ISSN (on-line): 2177-9465
ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
COPE
ABEC
BVS
CNPQ
FAPERJ
SCIELO
REDALYC
MCTI
Ministério da Educação
CAPES

Volume 17, Número 4, Set/Dez - 2013



DOI: 10.5935/1414-8145.20130012

PESQUISA

Significado da capacitação profissional para o cuidado da mulher vítima de violência conjugal

Nadirlene Pereira Gomes 1
Alacoque Lorenzini Erdmann 2
Luiz Antonio Bettinelli 3
Giovana Dorneles Callegaro Higashi 4
Jordana Brock Carneiro 5
Normélia Maria Freire Diniz 6


1 Universidade Federal da Bahia. Salvador - BA, Brasil
2 Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis - SC, Brasil
3 Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo- RS, Brasil
4 Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis - SC, Brasil
5 Universidade Federal da Bahia. Salvador - BA, Brasil
6 Universidade Federal da Bahia. Salvador - BA, Brasil

Recebido em 15/12/2012
Reapresentado em 22/03/2013
Aprovado em 08/06/2013

Autor correspondente:
Giovana Dorneles Callegaro Higashi
E-mail: gio.enfermagem@gmail.com

RESUMO

Objetivou-se compreender os significados atribuídos por profissionais que atuam na estratégia de saúde da família sobre a capacitação profissional para o cuidado à mulher em situação de violência conjugal.
MÉTODOS: Estudo qualitativo baseado na Teoria Fundamentada nos Dados. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em 14/05/201. Foram entrevistados 52 profissionais que atuam na Estratégia Saúde da Família, entre eles, técnicos, enfermeiros, médicos e coordenadores da unidade, no período de maio e agosto de 2012. A análise respaldou-se na codificação aberta, axial e seletiva.
RESULTADOS: A dificuldade de reconhecer o agravo à mulher e os encaminhamentos ao sistema de referência e contrarreferência constituem os principais desafios para o enfrentamento da problemática. Os profissionais propõem a capacitação enquanto estratégica para garantia do cuidado.
CONCLUSÃO: O estudo oferece subsídios para a gestão do cuidado à mulher, sobretudo no âmbito da Atenção Primária à Saúde.


Palavras-chave: Violência contra a mulher; Capacitação profissional; Assistência integral à saúde.

INTRODUÇÃO

A violência conjugal constitui-se um problema de saúde pública devido a sua magnitude e impactos sobre a qualidade de vida e o setor econômico do país. Foram assassinadas 43,5 mil brasileiras na última década, sendo o crime passional uma das principais causas1. Esse cenário onera o setor de saúde, podendo ser percebido pelo custeio do atendimento médico e financiamento de tratamentos curativos e de reabilitação das vítimas, e tem impacto sobre a produtividade econômica, estando associado ao absenteísmo2,

A manifestação de doenças no sistema digestivo e circulatório, dores e tensões musculares, alterações menstruais, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), lesões físicas, além de crimes como assassinato (da vítima e do agressor) são algumas das repercussões que a violência conjugal pode gerar3. Especificamente no campo da saúde reprodutiva, a vivência de violência conjugal encontra-se associada a doenças sexualmente transmissíveis, abortamento espontâneo, gravidez indesejada, comprometimento da saúde mental, como uso de álcool e drogas e inclusive tentativas de suicídio2.

Apesar das repercussões da violência sobre a saúde da mulher, muitos profissionais não a reconhecem enquanto situação associada aos problemas de saúde apresentados. Um pesquisa realizada com profissionais da área de saúde revela que estes não são preparados para interagir de forma ativa, de estabelecer vínculo com o paciente, de modo que, geralmente, as sintomatologias são tratadas e ignora-se a história de vida da pessoa 4. Quando se analisa o atendimento prestado à mulher com suspeita de violência, fica explícita a dificuldade dos profissionais que atuam na rede básica de saúde em assumir uma atitude de escuta durante o atendimento. Por não considerarem a vivência da mulher, estabelecem uma relação frágil, tendo como focos do atendimento a queixa principal e a cura das sintomatologias5. Tais situações comprometem a assistência adequada à mulher.

Uma pesquisa mostrou que o profissional de enfermagem, pela proximidade com a mulher, tem a responsabilidade de compartilhar o caso com a equipe multidisciplinar, e orientá-la na busca de soluções na rede de assistência à violência, que abrange diversos setores, como segurança pública, assistência social e jurídica6. Daí a importância em incentivar esta prática e atentar para a criação de estratégias que viabilizem o empoderamento das mulheres. Para contribuir neste processo, houve importantes mudanças na legislação brasileira, e, através delas, surgiram as Delegacias de Defesa da Mulher, Casas-Abrigo e Centros de Atendimento Multiprofissional, que concentram seus atendimentos nas agressões físicas e sexuais perpetradas por parceiros atuais ou anteriores7.

Um estudo realizado em dois hospitais do município de São Paulo apontou que os profissionais consideram sua formação ineficiente para abordar e conduzir casos de violência contra a mulher, ou seja, recebem pouco ou nenhum treinamento para atender essas mulheres na perspectiva de contribuir para o rompimento do círculo de violência em que estão inseridas, cabendo a cada profissional, criar estratégias para lidar com a problemática8. Essas ações são essenciais no sentido de garantir a integralidade na atenção à saúde.

Vale ressaltar que o Ministério da Saúde tem estratégias e políticas voltadas para a adequação da formação e qualificação dos trabalhadores às necessidades reais de saúde, conforme preconiza a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde9. No entanto, considerando a complexidade e a magnitude da violência conjugal, nos questionamos: Quais são os significados atribuídos por profissionais que atuam na Estratégia Saúde da Família (ESF) sobre a capacitação profissional para o cuidado à mulher em situação de violência conjugal?

Esta questão derivou da questão principal do estudo: Quais são os significados das interações e ações experienciadas pelos profissionais sobre as práticas de cuidado de enfermagem e saúde às mulheres em situação de violência conjugal no âmbito da ESF? Objetivou-se, assim, compreender os significados atribuídos por profissionais que atuam na ESF sobre a capacitação profissional para o cuidado à mulher em situação de violência conjugal.

MATERIAIS E MÉTODO

O estudo utilizou como referencial metodológico a Grounded Theory, também conhecida como Teoria Fundamentada nos Dados (TFD). Este método possibilita fundamentar conceitos em dados em que envolvem uma pluralidade de sujeitos inseridos em processos de relações e interações mutuamente implicados em cenários empíricos. Ainda, o método possibilita explorar a diversidade, pluralidade e singularidade da experiência humana, permitindo, desse modo, a compreensão acerca do fenômeno vivido10.

O estudo foi realizado em um município do Estado de Santa Catarina, Brasil. O cenário foi composto por 16 equipes de saúde de cinco unidades locais de saúde que integram o distrito sanitário. Justifica-se o local do estudo pelo fato de dispor de unidades dotadas de contextos socioeconômicos heterogêneos, assim possibilitando a compreensão da atuação profissional no tocante ao cuidado à mulher em situação de violência conjugal.

A coleta de dados ocorreu entre maio e agosto de 2012, na qual foi utilizada a técnica de entrevista aberta.A seleção dos participantes foi intencional, com base no objetivo do estudo e teve como critérios de inclusão: atuar na ESF e aceitar participar do estudo. A amostragem teórica delineou o acréscimo de novos sujeitos integrantes do estudo. As entrevistas foram concedidas pelos participantes mediante explanação do objetivo da pesquisa e da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O primeiro grupo amostral foi constituído por 17 técnicos de enfermagem, 13 enfermeiros e 12 médicos, totalizando 42 participantes que atuam nas 16 equipes no âmbito do distrito sanitário. Conforme recomenda a TFD, a coleta e a análise das entrevistas ocorreram de forma concomitante, direcionando para as adequações no instrumento de coleta de dados. Alcançados a saturação dos dados, os códigos e as categorias iniciais de análise, levantaram-se hipóteses que direcionaram para o segundo grupo amostral, a fim de desvelar os significados atribuídos pelos gestores acerca do objeto de estudo, sendo este constituído por cinco coordenadores das unidades de saúde. As entrevistas foram realizadas nas unidades de saúde, em sala disponibilizada pelo profissional, desde que reservada a fim de garantir a privacidade do informante e a confidencialidade das informações.

O processo de análise de dados perpassa pela codificação aberta, codificação axial e, por fim, a codificação seletiva, que permitiu o reagrupamento e a refinação das categorias e subcategorias para definição do fenômeno central. Com o propósito de reunir e ordenar sistematicamente os dados, durante a fase de codificação axial, foi utilizado esquema organizacional denominado paradigma ou modelo paradigmático. Desse modo, o modelo estabelece a interrelação entre as subcategorias e categorias a partir dos seguintes componentes: fenômeno, contexto, condições causais e intervenientes, estratégias e as consequências11. A teoria substantiva foi intitulada: "Reconhecendo a violência conjugal como problema de saúde pública e a necessidade de gestão do cuidado à mulher". A validação do modelo teórico foi realizada com profissionais de saúde que atuam em unidades entrevistadas e com dez pesquisadores com expertise em Teoria Fundamentada nos Dados.

A pesquisa, vinculada ao pós-doutoramento e financiada da FAPESB, foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, sob o parecer nº 21560/12, aprovado em 14 de maio de 2012. Os aspectos éticos foram respeitados em todas as etapas da pesquisa, como prevê a Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. Os depoimentos dos participantes do estudo foram identificados com a inicial maiúscula da categoria profissional, ou letra C no caso de coordenadores, seguida de um algarismo arábico. Os dados foram processados com o apoio do software NVivo 8.0®.

RESULTADOS

As categorias aqui apresentadas relacionam-se à capacitação profissional, no âmbito da ESF, para o cuidado à mulher em situação de violência conjugal. Essas categorias emergiram das relações e interações entre conceitos e transitam pelo modelo paradigmático, expressando os componentes: contexto (Desvelando que os profissionais não estão capacitados para o cuidado à mulher em situação de violência conjugal), estratégias (Propondo capacitação profissional para o cuidado à mulher em situação de violência conjugal) e consequências (Vislumbrando a possibilidade de estar capacitado para o cuidado à mulher em situação de violência conjugal).

Desvelando que os profissionais não estão capacitados para o cuidado integral à mulher em situação de violência conjugal

O elemento contexto é definido como um conjunto específico de fatos ou condições sobre o qual se pensam e definem as estratégias de ação/interação. Nesse sentido, o contexto no âmbito da ESF emergiu das subcategorias a seguir:

Reconhecendo o despreparo profissional para o cuidado à mulher em situação de violência

A pesquisa aponta para o despreparo por parte dos profissionais que atuam na ESF no sentido de identificar a violência conjugal como agravo à saúde da mulher e prestar-lhe atendimento, conforme expressam as seguintes falas:

[...] se eu não tiver um olhar para uma situação de violência, muitas vezes ela não vai falar. Também não adianta eu explorar e deixar aquilo suspenso, não saber trabalhar com as situações. (E-1)

[...] o receio que o próprio profissional tem é que se ele for investigar, ele vai ter que dar conta [...] então nem vou perguntar o que aconteceu'. (C-4)

Admitindo que não foi capacitado para o cuidado à mulher em situação de violência

O estudo sinaliza que os profissionais não foram capacitados para lidar com a temática violência conjugal, aprendendo a direcionar seu atendimento no espaço da prática, sobretudo quando se depara com uma situação.

Tive que buscar cursos, capacitações, buscar colegas que tinham experiência. Toda formação que eu tive, eu tive que buscar por perceber a demanda, para atender a demanda, porque senão eu não estava nem um pouco preparado para atender. [...] a formação do médico na faculdade não prepara esses casos. (M-7)

Eu entendo a apreensão deles: de que forma proceder? Como encaminhar? É difícil mesmo. [...] cai na prática e eles têm que aprender no susto. (C-4)

O não preparo profissional, seja durante a graduação ou no serviço, conduz, muitas vezes, a um atendimento de forma "pessoal", distanciando-se de uma assistência qualificada e singular no que tange a especificidade e necessidades de cada vítima de agressão, como pode ser percebido nas falas a seguir:

Eu acho muito importante saber como abordar a mulher porque a gente faz aquilo que a gente acha. [...] fica muito no pessoal. (TE-2)

A gente acaba na hora acolhendo da forma que a gente imagina que é a melhor. (M-10)

[...] como amparar essa mulher e dar um suporte para ela, a gente não sabe. Às vezes, eu sinto que deixo um pouco a desejar nesse sentindo [...] porque fica meio subjetivo. (E-1)

Propondo capacitação profissional para o cuidado à mulher em situação de violência conjugal

Entende-se por estratégias as interações ou ações realizadas, ou a serem implementadas, no sentido de modificar o contexto previamente apresentado (CHARMAZ, 2009). Essa categoria retrata as seguintes estratégias propostas pelos sujeitos:

Apontando assuntos a serem trabalhados

Entendendo a necessidade de preparar-se para o cuidado à mulher, os profissionais entrevistados relacionam assuntos que, disponibilizados durante a formação ou por meio de capacitação profissional, ofereceria maior suporte e subsídio para o reconhecimento do agravo e atendimento à mulher, como podemos vislumbrar nos depoimentos abaixo:

[...] abordar principalmente a violência doméstica. Não só contra a mulher, mas contra a criança também [...] de como é uma coisa muito ampla e complexa. (TE-12)

Deveria ter capacitação com um pouco da lei e um pouco da prática: de como funciona, o que tem que ser feito, como que deve ser a abordagem, o fluxo. (E-13)

[...] que pudesse explicar na prática como funciona esse fluxo. (M-2)

Outro aspecto apontado pelos participantes do estudo refere-se à necessidade de abordar informações sobre como realizar as notificações da violência, como ocorre o acompanhamento familiar, social, psicológico, como verificado nas falas, a seguir:

[...] que aborde: acompanhamento familiar, acompanhamento social, psicológico. (C-2)

[...] orientação de como funciona isso, como é que é feita essa notificação, se vai aparecer nosso nome. Conhecer mesmo esse sistema de informatização. (M-10)

[...] poderia oferecer para gente discussões de casos e dicas de como a gente pode lidar com uma situação de violência física, psicológica, xingamentos. (E-1)

Promovendo a capacitação na equipe multiprofissional

Os entrevistados acreditam que todos que atuam na ESF precisam melhor se preparar para o cuidado às mulheres, conforme ilustram as falas:

Eu acho que é necessário sensibilizar a todos, equipe básica com ACS e NASF, treinar mais profundamente alguns. (C-3)

Treinamento para todo mundo. [...] a gente atende 10, 20 pessoas de manhã. No acolhimento, os técnicos sempre atendem. [...] eu gostaria de aprender. Aprender nunca é demais, ainda mais quando é para ajudar os outros. Muitas chegam e contam, mas outras, com a experiência, a gente pode identificar. (TE-14)

Defendendo as reuniões das equipes como espaço de capacitação profissional

Para os profissionais entrevistados, o processo de capacitação deve ocorrer, preferencialmente, durante as reuniões da equipe. As falas evidenciam tal assertiva:

A melhor forma pelo que eu vejo hoje aqui no posto é capacitar por intermédio de espaços que já são oferecidos. [...] aqui a gente tem reunião de equipe [...] e é uma forma de capacitação. (E-5)

Tem que ser mais dinâmica e tem que ser em horário de reunião, que já existe essa reserva do espaço para o profissional. [...] ficou humanamente impossível você, ainda, criar um outro espaço para fazer capacitação, palestras, orientação. Então, a gente acaba usando agenda do planejamento. Então, eu acho que é nessas reuniões que tem que ser ocupadas para isso. (C5)

Vislumbrando a possibilidade de estar capacitado para o cuidado à mulher em situação de violência conjugal

Essa categoria dentro do modelo paradigmático emerge do elemento consequência, que expressa o resultado ou expectativas das estratégias de ação/interação definidas. Nesta perspectiva, os profissionais entrevistados apontaram a capacitação como estratégia que promove a atuação profissional para a identificação e atendimento à mulher em vivência de violência conjugal, conforme ilustram os depoimentos a seguir:

Como qualquer assunto, se a gente está preparado, a gente provavelmente perguntaria mais sobre o assunto. Talvez mudaria a visão que eu tenho do paciente ou de algum atendimento; e a abordagem poderia ter um viés mais nesse sentido. (M-8)

Se eu estou melhor preparada, eu consigo direcionar a situação de uma maneira mais resolutiva. [...] então, ter um preparo justamente para levantar o assunto com elas e saber direcionar aquilo de uma maneira mais segura. (E-1)

DISCUSSÃO

O estudo mostra que os profissionais de saúde que atuam na ESF não se sentem preparados para identificação de mulheres em situação de violência conjugal, bem como para seu atendimento. Embora tais achados reflitam o significado atribuído por um grupo de profissionais de uma área específica, com suas singularidades e especificidades, pesquisas realizadas de âmbito nacional revelam que não saber reconhecer o agravo e os encaminhamentos à mulher constitui o principal desafio para o enfrentamento da problemática.

Um estudo realizado com 51 enfermeiros apontou que os profissionais de saúde têm mais dificuldade de investigar e encaminhar situações em que há indícios de violência do que quando a violência contra a mulher é confirmada. Esses dados apontam para a dificuldade dos enfermeiros em trabalhar com a questão da violência de gênero e ao abordar o tema. O estudo identifica, ainda, o despreparo no manejo de casos suspeitos de violência contra a mulher: 82,4% dos sujeitos discorreram sobre a importância de recorrer ao protocolo de manejo de casos suspeitos de violência contra a mulher do Ministério da Saúde; porém, esse protocolo só existe para atendimento a vítimas de violência sexual 6.

Em outro estudo realizado no município de Minas Gerais, 10 profissionais de saúde ouviram o relato de dois casos de violência sexual sofrido por pacientes que buscaram tratamento na ESF em que trabalham. Ao serem questionados sobre a conduta a ser tomada, um dos sujeitos referiu que muitas vezes sente que as mulheres têm algo mais a dizer além da queixa que as trazem ao ESF; porém, refere despreparo para ouvir, ficando sem reação e afásico quando a mulher verbaliza situação de violência sexual 12. Tal despreparo compromete a integralidade na atenção a saúde da mulher.

O Ministério da Saúde, por meio do Programa Saúde da Mulher, assinala que a maioria dos serviços de saúde não possui profissionais capacitados para prevenir, diagnosticar e tratar adequadamente situações de violência contra a mulher13. Os entrevistados atribuem tal dificuldade a não (ou pouca) abordagem da violência doméstica nos currículos da graduação, o que compromete o atendimento profissional à mulher, primeiramente porque dificulta o reconhecimento do agravo, mas também porque não os prepara para lidar com essa problemática.

Uma pesquisa realizada no município de Ribeirão Preto, que contou com a participação de 12 sujeitos de diferentes áreas da saúde, os entrevistados relataram que, no processo de formação, entram em contato com a temática violência apenas quando esta se relaciona a crianças e adolescentes, ou quando ocorre abuso sexual. Relataram não haver esclarecimentos com questões transversais da violência, que incluem fatores como gênero, raça e status social. Para eles, as universidades deixam de lado a discussão políticosocial da violência. A frágil formação acadêmica para atuar diante da violência contra a mulher se reflete na incapacidade dos profissionais que atuam na rede SUS em lidar com esses casos4.

Devido ao não preparo na formação, os entrevistados revelam um atendimento pautado no aprendizado do cotidiano profissional, muitas vezes tido como "pessoal". Em um trabalho realizado no ano de 2007, um dos sujeitos do estudo relatou ter buscado orientações para o manejo em situações de suspeita de violência de gênero com profissionais mais experientes, referiu sentir dificuldade na identificação de casos violentos e relatou não saber a forma de abordagem da suposta vítima. O mesmo grupo reconheceu que a ação dos profissionais de forma individual e sem o preparo adequado é limitado, pois profissionais desabilitados sentem-se amedrontados e inseguros para intervir na relação marido-mulher12.

Percebe-se que, muitas vezes, os profissionais tendem a resolver o caso na individualidade do atendimento, sem articular o caso com outras redes de apoio. Essa postura dos profissionais de saúde diante da vivência de violência pode ser entendida como uma atitude conivente, permitindo assim a continuidade destes atos violentos, e comprometendo o cuidado integral. Os profissionais que prestam atendimento a mulheres vítimas de violência necessitam de um modelo institucional capaz de oferecer um ambiente de acolhimento, e que facilite a formação de vínculos de confiança4. Diante do exposto, fazse necessária a elaboração de políticas de atendimento específicas objetivando a orientação de práticas dentro dos serviços de saúde.

Considerando a violência conjugal como agravo importante à saúde da mulher e reconhecendo a dificuldade da equipe em identificar, abordar e atender à mulher, os profissionais entrevistados apontam para a necessidade de espaços de educação continuada que abordem a temática. A necessidade de capacitar-se para o cuidado à mulher foi apontada em um estudo que constatou a falta de preparo dos profissionais ao atenderem pacientes em situação de violência13. Os profissionais desse estudo relataram muitas vezes suspeitar de situações de violência, porém, preferem calar-se por não saber como dar seguimento ao atendimento em caso de violência confirmada. Nesse sentido, o estudo apontou situações em que muitas vezes o profissional chega muito próximo de desvelar a violência, porém a falta de capacitação em abordar o tema faz com que se volte para o tratamento das "doenças", e os problemas sociais não são contemplados na terapêutica4. Em uma pesquisa realizada em Angola, todos os sujeitos entrevistados (macrogestores, gestores e técnicos) da área da saúde identificaram a falta de capacitação profissional como a principal dificuldade no atendimento a vítimas de violência14.

Conforme sinalizam os profissionais entrevistados, é necessário criar espaços de discussão sobre a temática, que viabilizem o entendimento acerca da complexidade da violência doméstica, de maneira geral, não se restringindo à violência conjugal, bem como suas diversas formas de expressão. Propõem-se contemplar a abordagem à mulher e à família inserida nesse contexto; as condutas profissionais para notificação dos casos suspeitos e confirmados e apoio psicológico e social; os instrumentos legais e fluxos.

A compreensão acerca da complexidade da violência é essencial para o processo do cuidar. Um estudo realizado com mulheres vítimas de violência mostrou que a maioria delas não menciona a palavra violência durante suas falas. Assim, ao prestarem queixa contra seus parceiros íntimos, utilizam palavras que retratam o caráter agressivo das relações, referindo-se aos seus parceiros como sendo sujeitos ignorantes e que lhes perturbam o cotidiano. Essa situação expressa a dificuldade das mulheres em falar abertamente acerca da violência sofrida no ambiente domiciliar ou mesmo da não percepção de que sofrem violência. Por isso, a forma natural com que referem sofrer empurrões, tapas, sacudidas, acreditando, inclusive, serem merecedoras de tal "castigo", ancora-se na visão de subalternidade e subserviência feminina8,15. Ao entenderem a vivência da violência no âmbito familiar, os profissionais da saúde podem atuar de forma mais efetiva para a resolução do problema12.

Um empecilho para a realização de capacitações é a liberação dos profissionais. Um estudo realizado no ano de 2011 com diversos profissionais da área da saúde mostrou a insatisfação dos trabalhadores diante da excessiva demanda de atendimento16,17. No entanto, os entrevistados sinalizam para a utilização dos espaços de reuniões como cenário para a realização de educação continuada, por meio de capacitações, treinamentos ou discussões. Essa por sua vez se configura como uma estratégia de gestão da unidade para atendimento de suas demandas e necessidades e deve contemplar todos os profissionais que integram a equipe. Para fortalecer e guiar essas capacitações, o NASF apoia as equipes de Saúde da Família e propõe uma agenda com temas variados para serem abordados durante as reuniões dos profissionais de Saúde. Os temas propostos abordam reflexões sobre sexualidade, conhecimento do próprio corpo, vulnerabilidades da sexualidade (DSTs), olhar que reconstrua o sentimento de responsabilização na mulher, novos paradigmas do homem e mulher na sociedade e formas de interagir com a mulher vítima de violência14.

Segundo a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, as diversas ações de capacitação profissional, se realizadas de forma articulada à estratégia de mudança institucional, poderão representar a educação permanente do pessoal de saúde, um conceito pedagógico no setor da saúde, para criar relações orgânicas entre o ensino e os serviços, e fortalecer as relações entre a formação e a gestão setorial e o desenvolvimento institucional9.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo aponta para o pouco preparo dos profissionais que atuam na ESF para trabalhar a temática violência conjugal, expresso pela dificuldade de reconhecimento da mulher que vivencia o agravo e de acolhimento e direcionamento desta. Quando o atendimento é prestado, este muitas vezes este se dá de forma não orientada, o que pode vir a comprometer ainda mais a situação que a mulher se encontra.

Os profissionais clamam por educação continuada que contemple a abordagem da mulher em situação de violência, bem como a violência doméstica em geral, considerando a complexidade que envolve a temática, as estratégias de identificação do agravo e discussões sobre leis, fluxos, notificação e articulações com o serviço social e psicológico. Assim, o estudo contribui ao oferecer elementos que orientam uma proposta de capacitação profissional que permita sensibilizar e preparar os profissionais que atuam na ESF acerca do cuidado à mulher em situação de violência conjugal, favorecendo, assim, a integralidade na atenção a saúde.

O estudo limita-se às particularidades dos sujeitos e ao contexto político de atuação no município, apontando para a necessidade de novos estudos que tratem a temática. Todavia, os achados representam subsídios para a gestão do cuidado na Atenção Primária à Saúde, sobretudo no âmbito das unidades locais de saúde. A enfermagem se destaca nesse processo, pois integra a equipe mínima e ocupa, na maioria das vezes, os cargos de coordenação de tais unidades.

REFERÊNCIAS

Waiselfisz JJ. Mapa da Violência 2012. Os novos padrões da violência homicida no Brasil. São Paulo(SP): Instituto Sangari; 2012.
Gomes NP, Diniz NMF. Homens desvelando as formas da violência conjugal. Acta paul. enferm. (Online). 2008 [citado 2012 Nov 25]; 21(2):262-7. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ape/v21n2/pt_a05v21n2.pdf>.
Carvalho-Barreto A, Bucher-Maluschke JSNF; Almeida PC; De Souza, E. Human development and gender violence: a bioecological integration. Psicol. reflex. crit. 2009;22(1):86-92.
Pedrosa CM, Spink MJP. A violência contra mulher no cotidiano dos serviços de saúde: desafios para a formação médica. Saude soc. (online). 2011,20(1):124-35.
Vieira LB, Padoin SMM, Souza IEO, Paula CC. Perspectivas para o cuidado de enfermagem às mulheres que denunciam a violência vivida. Esc Anna Nery. (online). 2011;15(4):678-85.
Baraldi ACP, Almeida AM, Perdona GC, Vieira EM. Violência contra a mulher na rede de atenção básica: o que os enfermeiros sabem sobre o problema? Rev. Bras. Saúde Mater. Infant. (online). 2012;12(3):307-18
Santini LN, Nakano AMS, Lettiere A. Percepção de mulheres em situação de violência sobre o suporte e apoio recebido em seu contexto social. Texto & contexto enferm. 2010 Set; 19(3):417-24.
Villela WV et al. Ambiguidades e contradições no atendimento de mulheres que sofrem violência. Saúde soc. (online). 2011;20(1):113-23
Ministério da Saúde (Brasil). Caderno de Atenção Básica. Diretrizes do NASF. Núcleo de Apoio a Saúde da Família. Brasília(DF): MS; 2009 [citado 05 dez. 2012]. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/caderno_atencao_basica_diretrizes_nasf.pdf>.
Leite JL, Silva JL; Oliveira RMP; Stipp MAC. Thoughts regarding researchers Utilizing Grounded Theory. Rev. esc. enferm. USP. 2012 jun., 46(3):765-9. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v46n3/en_33.pdf>.
Dantas CC, Leite JL, Lima SBS, Stipp MAC. Grounded theory-conceptual and operational aspects: a method possible to be applied in nursing research. Rev. latinoam. enferm. 2009;17(4):573-9.
Baraldi ACP, Almeida AM, Perdoná GC, Vieira EM. Violência contra a mulher na rede de atenção básica: o que os enfermeiros sabem sobre o problema? Rev. bras. saúde matern. infant. 2012;12(3):307-18.
Oliveira CC, Fonseca RMGS. Práticas dos profissionais das equipes de saúde da família voltadas para as mulheres em situação de violência sexual. Rev. esc. enferm. USP (Online). 2007;41(4):605-12.
Ministério da Saúde(Brasil). Secretaria de Políticas Pública. Coordenadoria Nacional DST/HIV/AIDS. Programa Saúde da Mulher. Norma Técnica. Prevenção e tratamento de agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes. Brasília(DF): MS; 2002 [citado em 03 dez. 2012]. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/nta2edi%E7%E3o.pdf>.
Nascimento EFGA. Percepções dos profissionais de saúde de Angola sobre a violência contra a mulher na relação conjugal [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2011.
Morais SCRV, Monteiro, CFS, Rocha, SS. O cuidar em enfermagem à mulher vítima de violência sexual. Texto & contexto enferm. 2010;19(1):155-60.
Kiss LB, Schraiber LB. Temas médico-sociais e a intervenção em saúde: a violência contra mulheres no discurso dos profissionais. Ciênc. saúde coletiva (Online). 2011;16(3):1943-52.

© Copyright 2024 - Escola Anna Nery Revista de Enfermagem - Todos os Direitos Reservados
GN1