Volume 18, Número 1, Jan/Mar - 2014
Reflexão
Sofrimento humano e cuidado de enfermagem: múltiplas
visões
Eveline Pinheiro Beserra
1
Fernanda Celedonio de Oliveira
1
Islane Costa Ramos
1
Rui Verlaine Oliveira Moreira
1
Maria Dalva Santos Alves
1
Violante Augusta Batista Braga
1
1 Universidade Federal do Ceará. Fortaleza - CE, Brasil
Recebido em 05/09/2012
Reapresentado em 24/05/2013
Aprovado em 06/07/2013
Autor correspondente:
Eveline Pinheiro Beserra
E-mail:
eve_pinheiro@yahoo.com.br
RESUMO
O objetivo deste estudo foi refletir sobre o sofrimento no contexto filosófico.
MÉTODOS:
Nessa discussão teórica, o sofrimento é apresentado de formas diferentes:
sofrimento no plano filosófico; interfaces do sofrer; antropologia e sofrimento e
Enfermagem: uma visão holística do sofrimento humano.
RESULTADOS:
O enfermeiro em sua prática profissional compreende que a vulnerabilidade, muitas
vezes, está vinculada com a dor, nos aspectos biológico, psicológico e social,
entre outros. Um dos objetivos do cuidado em Enfermagem é minorar o sofrimento
humano causado pelas doenças, considerando que o progresso tecnológico atual
ajuda, algumas vezes, a solucionar a gestão técnica da dor.
CONCLUSÃO:
Independente de serem um problema de ordem técnica, a dor e o sofrimento
situam-se na esfera da ética/humana e devem ser considerados nas suas várias
interfaces.
Palavras-chave: Enfermagem; Dor; Antropologia; Filosofia.
INTRODUÇÃO
O sofrimento está na origem da condição humana, quando o ser se confronta com a angústia de sua finitude. Buscar uma definição adequada para descrevê-lo não é uma tarefa sutil. É necessário utilizar diversas visões para refletir sobre este fenômeno complexo.
O sofrimento é um tema intrínseco à humanidade e inerente ao cuidar. O enfermeiro precisa analisar sua prática também com base em uma visão antropológica e filosófica, e não somente técnica, para que possa ter condições de compreender as inúmeras situações vivenciadas durante sua atividade laboral e no cuidado do ser humano que sofre1.
Nessa reflexão teórica, o sofrimento passa a ser apresentado de formas diferentes, a saber: sofrimento no plano filosófico; interfaces do sofrer; antropologia e sofrimento; Enfermagem: uma visão holística do sofrimento; e sofrimento humano e o cuidado de Enfermagem.
Sofrimento no plano filosófico
A palavra sofrimento representa um ato ou efeito de sofrer, dor física, angústia, aflição, amargura, paciência e resignação2. O ser humano tem como característica inerente o sofrer. O sofrimento apresenta-se como uma motivação fundamental e também um refúgio da singularidade3.
É preciso considerar, porém, diferentes dimensões que se articulam com o indivíduo, como os aspectos culturais, sociais, educacionais, econômicos e de natureza interpessoal que, muitas vezes, o predispõem a vulnerabilidades, ou seja, a situação de risco indevido ou desconhecido4.
O profissional deve refletir sobre as vulnerabilidades humanas, pois, no reconhecimento desse fenômeno e das suas relações com o sofrimento, é que será possível cuidar do ser em sofrimento de maneira integral.
Nesse âmbito, a vulnerabilidade humana pode ser um dos possíveis caminhos para a ampliação da sensibilidade dos profissionais para com a susceptibilidade do paciente, possibilitando estabelecer uma relação mais simétrica, empática e solidária entre estes5.
O enfermeiro, então, precisa compreender que a vulnerabilidade, muitas vezes, se articula com a dor, podendo ser biológica, psicológica, espiritual e social. Esta última é produzida na conjunção da precariedade do trabalho com a fragilidade do vínculo social, sendo uma categoria capaz de descrever a situação de uma grande parcela da população brasileira. Para fazer frente a esta dicotomia que está dada socialmente, e que se faz mais aguda no caso de sujeitos que estão em relações que os tornam mais vulneráveis, parece-nos que uma das formas possíveis para abrir campo para a criação de uma maior simetria e equidade seria por meio da educação para a cidadania6.
Na realidade, a educação e a cidadania estão articuladas com a cultura social de cada região e o esclarecimento que a população estabelece a esse respeito. Atualmente, para garantir uma boa cidadania é necessário que a haja direitos, mas esses precisam estar vinculados ao cumprimento de seus deveres. A partir de então, com essa via de mão dupla funcionante, pode-se conseguir chegar à diminuição da vulnerabilidade.
Interfaces do sofrer
O sofrer biológico se trata de uma dimensão física; a dor funciona como um indicador de que algo precisa ser revisto; observa-se também o sofrer na dimensão psíquica, que, muitas vezes, se relaciona com o biológico. Outro sofrer é o espiritual, agregado ao questionamento de sua identidade e à busca de respostas.
Nesse diagrama, observa-se a relação intrínseca que o homem tem com a vulnerabilidade e o sofrimento. A vulnerabilidade, por sua vez, supera o caráter individualizante e probabilístico do clássico conceito de "risco", ao apontar esta palavra como um conjunto de aspectos que vão além do individual, abrangendo aspectos coletivos, contextuais, que levam à suscetibilidade a doenças ou agravos, considerando aqueles que dizem respeito à disponibilidade ou à carência de recursos destinados à proteção das pessoas.
Na complexidade do ser humano, diversos componentes podem relacionar-se com esse ser vulnerável, a saber: aspecto biológico, social, cultural, espiritual e socioeconômico, contudo não são itens limitados, pode haver outros. Ainda na Figura 1, o diagrama também referencia o homem com a palavra sofrimento, vocábulo este por vezes tão temido por todos, pois quando se fala de sofrimento, logo vêm à memória uma experiência aversiva e uma emoção negativa correspondente que, muitas vezes, se associa à dor em suas diversas interfaces apresentada em quaisquer condições.
O sofrimento faz parte do amadurecimento humano. Todos, em alguma das etapas de vida, sofrem por amor, por saudade, por solidão ou até mesmo por uma decisão. Dar novos passos, essa é a forma que, mesmo sem perceber, conduz o ser humano a reagir às adversidades da vida cotidiana.
Vivenciar o sofrimento o faz aproximar-se dos outros, aumenta o autoconhecimento, favorecendo aceitação de novos fatos, bem como possibilita o amadurecimento pessoal, que pode ser visto como oportunidade de aprendizado. Assim, o homem pode contemplar os diferentes vértices do sofrimento que não necessariamente são ruins. Quando se fala a palavra sofrimento, vem à mente algo que é marcado por um estado de experiência negativa, mas, a depender do ponto de vista, esse sofrimento pode se tornar positivo.
Não é tarefa simples compreender a existência do sofrimento, mas é necessário que se consiga compreender a dinâmica de se viver com ele, pois, caso contrário, pode se tornar um castigo ou uma punição e, como comumente não é uma manifestação permanente, é preciso saber lidar com este sentimento, tão particular para cada ser que sofre.
O sofrimento faz parte da natureza humana, e surge de algo novo, podendo representar uma mesclagem de prazer e dor. Possui três fontes: o próprio corpo, o mundo externo e o relacionamento interpessoal7.
A experiência do sofrimento está relacionada diretamente com a experiência do mistério e do inexplicável. Muitos se perguntam: por que sofrer? Que sentido tem o sofrimento? O ser humano deve revoltar-se contra o sofrimento? Essas indagações convivem diariamente com o ser da pessoa, de maneira ativa no dia a dia, pois o ser humano se torna incapaz de administrá-lo e submetê-lo a uma lógica de sentimentos concretizadores da realidade.
A evolução humana faz parte da vida; entretanto, existem muitas pessoas que têm resistência em evoluir, pois em alguns momentos da sua existência sofreram frustrações enquanto estavam no caminho da evolução. A partir de então, seguem a vida com medo, ansiedade, preocupação, raiva, entre tantos outros sentimentos e emoções desagradáveis que bloqueiam o fluir natural da vida. As oportunidades passam e não são percebidas, ou, quando se percebem as oportunidades, o medo é muito grande, paralisando as ações e limitando as escolhas.
O sofrimento humano é algo que adquire alta complexidade, pois o homem pode sofrer de muitas maneiras e não sofrer de tantas outras, dependendo da visão de cada um. Portanto, sofrer obriga a vida sensível a se subordinar à vida das atividades que repudiam o fatalismo, de maneira que o sofrimento eleva os sentimentos pelas intenções de reparação.
Antropologia e sofrimento
Para a Antropologia Filosófica, existem pelo menos cinco formas de sofrimento intimamente enraizados na estrutura pluridimensional e plurirrelacional do ser humano: sofrimento intrapessoal (sofrimento exterior e interior); sofrimento interpessoal; sofrimento natural; sofrimento tecnológico e sofrimento transcendental8.
Nas diversas fases da vida humana, desde o nascimento até a morte, pode-se observar o não sofrimento e o sofrimento-prazer, separados distintivamente; mas, em comum, o sofrimento torna-se modalidade imprecisa e vaga, que se superpõe em camadas indiscerníveis, muitas vezes inefáveis7.
Na vida cotidiana, a realidade aparece sem disfarces ou máscaras. Muitas pessoas podem ter dificuldades de aceitar as situações adversas, contudo a aceitação permitirá a diminuição desse sofrimento, até mesmo a reflexão que tudo passa permitirá a esperança em superar.
Durante a evolução da vida, o amadurecimento humano vem com a experiência. O caminhar da vida nos faz adquirir consciência de quem se é e o que se deseja ser, e, ao progredir, sente-se a necessidade de criar e gerar algo. Existe uma tendência maior em desenvolver os aspectos profissionais, projetos, casamento, aprimoramento da intelectualidade e procriação, pois se percebe a vida como um grande desafio, na busca pela estabilidade emocional e financeira. Nesta fase, o corpo já se encontra totalmente desenvolvido e pronto para atividades diversas.
O final da vida corresponde a um período em que, geralmente, o sofrimento se torna mais transcendente, e essa forma de sofrimento é exclusiva da espécie humana, sendo a origem de outros males, de ordem interior e de ordem interpessoal8. Neste período, os anseios e os desejos mundanos vão perdendo a motivação. Sente-se uma imensa necessidade de descanso.
Vivenciar o sofrimento faz o ser humano se aproximar de si, levando-o até o autoconhecimento, para que se possa viver em maior plenitude. É tarefa difícil compreender que o sofrimento existencial é um componente de nossa dinâmica do viver, e, ao contrário, enxerga-se como um castigo, ou uma punição, apenas. Por outro lado, é justo almejar a alegria e o contentamento, entretanto, é a eles que se pretende apegar, procurando desconsiderar o seu oposto - as aflições.
Assim, pelo fato de o homem, em sua natureza virtual, estar propenso a um futuro cada vez mais elevado, torna-se compreensível a ideia de atos sucessivos, de solidariedade indestrutível no engrandecimento pela verdade e pelo bem, e que não podem recuar diante do desgosto estimulante e salvador das faltas do passado.
O sofrimento tem um sentido amplo e se refere a um modo de padecer que não se relaciona necessariamente com o físico ou somático do ser humano, mas com o âmbito de sua interioridade e todos os níveis de experiência que implicam8.
O ser humano padece sofrimento sob diversas perspectivas. Por um lado, encontra-se o sofrimento exterior, que tem o corpo como uma dimensão física9. Este tipo de sofrimento se torna visível aos nossos olhos, portanto a sintonia do ser humano com o conjunto da natureza é total, pois, neste nível, surge o sentimento de que algo está errado com o funcionamento do corpo.
Por outro lado, existe o sofrimento interior do ser humano, o psíquico, o social e o espiritual. A angústia, o desespero, o temor, o medo, a culpa, a dor, o prazer e a satisfação constituem modos habituais de sofrimento interior. Essas formas de padecer tem seu centro de gravidade na interioridade do ser humano, mas se expressa no rosto, na voz, no olhar e no conjunto da corporeidade8.
Atualmente, percebe-se a incapacidade de compreender o sentido real do sofrimento. Hoje se vive em um mundo "medicalizado"; a gerência da dor pressupõe a medicação do sofrimento com o uso indiscriminado de ansiolíticos, para ajuda no alívio dos incômodos impostos pelo sofrimento, ao mesmo tempo, diminui o desfrute de prazeres simples da vida cotidiana.
Nossa realidade tecnológica e industrial pode indagar: torna-se o homem responsável por seu comportamento sob o impacto do sofrimento? Existe um Deus todo-poderoso, que harmoniza a existência do sofrimento?
Se não existisse esse Deus capaz de compensar o sofrimento do ser humano, ninguém poderia responder pelo conjunto das injustiças e dos sofrimentos encontrados pela vida, e, com isso, só caberia aguentar ou desistir10.
Enfermagem: uma visão holística do sofrimento
A essência da Enfermagem é o cuidado, e este se manifesta na preservação do potencial saudável do ser humano e depende de uma concepção ética que contemple a vida como um bem valioso em si; e por ser um conceito de amplo espectro, pode incorporar vários significados e manifestações.
O cuidado significa desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, e se concretiza no contexto da vida em sociedade. Cuidar implica interação com a finalidade de ajudar, geralmente em situações adversas, quer na dimensão pessoal, quer na social. É um modo de estar com o outro, no que se refere a questões especiais da vida e de suas relações sociais, entre estas o nascimento, a promoção e a recuperação da saúde e a própria morte11.
Dessa maneira, a tentativa de compreender o valor do cuidado de Enfermagem requer uma concepção ética, de respeito ao outro em sua complexidade, escolhas, individualidade e ao mesmo tempo pluralidades, características do homem.
O homem, ser vulnerável, precisa de um cuidado direcionado a sua autenticidade, unicidade e verdade. As ações de Enfermagem devem compreender as fragilidades do paciente, pois, a partir de sua identificação, é que o cuidado será direcionado às necessidades de cada um.
Cuidar em Enfermagem consiste em envidar esforços para o outro, visando proteger, promover e preservar, ajudando pessoas a encontrar significados na doença, sofrimento e dor, bem como na existência12. Tem como premissa essencial a tentativa de evitar que o outro sofra, ou que, ao identificar este sofrer, realizar medidas para erradicar ou minimizar o sofrimento, sendo muito importante a atitude de compreensão de quem cuida, pois a hospitalização é angustiante, por evidenciar a fragilidade a que estamos sujeitos, bem como a exposição física e emocional.
A condição de enfermidade produz sentimentos como incapacidade, dependência, insegurança e sensação de perda do controle sobre si mesmo. Os doentes encaram a hospitalização como fator de despersonalização pelo fato de reconhecerem a dificuldade para manter sua identidade, intimidade e privacidade. O ambiente hospitalar é estressante por diversos fatores, essencialmente ao doente, por perder o controle sobre os que o afetam, e dos quais depende para a sua sobrevivência13.
O cuidado de Enfermagem possui duas esferas distintas: uma objetiva, que se refere ao desenvolvimento de técnicas e procedimentos, e uma subjetiva, que se baseia em sensibilidade, criatividade e intuição para cuidar de outro ser, sendo esta última bastante relevante, pois o objeto do cuidado da Enfermagem é o ser humano14.
O sofrimento é inerente à vida. Mesmo na ausência de doença, ele acompanha o ser humano em toda sua jornada, e depende de cada um a forma como é vivenciado, como se apresenta e se manifesta. Todo ser humano sofre, principalmente quando está doente, e neste momento é importante ter ao seu lado pessoas disponíveis para cuidar, de forma a compreender este momento.
A cura da doença e o alívio da dor e sofrimento, desde o nascedouro da Medicina hipocrática, são aceitos como os objetivos da Medicina. A doença destrói a integridade do corpo, e a dor e o sofrimento podem ser fatores de desintegração do ser humano. Enquanto hoje a Medicina está até que bem aparelhada para combater a dor, no que tange a lidar com o sofrimento, encontra-se ainda em uma fase bastante rudimentar9.
O sofrimento ocorre quando existe a possibilidade de uma destruição iminente da pessoa e continua até que a ameaça de desintegração passe ou até que a integridade da pessoa seja restaurada novamente de outra maneira. Aponta-se que o "sentido e a transcendência" oferecem duas pistas de como o sofrimento associado à destruição de uma parte da personalidade pode ser diminuído. Dar um significado à condição sofrida, frequentemente, reduz ou mesmo elimina o sofrimento a ela associado. A transcendência é provavelmente a forma mais poderosa na qual alguém pode ter sua integridade restaurada, após ter sofrido a desintegração da personalidade15.
O sofrimento é a experiência de impotência com o prospecto de dor não aliviada, situação de doença que leva a interpretar a vida vazia de sentido. Portanto, o sofrimento é mais complexo do que a dor e, fundamentalmente, sinônimo de qualidade de vida diminuída, ocorrendo em situações como as de doenças graves e prolongadas que causam rupturas sociais na vida do paciente e, consequentemente, na sua família.
Nesse ínterim, entende-se o sofrimento a partir de um conceito mais amplo, podendo ser definido, no caso de doença, como um sentimento de angústia, vulnerabilidade, perda de controle e ameaça à integridade do eu9.
No Homo patiens sofrimento é abandono, é mais abrangente e global do que a dor, e é mais profundo. O sofrimento é uma situação na qual o homem se encontra antes ou depois, uma matéria pendente para todos, uma etapa necessária para a maturidade10.
Portanto, não existe saída para o estado de sofrimento senão reconhecê-lo, olhar para ele de frente, com a coragem de admitir essa fragilidade. O sofrimento leva à reflexão, possibilidade de autoconhecimento e surpresa com a superação, pois ele machuca, mas nos faz crescer.
O objetivo não é fugir do sofrimento, mas senti-lo plenamente. Falar dele um pouco, se necessário, como uma forma de deixá-lo partir, sair de nós e seguir seu caminho. O importante é ficar atento para que a mente não utilize o sofrimento para não se manter preso ao papel de vítima, seja do destino, ou de alguém em particular. Sentir pena de si mesma e querer obter atenção contando sua história a todo mundo só fará com que a pessoa permaneça paralisada no sofrimento. A chama da consciência é a única defesa que se tem para passar pelo sofrimento, pois ela ajuda as pessoas a atravessar o túnel escuro e encontrar a luz que sempre esteve à espera do ser que sofre9.
O sofrimento não é alheio à vida humana, mas está completamente presente nela ainda que sob formas e modalidades muito distintas; ele é uma vivência que acompanha a vida humana em toda sua trajetória. O homem sofre precisamente porque é vulnerável, e, quando sofre ou quando está doente, percebe de modo evidente sua extrema vulnerabilidade e heteronímia8.
O ponto mais comum do sofrimento é a doença, pois é nela que a pessoa experimenta a dor física e emocional em simultâneo. Quando o homem adoece, passa a perceber a sua vulnerabilidade. Assim, deve-se sempre ter em consideração os fatores que conduziram a pessoa àquele estado, a forma como a pessoa lida com a situação e o tipo de apoio que recebe para revertê-la.
Sofrimento e doença relacionam-se mutuamente, ainda que não necessariamente se identifiquem. A doença leva, em geral, a algum tipo de dor ou sofrimento. Por outro lado, há sofrimentos que não se relacionam diretamente com a doença, como o sofrimento da solidão, da velhice, do desamor, da saudade, ainda que possam se converter em vivências de tipo patológico8.
É importante reconhecer que o sofrimento não tem uma manifestação unitária para os indivíduos, ainda que sejam de uma mesma família, cultura ou período histórico. O que é sofrimento para um não é necessariamente para outro. Daí a relevância de entender que, na qualidade de enfermeiros, devemos estar preparados para cuidar nesta perspectiva de complexidade do ser humano e de suas infinitas possibilidades e potencialidades, e ao mesmo tempo oferecer um cuidado que respeite a singularidade e que também seja integral e holístico.
Essa condição básica do ser no mundo não pode ser definida somente a partir do acontecimento, pois o sofrimento depende da significação que assume no tempo e no espaço, bem como no corpo que ele toca. O homem sofre porque passa a perceber a sua finitude, o que faz do sofrimento uma dimensão não apenas psicológica, mas, sobretudo, existencial7.
Refletir sobre esta condição é ponto fundamental, pois vivemos em um momento tecnológico dominado pela "medicalização", em que fugir da dor é o caminho racional e normal. Assim, o sofrimento não é permitido, como se fosse algo que estivesse no domínio do homem. Claro que esta mentalidade retira do sofrimento seu significado íntimo e pessoal e o transforma em problema técnico. Estamos em uma sociedade secularizada em que o sofrer não tem sentido e por isso somos incapazes de percebê-lo9.
Sofrimento humano e o cuidado de Enfermagem
Na arte de cuidar, a consideração de sofrimento é fundamental, pois só se pode cuidar adequadamente de um ser humano se reconhece o duplo nível de padecimento, a saber, o sofrimento exterior e o sofrimento interior. Pode-se combater o sofrimento exterior a partir da terapêutica, da farmacologia e dos instrumentos tecnológicos, mas o sofrimento interior reclama um modo de atenção distinta, reclama presença humana, a palavra adequada e o árduo exercício do dialogo8.
Neste âmbito, a Enfermagem não pode negligenciar o sofrimento, temos que romper a tendência de cuidar em concentrar somente nos sintomas físicos, como se fossem a raiz única de angústias para o paciente. Assim, na relação de cuidado, têm de ser valorizados aspectos importantes, como o diálogo, a escuta, sensibilidade, ternura, empatia, porque o ser humano é um ser em busca de sentido. Essas são condições necessárias que o enfermeiro deve ter para cuidar de alguém que sofre.
Além disso, ajudar a enfrentar o sofrimento, sem mentiras, é importante, pois o sofrimento também leva a autoconhecimento, superação. Ele tem o papel de preparar, pois o ser humano, apesar das incertezas, resiste e tem esperança de que aquele momento é uma etapa a ser enfrentada e que de nada adiantará fugir.
Existe uma interface também do sofrimento de quem é cuidado com o de quem cuida. O enfermeiro não está alheio ao sofrimento e precisa se perceber como um ser vulnerável, para daí transcender e ter melhores condições de cuidar, acompanhar. Portanto, é criado para cuidar e ser cuidado, ora ativo, ora passivo nesta relação.
Em uma aproximação da humanização do cuidado da dor e sofrimento humanos, passamos por uma profunda crise de humanismo, pois falamos insistentemente de ambientes desumanizados, tecnicamente perfeitos, mas sem alma e ternura humana, tanto para quem é cuidado como para quem cuida.
A pessoa humana vulnerabilizada pela doença deixou de ser o centro de atenções e passou a ser instrumentalizada em função de determinado fim, podendo ser transformada em objeto de aprendizado, o status do pesquisador, ou ser cobaia de pesquisa, situações que comprometem a verdade ética de que as coisas têm preço e podem ser trocadas, mudadas e comercializadas, mas as pessoas têm dignidade que deve ser respeitada9.
A tecnologia hospitalar (equipamentos e medicações) tem o objetivo de cada vez mais tentar prolongar a vida, mas nos faz refletir também até que ponto não prolonga o sofrimento. É preciso ter equilíbrio na relação de cuidado para que não extrapole o limite entre amenizar, e sim favorecer o sofrimento. É preciso não perder o foco do respeito à dignidade humana e à ética do cuidar.
O desenvolvimento tecnológico biomédico estabelece o que é chamado de triunfo da "medicalização", levando a procedimentos de intervenção prolongada, à obstinação terapêutica. Isso pode resultar na perpetuação de intervenções e de tratamentos que não agregam benefícios substanciais para os pacientes.
Além de uma Antropologia do cuidar, existe, de modo explícito ou implícito, uma Ética do cuidar, cujo fim é regular eticamente a ação de cuidar, ou seja, analisar sob uma perspectiva racional e crítica o que significa cuidar de um modo virtuoso. A ação de cuidar delineia graves e profundos desafios de caráter moral e ético, sendo absolutamente imprescindível refletir em torno de aspectos tais como: liberdade, intimidade, justiça e bem8.
A Medicina contemporânea alcançou um desenvolvimento técnico tão impressionante que os profissionais de saúde tendem a considerar um imperativo sua incorporação, correndo-se constantemente o risco de reinvidicá-lo como sendo, também, uma exigência ética. Assim, o que pode ter ocorrido é uma inversão da relação entre Medicina e tecnologia: não mais esta a serviço da primeira, mas, ao contrário, a Medicina a serviço da tecnologia.
É neste contexto da Medicina contemporânea que surge o moderno movimento hospice, emergindo dentro de um ethos que se fundamenta na compaixão e em um tipo de cuidado do paciente que pretende ser global, estendendo-se os cuidados à família, em uma busca ativa de medidas que aliviem os sintomas angustiantes da doença, em especial, a dor, e que possam dar significado ao sofrimento do paciente, encarando a morte como parte de um processo natural da biografia humana, e não como um inimigo a ser "obstinadamente" enfrentado.
É importante perceber que o cuidado não é um processo de uma só via, pois existe uma relação entre dois seres humanos; de um ser humano dotado de preparo técnico-científico e humanístico e disponível para o cuidado efetivo e de outro ser que está necessitando de ajuda. Desse modo, se sentirá satisfeito com o cuidado e o afeto recebidos e, certamente, estará pensando positivamente sobre o fato e emanando um sentimento correspondente, o que certamente refletirá beneficamente em si.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em um contexto de crescente "tecnologização" do cuidado, é urgente recobrar uma visão antropológica holística, que cuide da dor e sofrimento humanos nas suas várias dimensões, ou seja, física, social, psíquica, emocional e espiritual, que alia competência técnico-científica e humana.
Um dos objetivos do cuidado em Enfermagem é justamente minorar o sofrimento humano causado pelas doenças; com o surpreendente progresso tecnológico, chegou-se à ilusão de pensar que a gestão técnica da dor seria a solução, mas, independentemente de serem um problema de ordem técnica, a dor e o sofrimento situam-se na esfera ética / humana e devem ser considerados nas suas várias interfaces.
REFERENCIAS