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CAPES

Volume 9, Número 2, Abr/Jun - 2005

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Ritmo de trabalho: fator de desgaste psíquico da enfermeira

 

Work rhythm: factor of psychic consuming of the nurse

 

Ritmo de trabajo: factor de desgaste psíquico de la enfermera

 

 

Norma Valéria Dantas de Oliveira SouzaI; Márcia Tereza Luz LisboaII

IProfessora Assistente do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Faculdade de Enfermagem/UERJ. Doutora em Enfermagem
IIProfessora Adjunta do Departamento de Enfermagem Fundamental da EEAN/UFRJ. Doutora em Enfermagem

 

 


RESUMO

O objeto deste estudo foi o ritmo de trabalho como fator de espoliação psíquica da enfermeira. Os objetivos foram: caracterizar o ritmo de trabalho das enfermeiras hospitalares e analisar o desgaste psíquico no corpo dessas profissionais decorrente do ritmo laboral, no cenário hospitalar. Foi uma pesquisa qualitativa, descritiva, desenvolvida num hospital universitário do Estado do Rio de Janeiro, no 2º semestre de 2002 e 1º semestre de 2003. Coletou-se as informações com 25 enfermeiras de clínicas médicas e cirúrgicas. Utilizou-se a observação participante e a entrevista semi-estruturada como técnicas de coleta de informações. O método de análise foi a hermenêutica-dialética. Os resultados revelaram um ritmo laboral frenético, o qual atingia duramente a dimensão subjetiva das enfermeiras, caracterizando-se como fonte de desgaste psíquico, conduzindo, inclusive, a alterações no processo saúde-doença como: irritabilidade, ansiedade, tristeza, insônia, frustração, hipertensão, taquicardia e modificação no fluxo menstrual. Concluiu-se que o ritmo de trabalho é um potencial fator de adoecimento, devendo-se aprofundar os estudos relacionando essa questão e o nexo causal no processo saúde-doença, suas conseqüências no corpo da trabalhadora e os desdobramentos para a qualidade do trabalho em enfermagem.

Palavras-chave: Enfermagem Ocupacional. Saúde Ocupacional. Trabalho Feminino.


ABSTRACT

The object of this study was the work rhythm as psychic spoliation of nurse factor . The objectives were: to charactize the rhythm of the work of the nurses in the hospital and to analyze the psychic consuming in the body of these professionals resulting of the labor rhythm, in the hospital scenary. It was a qualitative and descriptive research, developed in a university hospital of Rio de Janeiro, in the 2nd semester of 2002 and 1st semester of 2003. It was collected informations from 25 nurses of medicals and surgicals clinics. It was used participant observation and the half-structured interview as information collection techniques. The analysis method was hermeneutics-dialectic. The results had disclosed a frantic labor rhythm, that hardly affected the nurses in the subjetive dimension, characterizing themselves as source of psychic consuming, leading them to feel, in the health-illness process: irritability, suffering, sadness, sleeplessness, disappointment, high blood pressure, quick heartbeat and increase of the menstrual flood. It was conclued that the work rhythm it is a potential factor of sickness, where it must be make a profound study rellated to this question and the causal nexus in the health-illness process, its consequences in the body of the worker and the development to the quality of the work in nursing.

Keywords: Occupational Nursing. Occupational Health. Feminine Work.


RESUMEN

El objeto de este estudio fue el ritmo de trabajo como factor de espoliación psíquica de la enfermera. Los objetivos fueron: caracterizar el ritmo de trabajo de las enfermeras en el hospital y analisar el desgate psíquico en el cuerpo de esas profesionales oriundo del ritmo laboral. Fue una investigación cualitativa, descriptiva, cumplida en un hospital universitario del Estado de Rio de Janeiro - Brasil, en el 2º semestre de 2002 y 1º semestre de 2003. Se recolectó las informaciones con 25 enfermeras de clínicas médicas y quirúrgicas. Se utilizó la observación particpante y la entrevista semiestructurada como técnicas de recolección de informaciones. El método del análisis fue hermenéutica-dialéctica. Los resultados revelaron un ritmo laboral frenético, lo cual atingía duramente la dimensión subjetiva de las enferemeras, caracterizandose como fuente de desgaste psíquico, inclusivamente conduciendo a alteraciones en el proceso salud-dolencia como irritabilidad, ansiedad, tristeza, insomnio, frustración, hipertensión, taquicardia y modificación en el flujo mestrual. Se concluyó que el ritmo de trabajo es un factor potencial de enfermedad, debéndose profundizar los estudios relacionados a esa cuestión y el nexo causal en el proceso salud-dolencia, sus consecuencias en el cuerpo de la trabajadora y los desdoblamientos para la calidad del trabajo en enfermería.

Palabras clave: Enfermería Ocupacional. Salud Ocupacional. Trabajo femenino.


 

 

INTRODUÇÃO

O objeto deste estudo foi o ritmo de trabalho como fator de espoliação psíquica das enfermeiras. O estímulo para discutir essa temática emergiu da teseª de doutorado de uma das autoras, quando no início do estudo exploratório que precedeu o desenvolvimento da referida tese, o ritmo laboral foi percebido empiricamente como um importante fator de desgaste psíquico. Dessa forma, considerou-se relevante desvendar os meandros e as peculiaridades que envolviam essa questão, interrelacionando-a com possíveis desdobramentos no processo saúde-doença das trabalhadoras de enfermagem.

O ritmo ou cadência laboral refere-se à intensidade com que se desenvolvem as tarefas, isto é, "o esforço físico, intelectual ou emocional empregado para executar uma quantidade de trabalho em uma unidade de tempo"1:327. O ritmo de trabalho intenso tem por objetivo elevar a produtividade, o que torna as atividades mais densas e frenéticas, aumentando a carga de trabalho que recai sobre o trabalhador, podendo-se, neste caso, provocar conseqüências negativas devido ao desgaste vivenciado por ele a fim de dar conta das demandas da produtividade e do capital.

O ritmo de trabalho é um elemento do processo de trabalho e, para Laurell e Norriega2:130, este é "o meio através do qual o homem se apropria da natureza transformando-a e transformando a si mesmo". Ele é ao mesmo tempo social e biopsíquico. Os elementos sociais do processo laboral são justamente as características do ritmo de trabalho, a existência da monotonia, da repetitividade e da supervisão estrita. Assim, o olhar deste estudo esteve voltado para o ritmo laboral dentro do processo de trabalho hospitalar e suas repercussões no corpo das enfermeiras, mais especificamente na dimensão psíquica das mesmas.

A fim de apreender o objeto desta pesquisa, traçou-se dois objetivos: caracterizar o ritmo de trabalho das enfermeiras hospitalares e analisar o desgaste psíquico no corpo dessas profissionais decorrente do ritmo laboral no cenário hospitalar.

As pesquisas que abordam desgaste psíquico do trabalhador de enfermagem ainda são incipientes, evidenciando então, a necessidade de elaboração de estudos para minimizar a carência de conhecimento nessa área3. Além disso, à medida que se aprofundam os estudos acerca dos fatores determinantes para a espoliação psíquica dos profissionais de enfermagem, é possível vislumbrar caminhos para melhor atendê-los em suas demandas de saúde.

 

METODOLOGIA

A proposta metodológica para este estudo foi a abordagem qualitativa, pois ela permite conhecer as pessoas "individuamente" e verificar como estão desenvolvendo suas próprias visões de mundo. Fenômenos da ordem do subjetivo, ou seja, sentimentos, desejos, emoções, motivações devem ser estudados a partir dessa abordagem. A pesquisa também se caracterizou como descritiva, pois, segundo Triviños4, esse tipo de estudo visa a compreender e a aprofundar determinada realidade, descrevendo com exatidão os fatos e os fenômenos do que se deseja investigar. Dessa forma, entendeu-se que tal caracterização adequou-se à investigação em tela.

A pesquisa foi desenvolvida em um hospital universitário da cidade do Rio de Janeiro, especificamente em unidades de clínicas médicas e cirúrgicas. Os sujeitos foram 25 enfermeiras que atuavam nesses contextos há pelo menos cinco anos, evidenciando um conhecimento aprofundado da dinâmica de trabalho, do processo laboral e por sua vez do ritmo de trabalho. A escolha também esteve vinculada à disponibilidade e ao desejo das enfermeiras em querer participar do estudo. As informações foram coletadas através de entrevista semi-estruturada e observação participante no período entre o segundo semestre do ano de 2002 e o primeiro semestre do ano de 2003, sendo gravadas em fita magnética e posteriormente transcritas. Os autores atenderam as recomendações do Comitê de Ética, inclusive, mantendo-se o anonimato das enfermeiras através da criação de um código de identificação.

O método de análise e tratamento das informações coletadas foi a hermenêutica-dialética que é descrita como um método que realiza uma reflexão fundamental, um "caminho do pensamento", que tem como norte não se distanciar da práxis social, aprofundando-se na conjuntura histórica, social, econômica e política, buscando uma certa visão de conjunto, a totalidade significativa que ajuda a compreender o fenômeno investigado5.

Seguindo os momentos interpretativos preconizados pelo método hermenêutico-dialético, surgiram três categorias analíticas: 1.Caracterização da intensidade do ritmo laboral das enfermeiras; 2. Repercussões do ritmo laboral no modo operatóriob das enfermeiras; e 3. Desgaste psíquico das enfermeiras decorrente do ritmo de trabalho.

 

ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS

1ª Categoria: Caracterização da intensidade do ritmo laboral das enfermeiras

A análise revelou que o trabalho das enfermeiras possui um ritmo frenético. Tal intensidade deve-se ao volume de atividades que elas são obrigadas a executar num dia de trabalho, às múltiplas atribuições que precisam desenvolver, atravessando a área da assistência, da administração, do ensino e, muitas vezes, da pesquisa. Portanto, fica difícil efetuar todas as atribuições sem sentirem-se pressionadas pelo tempo, até porque, geralmente, a enfermeira chefe de unidade é única na enfermaria em que atua, realizando um trabalho solitário e, por isso, sem ter com quem dividir as múltiplas atribuições que lhe são conferidas pela organização laboral da instituição.

Outro aspecto que torna o ritmo laboral intenso é devido à carência quantitativa de outros membros da equipe de enfermagem, levando a enfermeira a assumir as funções de quem se encontra ausente no plantão. Além desses, outro determinante vem interagir para intensificar o ritmo: a falta de material, equipamentos e instrumentais de trabalho que fazem com que a enfermeira perca tempo, já escasso, na procura desses elementos em outras unidades. Isso resultando no achatamento do tempo, e, por sua vez, pressionando a enfermeira a elevar o ritmo com o objetivo de dar conta das tarefas que são de sua exclusiva competência.

Através dos discursos destacados, é possível identificar os altos ritmos de trabalho dessas profissionais:

O estresse existe, porque eu tenho que controlar pessoal, eu tenho que controlar material, eu tenho que ver o doente que interna, quem entra e quem sai, quem está e quem não está, eu tenho que ver tudo, saber de todo mundo, quem internou, quem não internou. Enf. G

Eu acho que é tanto desgaste que a enfermeira não pára, ela gira, gira, gira... Ela pode parar até dois minutos, mas... édifícil Enf. D

Os resultados dos estudos de Mazzillini e Lunardi Filho7 revelaram igualmente que a enfermagem trabalha sob alto ritmo laboral, vindo ao encontro do que foi analisado na situação dessa pesquisa:

No caso específico do presente estudo, a carência de recursos humanos e materiais para o desenvolvimento do trabalho, tem levado os trabalhadores de enfermagem a acelerarem seu ritmo de trabalho para poderem realizá-lo. Muitas vezes, mesmo assim, não conseguem dar conta de sua completa concretização, dando origem a situações anti-sublimatórias, segundo Dejours (1993), que conduzem ao surgimento do sofrimento psíquico, em alguns casos evidenciados, até sob a forma de padecimento físico7:174-175.

2ª Categoria: Repercussões do ritmo laboral no modo operatório das enfermeiras

O volume elevado de trabalho, que, por conseguinte, pressiona o ritmo laboral, conduz a profissional de enfermagem, em algumas situações, a desenvolver suas atividades sem uma maior reflexão, o que, no coletivo profissional, é denominado de "tarefismo". É a prática pela prática, sem que se possa inter-relacionar os princípios científicos de uma dada tarefa, ou mesmo refletir e discutir sobre os desdobramentos de determinadas condutas sobre a assistência e sobre o cliente como um todo, reduzindo o envolvimento efetivo da profissional no planejamento e na execução dos cuidados. Isso, em última instância, dificulta a implementação de um cuidado individualizado porque ele parece ser efetuado de acordo com uma escala de produção industrial, interferindo no modo operatório da enfermeira em termos da qualidade da assistência oferecida. A preocupação mais relevante relaciona-se com executar todas as tarefa, pois, caso contrário, o cliente não recebe o cuidado a que tem direito no momento necessário, resultando em mais trabalho para o próximo plantão e cobrança pela chefia imediata. Dessa forma, verifica-se que a reflexão da prática, a consciência crítica do que se está executando, fica em segundo plano, na realidade a preocupação é cumprir as tarefas.

Corroborando essa análise, destaco a citação de Rosman8, quando a referida autora, elaborando um estudo sobre as atribuições da enfermeira assistencial, propõe um modelo de enfermagem inovador a fim de, entre outras questões, romper com o "tarefismo" evidenciado na prática de algumas enfermeiras.

O tarefismo leva a enfermeira a achar o cuidado repetitivo e monótono. Fazer curativos ou administrar medicações por meses, faz com que sua motivação ao trabalho diminua, e limita seu crescimento pessoal, já que reduz sua exposição a experiências variadas. A enfermeira não se sente responsável na recuperação do cliente e, muitas vezes, tem o seu trabalho fragmentado e não reconhecido pelo cliente e familiares, ficando frustrada8:20.

Percebe-se que, na situação denominada de tarefismo, se mobilizam muito mais as capacidades motoras e menos as potencialidades psicocognitivas. Assim, surge a alienação de que nos fala Dejours9, imposta por uma organização de trabalho que não dá margens às pausas. A organização laboral que pressiona os ritmos e por isso não possibilita questionamentos, reflexões, discussões e análise acerca do modo como se executa o trabalho impede, então, o surgimento de uma consciência crítica. Dessa forma, de acordo com Dejours9:100.

quando as pressões do tempo são fortes, elas rigidificam os modos operatórios e enclausuram os trabalhadores em um caminho único para executar a tarefa.

É possível ilustrar tal análise através da fala selecionada a seguir:

Eu sofria muito porque eu trabalhava demais, uma pessoa que trabalhava demais. E eu ao mesmo tempo em que no meu mundo interno era uma pessoa muito aberta, o "tarefismo" limitava a minha capacidade de percepção mesmo. Então, eu sempre fazia muito para tentar compensar a falta do outro profissional, que já não fazia porque estava num estágio em que não agüentava mais fazer... Enf. B

A gravidade do estado de saúde dos clientes internados também eleva as cadências laborais nas unidades assistenciais. À medida que o estado de saúde do enfermo piora, ele vai necessitando de um quantitativo maior e mais complexo de cuidados, administração de variados tipos de medicação, encaminhamentos e realizações de exames, enfim, uma gama de procedimentos e terapêuticas que mobilizam pessoal, material, energia e tempo com maior intensidade. Num contexto laboral em que normalmente existe uma carência crônica do fator humano e de insumos, o agravamento do quadro clínico ou cirúrgico do doente leva a um aumento ainda maior do ritmo de trabalho. Pelo depoimento apresentado a seguir, pode-se depreender toda essa complexidade:

Eu já tive épocas na minha enfermaria, de ter uns sete pacientes graves. O médico reclama, a enfermagem reclama, o auxiliar reclama, ninguém descansa, não consegue parar, é um transtorno enorme. Enf. P

Além disso, existe a imprevisibilidade no trabalho em saúde, ou seja, aquele cliente que estava equilibrado, com o estado de saúde estável, com um planejamento de alta por exemplo, pode sofrer uma intercorrência ou alteração no seu estado de saúde e ficar gravemente enfermo. Um exemplo típico dessa imprevisibilidade são as paradas cardio-respiratórias em doentes que embolizam. Eles normalmente estão se recuperando de alguma doença que tem necessidade de restrição prolongada ao leito e, quando voltam a deambular apresentam algum deslocamento de trombo, ocorrendo, então, a embolia - oclusão de um importante vaso sangüíneo. Essa é uma verdadeira alteração do ritmo de trabalho, pois o que estava acontecendo dentro de uma rotina esperada sofre uma mudança radical, precisando de novo planejamento das ações de enfermagem e com um agravante: um ritmo muito mais frenético. A partir do relato da enfermeira M percebe-se tal situação:

A gente não tem como estabelecer uma rotina. Existe uma rotina administrativa, agora, para eu me enquadrar numa rotina, por exemplo, de cuidados, é uma coisa complicada, porque você não tem previsão de nada, de nada do que vai acontecer. A rotina pode ser modificada, por exemplo, devido à constante alteração do quadro do paciente.

Um aspecto observado, e que está estreitamente ligado à intensidade do ritmo de trabalho, é a não realização de algumas atividades em detrimento de outras, isto é, a priorização e delegação de atividades. No entanto, nem sempre a chamada "priorização" das atividades ou a delegação de papéis são as mais acertadas. Através do relato de uma situação observada em algumas unidades de clínicas médicas e cirúrgicas é possível perceber, mais uma vez, a questão do "tarefismo", que impede ou dificulta a reflexão das práticas e das condutas tomadas por algumas enfermeiras, provavelmente pressionadas pelo ritmo intenso de trabalho e pela carência de pessoal, mas que, por conseguinte, ocasiona o distanciamento entre o trabalho prescritoc e o reald. de uma forma que acaba distorcendo o modo operatório da enfermagem.

Observou-se, então, que, em várias unidades onde existem clientes fazendo curva de temperatura, esta encontra-se aprazada para ser feita de 6 em 6 horas (trabalho real), apesar de estar solidificado no saber da enfermagem que curva térmica deve ser realizada de 4 em 4 horas (trabalho prescrito). É importante ressaltar que existe uma justificativa relevante para que o aferimento da temperatura seja dessa forma. Há um princípio científico que norteia tal conduta e que as enfermeiras entendem com clareza, pois, quando questionadas sobre o mencionado aprazamento, elas referiam que não havia tempo nem pessoal para que a curva térmica acontecesse da forma preconizada, isto é, conforme o prescrito no coletivo da profissão.

Entendo que isto passa por algumas questões como: uma prática sem reflexão, um ritmo laboral que violenta as capacidades psicocognitivas e motoras das trabalhadoras, por uma rotina de trabalho massacrante e por uma organização de trabalho não-racional, entre outras razões. No entanto, tal análise é importante na medida em que conduz a uma reflexão sobre distorções no modo operatório da Enfermagem, que acabam por interferir na qualidade da assistência prestada.

Existe ainda outro aspecto que é relevante enfocar, o qual correlaciono à questão dos ritmos com as distorções que circundam a identidade profissional da enfermeira e, por sua vez, com as conseqüências que incidem no modo operatório dessa profissional. Isto é, o que lhe cabe realizar em confronto com o que ela executa de fato. Faço esta reflexão porque algumas enfermeiras relataram que têm a sensação de que não produzem nada, referindo-se inclusive ao sentimento de inutilidade.

No entanto, em outros momentos das entrevistas, elas colocam que fazem inúmeras coisas, no sentido administrativo do trabalho hospitalar. Esse foi o caso, por exemplo, da enfermeira G que disse saber de tudo, controlar tudo, ver tudo na unidade em que trabalha, mas num outro momento, acha que não trabalha realmente. Trago sua fala para esclarecer a análise:

O que mais me incomoda atualmente, na unidade aqui, não tem nada a ver... É a baixa complexidade da unidade, é a sensação de que não estou fazendo nada, que não estou sendo produtiva, que não estou trabalhando. E eu fico pensando, "caramba, tem muito tempo que eu não passo uma sonda vesical, uma sonda nasogástrica, será que eu vou esquecer isso? Às vezes dá a sensação de inutilidade,[...] é que não estou ralando. Eu até fico perguntando se não estão precisando de mim para fazer um estágio.

Faz-se a partir deste depoimento ainda algumas análises. Uma delas é que, por não estar na assistência direta ao cliente, e sim nas funções administrativas, a enfermeira sente que não está cuidando. Conforme essa enfermeira relatou em outro momento da entrevista, seu trabalho é o cuidado ou o gerenciamento do mesmo, e isso na sua concepção acontece com muito pouca freqüência, isto é, ela administra 75% do seu tempo de trabalho e cuida em média 25%. Daí a sensação de que não está produzindo, pois seu modelo de enfermeira é aquela que cuida. Dessa forma, a sua identidade profissional encontra-se em choque com a organização e o processo de trabalho hospitalar, resvalando, inclusive, na forma como ela percebe o seu volume de trabalho.

Outro aspecto que gostaria de ressaltar no depoimento da enfermeira G refere-se à visão, às vezes equivocada, do papel de uma enfermeira no contexto da assistência à saúde, porque, graças ao modelo no qual a grande maioria das enfermeiras é formada, o biologicista, adicionado ao assédio da tecnologia que sofremos continuamente no ambiente hospitalar, e que muitas vezes traz terapêuticas mirabolantes, procedimentos agressivos com promessas inacreditáveis de resultados, acabamos incorporando que só somos enfermeiras quando executamos técnicas invasivas, efetuamos cuidados complexos ou quando lidamos com aparatos tecnológicos. Por isso, a visão equivocada já mencionada, pois quando, por exemplo, recepcionamos adequadamente o cliente, oferecendo uma acolhida terapêutica, estamos sendo enfermeiras como aquelas que lidam com respiradores, bombas infusoras ou que entubam pacientes. Daí também a sensação de inutilidade, uma vez que não estamos invadindo os corpos, não estamos manipulando aparelhos complicados, ou não estamos realizando procedimentos complexos.

Mais uma vez, trago a fala da enfermeira G a fim de exemplificar essa análise:

Quando eu fazia um estágio no Morro dos Cabritos e a gente tinha a sensação de não estar fazendo nada, reclamávamos com a professora e ela passava um sabão na gente. Não sei por que, mas eu fiquei com a sensação de que você tem que invadir o doente para achar que você está fazendo alguma coisa...

Além disso, percebe-se no coletivo profissional uma necessidade de estar trabalhando intensamente, sem tempo para se alimentar, ir ao banheiro, enfim, fazer uma pausa no trabalho. Verifica-se que a profissional de enfermagem é mais valorizada nesse coletivo quando trabalha sob alto ritmo, sob condições absurdas de trabalho, nas quais parece que ela está purificando sua alma, similar à situação na Idade Média, em que o mérito dos cuidadores estava no sacrifício, na abnegação e na doação incondicional. Essa análise encontra-se próxima dos resultados da pesquisa de Lisboa3, pois a autora coloca que as enfermeiras de um determinado hospital universitário costumavam se reunir para falar das vivências de sofrimento decorrentes do trabalho, cada uma procurando relatar uma situação pior, mostrando que conseguiam suplantá-la com facilidade, como se isso fosse uma vantagem profissional.

Gonzales11, em seu estudo sobre o sofrimento na práxis da enfermagem, faz uma relevante consideração acerca do que se traduz em prazer e sofrimento para os profissionais de enfermagem. A autora infere que o nível de prazer está estreitamente ligado à quantidade de situações difíceis que esse coletivo pode suportar.

Refletindo sobre isto tenho a impressão de que o prazer está também associado à vivência do sofrimento existente no trabalho, de uma maneira que, do esforço sem descanso, da contínua abnegação, do esquecimento de si, são extraídos os motivos para a sensação prazerosa do dever cumprido11:37.

Através do trabalho de análise foi possível também identificar um outro elemento incidindo sobre o ritmo laboral: a falta de infra-estrutura básica, no que tange à disposição de instrumental e equipamentos, mobiliário, acesso a banheiro, a água filtrada, entre outros. Por revelar-se inadequada, não oferecendo condições de um atendimento e acompanhamento dos doentes com a devida presteza, verificou-se que a referida infra-estrutura altera o modo operatório e, por sua vez, o ritmo de trabalho, intensificando-o, o que se caracterizou em um ciclo vicioso em que um atua sobre o outro, potencializando o desgaste psíquico da enfermeira. Destaquei um relato da enfermeira S para exemplificar a situação exposta.

Eu acho um desrespeito ao profissional e a mesma coisa em relação ao doente, que é a coisa mais simples, dar água, mas o que acontece? Você tem que cortar um frasco de soro, que é um material caro, para você fazer o copo do doente. E também não tem filtro, aí você pega a água da bica para dar ao doente? E olha o tempo que você gasta para fazer isso. Porque se houvesse um lugar onde você pudesse pegar água, rapidinho, e desse ao doente, isso te provocaria um desgaste muito menor e o atendimento à necessidade do doente seria mais rapidamente atingida. Então isso é um exemplo de demanda desnecessária de tempo e te desgasta.

Apesar do alto ritmo laboral, as enfermeiras queixam-se de repetitividade e monotonia no trabalho, pois elas sabem o que vão ter que enfrentar cotidianamente, quais os problemas que vão aparecer, as providências a serem tomadas. A sensação que se teve era que seus dias de trabalho comparavam-se a um filme visto inúmeras vezes, em que não há surpresas, não existem novas cenas, e portanto, tolhe-se a capacidade de criação, de sonho, de imaginação e de transformação. Pela fala selecionada a seguir, percebe-se com clareza esta situação:

Olha, é um trabalho desgastante, repetitivo. Esse processo de trabalho é uma coisa rotineira, você todos os dias faz a mesma coisa, os problemas quase são os mesmos - falta de alguma coisa, falta de material, problemas com funcionário... Eu chego aqui e já sei que vou trabalhar muito, mas os problemas são os mesmos, ou de ordem de recurso material, ou de ordem de recurso de pessoal ou problema com funcionário. Enf. C

A fim de enfatizar os efeitos deletérios no corpo do trabalhador causado pelo alto ritmo laboral, pela monotonia e pela sensação de inutilidade, cita-se os achados do estudo de Laurell e Norriega2:132, no qual os autores colocam que:

Os ritmos elevados de trabalho, a repetitividade e a monotonia são alguns dos fatores causadores de fadiga, que, por sua vez, refletem no processo saúde-doença, resultando freqüentemente em algum tipo de enfermidade.

3ª Categoria: Desgaste psíquico das enfermeiras decorrente do ritmo de trabalho

O ritmo elevado de trabalho acaba atingindo duramente a subjetividade das enfermeiras e por sua vez levando-as ao desgaste psíquico. Nos discursos destacados anteriormente, verifica-se o emprego de palavras que denotam sensações negativas como estresse, sofrimento, desgaste, exaustão para se referirem às conseqüências do ritmo laboral nos corpos das enfermeiras.

Durante as observações de campo, pude constatar os efeitos do ritmo laboral intenso na dimensão subjetiva da enfermeira C. O plantão nesse dia estava muito agitado, com um volume muito grande de atividades, logo, com um ritmo intenso de trabalho. Havia clientes em estado grave, falta de um auxiliar de enfermagem e do agente administrativo da unidade. Para complicar mais a situação, um desses clientes que estava em estado crítico sofreu uma parada cardiorrespiratória, evoluindo para o óbito. Ao longo de todos esses acontecimentos, observei quantas vezes o nome da enfermeira foi pronunciado e como ela era solicitada por todos os membros da equipe multidisciplinar ali presentes. Ao relatar à enfermeira quantas vezes seu nome foi pronunciado num período de duas horas (aproximadamente 77 vezes), a mencionada enfermeira desabafou dizendo que: "tinha vontade de sumir da enfermaria e de trocar de nome porque não agüentava mais ouvi-lo."

A fim de evidenciar o desgaste psíquico vivido pelas enfermeiras decorrente de um ritmo laboral frenético, destaca-se os discursos das enfermeiras N e M que revelam com clareza a situação aqui analisada:

Eu já venho preparada para um ritmo, todo dia, extremamente elevado porque é uma enfermaria muito pesada. (...) Chega na Quinta-feira, você está quebrada. Enf. N

Eu me sinto sobrecarregada pelo excesso de atividades mesmo, de lidar com milhões de pessoas, com milhões de estruturas dentro da estrutura hospitalar e, na maioria das vezes, sozinha. Sobrecarregada acima de tudo, cansada, angustiada, sofrida. Enf. M

Verificou-se que a cadência laboral é tão espoliante psiquicamente para as enfermeiras que, em suas horas de descanso no domicílio e mesmo de lazer, elas não conseguem desprender-se da sobrecarga resultante do grande volume de trabalho, relatando que tinham a sensação de estarem "ligadas na tomada ou aceleradas" e que tudo que faziam era de forma rápida, mesmo sem a necessidade da referida velocidade. Dessa forma, elas constatavam que tinham dificuldades para se desligarem do ambiente laboral, de relaxarem, de dormirem tranqüilamente, mostravam-se irritadas com os problemas comuns da vida doméstica, resultando, assim, em sentimento de angústia, de aflição, tristeza e de ansiedade. Portanto, fica aqui evidenciado o desgaste psíquico que vivem essas profissionais e a espoliação insidiosa em seus processos saúde-doença. Esse desgaste psíquico insidioso resulta em desdobramentos para o processo saúde-doença das trabalhadoras, com relatos de alteração do fluxo menstrual, hipertensão, dores intensas nos membros inferiores. Os discursos destacados a seguir exemplificam as implicações no corpo das enfermeiras:

Olha, tenho cansaço físico, aquele cansaço muscular, dor nas pernas, às vezes eu percebo claramente que está muito relacionado ao estresse. Eu percebi que eu tenho uma dor na perna que está relacionado ao estresse porque eu sinto logo nas primeiras horas do trabalho. Então não é aquela dor que dá no final do dia, é uma dor no começo do plantão, parece vasoconstricção, que desembocava em contratura muscular. Enf. N

As vésperas do plantão às vezes não dá sono, você fica preocupado, porque sabe que no dia seguinte vai ter pouco funcionário, que o setor está lotado, que não tem material, você já fica imaginando como vai ser o dia seguinte e acaba comprometendo diretamente o padrão do sono, com certeza. Sai daqui estressado. Eu tive uma consulta com a reumatologia no dia do plantão, cheguei lá e estava hipertenso, a médica passou até diurético para mim. Enf. R

Com relação à interferência que o mundo do trabalho exerce sobre o processo saúde-doença dos profissionais, cabe citar Gonzales11 como uma importante fonte de reflexão:

O trabalho em si não provoca sempre sofrimento, ao contrário, pode ser fonte de prazer e realização, desde que sua organização e processo se delineiem em formas não expropriadoras. Os trabalhadores têm sido colocados a serviço do capital, impedidos de desfrutar do resultado do próprio trabalho (...) e isto gera sofrimento, numa constante contradição com sua força interna como fonte de prazer e realização11:20.

 

CONCLUSÕES

Como conclusão desse estudo, constatou-se que o ritmo laboral contribui significativamente para o desgaste psíquico sofrido pela enfermeira no ambiente hospitalar. Pois este, quando se revela elevado, pressionando o tempo da profissional, impedindo as pausas, as quais são de extrema relevância para o processo de criatividade e de motivação da trabalhadora, transforma-se em fator de espoliação psíquica, uma vez que suscita sentimentos de frustração, angústia, tristeza, ansiedade, ou seja, sentimentos negativos que incidem na dimensão subjetiva, degradando a energia psicossomáticae da enfermeira. Tal degradação, em última instância, interfere no processo saúde-doença, minando a saúde e podendo conduzir ao adoecimento físico e/ou psíquico.

Considera-se que as repercussões no corpo das enfermeiras decorrem da organização e do processo de trabalho hospitalar se que caracterizam como fragmentado, pouco racional, autoritário, impondo um ritmo laboral frenético a fim de atender as demandas de trabalho e da produção em saúde 12.

Desta forma, faz-se mister aprofundar as pesquisas sobre processo de trabalho e organização laboral em cenários hospitalares, desvinculando o trabalho em saúde da concepção capitalista que busca produtividade e volume de lucro. O foco de interesse desse tipo de trabalho não é a quantidade e sim a qualidade. Não é possível prestar um cuidado individualizado e humanístico, desenvolver uma postura crítica e reflexiva, tornar-se um profissional aderente às novas concepções de saúde e modelos assistenciais, se este encontra-se inserido num processo laboral arcaico, que aliena e espolia o profissional. Desta forma, é relevante buscar a construção e/ou a implementação de processos laborais que favoreçam a flexibilidade, permitam pausas importantes para a criatividade e motivação, portanto, renovadores da energia psicossomática da trabalhadora. Assim, será possível contribuir para a criação de condições que assegurem e/ou fortaleçam a saúde da trabalhadora de enfermagem.

 

REFERÊNCIAS

I. Rosso SD. Tempo de trabalho. In: CATTANI AD, organizador. Dicionário Crítico sobre Trabalho e Tecnologia. 4ª ed. Petrópolis(RJ): Vozes; 2002. p. 302- 8.

2 . Laurell AC, Norriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo(SP): HUCITEC; 1989.

3. Lisboa MTL. As representações sociais do sofrimento e do prazer da enfermeira assistencial no seu cotidiano de trabalho[tese de doutorado] Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ; 1998.

4. Triviños ANS. Introdução à pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa qualitativa em Educação. São Paulo(SP): Atlas; 1987.

5. Minayo MCS. Hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro(RJ): FIOCRUZ; 2002.

6. Dejours C. A loucura do trabalho: um estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo(SP): Cortez; 1992.

7. Mazzilli C, Lunardi Filho WD. Uma abordagem psicanalítica do processo de trabalho na área de enfermagem. Rev Adm Empres 1996 jul/set;31(3):98-104

8. Rosman MTL. A enfermeira principal: uma estratégia inovadora na prática assistencial [tese de livre docência] Escola de Enfermagem Alfredo Pinto/ UNIRIO; 1990.

9. Dejours C. Por um trabalho, fator de equilíbrio. Rev Adm Empres 1993 maio/jun;33(3):98-104.

10. Daniellou F, Laville A, Tieger C. Ficção e realidade no trabalho operário. In: Textos escolhidos em ergonomia contemporânea. Série Grupo Ergonomia e nova tecnologia. Rio de Janeiro(RJ): COPPE/UFRJ; 1994.

II. Gonzales MRB. Sofrimento na práxis da enfermagem: real ou descolado em seu sentido. Florianópolis (SC): UFSC/Programa de Pós-Graduação em Enfermagem; 2001.

12. Machado JMH, Correa MV. Conceito de vida no trabalho na análise das relações entre processo de trabalho e saúde no hospital. Inf Epidemiol SUS 2002 jul/set;11(3):159-166.

 

NOTAS

ªA tese de doutorado mencionada tem como título: "Dimensão Subjetiva das Enfermeiras Frente à Organização e ao Processo de Trabalho em um Hospital Universitário". Foi defendida no mês de dezembro do ano de 2003 e teve como orientadora a Prof Dra Márcia Tereza Luz Lisboa.

bModo operatório refere-se à forma como os trabalhadores executam seu trabalho, o modo característico que imprimem ao desempenhar a tarefa mediante as peculiaridades do cenário laboral6.

cO trabalho prescrito é o resultado de uma concepção teórica do trabalho e dos meios de trabalho, correspondendo ao entendimento das exigências colocadas pelo sistema técnico e pela gerência para sua execução 10.

dO trabalho real é entendido pela ergonomia como aquele que é vivido no cotidiano dos que executam a atividade, é o que acontece de fato 10.

ePor economia psicossomática, entendem-se as potencialidades funcionais e psíquicas de cada indivíduo, que podem ser consumidas em termos do substrato orgânico da mente e das energias do trabalhador resultando em desgaste físico e psíquico 6.

 

 

Recebido em 16/11/2004
Reapresentado em 20/06/2005
Aprovado em 27/06/2005

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