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CAPES

Volume 8, Número 3, Set/Dez - 2004

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Representações sociais de enfermeiros do programa saúde da família sobre a hanseníase: uma contribuição para a enfermagem

 

Social representations of nurses from the family health program on hansen's disease: a contribution for nursing

 

Representaciones sociales de enfermeros del programa salud de la familia sobre la hanseniase: una contribución para a enfermería

 

 

Ângela Maria Rodrigues FerreiraI; Maria José de SouzaII

IMestre em Enfermagem. Professora Assistente III da Universidade Estadual do Pará, Departamento Acadêmico de Enfermagem Comunitária. E-mail: rehistor@amazon.com.br
IIProfessora Adjunta, Doutora em Enfermagem e Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Enfermagem e Saúde Coletiva do Departamento de Enfermagem em Saúde Pública da EEAN-UFRJ

 

 


RESUMO

O objeto desta pesquisa é a representação social de enfermeiros do Programa Saúde da Família sobre a hanseníase, com o objetivo de descrever as representações sociais dos enfermeiros do município de Belém sobre a doença e analisar essas representações com vistas à identificação de elementos significativos relacionados à sua prática profissional. É um estudo descritivo-qualitativo, tendo como suporte teórico os conceitos de representações sociais. Os sujeitos foram 22 enfermeiros do PSF do município de Belém. Utilizou-se a técnica de entrevista semi-estruturada e de livre associação de idéias. Os dados foram organizados a partir das unidades temáticas construídas: Hanseníase - a doença; e o encontro - reações e sentimentos. Os resultados mostraram que as representações sociais dos enfermeiros foram aproximadas do conhecimento reificado, demonstrando uma forte relação com os fatores biológicos. A maioria dos sujeitos mantém a representação da doença como incapacitante e causadora de estigma, apesar de ser uma doença curável.

Palavras-chave: Hanseníase. Enfermagem. Serviços Básicos de Saúde. Enfermagem em Saúde Pública.


ABSTRACT

The object of this research is the social representations of the nurses from the Family Health Program on Hansen's disease, with the purpose of to describe the social representations of the nurses from Belém city - Pará - Brazil, about the disease and to analyze these representations with sights to the identification of significant elements related to its professional practical. It's a descriptive-qualitative study, having as theoretical support the concepts of the social representations. The subjects was 22 nurses from the PSF (Family Health Program) of Belém. It was used the half-structured interview and free association of ideas techniques. The data was organized from the constructed thematics units: Hansen's disease - the illness; and the Meeting - reactions and feelings. The results had shown that the nurses' social representations were closed of the rectify knowledge, evidencing a strong relationship with the biological factor. The majority of the nurses that was subject of this study, sustain the representations of the illness as incapacity and as a stigma originator, in spite of be curable.

Keywords: Hansen's disease. Nursing. Basic Health Services. Public Health Nursing.


RESUMEN

El objeto de esta pesquisa es la representación social de enfermeros del Programa Salud de la Familia en relación a la hanseníase, con el objetivo de describir las representaciones sociales de los enfermeros de la ciudad de Belém-Pará - Brasil, sobre la enfermedad y analizar esas representaciones visando la identificación de elementos significativos relacionados a su práctica profesional. Es un estudio descriptivo y cualitativo, teniendo como soporte teórico los conceptos de representaciones sociales. Los sujetos fueron 22 enfermeros de ese programa en la ciudad de Belém. La técnica utilizada ha sido la de entrevista semiestructurada y de libre asociación de ideas. Los datos fueron organizados a partir de las unidades temáticas construidas: Lepra _ la enfermedad; El Encuentro _ reacciones y sentimientos. Los resultados han mostrado que las representaciones sociales de los enfermeros fueron aproximadas del conocimiento cosificado, demostrando una fuerte relación con los factores biológicos. La mayoría de las personas mantiene la representación de la enfermedad como incapacitante y autor del estigma, a pesar de ella ser curable.

Palabras clave: Hanseníase. Enfermería. Servicios  Básicos de Salud. Enfermería en Salud Pública.


 

 

INTRODUÇÃO

O estudo tem como objeto as representações sociais de enfermeiros sobre a hanseníase. A opção pelo mesmo deu-se pela afinidade com a clientela portadora dessa doença e pelas observações durante a vida profissional, no trabalho de supervisão das ações realizadas pelo enfermeiro no programa de controle da hanseníase.

Percebemos que, em suas atividades cotidianas, os enfermeiros que trabalhavam no Programa Saúde da Família (PSF), do município de Belém, demonstravam preocupação com a saúde de outros grupos humanos, a exemplo de mulheres crianças, idosos, portadores de hipertensão, entre outros. Para esses grupos, eles promoviam ações educativas visando à prevenção. Porém, para os portadores de doenças transmissíveis, especificamente a hanseníase, seu trabalho não era da mesma forma. A detecção e notificações de casos não eram realizadas, assim como as ações educativas direcionadas à comunidade.

Outro fato é que os profissionais recebem treinamento para executarem as ações programáticas nos diferentes níveis de complexidade. Porém, no cotidiano assistencial, eles avaliam quais as que podem ou não executar. Por essa razão, o doente não recebe todas as atividades necessárias ao atendimento como: prevenção da incapacidade física pela adoção de técnicas simples, vigilância dos contatos e educação em saúde, diferente do que é preconizado, ou seja, um atendimento integral. Alguns fatores podem estar influenciando nessa atitude, a exemplo do medo em se contaminar que permeia a dinâmica assistencial. O fato é que os enfermeiros sentem-se temerosos em se contaminar e, por isso, afastam-se desse atendimento(1).

Esses fatos são preocupantes, considerando a situação endêmica da doença no Estado do Pará, a qual se constitui um problema de saúde pública. Como descrito, a hanseníase é uma doença infecciosa, causada pelo Mycobacterium leprae, bacilo que tem preferência por pele e nervos, transmitida de pessoa a pessoa, através do convívio com doentes das formas contagiantes (Virchowiana e Dimorfa) sem tratamento(2). Apesar de ser hoje comprovada sua cura, se a doença não for tratada adequadamente, poderá causar sérios problemas de incapacidade física, comprometendo, principalmente, os olhos, as mãos e os pés(3).

O Brasil é o segundo país do mundo em números absolutos de casos, perdendo apenas para a Índia. O Estado do Pará apresenta uma situação epidemiológica de endemicidade muito alta, conforme os parâmetros do Ministério da Saúde (MS)(3). O coeficiente de prevalência, em 2001, foi 09,19 por 10.000 habitantes. Apesar do lento decréscimo nas taxas de prevalência, os indicadores ainda mostram que a situação epidemiológica da endemia é preocupante. O Pará, entre as unidades da Federação nacional, ocupa o primeiro lugar no que concerne ao número absoluto de casos registrados e casos novos(4).

No município de Belém, cenário do estudo, a doença é um problema de relevância epidemiológica para o Estado, por apresentar coeficientes de detecção e de prevalência elevados.

Diante do exposto, questionamos sobre os possíveis fatores que podem estar influenciando no trabalho do enfermeiro junto à pessoa acometida de hanseníase, em termos objetivos - execução de ações, e em termos subjetivos - o pensamento e os sentimentos diante da doença. Assim, tornou-se necessário dar voz aos enfermeiros para que pudessem expressar seus pensamentos e sentimentos em relação ao trabalho que realizam junto à pessoa portadora de hanseníase. Pensamos que ao nos apropriarmos das representações desses profissionais, algo de novo emergisse e clareasse parte de nossas dúvidas, em relação a não desenvolvimento de todas as ações estabelecidas pelo Programa de Controle da Hanseníase. Além disso, o conhecimento produzido pode favorecer um repensar sobre a doença e as implicações para a prática profissional.

Assim, este estudo foi delineado com os seguintes objetivos: descrever as representações sociais dos enfermeiros do município de Belém-Pa sobre a hanseníase e analisar essas representações com vistas à identificação de elementos significativos para a prática profissional.

 

METODOLOGIA

O estudo é do tipo descritivo e de abordagem qualitativa utilizando como referencial, os aspectos conceituais da Teoria das Representações Sociais. Os estudos descritivos permitem, entre outros aspectos, evidenciar as características, propriedades ou relações existentes na comunidade, grupo ou realidade pesquisada; buscar o conhecimento sobre diversas situações e relações que ocorrem na vida social, política, econômica e demais aspectos do comportamento humano(5). A abordagem qualitativa permite a reflexão das ações desenvolvidas pelo ser humano, em situações que podem ser expressadas e detectadas pelo subjetivo, buscando, no seu interior, idéias e sentimentos que, muitas vezes, o lado objetivo não permite perceber. Além disso, ela ainda possibilita a descrição exata dos fatos(6).

No momento, ater-nos-emos ao falar sobre a Teoria das Representações Sociais, que serve como enfoque teórico conceitual deste estudo. Optamos por essa abordagem pelo fato de a mesma reconhecer o individuo como um ser psicossocial, pois este se apropria de um conhecimento, aplica o seu toque pessoal e o compartilha com o seu grupo de pertença.

As representações sociais são fenômenos complexos, ativos agindo na vida social. A noção de representação social está, pois, na interface do psicológico e do social. Ela se refere à forma pela qual apreendemos os acontecimentos da vida cotidiana e se configura como a verbalização das concepções que o indivíduo tem do mundo que o cerca. São constituídas de conhecimentos gerados a partir de informações, opiniões, atitudes, entre outros, sobre um objeto, uma pessoa ou uma prática. Essa representação é sempre oriunda da relação do sujeito com seu grupo, levando em conta o meio social, político e econômico(7).

A elaboração e funcionamento de uma representação podem ser compreendidos através dos processos de objetivação e de ancoragem. O primeiro pode ser entendido como o ato de "reabsorver um excesso de significações materializando-as. É também transplantar para o nível de observação, o que antes era apenas inferência ou símbolo"(8). Ela transforma um conceito abstrato em concreto, ou seja, torna um termo desconhecido em conhecido.

Os dados foram coletados através de entrevista semiestruturada e da associação livre de palavras aplicadas para 22 enfermeiros do PSF do Município de Belém, após sua leitura e assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. No referido documento, foi garantido o anonimato. Solicitamos, também, permissão para utilizarmos o gravador com fita cassete. O projeto foi autorizado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Pará. Com estes cuidados, atendemos à Resolução nº 196/96, do CNS/MS, que normatiza a pesquisa envolvendo seres humanos.

Utilizamos a técnica de análise de conteúdo temática para trabalharmos as informações coletadas. Ela consiste na seleção de um ou vários itens de significação em uma unidade de codificação, que vem representada por uma frase retirada do texto. Tanto uma afirmação como uma alusão podem constituir-se em um tema(9). Nesse processo, emergiram duas unidades temáticas, geradas dos elementos contidos nas falas dos sujeitos. Assim, os elementos do pensamento tornaram-se elementos da realidade.

Os sujeitos apresentaram as seguintes características: 95,4% deles são do sexo feminino, com faixa etária predominante entre 27 a 38 anos. O tempo de graduada variou de 20 a 30 anos com predominância acima de 10 anos (33%); em sua grande maioria (86,4%), referiram professar a religião católica e 68% são casadas. A renda pessoal variou entre R$ 1.600,00 a R$ 3.500,00.

As unidades temáticas e suas subunidades, apresentadas a seguir, foram analisadas e interpretadas à luz do referencial teórico-metodológico das Representações Sociais e de outros autores selecionados.

 

ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

Hanseníase - a doença

A hanseníase é vista hoje como uma questão sociocultural, ao contrário da visão positivista que a considerava-a como um fenômeno biológico. Nas últimas décadas, tem-se observado um interesse cada vez mais crescente pelos estudos ligados ao processo saúde-doença, dentro desse enfoque(10). Para isso, foram utilizados conceitos que partiram da premissa de que a experiência subjetiva do adoecimento é diretamente influenciada pela cultura. Esta influência acontece através do aprendizado de estruturas cognitivas (incluindo um vocabulário próprio) que filtram a experiência corporal e influenciam e limitam a interpretação das alterações físicas e emocionais.

Os sujeitos do estudo, ao serem solicitados a falarem sobre a doença, comunicaram suas representações sobre a mesma, cujos conteúdos estavam impregnados de informações e imagens. A causa da doença ligada a sistemas sociais mais amplos, como a realidade do meio ambiente, esteve presente em 86,4% dos depoimentos; consideramos estes como fatores socioeconômicos. O estigma que marca socialmente a hanseníase foi referenciado por 76% dos entrevistados. A visão da doença que tem relação com o tratamento foi referido por 43% dos sujeitos do estudo. Nesse aspecto, foram destacados fatores institucionais como abandono e realização de forma incorreta do esquema de tratamento, o controle dos comunicantes e a dificuldade dos profissionais em abordar o cliente e sua família. Procederemos, a seguir, à análise dos subtemas.

O conhecimento sobre a doença

Como mencionado anteriormente, as causas produzidas por fatores ambientais tiveram predominância nas respostas, observando-se que se reportam à pobreza, como se a hanseníase fosse doença exclusiva de pessoas pobre. Este fato pode ter conotação de estigma, emergindo em conseqüência da realidade observada no cotidiano dos profissionais, na qual vêem as características das pessoas acometidas pela doença em sua área de trabalho, como identificamos nos depoimentos a seguir:

A doença atinge principalmente aquela comunidade com um menor poder aquisitivo, até mesmo pela questão da falta de cuidados higiênicos, alimentação (E8)

(...) A doença não escolhe classe social, embora esteja mais exposta a classe menos favorecida, com péssimas condições de higiene e de saneamento básico, o que facilita a suscetibilidade para adoecer. (E4)

A hanseníase tem áreas de eleição. Existe um sinal bem característico e imprescindível no caso de suspeita da doença - a alteração da sensibilidade em alguma área do corpo. Considera-se este sinal valioso para o diferencial de diagnóstico em outras dermatoses. As falas dos sujeitos refletem o conhecimento reificado não somente sobre a doença e suas manifestações, mas também sobre o tratamento:

[a doença] tem preferência por pele e troncos nervosos; os sinais e sintomas são: manchas hipo ou hipercrômicas, dormência, alteração da sensibilidade térmico-dolorosa e tátil; se não tratada adequadamente pode levar à incapacidade física inclusive cegueira (E6).

(...) É uma doença que tem um período longo de incubação, causada por uma bactéria. Não é tão fácil de ser diagnosticada, podendo ser confundida com outras dermatoses (E2).

A crença na cura representa toda perspectiva que o profissional possui em relação à doença. É a representação que, no imaginário do grupo, reflete avanço técnicocientífico. Essa certeza expressa também a operacionalização do trabalho. Essas idéias são ratificadas pela maioria (90%), pois o vocábulo "cura" foi a representação de maior freqüência na fala dos sujeitos do estudo. Uma vez não mais existindo suas manifestações, espera-se que a pessoa não sofra a rejeição social. Simboliza, portanto, a satisfação profissional em ter conseguido ajudar alguém a acabar com a moléstia, evitando maiores danos, como referenciado a seguir:

(...) Antes não acreditava na cura. Hoje tenho certeza de que é uma realidade. E procuro passar essa certeza para os pacientes, quando perguntam: "essa doença tem cura?" (E1).

Parece ser embaraçoso para alguns depoentes aceitarem a cura em razão da permanência da seqüela, embora alguns depoentes nela acreditem. Para eles, a cura da hanseníase está associada à regressão completa de sinais e sintomas. Por essa razão, alguns pacientes nem acreditam nela. Essa preocupação, ao buscar compreender o significado de estar curado ou de cura para aquelas pessoas que foram submetidas ao tratamento e receberam altas, chama a atenção para a necessidade de um acompanhamento mais humano pelos profissionais, pois nem sempre existe a completa regressão dos sinais e sintomas da doença, tendo a pessoa que conviver com as marcas e/ou seqüelas deixadas e suas implicações na vida social futura(11). É consenso que essas marcas constituem-se entraves para a aceitação de cura por parte do doente e pel a sociedade, tornando-se muitas vezes símbolo de segregação social.

Esses conflitos encontram-se presente nas reações manifestadas pelos profissionais, caso estivessem com o diagnóstico da doença (mesmo de forma virtual). Tivemos a comprovação de que o estigma e o medo imperam, atribuindo a eles o tempo prolongado de tratamento e a incapacidade que a doença pode causar. Não somente sua presença nos sujeitos, mas até a suspeita do diagnóstico da doença já é suficiente para levar as pessoas ao medo, desespero e a se afastarem. Os enfermeiros sentem-se temerosos em se contaminar, evitando o atendimento(11). Esse medo pode estar camuflado, tomando várias formas de expressão, como podemos identificar nos depoimentos a seguir:

AH! Eu ia ficar revoltada e muito preocupada, arrasada. Eu sei que existe tratamento, mas eu não ia aceitar. É um tratamento muito prolongado, e as pessoas iam dizer: olha ela tem hanseníase. Eu não queria ficar rotulada por causa do preconceito e da seqüela (E3).

Eu ficaria abalada por ser uma doença estigmatizante. As outras pessoas ficam com medo de estar próximas (...) hoje eu tenho uma filha. Por isso vem a nossa preocupação (E8).

O relato descrito mostra reações e sentimentos diferentes relacionados à forma de confrontá-los com acontecimentos inesperados. As informações difundidas em relação à hanseníase causam impacto no indivíduo pela possibilidade dele ser alijado do convívio social, de prejudicar outras pessoas, trazendo em sua intimidade critérios culturais e, sobretudo, critérios normativos que influenciam esses comportamentos.

A doença e sua marca

Como dito anteriormente, o estigma que envolve a doença hanseníase apareceu na fala da maioria dos entrevistados (76%). Além do termo estigma, outros emergem nos depoimentos como discriminação e preconceito. Cabe destacar que eles utilizaram em seus discursos o termo hanseníase e não lepra, a qual foi considerada como uma terminologia antiga, do passado, que lembra isolamento. Para eles, o termo hanseníase não carrega os significados do termo lepra, contribuindo para a difusão de outro conhecimento sobre a doença no meio social. Apesar dessas considerações, observamos que em suas falas os vocábulos expressos para a lepra e a hanseníase têm o mesmo sentido, mostrando uma transição das representações dos sujeitos sobre a doença:

[Lepra] doença ruim que leva a pessoa à discriminação. Doença muito estigmatizante (E3).

[Hanseníase] doença de pele, pessoas estigmatizadas (...) (E5).

A veiculação das representações sociais na vida cotidiana dá-se através de suportes, os quais são caracterizados como sendo:

(...) Basicamente os discursos das pessoas e grupos que mantém tais representações, mas também os seus comportamentos e práticas sociais nas quais se manifestam. São ainda os documentos e registros em que os discursos, práticas e comportamentos ficam institucionalmente fixados e codificados (12).

A fala E17 aponta a importância do envolvimento da família no tratamento. Sem dúvida, não podemos deixála de fora, principalmente o profissional que trabalha no PSF, por se encontrar diretamente na comunidade.

As drogas são realmente potentes. Tem paciente que se adapta bem ao tratamento sem nenhum problema... tem paciente que apresenta reação intensa... chega a parar o tratamento por conta própria. Esses casos são mais trabalhosos. Temos que envolver a família para convencê-lo. (E17)

No desenvolvimento do trabalho, as discussões sobre a família devem enfocar os aspectos relacionados ao autocuidado, ao exame dos contactantes, à importância de apoio ao familiar doente, às alterações psicossociais causadas pelo doença e até mesmo ao uso correto do medicamento. Dessa forma, podemos ganhar aliados para o esclarecimento da doença na comunidade.

O Encontro: reações e sentimentos

Os sentimentos em relação à reação do enfermeiro quando pela primeira vez se aproximou de um portador da doença, mesmo já sendo profissional, não diferiram da reação que tiveram enquanto acadêmicos, prevalecendo o medo.

Os sujeitos demonstraram uma realidade bem diferente do que esperávamos, pois os conhecimentos oferecidos pela academia e pelos treinamentos não foram suficientes para diminuir o impacto do encontro com o doente. Pensávamos que, por terem adquirido outras experiências no cotidiano profissional, esse impacto fosse menor.

O depoimento a seguir aponta para a manutenção do medo que os acompanha, mesmo na condição de profissionais:

(... ) No início do trabalho como profissional ... sentimos medo, receio e vontade de nos afastar do doente (E3).

As incapacidades físicas e deformidades resultantes da doença foram relatadas pelos sujeitos da pesquisa, refletindo o peso que elas possuem sobre o comportamento de grande parte da sociedade, que valoriza os padrões físicos de beleza de acordo com a influência cultural e geralmente ligados aos padrões morais, de modo que o belo induze à idéia do "bom" e a feiúra induza a ideia do "ruim". Diante disso, o contato com um indivíduo "visivelmente" deformado poderá gerar encontros angustiantes, porque ele foge aos padrões de beleza e pelo encontro com algo pouco conhecido. Podemos ratificar essas idéias nos seguintes depoimentos:

... Não tive medo como percebemos em algumas pessoas que chegam a se afastar do caso. Porém, fiquei na expectativa para atendê-las (E13).

... Na comunidade, eu vi um caso todo mutilado,com as incapacidades - perda de dedo, e que já recebeu alta (...) (E8).

A tradição pode exercer uma força sobre nossa mente, da qual a consciência se mostra impotente frente a certas imagens e termos da linguagem, crenças, idéias e emoções(13). Apesar disso, não se deve subestimar a autonomia do presente e a contribuição das pessoas na geração e manutenção de crenças e comportamentos partilhados por todos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados do estudo permitiram tecer algumas considerações. No que tange especificamente às representações sociais dos enfermeiros sobre a hanseníase, estas foram aproximadas do conhecimento reificado, quando definiram a doença, quanto à sua transmissão, mostrando uma forte relação com fatores biológicos. Apesar disso mostraram uma visão mais ampla quando relacionaram a doença a fatores socioeconômicos, cultural e ao estigma. Além disso, deram maior destaque à cura da doença. Na prática, ficou evidente que poucos aprofundam com o paciente os problemas emocionais e sociais.

Mesmo trabalhando no PSF, que tem proposta de reorganização do modelo assistencial, preconizando uma visão holística no atendimento, a partir das necessidades do cliente, os enfermeiros ainda desenvolvem suas atividades dentro do modelo clínico-assistencial. Essa realidade aponta para a necessidade de repensar práticas, valores e conhecimentos de todos os profissionais, com base nos princípios da universalidade, integralidade, eqüidade, descentralização, hierarquização e participação popular. Sabemos que trabalhar com esses princípios do SUS é um desafio, considerando nossa formação profissional pautada no paradigma biomédico, o qual é fragmentado, uma vez que promove uma divisão entre o biológico e o psicossocial, pouco nos instrumentalizando para a atuação na esfera da interação, seja com o usuário, seja com os demais profissionais.

Quanto às reações e aos sentimentos manifestados no encontro com o doente, o medo se fez presente, levando muitas vezes à fuga. As imagens da lepra reportam a um quadro de isolamento, segregação e mutilação, estigmatizando as pessoas que a portam. Esse sentimento precisa ser trabalhado, uma vez que pode ser constrangedor para o doente perceber o medo no profissional que o está cuidando. A mudança de atitude poderá ser propiciada por um trabalho de conscientização que atinja os órgãos formadores e a coletividade, começando no ensino fundamental e indo até o superior.

A mudança do termo para hanseníase pouco mudou a representação da doença, pois os sujeitos evidenciaram que suas representações encontram-se em uma transição: embora seu conteúdo cognitivo aponte a mudança (hanseníase), seus sentimentos mostram a presença da influência da marca social (lepra) e mantêm a representação da doença como incapacitante e causadora de estigma, apesar de ser uma doença curável.

As ações educativas encontram-se restritas a um reduzido grupo de programas por doença, sendo evidente a não valorização dessa atividade como estratégia de trabalho.O que se observa é que parece haver nos serviços de saúde um despreparo profissional e institucional para oferecer atendimento ás necessidades específicas dessa clientela, apesar dos treinamentos realizados. Como conseqüência, as iniciativas de atenção ao doente limitam-se a um atendimento assistencialista/curativo e não-educativo participativo.

Finalizando, não podemos esquecer que as:

Ações de enfermagem não podem estar desvinculadas das ações globais e nem desconsiderar os aspectos políticos, sociais e econômicos que envolvem as questões de saúde, pois reconhecer o direito dos sujeitos à saúde e envidar esforços para sua promoção, proteção e recuperação é uma questão de respeito à cidadania (14).

 

 

1. Andrade M. O ser-enfermeiro assistindo ao portador de hanseníase. incursão na vivência fenomenológica [dissertação de mestrado]. Rio de Janeiro (RJ): Escola de Enfermagem Anna Nery / UFRJ; 1993. 110p.

2. Souza M. Assistência de enfermagem em infectologia. São Paulo(SP): Atheneu; 2000.

3. Ministério da Saúde (BR). Fundação Nacional de Saúde. Coordenação Nacional de Dermatologia Sanitária. Guia de controle da hanseníase. 2ª ed. Brasília (DF). Fundação Nacional de Saúde; 1994.

4. Soares CGM. Hanseníase no Estado do Pará: perfil epidemiológico da população que demanda internação por reações hansênicas [dissertação de metrado]. Rio de Janeiro (RJ): Escola Nacional de Saúde Pública/ FIOCRUZ; 2001.

5. Cervo AL, Bervian PA. Metodologia cientifica. São Paulo(SP): Makron Books do Brasil; 1986.

6. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: a pesquisa qualitativa em saúde. 3ªed. São Paulo(SP): HUCITEC; 2000.

7. Spink MJ. Desvendando as teorias explícitas: uma metodologia de análise das representações sociais. In: Guareschi P, Jovchelovitch S. Textos em representações sociais. Rio de Janeiro(RJ): Vozes; 1995.

8. Moscovici S. Representação social da psicanálise. Rio de Janeiro (RJ): Zahar;1978.

9. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa (Portugal): Ed. 70; 1977.

10. Claro LBL. Hanseníase: representações sobre a doença. Rio de Janeiro(RJ): Vozes; 1998.

11. Andrade M. A cura como conceito vivido: o ex-sistir das pessoas que se submeteram à poliquimioterapia para tratamento de hanseníase [tese de doutorado]. Rio de Janeiro: EEAN/UFRJ; 1997. 146p.

12. Jodelet D. Les représentations sociales. Paris (FR): PUF; 1989.

13. ______, ______. A alteridade como produto e processo psicossocial. In: Arruda A, organizador. Representando a alteridade. Petrópolis (RJ): Vozes; 1998.

14. Ferreira MA, Lisboa MTL, Almeida Filho AJ, Gomes MLB. A inserção da saúde do adolescente na formação do enfermeiro: uma questão de cidadania. In: Ramos FRS, Monticelli M, Nitschke RG, organizadores. Projeto Acolher: um encontro da enfermagem com o adolescente brasileiro. Brasília(DF): ABEn; 2000.

 

NOTAS

Artigo gerado da Dissertação de Mestrado "Representações Sociais de Enfermeiros do PSF do município de Belém - Pará sobre a Hanseníase" aprovada pelo programa da Pós-Graduação em Enfermagem da EEAN/UFRJ, em junho de 2003.

 

 

Recebido em: 03/02/2004
Reapresentado em: 03/11/2004
Aprovado em: 15/11/2004

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