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CAPES

Volume 17, Número 4, Set/Dez - 2013



DOI: 10.5935/1414-8145.20130025

Colonialismo nas relações entre trabalhadores e usuários durante as práticas de cuidado: implicações para a integralidade da atenção

Maria Denise Schimith 1
Ana Cristina Passarella Brêtas 2
Maria de Lourdes Denardin Budó 3
Anna Maria Chiesa 4
Gabriela Fávero Alberti 5


1 Universidade Federal de Santa Maria Santa Maria RS Brasil Universidade Federal de Santa Maria - Santa Maria - RS, Brasil
2 Universidade Federal de São Paulo São Paulo SP Brasil Universidade Federal de São Paulo - São Paulo - SP, Brasil
3 Universidade Federal de Santa Maria Santa Maria RS Brasil Universidade Federal de Santa Maria - Santa Maria - RS, Brasil
4 Universidade Federal de São Paulo São Paulo SP Brasil Universidade Federal de São Paulo - São Paulo - SP, Brasil
5 Universidade Federal de Santa Maria Santa Maria RS Universidade Federal de Santa Maria - Santa Maria - RS, Brasil

Recebido em 14/05/2013
Reapresentado em 18/07/2013
Aprovado em 21/08/2013

Autor correspondente:
Maria Denise Schimith.
E-mail: ma.denise2011@gmail.com

RESUMO

Este estudo objetivou relatar as relações entre trabalhadores e usuários e suas implicações para a continuidade do cuidado.
MÉTODOS: Trata-se de uma pesquisa qualitativa, desenvolvida a partir de um estudo de caso, de fevereiro a julho de 2012. Os sujeitos foram trabalhadores de saúde e usuários de uma Unidade de Saúde da Família. Realizaram-se observação participante, entrevistas e buscas em documentos e registros.
RESULTADOS: Evidenciaram-se momentos em que os usuários são generalizados pela equipe, que desconsidera sua singularidade; isso desqualifica o usuário, revelando a fragilidade da integralidade da atenção.
CONCLUSÃO: Há implicações das relações colonialistas que consideram usuários como objetos, afetando a continuidade do cuidado. Descortinou-se a participação de enfermeiros neste processo, reforçando a necessidade de se aprofundar a reflexão acerca da prática profissional.


Palavras-chave: Participação do Paciente; Continuidade da Assistência ao Paciente; Sistema Único de Saúde; Enfermagem; Assistência Integral à Saúde.

INTRODUÇÃO

A integralidade é um conceito estruturante da atenção no Sistema Único de Saúde (SUS), porém, dado o seu caráter polissêmico, envolve tanto as práticas de cuidado não fragmentado como a continuidade nos diversos serviços que se fizerem necessários. A participação do usuário na construção de seu projeto terapêutico é condição para a individualização e singularização nos serviços e ações de saúde. No entanto, a concepção que trabalhadores e gestores têm a respeito dos usuários é de um objeto, um ser genérico, sem particularidades. Constata-se isso a julgar pela forma como organizam os serviços ou executam as ações em saúde, sem incorporar aspectos humanos e sociais aliados ao processo saúde doença. O cidadão brasileiro, que conta com uma Constituição Federal que pressupõe acesso universal, integral e equânime, não encontra serviços que contemplem esse direito.

A questão que necessita ser confrontada é o não reconhecimento do usuário como cidadão e partícipe no processo, o que pode ser chamado de colonialismo, revelado "na ignorância da reciprocidade e na incapacidade de conceber o outro a não ser como objeto".1:81 Os trabalhadores de saúde impõem seu conhecimento, sua perspectiva aos usuários e não os reconhecem como sujeitos, perpetuando uma relação de submissão.

Estudos que abarcam as relações entre trabalhadores de saúde e usuários indicam que este é um campo ainda aberto para descortinar a implicação na continuidade do cuidado.2,3 A participação do usuário em seu tratamento tem se dado sem alguns elementos essenciais, dentre eles, o incentivo explícito por parte do profissional para a participação do paciente e a valorização do direito do usuário em desempenhar um papel ativo na tomada de decisão.4 Esta prática poderia fortalecer a autonomia e corresponsabilização dos usuários pela proposta terapêutica escolhida.

A experiência com atividades de ensino, pesquisa e extensão nas Estratégias Saúde da Família (ESF) de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil, permitiu observar que a necessidade do usuário é muitas vezes traduzida por um encaminhamento a outro serviço da Rede de Atenção à Saúde (RAS) sem a participação deste. Por RAS compreende-se a coordenação integrada de ações e serviços de saúde de diferentes densidades tecnológicas, que procuram garantir a integralidade do cuidado.5

A integralidade é permeada pelas relações, nas quais se dá a devida atenção às necessidades dos usuários, promovendo modos de agir em saúde radicalmente comprometidos com a "produção de vida".6:100 Este artigo é oriundo de uma pesquisa de doutorado, que se concentrou na seguinte pergunta: "como os aspectos relacionais da negociação e a tomada de decisão compartilhada entre trabalhadores e usuários durante as práticas de cuidado em uma Unidade Saúde da Família (USF) podem efetivar a continuidade do cuidado na RAS do município de Santa Maria?".

O objetivo deste artigo é relatar as relações entre trabalhadores e usuários e suas implicações para a continuidade do cuidado.

REVISÃO DE LITERATURA

Uma das características das práticas de cuidado para atingir a integralidade é a de serem desenvolvidas em trabalho em equipe, com complementaridade e interdependência das ações para prestar o cuidado integral e resolutivo.7 A integralidade também pressupõe corresponsabilização entre trabalhadores e usuários, e a gestão local deve se dar de forma cooperada entre os múltiplos atores sociais do território.8 A responsabilização evoca o tema das relações entre trabalhadores e usuários, espaço em que pode ocorrer a promoção da cidadania.

A participação cidadã é inerente às políticas públicas em sociedades que primam pela democracia. O processo histórico brasileiro de reconhecimento de direitos é permeado por lacunas de acesso e participação, não circunscrita à saúde. Destaca-se a relevância da participação do usuário, mediante as consequências da transição demográfica e epidemiológica que aumentou a incidência de agravos crônicos. A participação do usuário nas decisões por sua saúde é inadiável, pois é condição para a corresponsabilização e a construção de projetos terapêuticos singulares (PTS).9

A permanência de relações colonialistas nos serviços de saúde, negando a proposta de emancipação dos sujeitos, é um impeditivo da corresponsabilização, pois para incluir os usuários nas decisões, faz-se necessário descolonizar mentes e compartilhar saberes.1,10 A descolonização ocorre quando o trabalhador de saúde enxerga o usuário como sujeito, não somente como um corpo. A construção da continuidade do cuidado de forma responsavelmente compartilhada sairá da utopia quando houver a compreensão de que os usuários e "os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza".11:12 O reconhecimento do usuário com direito à diferença deve ser um princípio norteador das práticas de cuidado, sobretudo dada a magnitude dos agravos crônicos.

A tomada de decisões compartilhadas também é fundamental para a adesão e a continuidade do tratamento. A decisão compartilhada está relacionada às dimensões do cuidado paciente-centrado, entre as quais estão: a perspectiva biopsicossocial do usuário; o entendimento do usuário como uma pessoa com direitos (cidadão); responsabilidade e poder compartilhado entre trabalhador e usuário; construção da aliança terapêutica e entender o trabalhador de saúde como uma pessoa, não meramente um técnico qualificado.12

Interligar os princípios da Atenção Básica (AB) e da ESF com a responsabilização, a negociação e a tomada de decisão compartilhada se faz necessário para avançarmos no acesso equânime ao SUS e torná-lo, de fato, um direito de cidadania. A história da reforma sanitária no Brasil originou-se articulada com o movimento democrático de meados dos anos 1980 e culminou com a proposta de instrumentos democráticos como o controle social na gestão das políticas públicas.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, desenvolvida a partir de um estudo de caso. O estudo de caso "investiga um fenômeno contemporâneo em profundidade e em seu contexto de vida real, especificamente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não são claramente evidentes".13:39 Foram contemplados os cinco componentes essenciais do estudo de caso: questões do estudo; proposições; unidade de análise; coerência que une os dados às proposições e critérios para interpretação dos dados.

A unidade de análise, ou o "caso", foi uma USF de Santa Maria, que está localizada no centro do estado do Rio Grande do Sul e possui uma população em torno de 261 mil habitantes. Nas USF atuam 16 equipes da ESF, cada equipe é composta por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Em cinco unidades há equipes de saúde bucal, odontólogo e Auxiliar de Consultório Dentário (ACD). Uma equipe trabalha em duas USF rurais.

A unidade de análise estudada é uma USF com duas equipes básicas e equipe de saúde bucal, estabelecendo o limite espacial do caso.13 As enfermeiras, as técnicas de enfermagem, a odontóloga e a ACD ingressaram na ESF com o concurso público realizado em 2011. A médica trabalhava com um contrato temporário de prestação de serviços, pois no concurso não foi possível preencher todas as vagas para médico de ESF no município. As ACS ingressaram pelo concurso público realizado em 2008, sendo que a maioria delas já atuava como ACS por contrato antes do concurso. Além dos profissionais de saúde que atuam nesta USF, são trabalhadores: uma recepcionista, que iniciou seu trabalho como auxiliar de limpeza e com o tempo assumiu a recepção; um servidor que fazia a limpeza da unidade e que no turno da tarde assumia também a recepção, e o coordenador da unidade, cargo de confiança do governo municipal.

Destaca-se que os estudos de caso "são generalizáveis às proposições teóricas e não às populações", portanto a USF não está sendo considerada uma amostra das demais ESF de Santa Maria.13:36 A meta é expandir e generalizar analiticamente os resultados.

A coleta de dados atendeu aos três princípios essenciais, que são: a utilização de múltiplas fontes de evidência; a criação de um banco de dados e a manutenção de uma conexão entre estas evidências.13 Foram realizadas observação, entrevistas com os trabalhadores e usuários e buscas em documentos e em registros de sistemas de informações.

A observação desenvolvida foi do tipo participante, não estruturada e direta, realizada durante períodos em que a USF estava em funcionamento, principalmente durante as práticas de cuidado. As práticas de cuidado foram consideradas como todas as ações que envolviam o encontro entre trabalhadores e usuários. Também foram observados as reuniões de equipe, encontros com a comunidade e encontros entre os membros da equipe que aconteciam informalmente durante os turnos de trabalho.

Vale destacar que se primou por observações minuciosas, detalhadas e densas, tentando captar o todo que estava acontecendo durante os períodos observados. Com o diário de campo construído desta forma, a análise foi facilitada, minimizando pensamentos convencionais.14 Para aumentar a confiabilidade dos dados observados e evitar a parcialidade, a pesquisadora sempre esteve acompanhada de observadoras auxiliares que receberam treinamento prévio. Os diários de campo eram elaborados pela pesquisadora e pela auxiliar, sendo posteriormente confrontados e discutidos para garantir maior fidedignidade à observação. Os períodos observados perfizeram um total de 76 horas e 25 minutos. O limite temporal para a coleta de dados, portanto, foi de fevereiro a julho de 2012.

As entrevistas foram realizadas com as duas enfermeiras, duas técnicas de enfermagem, uma médica, uma odontóloga, uma ACD, com o auxiliar de serviços gerais, com o coordenador da USF e quatro ACS. Ainda foram entrevistados seis usuários que, durante o período da coleta de dados, receberem um encaminhamento a outro ponto da RAS de Santa Maria, totalizando 19 entrevistas.

A documentação analisada consistiu em cadernos de atas da equipe, relatórios da equipe, relatórios de gestão da SMS, agendas dos encaminhamentos e ofícios recebidos. A documentação foi usada com cuidado, evitando serem tomados como registros literais do ocorrido, lembrando que o documento não foi redigido para a pesquisa, e sim para alguma outra finalidade específica.13

A análise de estudo de caso foi conduzida de modo a perseguir a resposta à questão de pesquisa e aos objetivos estabelecidos, juntamente com as proposições teóricas, que estão em constante atualização. Também a coleta de dados, mediada pela orientação teórica, com pressupostos estabelecidos, guiou a análise.13 A estratégia analítica foi a elaboração do corpus da pesquisa. Os dados da pesquisa foram revisitados várias vezes, permitindo a identificação de marcadores importantes para orientar a análise e evitar interpretações a priori.

Para assegurar e valorizar uma condução ética, durante o processo da pesquisa, as orientações e disposições da Resolução nº 196/96, do MS, foram consideradas. O projeto foi submetido ao CEP da UNIFESP e considerado aprovado sob protocolo nº 1939/11. A participação na pesquisa ocorreu a partir da aceitação dos sujeitos e foi firmada por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos participantes. A equipe decidiu em reunião que os codinomes deveriam ser nomes próprios, e os usuários também fizeram esta opção. Neste artigo utilizaram-se as iniciais dos codinomes.

RESULTADOS

O eixo temário apresentado neste artigo relata momentos em que os usuários se tornam generalizados pela equipe, que desconsidera sua singularidade. Nestas situações percebe-se que o profissional não se compromete com a superação das dificuldades apresentadas pelos pacientes, indicando ora a perspectiva do tratamento igual, ora a visão de senso comum e julgamento em relação às necessidades da população.

[...] em uma quarta-feira pela manhã, na recepção, a Enfa F atende uma senhora que queria trocar a apresentação do antibiótico (ATB). Tratava-se de sua filha de 24 anos que havia consultado naquela manhã e recebeu a prescrição ATB comprimidos e a mãe fala que precisa ser solução, pois a filha não consegue deglutir o comprimido. A enfermeira primeiramente fala que não pode trocar porque não sabe a dosagem equivalente da solução. Superada esta questão, fala que precisa pegar nova receita. A mãe diz: não pode me dar só um vidro, amanhã eu venho pegar ficha de novo e troco a receita. Enfa F: não posso fornecer ATB sem receita, amanhã (pois na quarta à tarde não tem atendimento e são 11h e não tem mais nenhum médico na USF) a senhora vem e pega a medicação. Pergunta o que a filha tem. A senhora responde que está com o ouvido vazando. Pesquisadora (fala somente para a enfa): vais deixar ela mais 24 horas sem ATB, eu tenho filho, sei como é isso. A Enfa F concorda em fornecer e pede para a senhora voltar no outro dia pegar a receita, pois vai ficar devendo.Depois que a senhora sai a Enfa F diz: não posso me conformar que uma pessoa de 24 anos não consegue engolir um comprimido! (Diário de campo, 16/05/12)

(Reunião de equipe) ACS J fala de outro caso de crianças em situação de maus-tratos e que o Conselho Tutelar deixou-as com uma pessoa doente sem condições de ficar com as crianças. Algumas ACS falam que precisava ser feito anticoncepcional injetável em todas estas mulheres. Pesquisadora: generalizar não é legal. ACS S concorda. ACS D diz: se eu fosse presidenta decretava isso. (Diário de campo, 30/05/12)

Algumas verbalizações da equipe sugerem o grau de desqualificação ao qual o usuário é submetido, referindo-se aos usuários como "tam-tam" (Diário de campo, 12/03/12), "hipocondríaca" (Diário de campo, 23/03/12). Uma ACS exemplifica, ressaltando que está faltando à equipe um olhar singularizado.

Olha, vou te contar, tem uma senhora na minha área que inventou tudo que foi doença, ela foi em tudo, angiologista, cardiologista, neurologista, agora ela quer um otorrino [...]. É isso que vejo que o posto falha, é que eles não oferecem nada, a ESF não oferece nada, não oferece um grupo, não oferece uma recreação, não oferece nada para esse tipo de pessoa [...](Entrevista ACS J)

A questão é discutir a relação que existe entre a desqualificação do usuário e a falta de singularização. Quando para a equipe o problema é que o usuário está errado, ela não se mobiliza para resolver o caso. Revela uma limitação da formação e atuação profissional, que trabalha com um sujeito genérico e que deveria aceitar as prescrições.

(Intervalo de consulta médica) Entra Enfa T e fala de uma gestante que foi visitada pela ACS A, está tonta, usa captopril, hidroclorotiazida, obesa. [...] Encaminho para o Centro Obstétrico? É alto risco mesmo! Não veio na última consulta, não fez o ultrassom. Médica: é daquelas? Enfa T: é. Falei para ela na última consulta que ela tinha muitos filhos, não deste jeito, mas falei, ela disse: eu quero! [...] Mais tarde, Enfa T retorna ao consultório e diz: liguei para aquela gestante, ela me disse que passou (a tontura). Pesquisadora sugere uma visita domiciliária. Enfa T diz: mas ela também tem que vir, não veio na consulta. (Diário de campo, 15/03/12)

Em uma consulta médica, com o intuito de reforçar o uso correto da medicação prescrita por um cardiologista, a profissional utiliza um exemplo pessoal citando seu tratamento estético.

(consulta médica) Médica: Eu também tomo de manhã óleo de coco, óleo linoleico, colágeno, de meio-dia (cita todos novamente), de noite (cita todos novamente) e eu estou reclamado? Não, se são para minha saúde eu tenho que tomar. (Diário de campo, 01/03/12).

A profissional não usou seu conhecimento para esclarecer os benefícios trazidos pela medicação prescrita pelo cardiologista, o que poderia aumentar o grau de autonomia do usuário e o auxiliar na adesão ao tratamento. Ao contrário, comparou um tratamento pós-infarto a um estético, contribuindo para a ignorância do usuário.

No final do turno as enfermeiras comentavam um caso de uma gestante que referiu estar tomando o sulfato ferroso com leite na consulta de enfermagem observada. Dizem que já havia tratado verminose e sífilis durante a gestação, que somente agora havia negativado o exame, e que a maior preocupação era essa. Enfermeira F fala que desde a primeira consulta orientou-a informando que o sulfato ferroso é para ser tomado com suco e "ela se faz de desentendida", ao que a outra enfermeira concorda (Diário de campo, 26/03/12). A ACS J fala da falta de conhecimento do contexto.

Pesquisadora: os nossos profissionais de saúde, aqui dentro da ESF, o que podiam fazer de diferente para ajudar nesse caminhar? ACS J: (silêncio) Bom, essas coisas que me deixam bem confusa, porque tu tens que em primeiro lugar tem que conhecer a realidade das pessoas, conhecimento assim aqui dentro do posto é difícil. (Entrevista ACS J)

Em alguns momentos o usuário também é submetido a um juízo de valor. Considera-se que isso impede o acolhimento pela equipe, pois, quando a questão moral não está em jogo, a mesma pessoa da equipe acolhe.

(Na recepção, 15h) Chega uma mãe cujo filho estava com febre e vômito desde manhã. A Enfa F fala que a médica não atende mais que as 15 fichas e que nem adianta insistir. Afirma também que é desleixo da mãe, tem o dia todo para fazer algo para a criança melhorar e só agora, 15h, aparece na USF. (Diário de campo, 19/04/12)

Eram 16h10min e as consultas com um dos médicos clínicos ainda não haviam terminado. Chega um rapaz, pergunta sobre atendimento médico. Enfa F: o que houve contigo? Rapaz: enfiei um prego no meu pé há 20 dias. Enfa F: qual tua agente comunitária? Rapaz: é que não moro aqui, só trabalho, tomei este remédio (cefalexina) e a médica lá cortou, mas acho que cortou pouco, agora tem uma bola e dói muito. Enfa F: C (técnica) leva ele para o curativo, já vou lá. Chegamos à sala de curativo, Técnica de enfermagem C está examinando o pé e diz: tem uma bola dura aqui, parece que...como a gente diz? Enfa F: sai pus? Técnica C aperta um pouco e diz: sai sim. [...] Enfa F: tu vens amanhã de manhã e pega uma consulta para médico, tem que chegar 7h30min. Começa às 8h, mas sempre tem fila, mas amanhã tem dois médicos, tu vais conseguir. (Diário de campo, 29/03/12).

Neste caso, o usuário morava fora da área de abrangência, já havia extrapolado o horário de atendimento da USF, e, mesmo assim, a enfermeira e a técnica atenderam e deram uma resposta ao caso.

(Consulta médica) [...]Sra: mas como posso estar fraca com todo este tamanho? (sobrepeso) Md: gordura não é saúde, ao contrário, é doença. Como é tua alimentação? Come muita massa, batata? Tens que comer frutas, verduras, carne, leite. Sra: mas é isso que eu como, não como muita massa. [...] Usuários saem. Médica diz: não posso acreditar que ela come o que diz que come, anêmica, sobrepeso e não gosta de massa? Isso é resultado de calorias vazias. (Diário de campo, 15/03/12).

A médica não acredita na usuária, mais uma vez ocorre a desconsideração da história de vida, pois outras possibilidades de alimentação que estejam determinando o sobrepeso e a anemia não são trabalhados.

DISCUSSÃO

O padrão de relacionamento da equipe para com os usuários é sugestivo de que não há espaço para a participação destes nas decisões sobre a proposta terapêutica, cristalizando processos de submissão, de abandono do tratamento e de fragmentação do cuidado. Necessário se faz discutir as interfaces que resultam destas relações, bem como a concepção do trabalhador sobre quem é o usuário do serviço. A problematização desta questão visa iluminar pistas das possibilidades de transformação deste panorama. Sendo assim, precisa-se tratar este tema com a inclusão de toda a sociedade, e não apenas da equipe pesquisada; portanto, fala-se em "nós", e não "deles".

Os resultados indicam que há uma visão normalizada dos usuários, na qual todos precisam se comportar da mesma maneira, exigindo deles um padrão de compor tamento. Essa visão reforça o padrão de atendimento prescritivo, no qual a ênfase é na repetição da indicação, e não na verificação do motivo pela qual não houve adesão. Destaca-se o colonialismo existente nas relações, interferindo nas práticas em saúde e na continuidade do cuidado. "Recodificado como ordem", o colonialismo implica a concepção do "conhecimento como um princípio de ordem sobre as coisas e sobre os outros", tornando-se difícil reconhecer o outro na condição de sujeito.1:79

É preciso também ter claro que cada pessoa é única e deve ser reconhecida como tal nas ações de saúde, pelo fato que15:67

embora o mundo seja terreno comum a todos, os que estão presentes ocupam nele diferentes lugares, e o lugar de um não pode coincidir com o de outro, da mesma forma como dois objetos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço.

A pluralidade humana, defendida pela autora, embasa a defesa da singularidade na diferença; portanto, o trabalhador da saúde não pode ocupar o lugar do usuário na decisão por sua vida, e isso não o autoriza a subjugá-lo. O sujeito possui uma explicação para seu adoecimento e para sua vida, cabe ao profissional saber escutar e considerar estes elementos na construção de um PTS.9 A construção de um projeto, que tenha inclusive seu objetivo decidido coletivamente, elimina da ação em saúde a prescrição, no sentido de um ato autoritário, "uma imposição da opção de uma consciência a outra"16:18, no caso da saúde, a consciência do profissional da saúde para o usuário. Lembra-se que não se está falando exclusivamente da prescrição de medicamentos, ato restrito a alguns profissionais, mas de todas as recomendações prescritas. O agir em saúde fica limitado a uma vertente higienista, prescrevendo a vida dos usuários.

Para o projeto ser decidido com a participação do usuário, faz-se necessário exercitar a escuta, como mediadora do diálogo, que só é possível entre iguais. A escuta nasce da maneira como o agente de cuidado cuida, implicado nas coisas que faz, possibilitando identificar inúmeras formas de escuta que caracterizam diferentes abordagens de cuidado. A escuta sensível, por exemplo, não mede, não compara e aprecia o lugar diferenciado que cada sujeito ocupa nas relações sociais.17 Quando o trabalhador se considera dono do saber, não permite que o diálogo aconteça e acaba por oprimir. Colocar obstáculos ao diálogo transformando o sujeito em coisa é objetivo do opressor.16 A possibilidade de revelação desta relação se dá pelo fato de que é "na ação e no discurso" que o ser humano mostra quem é, revelando "ativamente suas identidades pessoais e singulares, e apresentando-se no mundo humano, enquanto suas identidades físicas são reveladas". Esta revelação de "quem" alguém é "está implícita em tudo o que se diz e faz".15:192

Com esse entendimento, cabe refletir que "somente na medida em que" o sujeito esteja consciente de que hospeda o opressor em si, pode-se "contribuir para o partejamento da pedagogia libertadora".

A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como "seres para si", não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado da "ordem" injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos.16:16

A humanização do trabalho na saúde passa pela necessidade de reverter o 'ser menos' de usuários que têm, em uma USF, seu desconhecimento ironizado e sua história de vida desconsiderada. Cabe aqui, com base na proposta do autor, apontar alguns elementos para a superação da relação desumanizante na saúde. A primeira é que o oprimido precisa reconhecer que mantém uma relação dialética com o opressor, mas também o opressor precisa reconhecer-se como tal. No entanto, mesmo sofrendo com esse reconhecimento, isso não basta para que se solidarize com o oprimido, é necessária a verdadeira solidariedade, que só acontece quando "seu gesto deixa de ser piegas e sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato de amor àqueles".16:20 Não é na abstração que se desenvolve a solidariedade, é no ser humano concreto, no usuário não acolhido, no vínculo não construído, no trabalhador que não se autogoverna. Atuar em situação concreta evita que se afirme sumariamente que o ser humano é livre, que pode fazer suas escolhas, sem nada fazer para objetivar essa afirmação. Para além do reconhecimento, é imperioso que a práxis libertadora aconteça. Portanto, a subjetividade não pode estar dissociada da objetividade, sob pena de ambas perderem a importância e caírem em um simplismo ingênuo.

A solidariedade é o conhecimento adquirido "no processo, sempre inacabado, de nos tornarmos capazes de reciprocidade através da construção e do reconhecimento da intersubjetividade". A proeminência da solidariedade transforma a comunidade "no campo privilegiado do conhecimento emancipatório". A comunidade "é um campo simbólico em que se desenvolvem territorialidades e temporalidades específicas que nos permitem conceber o nosso próximo numa teia intersubjetiva de reciprocidades".1:81

A realidade objetiva não é obra do acaso, é sim fruto da ação humana, também não se transforma por acaso, é tarefa histórica e humana. O maior desafio é fazer a emersão da realidade domesticadora, que só é possível por meio da práxis autêntica, que opera numa relação dialética entre ação e reflexão, atuando sobre o mundo para transformá-lo. Para isso, faz-se necessária a inserção crítica, que foge do subjetivismo e objetivismo, evitando o imobilismo.16

A imobilidade ocorre quando o subjetivismo cria uma realidade imaginária sobre a qual é impossível agir. A inserção crítica, que é a própria ação, não pode ocorrer sem a dialeticidade subjetividade-objetividade. Essa unidade dialética gera "um atuar e pensar certos na e sobre a realidade para transformá-la". Tanto mais "as massas populares desvelam a realidade objetiva e desafiadora sobre a qual devem incidir sua ação transformadora, tanto mais se "inserem" nela criticamente".16:22

Para se inserir criticamente, existem dificuldades de matriz antidialógicas. No obstáculo ao diálogo, toda palavra imposta é uma palavra falsa, de caráter dominador. Também estão neste rol de dominação a prescrição, a rotulação, o "depósito", a condução, a manipulação, que não podem fazer parte da práxis transformadora. O diálogo com as massas oprimidas é condição para a revolução autêntica, é o que difere dos golpes militares. No entanto, 16:73

nem todos temos a coragem deste encontro e nos enrijecemos no desencontro, no qual transformamos os outros em puros objetos. E, ao assim procedermos, nos tornamos necrófilos em lugar de biófilos. Matamos a vida, em lugar de alimentarmos a vida. Em lugar de buscá-la, corremos dela.

É contraditório pensar que nas práticas de saúde, que pressupõe o cuidado do outro, se pode estar "matando a vida", ao se obstruir o diálogo e a participação do usuário. Entretanto, dialeticamente, o trabalhador de saúde pode se constituir em uma "lúcida liderança" que é capaz de transformar a realidade. Essa liderança não se autonomeia, ela se "autentica na sua práxis[..], nunca no des-encontro ou no dirigismo".16:73

Por traz da falta de diálogo pode estar o mito da "absolutização da ignorância", no qual alguém decreta que o outro é ignorante. Com o decreto feito distanciam-se das pessoas que são consideradas coisas, desqualificadas. O trabalhador de saúde, considerando o usuário como ignorante, "se reconhece e a classe a que pertence como os que sabem ou nasceram para saber. A sua passa ser a palavra "verdadeira", que impõe ou procura impor aos demais. E estes são sempre os oprimidos, roubados de sua palavra".16:75

A consequência da estranheza é a descrença, muito salientada na pesquisa, em que os trabalhadores não acreditam nos usuários, que sabem disso, e as ACS às vezes se colocam como porta vozes, intermediando o diálogo. A descrença que o trabalhador sente pelo usuário, neste caso, pode tornar o diálogo impossível.16 Outra caraterística antidialógica é a invasão cultural, na qual o conhecimento se impõe ao conhecimento popular. A sociedade, nela incluída a família e a escola, em uma posição classista, pode estar produzindo em grande parte dos profissionais a adesão a uma ação antidialógica. Baseados nesta convicção acreditam que precisam "transferir", "levar" ou "entregar" seu conhecimento aos usuários, como promotores da saúde. Consideram absurda a necessidade de consultá-los, muito menos respeitar sua visão de mundo, agindo como dominadores.16

Quando os invadidos expressam alguma atitude que pode ser interpretada como recusa da invasão, visto na pesquisa como as ausências nas consultas, nos agendamentos, nos que não cumprem com a orientação dada pelos profissionais, são vistos por estes como "preguiçosos", "mal-agradecidos". É preciso problematizar a relação existente entre o fracasso das ações propostas pelos profissionais e ato violento da invasão, em uma relação não simplificada de causa e consequência, mas complexa.

A ação cultural de caráter dominador nem sempre é exercida deliberadamente, os trabalhadores de saúde são igualmente seres humanos dominados, sobredominados na própria altura da opressão. Romper com o padrão de dominação para os profissionais não é nada fácil, pois que renunciar a ele significa morrer um pouco.16 Destaca-se que a liderança revolucionária precisa problematizar estas e outras dificuldades com os oprimidos a fim de que possamos avançar no ideário da transformação social, proposta pela promoção da saúde.

A ideia de promoção da saúde está relacionada ao conceito positivo de saúde, relacionado ao patamar de promoção da vida que necessita de políticas de Estado, mas também da autonomia e singularidade dos sujeitos. Promoção envolve o fortalecimento da capacidade individual e coletiva para lidar com a multiplicidade dos condicionantes da saúde, vai além de uma aplicação técnica e normativa. Neste conceito, está implícita a construção de capacidade de escolha, bem como a utilização do conhecimento para atentar para as diferenças e singularidades dos acontecimentos.18

Além disso, a promoção da saúde possui potencial para superar a educação bancária e o behaviorismo, pois não respondem às relações complexas do processo saúde-doença, reconhecer a importância do agenciamento humano, que é o empoderamento psicológico, associado ao empoderamento social, que se preocupa com o enfrentamento das iniquidades sociais, e zelar para que as estratégias e ações utilizadas não sejam reducionistas, levando "à culpabilização das vítimas de mazelas sociais ao hiperdimensionar a responsabilidade individual sobre os problemas de saúde".18:2032

Para finalizar a discussão acerca da existência do colonialismo nas relações, ressalta-se o fato de ser uma realidade brasileira, revelada a partir de um estudo de caso em uma ESF, mas generalizável pela exemplificação1. Pode-se dizer que o ponto de vista, ou a ideologia, que molda as relações reveladas na pesquisa vai além dos sujeitos envolvidos. Necessário se faz construir saberes que promovam solidariedade, pois "o saber enquanto solidariedade visa substituir o objeto-para-o-sujeito pela reciprocidade entre sujeitos".1:83

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na busca por respostas à questão de pesquisa, encontrou-se um padrão de relacionamento colonialista, no qual nem trabalhador e tampouco usuário são reconhecidos como sujeitos. Defende-se o respeito à pluralidade humana que possibilita sermos singulares na diferença e não permite assumirmos o lugar do outro, ou seja, trabalhador de saúde não pode falar e decidir pelo usuário.

A escuta torna-se imprescindível, com a participação do usuário sendo estimulada deliberadamente, para promover a fuga à opressão. Existe uma relação dialética entre oprimido e opressor que está comprometendo a humanização na saúde; defende-se a necessidade de sair do imobilismo, refletindo sobre isso, mas também agindo na realidade concreta para transformá-la, apostar no trabalhador de saúde com a esperança de uma liderança que defenda a vida.

É preciso inverter a ordem da invasão cultural para a da promoção da saúde, ou seja, sair da posição de saber o que é melhor para a vida do outro e defender a participação consciente deste nos rumos de sua saúde e da saúde de sua comunidade. Para isso, faz-se necessário que se respeite e estimule a capacidade de escolha dos sujeitos, sem hiperdimensionar o componente individual no adoecimento e, principalmente, sem culpabilizá-lo.

O contexto pesquisado revela a fragilidade da integralidade da atenção, comprometida no microespaço dos encontros entre trabalhador e usuário. Há implicações das relações colonialistas, que consideram usuários como objetos, afetando a continuidade do cuidado. Toda a equipe está envolvida no processo, incluindo a de enfermagem, reforçando a necessidade de se aprofundar a reflexão acerca da prática profissional.

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