Volume 17, Número 3, Jul/Set - 2013
REFLEXÃO
Reflexões sobre a articulação entre o homo faber e o homo sapiens na enfermagem
Cecília Nogueira Valença
1
Raionara Cristina de Araújo Santos
2
Soraya Maria de Medeiros
3
Jacileide Guimarães
4
Raimunda Medeiros Germano
5
Francisco Arnoldo Nunes de Miranda
6
1
Doutoranda em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PGENF-UFRN).
Docente da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Campus Caicó. Caicó-/RN. Brasil. E-mail: cecilia_valenca@yahoo.com.br
2
Doutoranda do PGENF-UFRN.
Enfermeira Assistencial do Hospital Pediátrico Maria Alice Fernandes, Natal-RN. Brasil. E-mail: raionara_cristina@yahoo.com.br
3
Doutora em Enfermagem, Universidade de São Paulo - USP.
Docente dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Enfermagem da UFRN. Natal-RN. Brasil. E-mail: sorayamaria@digi.com.br
4
Doutora em Enfermagem Psiquiátrica e Saúde Mental, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-Universidade de São Paulo (EERP-USP). Docente do Curso de Pós-graduação em Enfermagem da UFRN. Natal-RN. Brasil. E-mail: jaciguim@yahoo.com.br
5
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Enfermagem da UFRN. Natal-RN. Brasil. E-mail: rgermano@natal.digi.com.br
6
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Enfermagem da UFRN. Natal-RN. Brasil. E-mail: rgermano@natal.digi.com.br
Recebido em 11/06/2012
Reapresentado em 07/11/2012
Aceito em 15/06/2012
RESUMO
Estudo reflexivo com o objetivo de analisar a articulação entre o enfermeiro-docente
(Homo sapiens) e o enfermeiro-assistencial (Homo
faber) no ambiente hospitalar, à luz do pensamento gramsciano. Na Enfermagem, coexistem
duas dimensões: a teórica, exemplificada na
figura do enfermeiro docente com seus projetos de pesquisa e publicações científicas;
e a dimensão prática, com a atuação técnico-assistencial.
Evidencia-se o distanciamento do enfermeiro docente em relação aos cenários de prática
da graduação, assim como do
enfermeiro assistencial, da pesquisa e da prática baseada em evidências científicas.
Face ao dilema entre Homo faber e Homo sapiens na
Enfermagem, emerge a importância de refletir sobre a dimensão ética subjacente às
ações de ambos, centradas no ser humano. Este diálogo
não pode ser ignorado, pois dele depende o desbravamento de novos horizontes e o crescimento
da Enfermagem enquanto ciência e prática
social.
Palavras-chave: Pesquisa em enfermagem; Enfermagem prática; Conflito de interesses; Trabalho
INTRODUÇÃO
O homem é constituído pelo trabalho, sendo seu componente trabalhador e técnico denominado Homo faber. Por sua vez, o Homo sapiens envolve o componente intelectual do trabalho. Inexiste atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual1.
Em qualquer trabalho físico existe um mínimo de qualificação técnica e de atividade intelectual criadora. Todos os homens são intelectuais, mas nem todos têm essa função na sociedade. Não se pode separar o Homo faber do Homo sapiens, pois o homem é constituído pelo trabalho1.
Sendo assim, revela-se a importância da articulação entre esses dois indivíduos exemplificados, na Enfermagem, respectivamente, nas figuras do enfermeiro-assistencial e do enfermeiro-docente, uma vez que são as situações do cotidiano que provocam a reflexão.
Atualmente, a consolidação do conhecimento da área de saúde/enfermagem tem se pautado cada vez mais nos avanços da ciência, com a busca da melhor evidência científica disponível, alcançada a partir dos resultados de numerosas pesquisas e do aumento no número de cursos de pós-graduação stricto sensu em todo o país2.
Os profissionais da saúde construíram seus conhecimentos sobre o corpo, a doença, a semiologia, a terapêutica e o cuidado utilizando-se, geralmente, de uma visão técnico/teórica. Deste modo, as ciências da saúde reatualizam frequentemente o seu arcabouço teórico-conceitual e metodológico cujos resultados ocasionam um descompasso nas práticas assistenciais desenvolvidas pelos profissionais dos serviços de saúde3.
No ambiente hospitalar, evidencia-se o modelo biomédico cartesiano, determinado pela especialização, fragmentação dos processos de trabalho, valorização da técnica, manipulação crescente de tecnologias e inovações em termos de equipamentos e medicamentos. Tal ambiente exige do enfermeiro, tanto da assistência quanto da docência, a capacidade constante de renovar seus conhecimentos técnicos e teóricos, bem como um profundo (re)pensar e uma postura crítico/reflexiva e participativa.
Na perspectiva cientificista da saúde, ressalta-se a notoriedade alcançada pela carreira docente, especialmente na área de enfermagem. Representa uma mudança no perfil do enfermeiro atuante nas instituições responsáveis pela formação de recursos humanos2. Com isso, o enfermeiro docente aliou-se à produção científica e à discussão teórica de questões vinculadas à enfermagem, o intelectivo Homo sapiens1, enquanto ao enfermeiro assistencial coube a desenvoltura na assistência à beira do leito propriamente dita, o prático Homo faber1.
A realização deste estudo baseia-se nas reflexões dos processos de trabalho desenvolvidos pela enfermeira docente e pela enfermeira assistencial do ambiente hospitalar, estimuladas na disciplina Temas Avançados em Educação, Saúde e Cidadania, do curso de Doutorado em Enfermagem, do Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Observa-se uma assimetria em ambos os campos de atuação do enfermeiro no que diz respeito tanto a fatores internos quanto externos, particularmente nas discussões do aprender a aprender. Nesse sentido, as duas realidades profissionais fomentaram o pensamento crítico sobre a desarticulação ainda existente nas relações teoria/prática e docência/assistência.
Com base no exposto, definiu-se como questão norteadora para esse artigo: Como o enfermeiro docente articula-se com o enfermeiro assistencial no âmbito hospitalar?
Assim, o estudo tem como objetivo analisar a articulação entre o enfermeiro-docente (Homo sapiens) e o enfermeiro-assistencial (Homo faber), à luz do pensamento gramsciano.
Trata-se de um estudo reflexivo fundamentado em uma revisão bibliográfica do tipo narrativa, a qual admite a análise da literatura publicada em livros, artigos de revista impressas e/ou eletrônicas sobre um determinado tema, para descrevê-lo e discuti-lo, sob ponto de vista teórico ou contextual. Essa categoria de artigos apresenta um papel fundamental para a educação continuada, pois permite a atualização do conhecimento sobre uma temática específica em um curto espaço de tempo4.
Foram utilizados como fontes de coleta de informações: alguns capítulos de livros relacionados à pesquisa em enfermagem e ao trabalho de enfermagem nos âmbitos hospitalar e acadêmico, principalmente artigos científicos de periódicos eletrônicos indexados no Scientific Electronic Library Online (SciELO Brasil) e no Banco de Dados de Enfermagem (BDENF). Os seguintes descritores foram utilizados na busca em bases de dados: pesquisa em enfermagem, enfermagem prática, conflito de interesses, trabalho.
As etapas de elaboração deste estudo compreenderam: primeiramente, a identificação e a localização de referencial teórico que considerasse a temática proposta. Em seguida, foram realizados fichamentos e arquivamento das informações pertinentes ao estudo, resultando na leitura e análise crítica e na redação deste artigo. Na análise, foram utilizados livros e artigos, desde que respondessem ao objetivo do estudo. A partir da leitura e síntese do material consultado, foi constituído o seguinte eixo de análise e reflexão: O diálogo entre o Homo sapiens e o Homo faber na Enfermagem.
O DIÁLOGO ENTRE O HOMO SAPIENS E O HOMO FABER NA ENFERMAGEM
Historicamente, as ciências da saúde apoiaram-se em paradigmas mecanicistas e cartesianos, direcionando os olhares e as práticas dos profissionais para a otimização da produção de bens e serviços, acentuando a fragmentação, a especialização e negligenciando a complexidade das relações humanas, refletindo-se nas práticas de saúde enfaticamente determinadas pela abordagem clínica e biologicista5.
No âmbito da enfermagem contemporânea, coexistem duas vertentes que carregam consigo aspectos complexos e contraditórios, possibilitando inferir que se trata de uma zona de transição potencialmente produtiva6. A primeira vertente traz o resquício do agravamento do atual modelo maquínico, desumanizante, com ênfase apenas na abordagem clínica e biologicista. A segunda vertente contrapõe-se ao homem como máquina, de uma forma humanizante, centrada na alteridade e na expansão do sentido do nós7. Essas duas vertentes explicativas da Enfermagem são permeadas pela ainda existente desarticulação entre a teoria e a prática.
Todo ser humano,mesmo forade sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, pois compartilha de uma percepção do mundo, tem uma linha consciente de conduta moral e colabora para promover novas maneiras de pensar1. Assim, todo enfermeiro atua como Homo faber e Homo sapiens ao articular teoria e prática no seu exercício profissional.
A relação entre a teoria e a prática vem sendo amplamente discutida no contexto macroestrutural da formação do enfermeiro no contexto da Reforma Universitária e da Reforma Sanitária Brasileira, constituindo marcos fundamentais no processo ensino-aprendizagem e nos processos de trabalho da Saúde e da Enfermagem8.
Com uma agenda política em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Graduação em Enfermagem, promulgadas em 2001, consistem em instrumentos norteadores e normatizadores à construção de projetos pedagógicos comprometidos com o resgate da cidadania e da valorização das garantias constitucionais nas instituições formadoras. Estas diretrizes estabelecem que o enfermeiro deve possuir competências técnico-científicas, éticas, políticas e socioeducativas, definindo o perfil do profissional egresso como generalista, humanista, crítico e reflexivo9. Assim, as DCN requerem do enfermeiro além do conhecimento técnico e teórico, o domínio das demais competências propostas.
Essa concepção processual, avaliativa, formativa e somativa das diretrizes entra em consonância com a concepção gramsciana1 da articulação entre a teoria e a prática. Dessa forma, a educação do enfermeiro não deve fomentar o surgimento de trabalhadores autômatos e mecanicamente aptos para meros afazeres técnicos, desprovidos da essência humanista e sociocultural. Se o espaço educativo prescindir dessa essência, certamente, instaurar-se-á uma legião de trabalhadores alienados ao sabor do "empreguismo burguês"1:75. Destarte, compreende-se que educar é:
"colocar fim à separação entre Homo faber e Homo sapiens; é resgatar o sentido estruturante da educação e de sua relação com o trabalho, as suas possibilidades criativas e emancipatórias"10:9.
Na Enfermagem, coexistem duas perspectivas preferencialmente exemplificadas para fomentar a reflexão e a discussão. Uma teórica, representada na figura do enfermeiro docente, que se relaciona aos processos de formação de recursos humanos e de gestão, com seus projetos de pesquisa e publicações científicas. A outra perspectiva consiste na atuação técnico-assistencial quer seja no ambiente hospitalar, quer na atenção básica, estando ambas diretamente relacionadas ao processo de cuidar em enfermagem11.
Até meados da década de 1980, o enfermeiro-docente concentrava suas ações nas tarefas assistenciais, sendo respeitado e visto como o profissional que, além de ensinar, também prestava o cuidado aos pacientes. Entretanto, na atualidade, nota-se uma dicotomia existente entre o saber e o fazer12.
Atribui-se este afastamento entre as dimensões teóricas e práticas ao acesso à carreira universitária, tornando a pesquisa algo imprescindível. Dessa forma, o docente priorizou, muitas vezes, a construção teórica, exercendo um fascínio e maior dedicação na apreensão da ciência e suas facetas conceituais e metodológicas13.
Geralmente, na atualidade, todas as atividades práticas se tornaram tão complexas, e as ciências se miscigenaram de tal modo à vida, que a atividade prática tende a criar uma escola para os próprios especialistas, ao mesmo tempo em que criam um grupo de intelectuais especialistas de nível mais elevado, que ensinam nestas escolas1. Assim, o enfermeiro docente, ao se aprofundar no conhecimento científico, cada vez mais se distancia da prática desenvolvida pelo enfermeiro assistencial.
Enquanto isso, o enfermeiro assistencial distanciou-se do conhecimento científico, absorvendo a burocracia dos serviços de saúde e os problemas dos indivíduos em busca de melhores condições de vida, roubando-lhe o tempo para a reflexão e tornando-o modelo de capacidade técnica12.
No âmbito hospitalar, isso pode ser claramente evidenciado através da postura do enfermeiro-docente, com um grande domínio acerca das questões teóricas dos procedimentos, das doenças, das intervenções de enfermagem, entre outros, porém no momento de praticá-los atribui tal tarefa ao enfermeiro assistencial14.
Neste contexto, percebe-se o distanciamento do enfermeiro docente em relação aos cenários de prática utilizados na graduação. Cada vez mais, a aproximação dos alunos com os serviços de saúde ocorre através dos professores da academia que não apresentam a titulação de doutor - frequentemente mais envolvidos com atividades de pesquisa e pós-graduação, ou seja, por meio de professores contratados ou preceptores que possuem pouco ou até nenhum vínculo direto com a instituição formadora.
Este afastamento dos docentes dos locais de práticas, além de interferir diretamente nos temas abordados em suas pesquisas, também reduz a confiança nas suas próprias capacidades assistenciais, e, além disso, fomenta a ideia de que os enfermeiros da assistência consideram os docentes idealistas, irrealistas e muito longe dos problemas cotidianos da enfermagem12.
Comumente, os enfermeiros docentes, por trabalharem com condições similares às propostas nos livros e artigos utilizados no âmbito acadêmico, podem encontrar dificuldades de inserção nos serviços de saúde, muitas vezes sucateados e sujeitos à constante falta de recursos humanos e materiais.
Nesse sentido, a produção científica dos docentes de enfermagem possui como principal desafio superar os limites do âmbito acadêmico e aproximar-se dos problemas enfrentados na realidade cotidiana dos serviços de saúde, estimulando a divulgação e a utilização dos seus resultados pelos enfermeiros da assistência e demais profissionais de saúde, contribuindo, assim, de forma mais eficaz para a mudança da prática profissional e produção de novas formas de cuidar e gerenciar em enfermagem e em saúde 2,13.
A criação pedagógica não deve ficar restringida a uns poucos intelectuais especialistas, supostos 'criadores' das ciências, das artes, da filosofia, mas ser multiplicada por outros intelectuais, os divulgadores da riqueza intelectual acumulada, que, desse modo, se tornam tão ou mais importantes que os primeiros1. Assim, o conhecimento em enfermagem deve ultrapassar o âmbito acadêmico de modo a contemplar também o âmbito dos serviços que, por sua vez, vão reconstrui-lo ou reforçá-lo no exercício do trabalho profissional.
Ao mesmo tempo, o enfermeiro assistencial, dotado de conhecimentos técnicos, deve abrir-se ao mundo da pesquisa, com a finalidade de aprimorar tais conhecimentos e habilidades, explorar o ambiente de trabalho por meio da realização de estudos que possam contribuir para o avanço da enfermagem.
Para tanto, o enfermeiro-docente deve desempenhar o papel de mediador da aprendizagem junto ao enfermeiro assistencial, unindo, dessa forma, o saber ao fazer com o objetivo de construir o conhecimento e romper com a lógica da competição e do individualismo10, proporcionando também um momento de amadurecimento pessoal e profissional para ambos, cabendo-lhes mediar e dar suporte para as ações dos estudantes15.
Como possível solução desse impasse entre o enfermeiro docente e o assistencial, para além da utilização esporádica dos cenários de práticas pelas instituições formadoras, sua aproximação poderia acontecer através do desenvolvimento de projetos de extensão ou de núcleos de educação permanente para atualização dos profissionais da assistência. Do ponto de vista do enfermeiro docente, seria válida a realização de pesquisas nos serviços, valorizando estudos que fomentem melhorias nas práticas de saúde e enfermagem.
Face ao dilema entre o Homo faber e o Homo sapiens na enfermagem, emerge a importância de refletir acerca de uma dimensão ética subjacente às ações dos enfermeiros docentes e assistenciais, centradas na pessoa que recebe o cuidado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A articulação entre o enfermeiro-docente (Homo sapiens) e o enfermeiro-assistencial no âmbito hospitalar (Homo faber) não é fácil, uma vez que transita por diversas questões teóricas, políticas, econômicas, sociais que perpassam o simples conflito de interesses entre esses dois atores. À luz do pensamento gramsciano, todo enfermeiro possui no exercício de seu trabalho uma interlocução entre o Homo faber e o Homo sapiens, de modo a não realizar sua atividade laboral estritamente maquínica ou intelectual.
Assim, o enfermeiro assistencial pode contribuir com o enfermeiro docente, nos campos de práticas da academia, na resolução de problemas que possam surgir no cotidiano das práticas assistenciais dos serviços, como também podem fornecer subsídios para a realização de estudos acadêmicos da assistência.
Neste sentido, o espaço educativo, representado, sobretudo, na figura do enfermeiro-docente (cujo processo de trabalho envolve notadamente o Homo sapiens), suscita a análise e a reflexão, de modo que o enfermeiro assistencial no âmbito hospitalar Homo faber possa reunir as ferramentas necessárias para a mudança da sua realidade cotidiana pelo desenvolvimento do raciocínio crítico.
Sendo assim, observa-se que a articulação entre a teoria e a prática em qualquer âmbito de atuação da enfermagem faz-se imprescindível para reduzir o enorme distanciamento existente entre o real e o ideal, pois permitirá o desbravamento de novos horizontes e o crescimento da profissão enquanto ciência, arte e prática social.
REFERÊNCIAS