transformações que o mundo laboral vem sofrendo, entende-se que a atividade produtiva pode repercutir positiva ou negativamente no trabalhador. A organização do trabalho, se propícia ao desenvolvimento do indivíduo e do coletivo laboral, possibilita a criatividade e a autonomia, gerando predominantemente prazer. Se, ao contrário, imprime a inflexibilidade e a rigidez nas tarefas e nas relações, favorece o aparecimento do sofrimento, descompensações psíquicas, acidentes de trabalho, adoecimento e, inclusive, mortes4.
O saudável é vivenciado quando é possível atuar sobre as situações nas quais cobranças e pressões do trabalho causam instabilidade psicológica. No entanto, o adoecimento surge por conta de um sofrimento patogênico quando se rompe o equilíbrio e não é mais possível contornar o sofrimento; ou seja, quando os investimentos intelectuais e psicoafetivos dos trabalhadores não são mais suficientes para atender às demandas e tarefas impostas pela organização, observam-se constantemente consequências na saúde do profissional de enfermagem4,5.
O sofrimento cotidiano e intenso deve ser entendido, então, como um alerta ao profissional, indicando que algo não estábem. Esse sofrimento pode ser vivenciado de maneira duradoura, no entanto, inconsciente, devido à predominância de sentimentos de angústia, medo e insegurança6.
Os objetivos deste estudo são analisar, mensurar e avaliar os riscos de adoecimento relacionados ao trabalho do enfermeiro de UTI, a partir da Escala de Indicadores de Prazer e Sofrimento no Trabalho (EIPST), na perspectiva da saúde do trabalhador.
Atualmente, os aspectos sobre a organização do trabalho vêm ganhando espaço nas discussões sobre saúde do trabalhador. Isso se deve aosaspectos psicossociais do trabalho que revelam ser um problema relevante em diferentes contextos sociais e econômicos e impactam na saúde física e mental dos trabalhadores e, portanto, indicam a importância em ser investigado.
Nessa perspectiva, revisitar o processo de trabalho de enfermeiros intensivistas e avaliar os fatores geradores de prazer e sofrimento no trabalho pode permitir um novo desenho desse processo, de modo a favorecer o exercício do trabalho de enfermagem mais saudável e de qualidade.
MÉTODO
O presente trabalho consiste no recorte de um estudo exploratório de abordagem quantitativa e desenho transversal, descritivo e inferencial realizado entre fevereiro e maio de 2008, com o objetivo principal de mensurar e avaliar os riscos de adoecimento relacionados ao trabalho de uma amostra intencional de 44 enfermeiros trabalhadores em UTI de um hospital privado do Rio de Janeiro, a partir do Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento (ITRA)7. Utilizou-se como critérios de inclusão a atuação em Terapia Intensiva há pelo menos seis meses.
Utilizou-se a técnica de questionário para aplicação do ITRA, instrumento autoaplicável e validado7, composto por quatro escalas interdependentes para avaliar quatro dimensões da inter-relação trabalho e riscos de adoecimento: 1) Escala de avaliação do contexto de trabalho (EACT); 2) Escala de custo humano no trabalho (ECHT); 3) Escala de indicadores de prazer e sofrimento no trabalho (EIPST); e 4) Escala de avaliação dos danos relacionados ao trabalho (EADRT).
Os resultados aqui apresentados referem-se à aplicação da EIPST, composta por quatro fatores, dois avaliando prazer (realização profissional e liberdade de Expressão) e dois avaliando sofrimento no trabalho (falta de reconhecimento e esgotamento profissional). Trata-se de uma escala do tipo Likert, com o objetivo de avaliar, nos últimos seis meses, a ocorrência da vivência de sentimentos de prazer e sofrimento no trabalho. Para tanto, apresentam-se sete opções de respostas: 0 = nenhuma vez; 1 = uma vez; 2 = duas vezes; 3 = três vezes; 4 = quatro vezes; 5 = cinco vezes; e 6 = seis vezes ou mais.
Para os fatores de prazer, considerando que os itens são positivos, a análise segue os seguintes parâmetros: Acima de 4,0 = avaliação mais positiva (trabalho apresenta-se como satisfatório); entre 3,9 e 2,1 = avaliação moderada (trabalho apresenta-se como crítico); e abaixo de 2,0 = avaliação mais negativa (trabalho apresenta-se como grave).
Para os fatores de sofrimento, considerando que os itens são negativos, a análise deve ser realizada baseada nos seguintes níveis: Acima de 4,0 = avaliação mais negativa (trabalho apresenta-se como grave); entre 3,9 e 2,1 = avaliação moderada (trabalho apresenta-se como crítico); e abaixo de 2,0 = avaliação menos negativa (trabalho apresenta-se como satisfatório).
Os dados coletados foram analisados com o auxílio do aplicativo Statistical Package for the Social Sciences for Windows (SPSS), versão 12.0, no qual se realizaram estatísticas descritivas, tais como frequência, média e desvio-padrão; calculou-se ainda o Coeficiente Alpha de Cronbach, com vistas ao estabelecimento da consistência interna.
Os resultados são discutidos com base no referencial teórico da Psicodinâmica do Trabalho.
Obedeceram-se os preceitos éticos da Resolução 196/96, sendo a pesquisa aprovada pelo Comitê de ética em Pesquisa institucional, cujo número do protocolo é 247. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado pelo participante.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados apresentados referem-se à aplicação da EIPST, cujos respondentes foram os enfermeiros de uma UTI. A escala apresentou boa consistência interna e, por meio da avaliação da pontuação obtida para os fatores do prazer, foi possível perceber que a liberdade de expressão apresentou uma avaliação bastante satisfatória, positiva. A realização profissional, no entanto, foi apreciada de maneira moderada, crítica. Já para os fatores do sofrimento, atentando que são itens negativos, o esgotamento profissional apresentou uma avaliação moderada, crítica, e a falta de reconhecimento, uma apreciação satisfatória (Tabela 1).
Fatores | Média | Desvio padrão | Alpha de Cronbach |
Liberdade de expressão | 4,13 | 0,89 | 0,69 |
Realização profissional | 3,92 | 0,54 | 0,92 |
Esgotamento profissional | 3,14 | 1,06 | 0,86 |
Falta de reconhecimento | 2,02 | 0,72 | 0,92 |
O primeiro fator dessa escala é a liberdade de expressão, que reflete a vivência de liberdade para pensar, organizar e falar sobre o trabalho. É composta por oito itens: 1) liberdade com a chefia para negociar o que precisa; 2) liberdade para falar sobre o meu trabalho com os colegas; 3) solidariedade entre os colegas; 4) confiança entre os colegas; 5) liberdade para expressar opiniões no local de trabalho; 6) liberdade para usar a criatividade; 7) liberdade para falar sobre o trabalho com as chefias; e 8) cooperação entre os colegas.
Os itens que apresentaram as maiores médias neste fator, contribuindo de maneira positiva para as vivências de prazer no trabalho,foram solidariedade entre os colegas, com µ = 5,36, e cooperação entre os colegas, com µ = 5,06.
Observa-se que, para os enfermeiros, esse é o fator que mais gera prazer. Conforme a definição desse fator, pode-se afirmar que a liberdade de expressão no trabalho favorece a construção da identidade do profissional. O trabalho deve ser um espaço de organização da vida social no qual os trabalhadores são vistos como sujeitos que influenciam o trabalho e são por ele influenciados, mesmo com a dominação observada em toda a relação capitalista. Por meio do trabalho, acontece uma dupla transformação: o homem atua sobre a natureza, modificando-a; e, ao mesmo tempo, o trabalho desenvolve suas potencialidades8.
A identidade é algo que se constrói na relação com o outro, ou seja, é marcada pelo julgamento e reconhecimento do outro. Na enfermagem, é praticamente impossível trabalhar sozinho, e o trabalho em terapia intensiva é especialmente marcado pelas ações coletivas. A construção da confiança, primordial nas relações profissionais para a saúde do trabalhador, depende da criação de um coletivo de trabalho em que se constroem regras, normas e valores, que norteiam as relações dentro da organização do trabalho e que permitem um espaço de discussão favorável ao crescimento individual e coletivo5.
Verifica-se que de fato existe uma satisfação na população estudada no que se refere às relações entre colegas, relações essas marcadas por solidariedade, confiança e cooperação, favorecendo um ambiente saudável e amenizando as contradições impostas pelo contexto de trabalho. O coletivo do trabalho propicia uma reflexão sobre as diversas dimensões trabalhistas, possibilitando, assim, a criação de condições para a sustentabilidade do trabalho9. Pesquisas estão sendo feitas com o intuito de analisar a cooperação, solidariedade, confiança e engajamento nas discussões grupais como indicadores de mobilização subjetiva10.
No entanto, algumas correntes apontam que o modelo toyotista de organização laboral, que favorece e estimula o trabalho em equipe, tem o objetivo de se apropriar mais do trabalho, melhorando a produtividade e, consequentemente, aumentando a exploração do trabalhador11.
O segundo fator analisado, realização profissional, relaciona-se com as experiências de gratificação profissional, orgulho e identificação com o trabalho que faz. É composta por nove itens: 1) satisfação; 2) motivação; 3) orgulho pelo que se faz; 4) bem-estar; 5) realização profissional; 6) valorização; 7) reconhecimento; 8) identificação com as tarefas; e 9) gratificação pessoal com as atividades.
A maior contribuição para a avaliação positiva dessa dimensão para os enfermeiros intensivistas coube aos seguintes itens: orgulho pelo que faz, com µ = 4,65; e identificação com as tarefas, com µ = 4,45.
Esse fator obteve uma avaliação moderada, crítica; ou seja, itens que são importantes para vivências de prazer no trabalho não foram na sua totalidade bem avaliados.
Para os profissionais pesquisados, os itens mais valorados refletem a identificação pessoal com a profissão, ou seja, demonstram que os enfermeiros gostam e se identificam com as atividades que realizam. A enfermagem é um tipo de trabalho com uma característica muito peculiar: só trabalha nessa profissão quem realmente gosta dela, pois o profissional se submete a condições críticas de trabalho e ao intenso envolvimento com o sofrimento e a intimidade alheia12.
É muito comum ouvir que enfermagem é vocação, dom. Mas, ao mesmo tempo, esquece-se que, apesar de ser primordial a afinidade pelo tipo de atividade a ser realizada, o enfermeiro é um profissional como outro qualquer; assim, são igualmente importantes aspectos como reconhecimento, valorização, satisfação, entre outros.
Tendo como base esse pensamento equivocado de que a profissão de enfermagem é dom, a lógica capitalista encontrou "terreno fértil" na enfermagem brasileira, que tem suas raízes no sentimento de religiosidade e caridade. Ressaltavam-se como as qualidades do bom profissional a obediência, o respeito à hierarquia, a humildade e o espírito de servir - disciplinado, obediente e alienado. Em função disso, até hoje os trabalhadores da enfermagem enfrentam sérias dificuldades de ordem profissional, como organização política frágil, baixa remuneração e falta de autonomia12.
É certo que o sentimento de orgulho pela atividade exercida se relaciona intimamente com a possibilidade de ajudar o doente, de aliviar mesmo que parcialmente o sofrimento, de ser útil e de participar ativamente no tratamento, tendo, consequentemente, sua parcela nos resultados positivos atingidos.
Para os enfermeiros intensivistas, o prazer vivenciado no trabalho pode se relacionar com a motivação que eles afirmam ter, visto que os fatores orgulho pelo que faz, bom relacionamento com a equipe e condições de trabalho satisfatórias são essenciais e estão presentes na avaliação pela amostra estudada.
No ambiente de trabalho aos quais os trabalhadores estão expostos, é comum que esses se deparem com situações que fogem às atividades prescritas. Para dar conta dessas situações e garantir a continuidade da produção com eficácia, o profissional utiliza sua inteligência e criatividade. Entretanto, inteligência, criatividade e eficácia das soluções que o trabalhador propõe são efetivamente julgadas pelos pares (sejam colegas de trabalho, seja a chefia). Se bem avaliadas, essas situações podem gerar satisfação e intenso prazer para o trabalhador, uma intensidade está proporcionalmente relacionada com a complexidade do desafio solucionado. Cria-se, assim, a impressão da identidade do profissional no ambiente de trabalho peloseu reconhecimento. A possibilidade de dar significado ao sofrimento vivenciado pelo trabalhador encontra-se no seu reconhecimento nesse ambiente, permitindo a transformação de sofrimento em prazer13.
O terceiro fator, esgotamento profissional, diz respeito às situações de frustração, insegurança, inutilidade, desgaste e estresse no trabalho, refletindo o sofrimento no trabalho. Apresenta sete itens: 1) esgotamento profissional; 2) estresse; 3) insatisfação; 4) sobrecarga; 5) frustração; 6) insegurança; e 7) medo.
Para esse fator, os itens que mais influenciam negativamente, contribuindo para o adoecimento profissional, são estresse, com µ = 4,59, e esgotamento emocional, com µ = 4,11. A avaliação desse fator, apesar de ter sido moderada, crítica, apresentou itens com médias bastante elevadas.
As mudanças tecnológicas e organizacionais introduzidas no processo produtivo pela lógica capitalista, além de possibilitarem às empresas o aumento da produtividade e, consequentemente, dos lucros, implicaram no surgimento de afecções físicas e psíquicas na saúde do trabalhador. No documento da Comissão das Comunidades Europeias, citado pelos mesmos autores, afirma-se que as "[...] enfermidades consideradas emergentes, como o estresse, a depressão ou a ansiedade, assim como a violência no trabalho, o assédio e a intimidação, são responsáveis por 18% dos problemas de saúde associados ao trabalho, uma quarta parte dos quais implica duas semanas ou mais de ausência laboral"14.
O estresse no trabalho é resultante da interação entre muitas demandas psicológicas, menor controle no processo de produção de trabalho e menor apoio social recebido de colaboradores e chefes, no ambiente de trabalho15. Apesar de serem, no Brasil, escassos os dados estatísticos sobre o assunto, acredita-se que aqui o quadro deve ser semelhante. Como a enfermagem não permaneceu de fora de toda a modificação desse contexto produtivo e exploratório, nota-se também nessa profissão a presença do estresse ocupacional. Ao se tentar compreender essa situação, certamente será possível elucidar problemas como insatisfação profissional, baixa produtividade, absenteísmo, doenças ocupacionais, entre outros.
A importância e preocupação com a questão do estresse na atualidade referem-se a sua associação com o adoecimento ou sofrimento que ele provoca no trabalhador. Diversos são os sintomas físicos; os mais comumente apresentados são fadiga, dores de cabeça ou no corpo, insônia, palpitações, alterações intestinais, náusea, tremores, extremidades frias e resfriados constantes. Entre os sintomas psíquicos, mentais e emocionais, encontram-se a diminuição da concentração e memória, indecisão, confusão, perda do senso de humor, ansiedade, nervosismo, depressão, raiva, frustração, preocupação, medo, irritabilidade e impaciência. Estudos demonstram associações entre estresse no trabalho e desordens psiquiátricas menores, doenças do sistema digestivo, desordens musculoesqueléticas, autoavaliação negativa do estado de saúde, absenteísmo no trabalho, doenças cardiovasculares e seus principais fatores de risco, tais como hipertensão arterial e hábitos pouco saudáveis (tabagismo, etilismo e consumo de outras drogas)15.
Além do estresse, tem-se discutido bastante a síndrome de Burnout, que se refere a constantes sentimentos de fracasso e exaustão do trabalhador em relação ao seu trabalho. Alguns aspectos são mais relevantes nessa síndrome, dentre eles a exaustão emocional, a despersonalização e a falta de envolvimento no trabalho16.
Entre esses três aspectos, por se apresentar intimamente relacionada com o segundo item mais valorado do fator, apenas se discute a exaustão emocional, entendida como a falta de energia associada ao sentimento de esgotamento emocional, pois os profissionais relatam não ter condições de despender energia para a realização de sua atividade14.
O sofrimento que o indivíduo apresenta diante dessas situações repercute negativamente no seu estado de saúde, no seu desempenho profissional, na sua vida como um todo, refletindo também em aspectos sociais, econômicos e na organização do trabalho em que se insere. A busca exacerbada por produtividade se depara com um limite intransponível, o do próprio ser humano. Assim, a falta de motivação, a alienação, a depressão, o estresse e, mais recentemente, o Burnout permanecem como um desafio para as instituições14.
Diversos são os componentes reconhecidos como ameaçadores ao meio ambiente ocupacional do enfermeiro; entre eles, destacam-se 1) o número reduzido de profissionais de enfermagem no atendimento em saúde em relação ao excesso de atividades que eles executam; 2) as dificuldades em delimitar os diferentes papéis entre enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem; e 3) a falta de reconhecimento nítido entre o público em geral de quem é o enfermeiro. Além disso, a remuneração inadequada obriga os profissionais a terem mais de um vínculo de trabalho, resultando em uma carga mensal extremamente longa e desgastante.
O aumento da demanda de medicamentos psicotrópicos nos serviços médicos é apontado por estudo que contesta a abordagem da medicina do trabalho exercida atualmente, que procura explicar os sintomas depressivos e os distúrbios de ansiedade exclusivamente pela história de vida dos sujeitos, sem levar em conta o contexto da organização do trabalho e seus efeitos sobre a vida dos trabalhadores17. Ademais, o posicionamento das instituições perante o indivíduo que adoece em decorrência de exposição ao estresse no ambiente de trabalho é responsabilizara vítima, esvaziando qualquer iniciativa política de modificar situações advindas do ambiente específico de trabalho15.
Apesar de a insegurança e o medo serem itens amplamente discutidos nas pesquisas envolvendo Psicodinâmica do Trabalho e prazer-sofrimento, verifica-se, na população estudada, que esses sentimentos são mais frequentemente desconsiderados, já que há recorrência pela opção "nenhuma vez", no que diz respeito à insegurança e ao medo, nos últimos seis meses.
O medo está intimamente relacionado com a possibilidade de demissão4. Na instituição pesquisada, não são comuns demissões sem justa causa; além disso, não se observa um ambiente hostil, gerando nos funcionários insegurança e medo devido ao fantasma da demissão. Isso pode ser verificado pelos dados sócio-demográficos já expostos, nos quais grande parte dos profissionais (56,9%) trabalha há mais de cinco anos na instituição.
O medo pode desencadear nos trabalhadores o uso de estratégias defensivas individuais e coletivas, como a intensificação do trabalho, o aumento do sofrimento objetivo, o silêncio, o individualismo, entre outros4.
O quarto fator, a falta de reconhecimento, reflete condições de injustiça, indignação e desvalorização devidas à falta de reconhecimento do trabalho. É composto por oito itens: 1) falta de reconhecimento do esforço; 2) falta de reconhecimento do desempenho; 3) desvalorização; 4) indignidade; 5) inutilidade; 6) desqualificação; 7) injustiça; e 8) discriminação.
Esse fator obteve, dentro da escala, uma avaliação satisfatória, positiva; os dois itens que apresentaram as maiores médias, contribuindo para uma apreciação moderada do fator, foram falta de reconhecimento do desempenho, com µ = 2,90, e falta de reconhecimento do esforço, com µ = 2,79. Felizmente, os resultados obtidos com a avaliação desse fator revelam que não são frequentes vivências de sofrimento causadas por esses itens.
A falta de reconhecimento repercute no processo de formação da identidade do sujeito, da afirmação da utilidade técnica, social ou econômica da atividade exercida e da expressão da individualidade e singularidade do trabalhador. A falta de reconhecimento do trabalho dificulta a transformação do sofrimento em prazer, já que o reconhecimento é condição essencial no processo de mobilização subjetiva e enfrentamento do profissional4,13.
Sabe-se que, na enfermagem, a falta de reconhecimento é histórica e se mantém na atualidade. A dificuldade de se definir as competências específicas da enfermagem diante das competências de outros profissionais influencia negativamente o profissional que, em determinadas situações, não se posiciona por insegurança em definir, em reconhecer seu próprio papel.
Outro fator importante na determinação desse quadro é a divisão da profissão por categorias (auxiliares, técnicos e enfermeiros), segmentação essa dificilmente compreendida não só pelo público em geral, mas pelos próprios membros da equipe multidisciplinar. A classificação de todos como enfermeiros gera um sentimento de desvalorização e despersonalização, pois a formação das categorias é completamente diferenciada e suas funções e responsabilidades também diferem.
Além disso, pode-se citar um aspecto cultural de supervalorização do saber médico. O mérito pelo êxito do tratamento é em geral dado somente ao profissional médico que detém o poder curativo. A parcela que cabe aos profissionais da enfermagem é frequentemente desvalorizada ou vista como um ato de caridade. Por ser uma profissão essencialmente manual, o ato de cuidar próprio da enfermagem acaba por ocupar uma posição menos importante aos olhos dos pacientes, dos familiares e dos próprios profissionais, quando comparado às ações médicas. Isso reflete até mesmo na remuneração das atividades do enfermeiro, que, ao cobrar um valor para realização de suas atividades, é muitas vezes tido como uma pessoa desumana, já que a prática de enfermagem é vista historicamente como um ato de servir ao outro sem intenções lucrativas. Diante desse quadro, observa-se um contexto histórico de peso para a falta de reconhecimento das atividades e do esforço do profissional em questão, o que repercute ativamente nas suas vivências de sofrimento.
A análise de cada realidade de trabalho e de cada profissão em particular ajuda a encontrar os fatores geradores de prazer-sofrimento. Apesar de diferirem entre si, as vivências de prazer-sofrimento encontram-se intimamente relacionadas com o contexto de trabalho (organização, relações profissionais e condições de trabalho). Fator em comum entre as pesquisas apresentadas anteriormente é a importância das relações subjetivas entre os pares e seu peso nas vivências de prazer e na transformação do sofrimento.
Sabe-se que é impossível conceber uma organização do trabalho que, de alguma forma, não permita o sofrimento do profissional. O prazer-sofrimento resulta da inter-relação entre os trabalhadores e o contexto de trabalho. A saúde e o prazer no trabalho são processos que estão em constante mutação e que devem ser conquistados diariamente. A saúde no trabalho resulta do modo como o trabalhador enfrenta as situações conflituosas presentes no contexto de trabalho9.
Conhecendo todos os fatores predisponentes ao sofrimento e suas possíveis repercussões na saúde e adoecimento do profissional, questiona-se a permanência dos trabalhadores em um estado de normalidade diante detodos esses fatores de risco. Acredita-se que esse estado de normalidade reflete um equilíbrio instável entre o sofrimento psíquico e as estratégias de defesa e a mobilização subjetiva utilizadas pelos profissionais5.
As estratégias defensivas constituem, em sua maioria, em ações coletivas, com as quais o trabalhador pretende modificar, transformar e minimizar aspectos presentes no contexto de trabalho resultantes do conflito entre o prescrito e o real, que o faz sofrer9. Ao utilizar essas defesas, pode ocorrer um processo de alienação e cristalização do trabalhador, dificultando e diminuindo as possibilidades de modificação das situações de trabalho.
CONCLUSÕES
A aplicação da EIPST e a utilização do referencial da Psicodinâmica do Trabalho permitiram a discussão referente à influência da organização e da dinâmica laboral no enfermeiro intensivista; além disso, foi possível também analisar os fatores geradores de prazer e sofrimento para esse mesmo profissional.
Este estudo contribui, sobretudo,para uma melhor compreensão da subjetividade impressa no trabalho de enfermagem. Reafirma-se, então, a importância de se analisar a natureza psicossocial do trabalho e a necessidade de se introduzir essa perspectiva na elaboração de políticas públicas de segurança e saúde no trabalho, as quais ainda se limitam a discussões sobre questões físicas e ergonômicas do trabalho e suas repercussões na saúde do profissional.
Apesar de o EIPST ser um instrumento criado para trabalhadores em geral, ele se mostrou internamente consistente para enfermeiros, especificamente. Contudo, fica clara a sua limitação para avaliar com profundidade as influências do trabalho na saúde do trabalhador em virtude da subjetividade envolvida nos constructos em questão.
REFERÊNCIAS