Volume 17, Número 4, Set/Dez - 2013
PESQUISA
Melhores práticas na atenção básica à saúde e os sentidos
da integralidade
Selma Regina de Andrade
1
Ana Lúcia Schaefer Ferreira de Mello
2
Maria Teresa Rogério Locks
3
Daiana de Mattia
4
Fernanda Hoeller
5
Alacoque Lorenzini Erdmann
6
1
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianopólis - SC,
Brasil
2
Federal de Santa Catarina. Florianopólis - SC,
Brasil
3
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianopólis - SC,
Brasil
4
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianopólis - SC,
Brasil
5
Ultralitho Centro Médico. Florianopólis - SC, Brasil
6
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianopólis - SC,
Brasil
Recebido em 02/04/2013
Reapresentado em 10/06/2013
Aprovado em 29/07/2013
Autor correspondente:
Selma Regina de Andrade
E-mail:
selma@ccs.ufsc.br
RESUMO
Este estudo objetivou analisar as melhores práticas implementadas na Atenção Básica
(AB), bem como seus critérios de definição, segundo a percepção de gestores,
profissionais da saúde e usuários. O referencial da integralidade, em três sentidos:
organização dos serviços, práticas dos profissionais da saúde e políticas
governamentais, permitiu caracterizar as melhores práticas na AB e seus critérios.
Estudo exploratório-descritivo e analítico, de natureza qualitativa, ancorado na
Teoria Fundamentada nos Dados. Foram realizadas entrevistas com sete coordenadores,
dez profissionais da saúde e doze usuários de Centros de Saúde de Florianópolis,
Brasil, compondo três grupos amostrais. Resultaram duas categorias de análise
tratando do significado de melhores práticas. A percepção das práticas está
relacionada ao contexto e às interações estabelecidas entre os atores sociais, que
elaboram seus posicionamentos com base nas suas experiências e posições ocupadas nos
serviços de saúde.
Palavras-chave: Atenção básica à saúde; Assistência integral à saúde; Prática de saúde pública.
INTRODUÇÃO
O Sistema Único de Saúde tem investido na expansão e qualificação da Atenção Básica (AB) como prioridade político-organizacional. As práticas de cuidado em saúde no nível da AB constituem um dos desafios do sistema, considerando a necessidade de tecnologias próprias que atendam os atributos de eficácia e efetividade no sentido de fazer mais e melhor.
A Política Nacional de Atenção Básica estabeleceu a revisão das diretrizes e normas para a estratégia de saúde da família como a estratégia prioritária de reorganização dos serviços de saúde do Brasil. A atenção básica caracteriza-se por ações individuais e coletivas de promoção e proteção à saúde, de prevenção de doenças, de diagnóstico, de tratamento, de reabilitação e de manutenção da saúde. Estas ações constituem fases da assistência à saúde e são desenvolvidas com enfoque multiprofissional, por meio de atribuições privativas ou compartilhadas entre os integrantes da equipe de saúde1.
A regulamentação da estrutura organizativa do SUS2 reafirma a AB como porta principal de entrada ao sistema e a considera o centro de comunicação da rede de atenção à saúde e o eixo coordenador dos fluxos e contra fluxos dos serviços de saúde. Para desempenhar seu papel de centro de comunicação da rede horizontal do sistema de saúde, a AB deve cumprir as funções de resolutividade, coordenação, além de responsabilizar-se pela saúde dos cidadãos em qualquer ponto de atenção em que estejam. O desempenho dessas funções direciona o "fazer em saúde" para o cumprimento do princípio da integralidade, entendido como "um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema"3.
As possibilidades de abordagem deste princípio nas práticas assistenciais são bastante amplas. Uma dessas possibilidades foi desenvolvida a partir de um referencial analítico para o princípio da integralidade, compreendidos segundo três grandes conjuntos de sentidos4: a) organização dos serviços e das práticas de saúde; b) práticas dos profissionais de saúde; e c) políticas e respostas governamentais aos problemas de saúde.
Com o sentido de organização dos serviços, a integralidade deve ser priorizada sob a ótica de sua reorganização, referindo-se à necessidade de garantir o acesso a todos os diferentes níveis de densidade tecnológica que cada situação exige. No sentido relativo às práticas dos profissionais de saúde, a integralidade é entendida como um processo de construção social, que tem na ideia de inovação institucional um grande potencial para se realizar. As boas práticas podem fornecer relações mais horizontais entre seus participantes - gestores, profissionais de saúde e usuários - e produzir novos conhecimentos baseados nas experiências vivenciadas nesta inter-relação. A integralidade entendida no sentido de políticas e respostas governamentais está relacionada com a capacidade destas em organizar o sistema de saúde, com destaque para novas proposições, com arranjos solidários, incluindo a participação de sistemas locais de saúde. Essa capacidade se refere também às práticas de gestão, em que os agentes envolvidos na formulação de políticas de Estado tem o papel de atender às demandas de saúde da população4.
No âmbito dos serviços de saúde, a análise do princípio da integralidade a partir destes sentidos4 conduz à reflexão sobre a construção e desenvolvimento de melhores práticas. Estas são entendidas como um conjunto de técnicas, processos e atividades, identificadas como as melhores para realizar determinada tarefa. São definidas como uma técnica ou metodologia que, por meio da experiência e da investigação, possui uma confiabilidade comprovada para conduzir a um determinado resultado5. Consistem no conhecimento sobre aquilo que funciona em situações e contextos específicos, sem a utilização desmesurada de recursos, para atingir os resultados desejados, e que pode ser utilizado para desenvolver e implementar soluções adaptadas a problemas de saúde semelhantes noutras situações ou contextos5.
As melhores práticas devem ser consistentes com os valores, preceitos éticos e fundamentos teóricos da promoção da saúde, bem como levar em conta a compreensão do ambiente, as crenças e as evidências científicas para o qual está orientado o alcance dos objetivos6. O estabelecimento de critérios é um passo importante para definir o que pode ser considerado como melhores práticas no cuidado à saúde no âmbito dos serviços públicos, entre eles o sucesso comprovado, demonstrado por diversos indicadores, o potencial inovador e criativo, a possibilidade de replicação (com modificações) em outros cenários e importância local para a organização que busca melhoria6.
O aperfeiçoamento das práticas de cuidado em saúde no nível da atenção básica, componente fundamental para consolidação do modelo, investe-se de responsabilidade para reorganizar práticas promocionais, preventivas, assistenciais e gerenciais, dirigidas às populações de territórios delimitados. Múltiplos são os atores sociais que convivem no espaço das práticas de saúde (usuários, profissionais da saúde e gestores), bem como múltiplos são os interesses (políticos organizacionais, econômicos, sociais e culturais) que influenciam a seleção e desempenho de tais práticas. A identificação de melhores práticas no contexto da atenção básica e dos critérios relevantes, para serem assim consideradas sob a perspectiva do referencial analítico da integralidade4, justifica-se por possibilitar uma compreensão ampliada do significado de melhores práticas no cuidado à saúde, em especial na AB, visto seu redimensionamento como coordenadora da Rede de Atenção à Saúde.
Este estudo tem como objetivo analisar as melhores práticas implementadas na AB, bem como seus critérios de definição, a partir dos distintos sentidos atribuídos ao princípio da integralidade, segundo a percepção de gestores, profissionais da saúde e usuários.
MÉTODO
Este estudo caracteriza-se como exploratório-descritivo e analítico, de natureza qualitativa, ancorado no referencial da Teoria Fundamentada nos Dados (TFD)7. Os dados foram obtidos a partir de 29 entrevistas realizadas com sete coordenadores, dez profissionais da saúde (médicos, enfermeiros, dentistas e técnicos de enfermagem) e doze usuários de Centros de Saúde (CS) de Florianópolis, Santa Catarina, designados como primeiro, segundo e terceiro Grupo Amostral, respectivamente. Na seleção dos participantes foram privilegiados sujeitos que possibilitaram a compreensão abrangente do fenômeno sob investigação: as práticas de cuidado à saúde implementadas na AB. Procurou-se contemplar a representação dos cinco Distritos Sanitários que compõem o município.
A coleta dos dados foi iniciada pelos coordenadores de unidades básicas de saúde em razão do papel que desempenham na gestão deste nível de atenção e considerando a experiência e vivência em melhores práticas, sob enfoque organizacional. Assim, a partir da análise dos dados do primeiro Grupo Amostral, emergiu a hipótese de que as melhores práticas consideradas são ações e serviços exercidos cotidianamente pelos profissionais da saúde, e que estes cumprem papel importante na boa execução das mesmas. Por fim, o grupo composto por usuários constituiu-se sob a hipótese de que estes são, em última análise, os receptores destas ações e serviços e, portanto, percebem e qualificam os seus processos, produtos e resultados. As falas foram gravadas e transcritas, e os dados brutos, examinados para identificar os indicadores empíricos, definidos como códigos, a partir da técnica da Análise Comparativa7, pela qual os dados são coletados e constantemente comparados entre si, para investigação de similaridades, diferenças e graus de consistência, bem como da necessidade de se obter novas informações.
Para este estudo, com o apoio do software NVivo 8.0®, os códigos de cada um dos três Grupos Amostrais foram ordenados, separadamente, segundo prevalência, com o intuito de identificar a frequência com que emergiram as expressões dos integrantes sobre o que consideram melhores práticas na AB. Após esta organização, em ordem crescente de frequência, definiram-se como critério de inclusão aqueles códigos com frequência superior a 40%. Após essa separação, os códigos foram reagrupados segundo os sentidos da integralidade4, os quais foram analisados comparativamente entre os três grupos amostrais.
Esta pesquisa integra o projeto "Sistema de cuidado em saúde: melhores práticas organizacionais no contexto das políticas públicas de saúde",financiado pelo CNPq e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina, sob parecer número 257/08. Os entrevistados foram informados sobre os objetivos e procedimentos de pesquisa, via Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o qual foi assinado por todos os participantes que aceitaram contribuir com o estudo. Esclareceu-se sobre a ausência de riscos ou desconfortos, a não identificação dos sujeitos e a não penalização ou prejuízo em virtude do conteúdo das falas ou desistência na participação no estudo.
RESULTADOS
A compilação e análise dos dados permitiram organizá-los em duas categorias: O significado de melhores práticas segundo gestores/coordenadores, profissionais de saúde e usuários; e Significado de melhores práticas e critérios segundo os sentidos atribuídos ao princípio da integralidade, detalhadas a seguir.
O significado de melhores práticas segundo gestores/coordenadores, profissionais de saúde e usuários
Os resultados permitem visualizar os distintos significados e pontos de convergência apontados pelos entrevistados, que identificaram um conjunto de melhores práticas que vêm sendo consolidadas na AB.
Para os coordenadores dos Centros de Saúde, há um elenco significativo e variado de práticas consideradas boas ou melhores. Foram mencionados diferentes programas implementados no âmbito da atenção básica, principalmente os indicados pelo Ministério da Saúde, incluindo o Programa Agentes Comunitários de Saúde, Saúde da Mulher, do Idoso e da Criança, Saúde na Escola, as ações da Rede Amamenta Brasil e Saúde Mental, e demais iniciativas municipais, como os Programas Capital Criança, Capital Idoso e o Floripa Saudável 2040. Foram também consideradas melhores práticas pelos coordenadores aquelas realizadas no cotidiano dos Centros de Saúde, que contribuem para a organização do processo de trabalho. A realização de grupos terapêuticos, de acompanhamento e de promoção da saúde propicia a atenção a um maior número de pessoas e um contato mais direto com a população. O matriciamento possibilita discussão de casos entre a equipe, e a presença de especialista é considerada um avanço, principalmente na área da saúde mental, por racionalizar o uso de medicamentos controlados. Práticas que aproximam os serviços dos usuários, como as visitas domiciliares, também são iniciativas citadas que permitem um acompanhamento mais individualizado e viabilizam a assistência aos acamados. A promoção do vínculo com os usuários, pela implementação de práticas de acolhimento, o agendamento por área de abrangência, a busca ativa de casos e a atuação dos agentes comunitários de saúde são potencializadores do cuidado direcionado às necessidades dos usuários. Especialmente o acolhimento, a escuta seguida de orientação, traz mais satisfação para o usuário e resolutividade no momento em que eles demandam o CS, na opinião dos gestores. Ainda neste campo, o bom trato ao usuário e o bom relacionamento com a comunidade foram valorizados, na medida em que são transmitidas orientações sobre rotinas e procedimentos, fluxos e limites e possibilidades do usuário ser atendido. O estabelecimento de mecanismos de negociação com os usuários e a valorização de práticas que consolidem a humanização do serviço são práticas reconhecidas. A primeira pela forma horizontal de tomada de decisão sobre casos urgentes em demanda espontânea, critérios de priorização e distribuição de vagas. A segunda, pela indução e estímulo ao usuário para autonomia, emancipação, melhor comunicação e exercício de cidadania no SUS.
No âmbito da gestão, a participação e a flexibilização das ações foram consideradas pelos coordenadores como estratégias para adaptar a realidade local aos conteúdos normativos. A construção de um novo modelo de atenção à saúde, menos focalizado na doença e na exclusiva capacidade de resposta do profissional médico, pressupõe compartilhamento de informações. A realização de reuniões de equipe para discussão e planejamento de ações surge como um espaço de integração entre todos os profissionais de saúde. Também compuseram o rol das melhores práticas as iniciativas internas de realização de ações de educação permanente, com foco na capacitação de profissionais de saúde, na revisão de procedimentos, reciclagem de conhecimentos, estabelecimento de protocolos e padronizações, bem como aquelas orientadas à conscientização e divulgação sobre o arcabouço teórico legal do SUS. Nessa linha, também foi considerada a valorização das capacidades profissionais, pelo reconhecimento das competências específicas, que promove a otimização do desempenho de cada profissional, sem esquecer as possibilidades de ações interdisciplinares.
Comparativamente, as melhores práticas identificadas pelos profissionais de saúde entrevistados também corroboraram, em alguns aspectos, a visão dos gestores coordenadores de CS. Consideram melhores práticas a realização de programas, a realização de grupos, visitas domiciliares, o acolhimento e o estabelecimento de vínculo com a comunidade.
O terceiro grupo amostral - usuários - contempla similaridades com relação às categorias referentes ao acesso às ações e serviços de saúde e ao bom trato e bom relacionamento com a comunidade, esta última comum aos três grupos. Com relação à categoria acesso, os usuários relataram perceber melhorias na ampliação da oferta de consultas e exames, incluindo especialidades e na diminuição do tempo de espera para sua realização. Diferentemente dos demais grupos, os usuários entendem também como melhores práticas a marcação de consultas e exames e a oferta e disponibilidade de medicamentos na farmácia, no CS da sua área de abrangência. Embora tenha destaque a oferta de medicamentos no CS como melhor prática para o usuário, as falas não expressaram associação ao modelo de atenção curativo tradicional. Os usuários identificaram fluxos e os protocolos já estabelecidos e consideraram diferentes fatores como a obtenção do medicamento em sincronia entre a realização da consulta, sua vinculação à participação em grupos e a duração da prescrição para um determinado período de tempo.
Significado de melhores práticas e critérios segundo os sentidos atribuídos ao princípio da integralidade
Com relação às melhores práticas, a integralidade no sentido de organização dos serviços e das práticas de saúde, os resultados demonstraram a melhora no acesso, a integração do setor saúde com outras redes sociais, o matriciamento, a marcação de consultas e exames, bem como a quantidade e qualidade dos medicamentos fornecidos. Foram considerados como critérios o acesso facilitado, o alcance do princípio da integralidade da atenção, ser referência para outras unidades de saúde, o monitoramento de indicadores e a colaboração dos profissionais nas diversas tarefas do CS.
Para as práticas dos profissionais de saúde foram citadas as visitas domiciliares, o modo de relacionamento com a comunidade, acolhimento e vínculo com o usuário e a realização de grupos. Foram elencados como critérios o relacionamento com o usuário, vínculo e proximidade com a população, reconhecimento e satisfação dos usuários, contato e aceitação da população.
Na análise das políticas e respostas governamentais aos problemas de saúde, destacaram-se os aspectos de gestão flexível, reuniões de equipe, comprometimento, compartilhamento de informações e integração entre profissionais e a valorização das capacidades profissionais. Foi destaque, ainda, a par ticipação popular com o engajamento da comunidade, as oportunidades e espaços de discussão, as práticas de educação permanente e o seguimento de programas governamentais de abrangência municipal ou nacional. Neste sentido, foram enfatizados como critérios o empoderamento e autonomia dos usuários, a educação permanente, crenças e incorporação da proposta do SUS, promoção da saúde, e interesse e participação dos usuários pelas atividades do CS. Os entrevistados destacaram ainda a corresponsabilização profissionalusuário, a oportunidade de espaços de discussão, o modo de gerenciar a demanda, a participação dos profissionais na tomada de decisão e na gestão e as ações interdisciplinares. O Quadro 1 sintetiza as melhores práticas, segundo os sentidos do princípio da integralidade, sob a ótica de cada conjunto de entrevistados.
SENTIDOS DA INTEGRALIDADE | |||
ORGANIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SAÚDE | PRATICAS DOS PRORSSIONAIS DE SAÚDE | POLÍTICAS / RESPOSTAS GOVERNAMENTAIS | |
GESTOR/COORDENADOR | |||
Práticas de educação permanente | |||
PROFISSIONAL DE SAÚDE | |||
Educação em Saúde | |||
USUÁRIO | |||
Encaminhamento para outros níveis de complexidade |
DISCUSSÃO
A operacionalização do sistema de saúde brasileiro requer uma visão ampla e integrada dos sentidos atribuídos ao princípio da integralidade, bem como do significado de melhores práticas no cuidado à saúde. No entanto, para quaisquer dos sentidos atribuídos à integralidade, há uma série de fatores que parecem interferir em sua efetivação8.
A integralidade, na qualidade de um princípio doutrinário da política do Estado brasileiro para a saúde3, destina-se a conjugar as ações rumo à materialização da saúde como direito dos cidadãos8. Embora ainda existam dificuldades e obstáculos a serem transpostos para sua efetivação, algumas estratégias têm sido utilizadas para o alcance do direito à saúde em sua plenitude, considerando as boas práticas em saúde como respostas adequadas às necessidades da população3,8.
A integralidade tem sido estudada sob diferentes abordagens9-10, sendo definida, em sentido amplo, como um modo de atuar democrático e de saber fazer saúde integrado 11. Nesse modo de atuar, inclui-se a relação de compromisso ético e político entre pessoas e instituições, traduzida em ato e reconhecida nas práticas, aquelas consideradas melhores, que valorizam o cuidado com o usuário e consideram-no como sujeito a ser respeitado em suas demandas e necessidades12.
A integralidade entendida no sentido da organização dos serviços e das práticas de saúde deve ser considerada sob a ótica da reorganização do modelo de atenção, em busca da garantia de acesso a todos os níveis do sistema de saúde. No SUS, a atenção básica à saúde é uma das atribuições das secretarias municipais de saúde, cuja tarefa inclui gerenciar, de forma plena, a atenção primária em suas dimensões administrativa, técnica, financeira e operacional. Compreendida como um dos níveis do sistema de saúde e um campo específico de atuação, fica implícita a exigência do cumprimento do princípio da integralidade10.
Neste sentido, a rede de serviços deve ser considerada nos seus distintos níveis de complexidade e de competências, em que a integração entre as ações se realiza e satisfaz o conjunto de cuidados demandados por um indivíduo. Há, aqui, um ponto crucial para a efetivação da integralidade, com reflexos na organização dos serviços. Este ponto depende da integração horizontal entre ações de prevenção, promoção e recuperação, que é influenciada pelos saberes técnico e práticas dos profissionais que atuam no cuidado à saúde.
Pesquisadores e gestores têm apontado o acesso aos serviços de média complexidade como um dos entraves para a efetivação da integralidade do SUS. Um estudo realizado na capital de São Paulo, Brasil, utilizando este mesmo referencial teórico da integralidade da assistência, na dimensão da organização de serviços, com gestores e usuários, identificou a média complexidade como o elo estreito que represa a demanda, configurando um dos principais obstáculos para uma atenção integral13. Esta integração depende, também, da atuação decisiva dos gestores para organizarem o conjunto dos serviços de saúde10. Neste aspecto, os usuários deste estudo compreenderam as práticas de saúde em convergência ao entendimento amplo de integralidade, mais abrangentes que as definidas pelos gestores e profissionais de saúde, o que poderia indicar que eles, por necessitarem e utilizarem os serviços de saúde conseguem perceber com mais clareza as lacunas para a oferta de serviços.
Um estudo relativo a modelos e práticas da organização das ações de atenção à saúde, ao discutir o princípio da integralidade da atenção no contexto do SUS e seus desafios nos planos do conhecimento, das tecnologias e da ética, caracteriza o modelo de atenção à saúde como o horizonte discursivo e as práticas profissionais como tecnologias instruídas pelo modelo. Nesta perspectiva, o cuidado, como prática privilegiada, destaca-se como uma fusão de horizontes entre profissionais e usuários14. Esta visão é também corroborada pelos entrevistados que configuram os dois grupos amostrais nesta pesquisa.
O sentido da integralidade relativo às práticas dos profissionais de saúde teve grande representatividade para os três grupos de entrevistados, delegando aos profissionais da saúde a responsabilidade pela efetivação do cuidado integral à saúde. Entende-se que as práticas dos profissionais podem promover ou dificultar a efetivação integralidade, mas estas não podem ser responsabilizadas de modo isolado, visto que a integralidade só se efetivará com incorporações ou redefinições dos processos de trabalho de toda da equipe de saúde4.
Nesse sentido, a integralidade concretizada nas práticas dos profissionais de saúde relaciona-se com o fazer cotidiano nas Unidades de Saúde. Ações como visitas domiciliares, e realização de grupos, parecem ter um peso importante no que diz respeito ao desenvolvimento de um processo de trabalho que busca alternativas ao enfoque biomédico de enfrentamento dos problemas de saúde e que se abre a outras formas de responder às necessidades dos usuários, para além da realização de consultas individuais. Entretanto, ressalta-se que a realização de consultas na atenção básica foi considerada pelos três grupos como boa prática.
Um estudo realizado em municípios do interior do estado de São Paulo, com o objetivo de debater o discurso das enfermeiras sobre o conceito da integralidade em saúde e sua operacionalização na prática da Atenção Básica, revelou que as concepções destas profissionais estão diretamente relacionadas à assistência, cuja prática é exercida em seu processo de trabalho cotidiano, entendendo a integralidade fundamentalmente enquanto "princípio orientador de uma dada prática clínica"15:1139. Em relação às dimensões da integração de serviços no campo da saúde com vistas à integralidade da atenção, o sistema clínico (integração dos cuidados e da equipe de profissionais), está incluído nas dimensões de um sistema integrado de saúde, o que pode ser operacionalizado via gestão da clínica, implementação de protocolos clínicos e de sistema integrado de informação16.
A prática do acolhimento, seja aqui interpretada como nas dimensões do diálogo com a comunidade, da postura ou como estratégia de reorganização dos serviços17, citada fundamentalmente pelos gestores, cumpre um papel importante na garantia da integralidade na medida em que qualificou o processo de trabalho e estreitou as relações estabelecidas nos espaços de cuidado, reforçando o papel da atenção básica no sistema de saúde.
A integralidade da atenção resulta da forma como se articulam as práticas dos profissionais da saúde, fundamentadas no trabalho em equipe com ações interdisciplinares9. Esta visão de integralidade não esteve presente neste estudo, ao analisarmos o sentido das práticas profissionais. As autoras consideraram esta uma visão focalizada de integralidade, quando, por meio do trabalho articulado e responsabilidade compartilhada nas ações e decisões entre os membros equipe de saúde, seria possível escutar e atender da melhor forma as necessidades de saúde trazidas pelos usuários.
Neste estudo, o bom relacionamento e a proximidade com a comunidade, a aceitação da população e o reconhecimento e satisfação dos usuários com os serviços prestados foram citados como boas práticas, bem como critérios para a sua definição. Aspectos como acesso e acolhimento apresentam-se como elementos essenciais para avaliação da qualidade dos serviços de saúde pelo usuário. A satisfação do usuário com o atendimento está associada a fatores facilitadores do acesso e ao acolhimento na atenção básica, determinam a escolha e continuidade do uso do serviço e estabelecem bom vínculo entre profissionais e usuários17.
A integralidade, no sentido de políticas e respostas governamentais aos problemas de saúde, inclui a gestão de saúde, definida como um espaço institucional de construção de práticas interativas e relacionais entre os atores sociais, articulados por meio de organismos de decisão conjunta e permanente, em diferentes níveis do sistema de saúde4.
A identificação de melhores práticas neste sentido político da integralidade adquire maior relevância para os coordenadores e pouca significância para os usuários. Os critérios apontados neste sentido são predominantemente de cunho subjetivo e qualitativo, com algumas inserções de natureza epidemiológica, evidenciando mais uma vez que o princípio da integralidade, no sentido de políticas e respostais governamentais, na visão dos usuários e profissionais, está distante das boas práticas.
A priorização do princípio da integralidade por gestores municipais, estaduais e federais configura-se uma necessidade para o cumprimento dos pressupostos do sistema de saúde na prática cotidiana da gestão. Isso implica pensar a gestão da saúde através do planejamento e do processo de trabalho, com vistas a promover uma integração dos profissionais de saúde e dos usuários no contexto de uma gestão democrática, destacando sua importância para a concretização dos princípios do SUS3.
Por outro lado, os pactos firmados entre gestores deram visibilidade pública aos rumos e estratégias da política nacional de saúde, chegando sua operacionalidade ao nível local de atuação. A reflexão sobre os rumos maiores e os rumos adicionais do SUS confirma, para os primeiros, a Saúde como cidadania e os demais valores já consagrados nos textos legais. Os rumos adicionais incluem um conjunto denso e complexo de "experimentos normativos, programáticos e operacionais que dizem respeito a modelos de atenção, de gestão, da prestação de serviços, do trabalho na saúde, do financiamento e da participação social"18:431. Desse modo, a gestão do sistema e dos serviços de saúde constitui-se em um espaço fecundo para a realização da integralidade, buscando produzir respostas governamentais às questões de saúde, em que gestores públicos, profissionais de saúde e usuários possam se envolver, conjuntamente, na construção destas respostas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados deste estudo possibilitaram identificar as práticas tidas como melhores, sob visões distintas, considerando diferentes atores na atenção básica. Além disso, o referencial da integralidade permitiu configurar as melhores práticas na atenção básica e seus critérios, segundo a organização dos serviços, as práticas dos profissionais de saúde e as políticas governamentais.
A percepção de boas práticas está relacionada diretamente ao contexto e às interações estabelecidas pelos gestores, profissionais de saúde e usuários, que elaboram seus posicionamentos baseados nas suas experiências e posições ocupadas nos serviços de saúde.
Neste estudo, o significado de boas práticas está relacionado ao estabelecimento de vínculo entre serviço e população, ao acolhimento e à realização de grupos operativos. Há, no entanto, predominância entre coordenadores/gestores em considerar a autonomia dos serviços, conhecimento da legislação e gestão flexível como prática diferenciada, ao passo que profissionais e usuários dão ênfase à melhoria do acesso como prática de destaque.
As interações acentuam a corresponsabilidade e a interdependência entre gestores, profissionais e usuários nos processos assistenciais e de gestão, indicando uma orientação das ações e serviços prestados nos CS a uma prática mais humanizada, preocupada com características subjetivas do cuidado à saúde.
Compreende-se, contudo, a necessidade de que os atores transcendam e ampliem suas visões para referenciais mais abrangentes e coletivos, de modo a incluir em suas percepções isoladas o reconhecimento dos diferentes valores, crenças e contextos em que se produz a atenção integral à saúde.
REFERÊNCIAS