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CAPES

Volume 17, Número 4, Set/Dez - 2013



DOI: 10.5935/1414-8145.20130014

Cuidado integral e aconselhamento reprodutivo à mulher que abortou: percepções da enfermagem

Ivanete da Silva Santiago Strefling 1
Wilson Danilo Lunardi Filho 2
Nalú Pereira da Costa Kerber 3
Marilu Correa Soares 4
Vera Lúcia de Oliveira Gomes 5
Elisa de Vargas 6


1 Universidade Federal do Rio Grande Rio Grande RS Brasil Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande - RS, Brasil
2 Universidade Federal do Rio Grande Rio Grande RS Brasil Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande - RS, Brasil
3 Universidade Federal do Rio Grande Rio Grande RS Brasil Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande - RS, Brasil
4 Universidade Federal de Pelotas Pelotas RS Brasil Universidade Federal de Pelotas. Pelotas - RS, Brasil
5 Universidade Federal do Rio Grande Rio Grande RS Brasil Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande - RS, Brasil
6 Universidade Federal do Rio Grande Rio Grande RS Brasil Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande - RS, Brasil

Recebido em 25/04/2013
Reapresentado em 13/07/2013
Aprovado em 29/07/2013

Autor correspondente:
Ivanete da Silva Santiago Strefling
E-mail: ivanete25@gmail.com

RESUMO

O presente estudo teve como objetivo conhecer a percepção dos profissionais de enfermagem a respeito do cuidado integral e do aconselhamento reprodutivo à mulher que abortou. Trata-se de estudo exploratório-descritivo com abordagem qualitativa realizado com 19 profissionais de enfermagem que atuam na maternidade e no centro obstétrico de um hospital universitário do Sul do Brasil. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada durante o mês de novembro de 2012. Para análise dos dados, empregou-se a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo. Nos resultados, as ideias centrais deram origem a duas categorias: cuidado integral à mulher hospitalizada por aborto e aconselhamento reprodutivo como estratégia de promoção à saúde reprodutiva. Nestas, os sujeitos revelaram perceber o cuidado integral como a satisfação das necessidades biológicas e o aconselhamento reprodutivo centrado nas orientações à contracepção. Assim, salienta-se a importância da qualificação dos profissionais de enfermagem e de outros estudos com diferentes enfoques.


Palavras-chave: Aborto; Assistência integral a saúde; Promoção da saúde; Enfermagem.

INTRODUÇÃO

No decorrer do século XX, sobretudo, no período da transição democrática, diversas transformações ocorreram no contexto da saúde pública no Brasil. Dentre estas transformações, destacam-se as conquistas dos movimentos sociais e grupos feministas sobre o direito das mulheres à atenção integral e ao planejamento reprodutivo. Estas conquistas são garantidas, no âmbito do Sistema Único de Saúde, por meio de programas e políticas que trazem, em um enfoque de gênero, a integralidade e a promoção da saúde como princípios norteadores e buscam consolidar os avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, com ênfase na melhoria da atenção obstétrica, no planejamento familiar e na atenção ao abortamento1.

No que tange, especificamente, às situações de abortamento, sua prática se expressa pela desigualdade social, pois, embora as mulheres compartilhem da mesma situação de ilegalidade, na maioria dos países em desenvolvimento, grande parte da população feminina recorre a várias estratégias inseguras que, frequentemente, se complicam e acarretam mortes maternas2.

Para o Ministério da Saúde (MS), o cuidado integral nas situações de abortamento envolve desde o acolhimento e diagnóstico das reais necessidades de cada usuária, o emprego de tecnologias apropriadas para a terapêutica, bem como a inclusão de orientações e esclarecimento sobre o planejamento familiar, visando à escolha e adoção de um método contraceptivo adequado a cada situação2.

Porém, evidências científicas apontam que a maioria dos abortos resulta de necessidades não satisfeitas de planejamento reprodutivo, envolvendo a falta de informação e/ ou dificuldades de acesso aos métodos anticoncepcionais, falhas no seu uso, uso irregular ou inadequado e ausência de acompanhamento pelos serviços de saúde3-4. Tais falhas repercutem na vida pessoal, familiar e social das mulheres, além de sobrecarregar o sistema de saúde e elevar os custos com o tratamento das complicações5-8.

No Brasil, de acordo com o art. 128 do Código Penal de 1940, somente é permitido praticar aborto nos casos de risco à vida da mãe e de gestação derivada de violência sexual2. No ano de 2012, o Superior Tribunal Federal aprovou a interrupção de gestações de fetos anencéfalos. No entanto, estudos3-6,9 apontam a gravidez não planejada como a principal desencadeadora do abortamento.

Nesta perspectiva, o MS lançou em 2005 a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao abortamento (NTAHA)2oferecendo aos profissionais de saúde subsídios para que possam desempenhar, além de ações imediatas as complicações que acarretam risco à saúde e à vida das mulheres, alternativas contraceptivas, a fim de prevenir a ocorrência de gravidezes não planejadas e abortos repetidos2. Esta medida preventiva é recomendada, tanto para casos de aborto induzido quanto espontâneos, pois, em ambos, o retorno da fertilidade é imediato e o organismo feminino precisa se restabelecer, antes de ocorrer uma nova gestação.

Muitas mulheres que chegam ao serviço de saúde, em processo de abortamento, manifestam, além das necessidades físicas, emocionais e sociais, dificuldade em reconhecer sinais de possíveis complicações, que aliadas ao medo, à vergonha e ao difícil acesso a assistência, podem levar a mulher a retardar a busca por atendimento e por informações que direcionem a escolha mais adequada ao seu contexto e momento de vida2. Diante do exposto, o aconselhamento reprodutivo desponta como uma tecnologia de comunicação bidirecional que facilita a interação e troca de informações entre profissional/mulher, podendo trazer resultados satisfatórios, sobretudo quando este processo comunicativo ocorre durante o período de hospitalização das mulheres que abortaram3,5,10.

No hospital, a identificação das reais dificuldades das mulheres são atribuições de toda a equipe de saúde. No entanto, os profissionais de enfermagem, que estão presentes durante todo o período de internação, têm maior oportunidade de conversar, escutar e identificar as necessidades físicas, psíquicas e sociais de cada mulher, podendo modificar o modelo de atenção, oferecendo às mulheres e à sociedade um novo paradigma, que torne as ações preventivas seguras, sustentáveis e efetivas2.

Todavia, estudos5,8,10assinalam que, no contexto brasileiro, a realização de aconselhamento reprodutivo no pósabortamento e/ou referenciamento para continuidade do acompanhamento nas redes de atenção básica não são condutas incluídas nos planos de cuidado da enfermagem. Por consequência, ao avaliar os possíveis fatores relacionados à gravidez não planejada, uma pesquisa desenvolvida em dois hospitais da cidade do Rio Grande/RS revelou que 65% das gestações não são planejadas e ocorrem por falta de informação e acesso a métodos seguros e eficazes10.

Como a internação hospitalar pode ser o único contato de muitas mulheres com o sistema de saúde, e por ser o aconselhamento reprodutivo uma estratégia possível de ser desenvolvida em todas as esferas de atenção, a ênfase, das ações, nestes aspectos pode contribuir para a redução da morbimortalidade materna por causas evitáveis, bem como das complicações relacionadas ao abortamento11.

Portanto, pela importância da enfermagem na implementação do cuidado integral, no provimento de aconselhamento reprodutivo, e com vistas a transformar a realidade apresentada, evidencia-se a necessidade de os profissionais de enfermagem refletirem sobre suas atitudes e compromissos. Face às considerações apresentadas, justificase a realização deste estudo, cujo objetivo foi conhecer a percepção dos profissionais de enfermagem a respeito do cuidado integral e do aconselhamento reprodutivo, como estratégia de promoção da saúde reprodutiva, à mulher que abortou.

MÉTODO

Trata-se de um estudo exploratório-descritivo com abordagem qualitativa, o qual possibilitou aprofundar o conhecimento sobre o tema estudado e a exposição das percepções e opiniões dos sujeitos da pesquisa, sobre a realidade vivenciada. O cenário do estudo foi a Maternidade e o Centro Obstétrico de um hospital universitário, situado no sul do Estado do Rio Grande do Sul, que atendem mulheres em situação de emergências obstétricas, incluindo aquelas com complicações no processo abortivo.

A técnica para a coleta de dados foi a entrevista semiestruturada, constituída pelas seguintes questões: o que você considera como cuidado centrado nas necessidades integrais de saúde das mulheres que estão hospitalizadas por abortamento? Você utiliza alguma estratégia de promoção à saúde reprodutiva durante o cuidado das mulheres hospitalizadas por abortamento? O que você pensa sobre a realização do aconselhamento reprodutivo durante a hospitalização?

Participaram deste estudo 19 sujeitos, sendo sete Enfermeiros e 12 Técnicos de Enfermagem, atuantes nos diferentes turnos da jornada de trabalho, que aceitaram, espontaneamente, contribuir para esta investigação, autorizaram a gravação das entrevistas para posterior transcrição e divulgação dos dados coletados e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas foram realizadas durante o mês de novembro de 2012, em dias e horários previamente acordados entre pesquisador/ sujeito. O número total de participantes foi delimitado pelo número de entrevistas que possibilitou atingir a compreensão do fenômeno estudado, caracterizado pela repetição das falas.

Para a análise dos dados, foi utilizada a técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), estratégia metodológica discursiva que possibilita reconstruir, com recortes de distintos discursos individuais, os discursossíntese julgados necessários para expressar o pensamento coletivo dos participantes do estudo, sobre o fenômeno investigado12. Sendo assim, foram utilizadas três figuras metodológicas para analisar os dados: as Expressões-Chave, que revelaram a essência de cada depoimento, as Ideias Centrais que descreviam o sentido presente nas expressõeschave, e o DSC, que são o agrupamento das expressõeschave semelhantes, formando um discurso coerente para cada Ideia Central. Para tanto, foram utilizados conectores, a fim de dar sentido ao DSC, sem que isso, no entanto, alterasse a estrutura das frases elaboradas pelos sujeitos.

O presente estudo seguiu as Diretrizes e Normas de Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande - FURG, sob o Parecer nº 101/2012.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dos 19 profissionais entrevistados, um era do sexo masculino. A faixa etária dos participantes variou entre 24 e 64 anos. O tempo de exercício profissional foi de 6 meses a 45 anos. Optou-se por não limitar o período de atuação, para se conhecer as semelhanças e/ou diferenças dos discursos em relação à temática.

Na análise dos depoimentos, várias ideias centrais se destacaram, as quais foram organizadas em duas categorias: a primeira refere-se ao cuidado integral à mulher hospitalizada por aborto, e a segunda aborda a questão do aconselhamento reprodutivo como estratégia de promoção à saúde reprodutiva.

Cuidado integral à mulher hospitalizada por aborto

Atuar na perspectiva do cuidado integral é buscar a possibilidade de apreender as necessidades mais abrangentes do ser humano, valorizando a articulação entre atividades preventivas e assistenciais que culminam na humanização das práticas13. Pelas diversas realidades que as mulheres que abortaram vivenciam, entendem-se como condutas humanizadas aquelas que demonstram respeito à opção da mulher pelo aborto, consideram o período de internação hospitalar como oportunidade de escuta sobre os fatores psicossociais que envolvem esta decisão e promovem o conhecimento, com base na troca de saberes, e não com imposição8.

Os discursos dos profissionais de enfermagem deste estudo apontam que o atendimento centrado nas necessidades integrais inclui, ainda, uma abordagem ética, respeitosa e sem julgamento, independente da etiologia da enfermidade. Segundo os depoentes, esta forma de atender traz a sensação de bemestar à paciente.

IC - O cuidado integral precisa ser desprovido de julgamentos

DSC: Acho que temos que prestar atendimento integral, independentemente, se é um assaltante, se é uma mulher que provocou aborto, se é alguém que atirou em alguém. Às vezes, é um bebê que elas esperavam muito. Mas, a gente sabe que tem outras situações, em que foi provocado. Porém, não estamos aqui para julgar ninguém. Aqui, o cuidado é centrado nas necessidades integrais. A gente visa ao bem-estar delas, respeitamos, as deixamos chorar, procuramos entender o sofrimento que elas estão passando.

No entanto, ainda que os entrevistados assinalem que o atendimento, na instituição pesquisada, não é influenciado por julgamentos sobre o ocorrido com a usuária, outros estudos5,11-12,14-15afirmam que esta postura não é uma unanimidade, visto que "o olhar da enfermagem para a mulher em situação de abortamento ainda é discriminatório e predominantemente técnico e, quando avaliado na perspectiva da humanização, apresenta-se como um cuidado com vínculo solidário, e não como um direito humano"15:140.

Outros fatores mencionados por diversos autores9,11-15, que dificultam o atendimento integral são: a indisponibilidade de tempo, o número excessivo de usuários nos serviços e a estrutura física deficiente. Todavia, quando o cuidado é planejado com foco no sujeito, e não na doença, é possível haver uma abordagem integral e humanizada, em qualquer momento da interação9.

No contexto deste estudo, o tempo de experiência profissional foi citado como limitador do provimento do cuidado, de forma integral. Para os entrevistados, quanto mais tempo de exercício, maior é o descompromisso dos trabalhadores para com o sujeito, favorecendo o aumento da lacuna entre a teoria e prática e o distanciamento do cuidado integral, conforme preconiza o MS2.

IC - O cuidado integral dependendo do tempo de experiência profissional

DSC: Eu acho que o cuidado centrado nas necessidades integrais depende da experiência, do tempo de trabalho. Talvez, quem esteja começando tenha mais paciência para cuidar. Vão, lá, conversam, orientam, já falam sobre os métodos contraceptivos, fazem uma abordagem maior, mais abrangente. Já aqueles que têm mais tempo de trabalho estão cansados. Vão lá e fazem o que tem que fazer, e deu. Então, de maneira geral, acho que não estamos preparados para isso. A gente precisaria de treinamentos e capacitações mais frequentes, para podermos passar algo de bom e evitar que a necessidade do aborto venha acontecer novamente.

Como casos de abortamento são problemas obstétricos comuns nas instituições de saúde, inclusive na realidade deste estudo, muitas vezes pode ser encarado pela equipe de enfer-magem como rotineiro. No entanto, o compromisso dos profissionais de saúde deve ser com a vida e com a garantia do cuidado como um direito humano8. Nesta perspectiva, a enfermagem como profissão da saúde, que cuida do ser humano, nas suas múltiplas dimensões, necessita refletir sobre o que significa para cada mulher vivenciar a situação de abortamento e interpretar os sinais e sintomas, não apenas como algo orgânico, mas, considerando os fatores sociais, econômicos e culturais, bem como a sua subjetividade e suas experiências11.

Neste estudo, além de aparente descompromisso de alguns trabalhadores com a efetividade e continuidade do processo de cuidado, os discursos dos entrevistados apontam a carência de capacitação e sensibilização dos profissionais para incorporar o acolhimento e a orientação como uma prática que complementa as ações clínicas, ou seja, que promove o cuidado integral. Assim, a impessoalidade na atenção, a falta de informações sobre as intervenções a serem realizadas e a negligência em considerar as necessidades das mulheres e sua capacidade de compartilhar decisões, tal como prevê a NTAHA, podem comprometer a integralidade da atenção almejada16. Como consequência destes aspectos, o discurso a seguir revela que os profissionais de enfermagem percebem as práticas de cuidado voltadas ao cumprimento de procedimentos que atendem às necessidades biológicas da mulher.

IC - A percepção sobre o cuidado integral, nas situações de aborto, reduz-se aos aspectos biológicos.

DSC: Eu acho que o cuidado integral é a abordagem da paciente, no início da consulta. É seguir a prescrição médica e fazer o que ela necessita. Se tem dor, fazer medicação. Se quer conversar sobre algum assunto, conversar, mas tentar não aprofundar o tema [aborto]. Procurar evitar fazer muitas perguntas invasivas, para não deixá-la constrangida. Ver os sinais vitais e fazer seu trabalho. Aqui a gente considera sempre a questão das mamas. Enfaixa os seios, explica sobre a necessidade de tomar a medicação, pois elas sentem muita dor, até por causa da ansiedade.

Neste DSC, apesar de os entrevistados apontarem alguns enfoques do cuidado integral, a maioria das falas permaneceu ligada ao fazer principal, atender às necessidades clínicas. Habilidades comunicativas, apontadas em vários contextos como elementos que complementam a abordagem integral, parecem não ser expressivas no ambiente pesquisado, visto que os depoentes declaram que, quando a usuária faz alguma pergunta, eles respondem. Caso contrário, calam-se e evitam aprofundar o diálogo.

Portanto, a visão que os profissionais de enfermagem revelaram sobre o cuidado integral não condiz com o a definição de cuidado integral do MS, pois seus discursos parecem evasivos e voltados, sobretudo, para as necessidades biológicas. Os aspectos psicoemocionais e sociais foram pouco mencionados nos discursos, destacando que a reprodução do modelo biomédico ainda é predominante no serviço de saúde pesquisado. Isso pode repercutir na vida social das mulheres, limitando o exercício de sua liberdade, assim como no próprio sistema de saúde, com novas hospitalizações devidas às mesmas necessidades.

Esta realidade parece se multiplicar, igualmente, em outros serviços de saúde, conforme apontou um estudo realizado para conhecer as representações sociais das enfermeiras sobre a integralidade na assistência prestada à mulher, na rede básica de saúde16. Nele, as enfermeiras reconheceram a importância do atendimento integral, mas não conseguiram situá-las, no contexto profissional nem na prática assistencial.

Aconselhamento reprodutivo como estratégia de promoção à saúde reprodutiva

No Brasil, o conceito de saúde reprodutiva está implícito nas ações de saúde, desde a criação dos primeiros programas com enfoque na atenção integral da saúde da mulher. No decorrer de diversas conferências internacionais, promovidas pela Organização das Nações Unidas, na década de 1990, ficou definido que a saúde reprodutiva implica a capacidade da mulher e do homem de desfrutarem de uma vida sexual satisfatória e sem riscos, com liberdade para decidir procriar ou não, quando e com que frequência; e o direito à informação e ao acesso a métodos seguros, eficientes e acessíveis de planejamento familiar de sua escolha e ao acesso a serviços de acompanhamento na gravidez e no parto sem riscos2. Contudo, o acesso às informações e aos serviços necessários para planejar a família ainda não é exercido como um direito universal por toda a população4.

Neste estudo, ao discorrerem sobre as práticas de promoção da saúde reprodutiva às mulheres que abortaram, os profissionais de enfermagem demonstraram reconhecer a importância e necessidade de uma abordagem mais abrangente, que envolva não só os meios para evitar a gravidez não planejada, mas o acompanhamento clínico-ginecológico e ações educativas, a fim de capacitar as mulheres para escolhas conscientes.

IC: É válido desenvolver atividades de promoção à saúde reprodutiva, porém as orientações são frágeis.

DSC: Eu acho que toda orientação é válida. Sempre que há aceitação, deve-se orientar [usar contraceptivos] porque, muitas vezes, elas vão embora e não têm consciência de procurar outro centro de saúde, mesmo não querendo uma nova gestação. Aí, a história se repete. Isso é complicado, mas é uma realidade. A maioria não tem onde fazer pré-câncer, controle de câncer de mama, nada disso. Também, a mulher que não provocou o aborto e não quer uma nova gravidez tem que se preocupar com as DSTs, e elas não têm esta orientação. Geralmente, recebem tratamento devido ao abortamento, e ganham alta com o anticoncepcional, mas sem a necessária orientação. Eu acredito que deveria ser conversado sobre o assunto, sobre os cuidados ginecológicos da mulher, principalmente com as adolescentes, que têm muita coisa para viver e têm que se proteger não só da gravidez, mas das DSTs. Então, além do anticoncepcional, tem que orientar para usar a camisinha. Algumas vão ouvir, outras vão ignorar e, dependendo da situação que estão vivendo, elas nem registram o que a gente fala, na saída do hospital. Mas, independentemente desta postura, eu acho importante orientar.

Mesmo se tratando de atividades de promoção à saúde reprodutiva, os participantes deram relevância à contracepção, atenuando os demais aspectos que compõem os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Com isso, foi possível apreender que os profissionais transparecem certa dificuldade de abordar, com a mulher que abortou, determinados assuntos relacionados à sexualidade e à vida privada13. É percebido que, por envolver questões subjetivas de quem atende e quem é atendido, o tema do abortamento representa um obstáculo para o processo interativo. Esse exercício não é fácil, uma vez que muitos profissionais não estão preparados para lidar com os sentimentos e com as questões sociais que vão além da prática técnico-científica2.

Entretanto, salienta-se que a comunicação é uma ferramenta indispensável para o profissional de enfermagem que busca prestar uma assistência integral e humanizada. Neste contexto, destaca-se o aconselhamento reprodutivo como uma estratégia educativa que ajuda os profissionais a se aproximarem da mulher, avaliarem suas necessidades e seus sentimentos e fornecerem orientações e apoio emocional, auxiliando-a na tomada de decisões2.

Nesta perspectiva, o aconselhamento reprodutivo desponta como uma prática indispensável à promoção da saúde reprodutiva e como condição essencial para proporcionar o cuidado de modo integral no pós-aborto, com vistas a reduzir gestações não planejadas e desigualdades sociais, que podem originar riscos à saúde e à vida das mulheres2. Quando questionados sobre o que pensam a respeito de o aconselhamento reprodutivo ser realizado durante o período de internação hospitalar, os profissionais de enfermagem apresentaram duas ideias centrais opostas, que deram origem aos dois DSC a seguir:

IC: O aconselhamento reprodutivo restringe-se à oferta de métodos contraceptivos

DSC: Olha! Eu acho que o anticoncepcional tinha que estar na água, porque tem muitas adolescentes e até multíparas de trinta e poucos anos, com aborto, que a gente explica tudo direitinho, mas a maioria não tem o entendimento. Se, realmente, elas fizessem o dever de casa, como a gente ensina, não teria problema, porque os métodos têm nos postos de saúde, de graça, mas elas não tomam direito. Elas acham que podem ter relação sexual e não tomar no outro dia. Outros métodos, elas são muito resistentes. No acompanhamento de soropositivas, a médica vem aqui e pede amostras de injetáveis e faz uma na saída. Aqui no hospital, muitos métodos não estão disponíveis. Só quando o laboratório deixa amostras. Antes, tinha colocação de DIU. Agora, não tem mais. A gente aconselha também é o uso do preservativo, para evitar outros problemas, além da gravidez. Agora, em minha opinião, só não se cuida quem realmente não quer, pois tem tanta informação nos meios de comunicação. Todo mundo tem acesso à internet. Mas é sempre bom frisar porque, se não, chega na hora, não se cuidam.

Além de reduzir o aconselhamento reprodutivo a orientações para a contracepção, este DSC revela a fragilidade das relações interpessoais, pois, quando os entrevistados mencionam que transmitem algumas informações a respeito do aconselhamento para a contracepção às mulheres, estas orientações não são absorvidas. Isso sinaliza que há necessidade de maior aproximação do profissional ao contexto social, uma vez que é por meio do reconhecimento das subjetividades que permeiam o relacionamento e a partir das perspectivas da mulher que se desenvolve uma relação de confiança e troca de conhecimento4.

Para tanto, compreende-se que a sensibilidade e o comprometimento do profissional são fatores que fomentam a empatia necessária ao aconselhamento reprodutivo. Como isto ainda é pouco visível nos depoimentos, o relacionamento profissional-paciente apresenta-se verticalizado e com pouco sucesso, pois os profissionais só transmitem o que "acham" necessário e não procuram conhecer quais as barreiras que dificultam o exercício da autonomia na vivencia dos direitos sexuais e reprodutivos, por cada uma das mulheres.

Sendo assim, para que o aconselhamento reprodutivo seja eficiente, o enfermeiro precisa ser criativo, competente e estar atento aos sinais verbais e não verbais tanto da mulher quanto dos demais profissionais da equipe de enfermagem. Para isso, precisamos romper a dureza com a qual a equipe de saúde interage com a mulher, pois a interação humana, o contato interpessoal e a emoção, que naturalmente aparecem nas relações possibilitam o envolvimento da própria mulher na sua recuperação, por meio da troca de saberes, melhorando seu entendimento sobre seu corpo, sobre seu modo de levar a vida e sua relação com o meio social, contribuindo, assim, para que tenha atitudes que diminuam os riscos e melhorem sua qualidade de vida3.

Outra ideia central que se destacou na discussão sobre o aconselhamento reprodutivo às mulheres que abortaram antes da alta hospitalar é que esta atividade não faz parte do processo de cuidado dos profissionais de enfermagem da instituição pesquisada.

IC: Na instituição onde foi realizado este estudo o aconselhamento reprodutivo não faz parte do processo de trabalho da enfermagem.

DSC: Aqui no hospital, o aconselhamento ainda é uma necessidade. Não é feita nenhuma orientação específica para as mulheres que abortaram. Pelo menos, eu não vejo nada disso. As mulheres podem implorar por uma laqueadura e saem daqui sem nada. Aí, podem ter outras gestações, tentar abortar, não conseguir, colocar suas vidas em risco e nada acontece. Porém, já que é um local de emergência, também poderia ter este cuidado. Apesar de o hospital seguir uma linha toda humanizada, a mulher ainda recebe alta só com a instrução de procurar o posto de saúde.

Do ponto de vista do cuidado integral e de promoção à saúde reprodutiva, esta realidade consiste em uma situação preocupante, pois toda mulher que recebe atenção pós-aborto tem o direito a um aconselhamento de alta qualidade e acesso a métodos contraceptivos2. No entanto, a ênfase na dimensão curativa do cuidado, com absoluta negligência das práticas preventivas e daquelas que reforçam a autonomia das mulheres no processo de decisão sobre sua vida sexual e reprodutiva, parece reproduzir-se em outros serviços de saúde brasileiros também17.

Em contrapartida, no contexto internacional, as atividades de aconselhamento reprodutivo no pós-aborto constituem ações educativas bastante estimuladas, por meio de cursos, capacitações e treinamentos para os profissionais de saúde4. Seu efeito pode ser constatado em um estudo desenvolvido para descrever o impacto do aconselhamento sobre o planejamento familiar às mulheres em tratamento pósaborto5. Segundo seus autores, a adoção e o uso continuado de contraceptivos aumentaram de 36,3% para 62,0% após um ano da introdução de aconselhamentos.

Conforme afirma o MS, o risco de ter um novo aborto é maior justamente entre as mulheres que já tiveram um abortamento, e aumenta com o número de abortamentos anteriores. Por isso, o ideal é que orientações sobre o planejamento, assim como os métodos contraceptivos, estejam disponíveis no local onde se atende às mulheres em abortamento, dando oportunidades para que elas façam suas escolhas e iniciem o seu uso, antes de receberem alta2. Todavia, quando não há condições no hospital para fornecer os subsídios necessários à prevenção de novos abortos, é necessário descentralizar o poder e encaminhar a mulher a outros serviços de planejamento familiar e inserção social3.

Assim, pode-se relacionar os resultados deste estudo à falta de conhecimento dos profissionais da equipe de enfermagem para visualizar a problemática de forma mais abrangente, levando em consideração o sujeito que é permeado por experiências individuais e que pode apresentar necessidades específicas. O cuidado integral é um dos marcos das políticas de saúde da mulher e, em especial, da NTAHA que também recomenda o aconselhamento reprodutivo. Entretanto, a efetivação destes está atrelada, entre outros fatores, à sensibilização e ao comprometimento dos profissionais de saúde e enfermagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os objetivos deste estudo, nos discursos analisados, os sujeitos assinalaram que o cuidado às mulheres que abortaram não pode ser influenciado por julgamentos pessoais, mas expressaram compreender o cuidado integral como o desenvolvimento de práticas que satisfazem as necessidades biológicas. Quanto ao aconselhamento reprodutivo, este parece ser uma lacuna que necessita ser abordada, pois os profissionais o relacionaram basicamente às orientações para a contracepção, mantendo na obscuridade outros problemas vivenciados pelas mulheres.

Deste modo, sendo a enfermeira responsável por gerenciar o cuidado durante a permanência da mulher no hospital, ela tem condições de organizar o trabalho da equipe e sensibilizar os trabalhadores para que busquem adequar as atividades assistenciais às atividades educativas, visando capacitar as mulheres para que se sintam encorajadas a cuidar de si. Estas ações têm respaldo em políticas públicas e despontam como estratégias resolutivas para a diminuição da demanda por sequelas de aborto repetido.

Esta pesquisa apresenta limites por ter sido realizada em uma única realidade, ou seja, exclusivamente com profissionais de enfermagem e que atendem somente as mulheres que foram hospitalizadas por aborto; porém, sabe-se que muitas sofrem aborto, mas acabam não apresentando complicações que as levem a hospitalizações. Por isso, salientase a pertinência de novos estudos, enfocando diferentes abordagens, contextos e sujeitos, a fim de apontar novos conhecimentos que contribuam para a ciência da enfermagem e a qualificação do cuidado.

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