Volume 9, Número 1, Jan/Abr - 2005
ARTIGOS DE REFLEXÃO
A violência e a sua origem nas interfaces com o mundo do trabalho da enfermeira de saúde pública
The violence and its origins in the interfaces with the world of the nurse's work in public health
La violencia y su origen en las interfaces con el mundo del trabajo de la enfermera de salud pública
Francimar de Jesus Moreira de MouraI; Marcia Tereza Luz LisboaII
IDoutoranda em Enfermagem (Núcleo de Pesquisa Enfermagem e a Saúde do Trabalhador), DESP/Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ
IIProfessora Adjunto do Departamento de Enfermagem Fundamental da Escola Anna Nery/UFRJ. Doutora em Enfermagem e membro da Diretoria do Núcleo de Pesquisa Enfermagem e a Saúde do Trabalhador do DESP/EEAN/UFRJ
RESUMO
Este artigo aborda a violência e sua origem nas interfaces com o mundo do trabalho da Enfermeira de Saúde Pública. O artigo divide-se em duas partes. Inicialmente, é discutida a violência sofrida pelas classes trabalhadoras a partir do Brasil Colônia. A segunda sessão analisa o mundo do trabalho da Enfermeira de Saúde Pública e sua relação com a violência. Realça que essa problemática acompanha, ao longo de décadas, as atividades dessas enfermeiras. Entretanto, na atualidade, a violência nas suas várias manifestações vem dificultando a atividade profissional, particularmente daquelas que integram as equipes do Programa de Saúde da Família no Rio de Janeiro.
Palavras-chave: Violência. Trabalho. Enfermeira de Saúde Pública.
ABSTRACT
This article approaches the violence and its origins and the interfaces with the world of the work of the Nurse of Public Health. The article is divided in two parts. Initially the violence suffered for the diligent classrooms from Brazil Colony. The second session analyzes the world of the work of the Nurse of Public Health and its relation with the violence. It enhances that this problematic follows, to the long one of the decades, the activities of these nurses. However, in the present time the violence in its some manifestations comes making it difficult professional activity, particularly of that they integrate the teams of the Program of Health of the Family in Rio de Janeiro.
Keywords: Violence. Work. Public Health Nurse.
RESUMEN
Este artículo trata de la violencia y su origen en las interfaces con el mundo del trabajo de la Enfermera de Salud Publica. El artículo se divide en en dos partes. Inicialmente, es debatida la violencia sufrida por las classes trabajadoras desde el Brasil Colonia. La segunda sección analiza el mundo del trabajo de la Enfermera de Salud Publica y su relación con la violencia. Es destacado que esa problemática acompaña, durante décadas, las actividades de estas enfermeras. Sin embargo, en la actualidad, la violencia en sus varias manifestaciones dificulta la actividad profesional, especialmente de aquellos que integran los equipos del Programa de la Salud de la Familia en Rio de Janeiro.
Palabras clave: Violencia. Trabajo. Enfermera de Salud Pública.
INTRODUÇÃO
O mito brasileiro preguiçoso esconde a história de milhões de pessoas que ao longo dos séculos de sua existência passaram e/ou passam na luta cotidiana pela sobrevivência, em troca do trabalho assalariado, "... torna possível a acumulação e a riqueza de poucos mediante a exploração e alienação...de muitos" 1:19. É compreensível que os colonizadores portugueses, vindos de uma sociedade em que a elite não trabalhava, organizassem a Colônia de tal forma que as tarefas pesadas ficassem sempre sob a responsabilidade de outros. Isso foi feito de maneira violenta, com a escravização de índios e negros africanos nas lavouras e nas minas de ouro.
Os atos de violência contra segmentos populacionais, considerados inferiores, moldaram a sociedade brasileira a partir desse período e estendendo-se aos dias atuais, pois os conflitos entre indivíduos, grupos e classes sociais são permanentes, diferenciando-se apenas na sofisticação tecnológica dos instrumentos de ataque e defesa empregados.
A violência está presente nos ambientes de trabalho e está mais difundida nos setores dos serviços, como educação, saúde, hotelaria, transporte e nas categorias profissionais como os taxistas, pessoal de enfermagem, professores2. A partir desse reconhecimento, torna-se compreensível que os aspectos referentes à violência também estão presentes no mundo do trabalho da enfermeira de saúde pública. No caso específico do Estado do Rio de Janeiro, o locus de intervenção dessas enfermeiras esteve e continua ligado às práticas assistenciais desenvolvidas principalmente junto aos segmentos populacionais situados no entorno dos centros urbanos, tais sejam os morros e as favelas espaços estes permeados pela violência estrutural caracterizada pela ausência e/ou precariedade de equipamentos sociais, como moradia, escolas, transportes, saneamento básico e outros.
VIOLÊNCIA E TRABALHO
No Brasil Colônia, seguindo as leis de Portugal, as manifestações de violência foram freqüentemente associadas à aliança entre o Estado e a Igreja que instituiu a Inquisição, que, além das razões religiosas, julgava ainda aquelas de ordem política. O confisco de bens da maioria dos judeus e cristãos-novos contribuía para os gastos da nobreza. Como justificativa de ameaça à paz social, eram considerados inimigos - os hereges - todos aqueles que discordassem dos princípios doutrinários da Igreja Católica, enquadrando-se aí os judeus, ciganos e feiticeiros. A exemplo do que ainda ocorre, o andamento legal dos processos era muito lento; não havia interesse no julgamento final, já que os réus, em sua maioria, encontravam-se presos3.
Além daqueles considerados hereges, os negros, as mulheres e os índios foram igualmente perseguidos pelo Estado. Os negros não tinham nenhum direito reconhecido. Estavam à mercê de seus supostos donos, os fazendeiros, que, além do trabalho escravo, lhes aplicavam castigos à sua revelia.
No Brasil Imperial e por conta do Estado, as classes sociais menos favorecidas, compostas pelos "vadios", "capoeiras", "escravos" e "estrangeiros", eram consideradas marginais. Os vadios, indivíduos sem emprego e sem moradia, se encontrados vagando nas ruas, eram presos pela segurança e tinham que se tornar empregados, caso contrário, ficariam detidos por tempo indeterminado. Esse fato realça, já naquela ocasião, a concepção do trabalho regulado pelas relações sociais capitalistas, como a prática da exploração e alienação do trabalhador.
Os capoeiras, indivíduos negros e/ou mulatos, que praticavam manifestações artístico-culturais africanas, eram vitimizados à pena de reclusão nas colônias correcionais. Já os nitidamente negros sofriam penas mais rigorosas - punição com açoites e multas em dinheiro ou então com a pena de morte, se culpados de crime contra a segurança do Império. Os estrangeiros considerados perigosos compulsoriamente apresentavam-se ao "oficial do quarteirão" e ao juiz da paz para informar os negócios que fariam na cidade. Mediante essas evidências, a sociedade brasileira foi-se organizando a partir da concepção da exclusão social daqueles considerados como inoportunos à sua ordem e, assim sendo, o processo de exclusão já presente desde o descobrimento do país vai se concretizando e se incorporando como um componente cultural.
Já no Brasil Republicano 4, a situação estrutural basicamente não se modificou. Os assalariados do campo e das cidades tiveram de lutar muito para conquistar direitos mínimos. Persistiram as práticas de favoritismo à burguesia, cujo fundamento de dominação passa a ser a posse da terra pelos coronéis. O coronelismo, uma herança da época do Império, se difundia cada vez mais, no qual aliou-se a prática do banditismo rural, representada pelos jagunços, que estavam a serviço dos coronéis seus patrões. Já os cangaceiros, pistoleiros e os jagunços livres participavam ativamente dos levantes sangrentos, enquanto questionadores desse poder, e que foram registrados em várias regiões do país, no período de 1890 a 19305.
O final do Século XIX e o início do Século XX foram marcados pela instabilidade política, mediante suas inúmeras revoltas, entre elas a de Armada, a de Canudos, a do Acre, a dos Marinheiros, a da Vacina, a da Chibata, que revelavam a insatisfação dos segmentos populacionais. O Rio de Janeiro, capital da República na ocasião, registrava um crescimento populacional acelerado, por conta da migração dos escravos libertos pela Lei Áurea (1888), que se direcionavam para a zona urbana, tendo como conseqüência a instauração das precárias condições de vida - moradia, saneamento, rede de ensino.
Para o grande contingente populacional e sem ocupação, a ociosidade era considerada crime e, portanto, a repressão aos desempregados e aos subempregados era evidente, tendo-se em conta a segurança pública e a ordem na cidade. Para essa classe, era atribuída a prática de crimes e da vagabundagem, justificando assim o discurso da exclusão social e da perseguição policial.
Portanto, as mudanças no tecido urbano do Rio de Janeiro foram oriundas do crescimento populacional acentuado; os habitantes que, sem recursos e sem trabalho, procuravam acercar-se de seu centro urbano, onde o porto atraía o comércio nacional e internacional. Aquela população encontrava ali o seu ganha-pão sem ter que despender recursos com o deslocamento. Tal situação provocou uma grande concentração demográfica, associada à existência de lotes pequenos no local, com habitações super povoadas, de conservação precária, mal iluminadas e mal ventiladas, com ruas pequenas e sinuosas, onde proliferavam a varíola, a febre amarela e a disenteria; ali era considerado o lugar de concentração da "marginalidade carioca".
Diante do agravamento da situação habitacional, a especulação nesse setor foi exacerbada e a reforma urbanística de Pereira Passos (1902-1906) promovida. Os cortiços e as casas de pensão foram demolidos. Os seus habitantes - os pobres, ex-escravos e desempregados em sua maioria - foram deslocados para o subúrbio, distanciando-se do centro e dos supostos locais de trabalho. Os movimentos repressivos contra os excluídos prosseguem. Objetivando a civilização da capital da República, o governo decidiu combater sem tréguas as doenças epidêmicas que assolavam a capital, como a varíola, a febre amarela e a disenteria. Foi aprovada uma lei que dava plenos poderes aos órgãos sanitários para ordenar a demolição de construções consideradas inadequadas, visando, assim, a eliminação dos seus espaços doentes.
Decretos foram criados com vistas a mudanças de hábitos de seus moradores, tais como a proibição de cuspir dentro dos bondes; todas as repartições foram munidas de escarradeiras disponíveis ao público, proibição da ordenha de vacas nas ruas, da venda de loterias nos quiosques, bem como a mendicância. A legislação trabalhista só foi organizada a partir de 1930, definindo os direitos e os deveres de empregados e patrões, organizando, dessa maneira, a estrutura sindical e a Justiça do Trabalho. No período de 1930 a 1945, o então Presidente Getúlio Vargas criou um complexo esquema de vida sindical, o qual facilitava o controle do Estado sobre o operariado e os patrões e instituiu uma base de apoio a seu governo junto às classes trabalhadoras.
Nas décadas de 1950 e 1960, o sindicalismo assumiu uma posição de maior influência política na vida nacional. Mas o golpe militar, ocorrido em 1964, interrompeu essa tendência, reprimindo fortemente todos os movimentos dos trabalhadores, dos intelectuais, dos artistas e dos estudantes, através dos sucessivos Atos Institucionais (AI) e Atos Complementares (AC), resultando em prisões, torturas, mortes e exílio político daqueles contestadores do sistema.
Já no final da década de 1970, devido ao início do processo de abertura política, o movimento sindical adotou um perfil mais independente, mas o Estado brasileiro não tinha nenhuma intenção de se aliar aos trabalhadores. As manifestações, que inicialmente ocorriam por motivos econômicos, passaram a incorporar também um caráter de contestação ao governo, ignorando assim as prerrogativas do Ato Institucional nº56.
Sob a ótica de Minayo7:100, a década de 80 se apresenta para o Brasil como um momento histórico de aprofundamento de suas crônicas contradições sociais. Nesse período, a instauração do neoliberalismo foi o aspecto mais visível dessa crise, com investimentos maciços em tecnologias alternativas, como a informática, gerando a supressão de postos de trabalho e, em conseqüência, o desemprego. Por outro lado, tornam-se visíveis os atos de corrupção praticados pelas elites econômicas e políticas com apropriações indevidas do que deveriam ser empregados em prol da população.
No início da década de 90, registra-se o Impeachment do presidente da República. Muito embora vivenciando a transição democrática, atos de excessiva violência foram cometidos pelo Estado, vitimizando trabalhadores, repetindo o que ocorria com os excluídos na época do Brasil Colônia.
Do ponto de vista conceitual, entende-se que esse acirramento da questão social se expressa no aprofundamento da violência estrutural. Esta embora se fundamente na economia, reflete-se também na dinâmica das forças políticas e afeta os valores culturais do país 7:111.
A respeito de todas essas questões, em seu editorial, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva afirma que:
Existe um hiato entre o Brasil legal, que assume posições progressistas nos fóruns internacional e nacional de proteção e garantia dos direitos humanos e dos direitos das minorias, e a operacionalização e efetivação de políticas públicas que dêem conta desses compromissos 8:2.
A violência sofrida pelos trabalhadores tem sido uma prática habitual, e os mais expostos são aqueles com pouca qualificação profissional, moradores das favelas e morros, aumentando a desigualdade econômica e social entre as populações do centro e da periferia, em que esta é cada vez mais discriminada, inclusive quando na busca de emprego.
Além dos aspectos macro conceituais da violência imposta aos diversos segmentos populacionais, é igualmente importante aquela diretamente sofrida pelas pessoas nos locais de trabalho. A violência nos locais de trabalho afeta indistintamente os trabalhadores em todos os países e se converte em sérias ameaças à sua saúde.
No setor da saúde, a violência é tão freqüente entre os trabalhadores que estão em contato direto com pessoas em situação de perigo, o que é inerente ao seu trabalho. Diante dessa constatação, dos acidentes de trabalho ocorridos em um contexto de violência, ¼ são registrados nos serviços de saúde 2.
A VIOLÊNCIA NO MUNDO DO TRABALHO DA ENFERMEIRA DE SAÚDE PÚBLICA
Os fatos históricos da enfermagem de saúde pública estão intrinsecamente ligados com os movimentos nacionalistas, a partir do período de urbanização/industrialização e das mudanças de ordem econômica, social, política e cultural ocorridas no início do século XX. Com o trabalho escravo substituído pelo assalariado, a formação de mercados e a mercantilização de bens, a decadência da cafeicultura, o desenvolvimento dos setores secundário e terciário da economia, as grandes migrações, a definição de novas elites no poder foram fatores decisivos para a concretização das classes de opressores e oprimidos. Nessa conjuntura, um grande contingente de pobres buscava na área central da cidade meios de sobrevivência, acarretando-lhe, como uma das conseqüências, a deterioração da saúde e sua decadência moral.
Uma das conseqüências advindas foram as freqüentes epidemias que dizimavam muitos trabalhadores e suas famílias que representavam sérias ameaças nos negócios internacionais. Surge, assim, a organização da saúde pública brasileira na forma de intervenção do Estado. Em decorrência dos efeitos maléficos causados pela 1ª Guerra Mundial (desemprego, exploração da classe trabalhadora, desabastecimento, ineficácia dos serviços públicos, eclosão de movimentos grevistas), a partir de 1920, a saúde pública cresce como um movimento social caracterizado pelo Pró-Saneamento do Rio de Janeiro, liderado pelos intelectuais nacionalistas e pelos sanitaristas da época 9:47.
A CRIAÇÃO DA ESCOLA DE ENFERMEIRAS Dª. ANNA NERY
Por conta dos desdobramentos desse movimento social, é criado o Departamento Nacional de Saúde Pública, tendo como diretor geral o professor Carlos Chagas, e logo a seguir a Escola de Enfermeiras tendo em vista que,
Não existindo em todo o país, nem na América do Sul, uma escola capaz de preparar enfermeiras profissionais, o primeiro passo não podia deixar de ser o estabelecimento de uma escola padrão, nos moldes das mais modernas existentes nos Estados Unidos. Da eficiência do serviço das enfermeiras preparadas por esta escola, dependeria o sucesso do magnífico empreendimento10: 6.
Até então o Departamento Nacional de Saúde Pública dispunha de um grupo de visitadoras sanitárias que recebiam treinamento de poucas horas para o exercício das funções.
É nesse quadro que emerge o ensino sistematizado da enfermagem, tendo, no seu bojo, o propósito de formar profissionais que contribuíssem no sentido de garantir o saneamento dos portos, principalmente o do Rio de Janeiro; daí ela ser iniciada fora dos hospitais, na área de saúde pública, por volta precisamente de 1923, com a criação da Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública11:28.
A partir de 1927, as enfermeiras diplomadas assumiram os serviços de saúde pública, tendo
como objetivo suplementar o trabalho dos médicos sanitaristas é representar a autoridade sanitária na intimidade do tecido social; a inserção da enfermagem na sociedade brasileira, decorrente de uma decisão 'de cima para baixo', causou estranheza à população do Rio de Janeiro e tornou o trabalho de visitação domiciliar (visita domiciliária é uma atividade fim planejada , sistematizada e realizada pela enfermeira de Saúde Pública, com a prestação de cuidados de enfermagem nos domicílios das pessoas sob sua jurisdição) extremamente penoso... no que se refere à resolução dos problemas encontrados 10:44.
Depreende-se, assim, que o trabalho das enfermeiras já nas suas origens é pontuado, também, por situações de sofrimento, devido às precárias condições de qualidade de vida a que estava submetida a maioria da população, em que essas enfermeiras eram responsáveis pela saúde das famílias, ...fosse o problema de um pai tuberculoso, de uma mãe grávida... 12:31.
Após a Segunda Guerra Mundial, com a decadência da agricultura e a forte industrialização, intensos movimentos migratórios se formaram em direção aos centros urbanos. Os migrantes chegavam à capital e se instalavam nos subúrbios distantes dos locais de trabalho. Essa dificuldade incitou a população migrante a se instalar nos terrenos não ocupados e até mesmo pela impossibilidade de construção, ou seja, os morros, terrenos inundáveis e de propriedade duvidosa. As favelas e morros assim se propagaram pelas zonas industriais.
A população assistida no Centro de Saúde vinha, sobretudo dos morros e bairros pobres da área de sua jurisdição, Morro de São Carlos, Querosene, entre outros (depoimento de uma ex-aluna da Escola de Enfermagem Anna Nery turma 1944-2)12:185.
Ainda na década de 40, é registrado como o período de mais forte proliferação das favelas no Rio de Janeiro. Após as eleições de 1947, ficou constatado que o grande apoio aos candidatos comunistas veio dos morros/favelas, preocupando o Governo e ao mesmo tempo em que se tornava um marco de reconhecimento do Estado, da sua existência e que já faziam parte da paisagem da cidade.
Nas décadas de 60 e 70, devido ao sistema político instaurado, a ênfase dada foi em relação às Políticas de Saúde Emergentes e conseqüentemente sua progressiva adaptação ao modelo de privatização dos Serviços de Saúde. As enfermeiras de saúde pública tiveram seu campo de atuação bastante limitado, sendo que o movimento sanitarista de vanguarda foi desestruturado com prisões, exílios, torturas etc. daqueles comprometidos com a saúde do povo brasileiro. Desse movimento também participaram enfermeiras e estudantes de enfermagem.
Lembro-me de uma reunião nos anos 80, em que as enfermeiras de Saúde Pública estavam desgostosas e desiludidas, acabrunhadas por decisões governamentais que as deixavam sem estímulo para o trabalho 12:82.
Nessa contextualização, as atividades das enfermeiras ficaram restritas ao atendimento da população no âmbito interno das Unidades de Saúde.
Mesmo assim as professoras do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Escola Anna Nery/UFRJ desenvolviam com as alunas experiências de ensino/aprendizagem pertinentes à visita domiciliar à clientela faltosa aos Programas de Imunização, Tuberculose, Hanseníase, Pré-Natal, Doenças Sexualmente Transmissíveis. Na maioria dos casos, esses clientes residiam na periferia - favelas e morros - da área de jurisdição das Unidades, tais como Mangueira, Borel, Chacrinha, Tuiuti, Barreira do Vasco, Salgueiro, Nossa Senhora das Graças, Parque Carlos Chagas, Parque São José, Morro Azul, São Carlos, Formiga etc., mantendo assim o marco conceitual implantado quando da fundação da Escola.
Nessas comunidades, os moradores, inclusive aqueles em conflito com a lei, reconheciam nossa atuação como valiosa para os que visitávamos, ocasião em que prestávamos cuidados de enfermagem a gestantes, crianças e adultos, até então uma prática muito desenvolvida pelas enfermeiras e visitadoras sanitárias. Por vezes os policiais nos informavam de suas incursões nesses locais e, assim sendo, não ficávamos tão expostas aos perigos iminentes, como os que ocorrem atualmente.
Por conta da omissão histórica do Estado, paulatinamente o poder paralelo torna-se forte, ampliado e hierarquizado. Seus líderes definem os códigos disciplinares. Os infratores, a depender da falta cometida, já eram julgados com penas do tipo prisão domiciliar, prestação de trabalhos comunitários e até a julgamentos sumários. A banalização da violência vem se concretizando como um componente cultural, mediante a evidência explícita do porte de armas, chacinas de famílias, consumo e venda de drogas, os tiroteios, as invasões aérea e terrestre da polícia por vezes surpreendida com os contra ataques do poder paralelo.
Por outro lado, as questões relacionadas com as Políticas de Saúde têm como conseqüência,
a redução com as despesas com a saúde penaliza sobretudo os conjuntos habitacionais mais vulneráveis, as 'áreas pardas' da periferia e os morros [...] Essas comunidades [...] se sentem abandonadas, desprezadas e podem, em conseqüência disso, tornarem-se hostis, perigosas e mesmo, manipuladas por líderes carismáticos irresponsáveis que as incitam ao ódio, à violência e à revolução13:53.
O PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA
Na busca da reversão desse quadro, os projetos do Programa de Agentes Comunitários (PACS) e do Programa de Saúde da Família (PSF) foram previstos para serem implantados na cidade do Rio de Janeiro, em locais definidos no Orçamento Cidadão e Favela Bairro, a partir de critérios epidemiológicos, da avaliação da pouca oferta de serviço, significando, assim, que esses projetos estão sendo efetivados em localidades em que os moradores estão expostos a riscos inerentes à violência estrutural.
Muito embora asseguradas na legislação trabalhista, as ações de vigilância dos ambientes de trabalho quanto aos riscos a que estão expostos estes trabalhadores não vêm se constituindo como pauta de discussão daqueles responsáveis pelas políticas de saúde do trabalhador, conforme assegura a Portaria do Ministério da Saúde Nº 3.908/1998 - Norma Operacional de Saúde do Trabalhador, que tem como objetivo orientar e instrumentalizar a realização das ações de saúde do trabalhador14.
A lógica do capital e as leis de oferta de trabalho/emprego com salários diferenciados, e tidos como atrativos, têm sido fatores determinantes da inserção de muitas enfermeiras nesse campo de atuação, o que reforça as concepções de uma sociedade capitalista quando estas enfermeiras transformam em mercadoria a sua força de trabalho, na condição de trabalhadoras assalariadas1:17, mesmo que, por vezes, pactuada por uma precária legalização contratual.
Na análise da aproximação da concepção estruturalista da história, no sentido da história estrutural objetiva e na concepção da dialética marxista, na sociedade capitalista, o papel do homem é subserviente 15.
Nessas condições, é provável que essas enfermeiras estejam investindo maiores esforços para lutar contra o sofrimento, mediante as adversidades das situações que enfrenta, haja vista que o medo, seja proveniente de ritmos de trabalho ou de riscos originários das más condições de trabalho, destrói a saúde mental dos trabalhadores de modo progressivo e inelutável... 16:74.
Dentro dessa perspectiva e por conta da crise econômica, o trabalho e sua organização, muitas das vezes, levam o homem a submeter-se e a tornar-se o seu escravo mediante a complexidade do mundo globalizado. Assim entendido, é também desafiante o desvelamento de como essas enfermeiras estão lidando com essa intensa carga emocional e das situações de sofrimento decorrentes de todos os aspectos aqui tratados, pois
a complexidade da violência, suas diferentes causalidades - política, econômica, cultural, religiosa, étnica, de gênero, etária, etc., torna o seu enfrentamento um grande desafio - exige esforços de pesquisa para sua melhor explicação do problema em situações concretas17:3.
Intrinsecamente ligada ao seu trabalho está a relação das enfermeiras com a sua clientela que, em geral, é persuadida de tal modo que suas realizações efetivas, somáticas e mentais estão geralmente situadas abaixo de suas aspirações pessoais, pois continua não tendo oportunidades de ser incluída socialmente, tornando-se órfã do Estado e, por vezes, arregimentada para um universo brutal e impiedoso, onde o respeito e a hierarquia têm por base a violência e o ranking do crime exacerbado pelo narcotráfico. Imersa nesse cenário, para alguns dos moradores,
'o varejo das drogas' é a [...] alternativa de mercado capaz de gerar renda e garantir a satisfação plena dos anseios de consumo impingidos pela sociedade atual, aproveitando-se de um forte componente psicológico que mistura frustrações pessoais, familiares e sociais18:25.
A conseqüência direta nesse processo é o confronto da polícia no combate à criminalidade e assim sendo, o acesso e o ir e vir das enfermeiras, nesses locais de trabalho, é perigoso e, por conseguinte ,penoso e doloroso. Nessa dimensão,
as pesquisas e enquetes apontam a violência, a falta de segurança e o desemprego como seus principais motivadores, sendo responsáveis, inclusive, por determinadas mudanças de comportamento. A repetição diária de acontecimentos trágicos - crimes, corrupção, balas perdidas, demissões em massa, sucateamento da rede pública de ensino e saúde... - abate-se sobre um povo historicamente tipificado como alegre e otimista, promovendo uma penosa redução de suas perspectivas de um futuro melhor18:33.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência é tão antiga quanto a humanidade e é expressa de inúmeras formas, atingindo as sociedades nas suas abrangências que vão do internacional, nacional, local, familiar e individual, constituindo-se neste novo século como um grande desafio para todos nós. É um dos maiores legados do nosso passado, está presente em todos os segmentos da sociedade e evidencia-se nas suas várias manifestações visíveis ou encobertas.
Não existe um fator que explique por si só porque uma pessoa se comporta de forma violenta e a outra não. A Organização Mundial da Saúde (2002) tem utilizado, como marco conceitual para violência, o modelo ecológico que leva em conta fatores biológicos, sociais, culturais, econômicos e políticos19.
A violência é, portanto, um problema complexo que afeta a todos, sem distinção de estado ou de classe social, independente do sexo, idade, religião ou raça. Vem adquirindo grande significado social nos últimos tempos, não porque ocorra com mais freqüência e sim porque hoje é mais estudada, investigada e divulgada.
O Programa Saúde da Família vem cada vez mais se fortalecendo e se ampliando e a participação da enfermeira nas equipes do PSF tem sido de fundamental importância para a implantação e fortalecimento desse modelo assistencial, mas é notório que essa participação vem sendo submetida a impasses em relação aos espaços de atuação, particularmente em áreas marcadas pela violência urbana.
E o que há de peculiar em tudo isso é a confluência de dois tipos de exposição à violência. De um lado, aquela a que todo cidadão está exposto e do outro lado aquela inerente ao desempenho de suas atribuições. É nesse universo conturbador que, na cidade do Rio de Janeiro, as enfermeiras desenvolvem suas ações no Programa de Saúde da Família, deparando-se com as situações da violência em suas várias manifestações, visto que estratégica e prioritariamente esses programas estão sendo implantados e desenvolvidos em áreas de conflitos permanentes.
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Recebido em 23/10/2003
Reapresentado em 27/09/2004
Aprovado em 20/12/2004