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CAPES

Volume 17, Número 3, Jul/Set - 2013

REFLEXÃO

Teoria do cuidado transpessoal de jean watson no cuidado domiciliar de enfermagem à criança: uma reflexão

Ingrid Meireles Gomes 1
Daniel Ignacio da Silva 2
Maria Ribeiro Lacerda 3
Verônica de Azevedo Mazza 4
Marineli Joaquim Méier 5
Nen Nalú Alves das Mercês 6


1 Enfermeira. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Paraná - UFPR. Membro do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Cuidado Humano em Enfermagem - NEPECHE/UFPR. Curitiba-PR. Brasil. Email: inguide@gmail.com
2 Enfermeiro. Especialista em Saúde Coletiva pela UFPR. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFPR. Membro do grupo de estudo da Família, saúde e desenvolvimento - GEFASED/UFPR. Curitiba-PR. Brasil. Email: danigcol@gmail.com
3 Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFPR. Coordenadora do NEPECHE/UFPR. Curitiba-PR. Brasil. Email: lacerda@milenio.com.br
4 Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo - USP.Docente da Graduação e Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFPR. Coordenadora do GEFASED/UFPR. Curitiba-PR. Brasil. Email: mazzas@ufpr.br
5 Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela UFSC. Docente da Graduação e Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFPR.
6 Líder do Grupo de Pesquisa Tecnologia e Inovação em Saúde - TIS/UFPR. Curitiba-PR. Brasil. Email: mmarineli@ufpr.br

Recebido em 15/07/2011
Reapresentado em 11/01/2012
Aceito em 06/03/2012

RESUMO

Trata-se de um ensaio reflexivo sobre o potencial de utilização da Teoria do Cuidado Transpessoal de Jean Watson, na realização do cuidado domiciliar de enfermagem direcionado à criança, desenvolvido à luz dos 10 elementos do Processo Clinical Caritas. Este referencial teórico permite desenvolver a transpessoalidade no cuidado domiciliar da criança, momento em que o enfermeiro precisa desenvolver autoconhecimento, ter suporte teórico-filosófico e valer-se deste conhecimento, a fim de ultrapassar o paradigma da objetividade e do biologicismo.


Palavras-chave: Teoria de Enfermagem; Assistência domiciliar; Saúde da criança

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, os sistemas de saúde têm demandado o surgimento de novas alternativas de cuidado que visem à estruturação da atenção primária da saúde com qualidade. É notória a premência de avanço para além da lógica cartesiana, de forma que, em detrimento das separações, sejam avaliadas as conexões que envolvem um ser humano, na realização de intervenções que abranjam não só a dimensão física, mas também o indivíduo em toda a sua existência, até mesmo a espiritual.

As novas alternativas de cuidado na atenção primária da saúde têm buscado oferecer à clientela uma assistência que promova a qualificação do cuidado por meio de inovações que potenciem a integralidade da atenção, a diversificação dos recursos adotados e a articulação multidisciplinar em diferentes esferas da assistência1.

Uma dessas alternativas é a atenção domiciliar, que "é uma estratégia de articulação do sistema de serviços em seus diferentes níveis", além de ser atrativa tanto para gestores do sistema e trabalhadores, como para a clientela, devido às suas vantagens e possibilidades2:245. Esta compreende todas as ações realizadas em domicílio, mas que se operacionalizam por diferentes categorias, a saber: a internação, a visita e o cuidado domiciliares, sendo este último também chamado de assistência ou atendimento domiciliar3.

Destaca-se na atenção domiciliar o papel da enfermagem, porquanto cumpre que o enfermeiro, que trabalha em domicílio, possua o conhecimento científico-tecnológico, habilidade no relacionamento interpessoal e capacidade administrativa para lidar com pacientes, familiares e equipe multiprofissional, além de aptidão para conciliar o saber científico ao popular, o técnico ao emocional. Percebe-se que o enfermeiro tem um papel determinante na atenção domiciliar, indo desde sua coordenação até a mais simples orientação ao paciente. O trabalho deste profissional no domicílio envolve planejamento, coordenação, treinamento e avaliação, integrando a promoção da saúde e diferentes fatores relacionados ao bem-estar e qualidade de vida individual e coletiva3. Portanto, é um ambiente de trabalho em que o profissional tem acentuada autonomia e, consequentemente, responsabilidades.

O atendimento da saúde da criança pode ser potenciado pela atenção domiciliar; por exemplo, por meio de programas de visita domiciliar que incluem acompanhamento intensivo, a cargo de enfermeiros nos dois primeiros anos de vida, o que tem apresentado resultados satisfatórios na promoção da saúde infantil, no funcionamento familiar e na redução das iniquidades em saúde4.

Neste cenário, a atenção da saúde almeja não restringir-se à perspectiva biologicista, mas estimular a família para a promoção do crescimento e desenvolvimento saudável do infante, conservando sua rede de apoio social, afetiva e psicológica, além de promover o encontro da família com a saúde, mesmo em ambiente de enfermidade5.

O cuidado domiciliar de enfermagem à criança mostra-se relevante, devido ao surgimento de novas situações na saúde infantil, como o nascimento de bebês prematuros, crianças portadoras de doenças crônicas, entre outras. Nessas circunstâncias, muitas vezes, a família sente-se estressada e carente de orientações que mostrem seu papel de forma a minimizar os efeitos negativos da doença e auxilie na promoção do seu bem-estar. No domicílio, a criança pode encontrar apoio físico, emocional e social, assim como superar o sentimento de separação e perda do ambiente nosocomial5-6.

Tais conjunturas demandam cuidados especializados, para os quais os pais, em muitos casos, não possuem a devida orientação ou experiência. Surge, então, uma lacuna que requer a atuação de um profissional, na qual o enfermeiro domiciliar atue por meio de um cuidado de interação, transpessoal6.

A ideia de cuidado transpessoal surgiu com a enfermeira Drª Jean Watson em 1985, quando fez a primeira reformulação em sua Teoria do Cuidado Humano, lançada por ela entre 1975 e 19796. Esta teoria, ao longo do tempo, vem sendo aprimorada. Hoje a Teoria do Cuidado Transpessoal, que foi proposta mediante o Processo Clinical Caritas, reúne cuidado e amor para o cuidar pleno e maduro7.

Essa teoria, apesar de não descartar a ciência convencional e práticas de enfermagem modernas, representa-se como complementaridade destas, por ser uma intervenção consciente nos cuidados, de forma que se potenciem a cura e a integridade6. No seu cuidar profissional, o enfermeiro deve cultivar uma consciência de cuidar, a ser desenvolvida em sua vida profissional e pessoal diariamente7.

Por entender essa teoria como opção viável, para perceber o sujeito em toda a sua complexidade, característica condizente com a demanda de superação do predomínio do modelo cartesiano na saúde, propõe-se este ensaio reflexivo. Tem-se o objetivo de refletir sobre o potencial de utilização da Teoria do Cuidado Transpessoal de Jean Watson, para a realização de um cuidado domiciliar de enfermagem à criança. Para tal serão utilizados 10 elementos do Processo Clinical Caritas.

UM CAMINHO PARA A ENFERMAGEM DOMICILIAR DA CRIANÇA

Este ensaio parte do pressuposto de que a transpessoalidade proposta por Watson representa caminho árduo, porém gratificante na concretização do cuidar. Esse cuidar é definido como o ideal moral da Enfermagem, baseado em valores humanos e na preocupação com o bem-estar dos outros; é resultado da prática e da teoria8.

O cuidado é algo precioso e fino, como presença do amor na prestação do cuidado; daí o significado de caritas, palavra latina que simboliza carinho, afago, apreço, dar atenção especial9. Com o foco nesse cuidar, o Processo Clinical Caritas, que representa um processo de cuidar que vai além dos modelos tradicionais e estáticos da enfermagem, exige abertura do enfermeiro a questões espirituais e dimensões existenciais, compreendendo a si e aos outros como seres em evolução, com base na sacralidade do ser cuidado10. Como forma de organizar o cuidado nessa dimensão, Watson propõe 10 elementos estruturantes para o Processo Clinical Caritas9.

O primeiro é descrito como praticar o amor-gentileza e a equanimidade, no contexto da consciência de cuidado, que aborda a necessidade de os enfermeiros em ir além do convencional saber e fazer, preocupando-se em como ser enquanto cuida9. Watson afirma que os profissionais precisam realizar o cuidado de si para conseguir cuidar conscientemente do outro por meio do amor. No processo de cuidar em sua completude, é necessária uma mobilização de uma sintonia transpessoal, despertar em si mesmo o cuidado transpessoal como forma de compreender-se e auxiliar-se.

Neste elemento Watson aborda ainda o engajamento do self/selfhood do profissional, do ser cuidado e da sociedade, considerando a conexão homem-ambiente-universo em processo que leva à reconstituição da saúde individual e coletiva8.

O ambiente domiciliar é o local de maior intimidade do indivíduo; é seu mundo particular; quando o enfermeiro adentra este ambiente com esta preocupação em mente, ele pode deixar de perceber-se como coparticipante, e apenas realizar o cuidar com saber e fazer. Isso ocorre principalmente quando o ser cuidado é a criança, porque, além do direcionamento dado a este ser, também há o enfoque no cuidador e familiares desta, o que gera no profissional um desgaste ainda maior na realização de um cuidar que satisfaça todas as demandas do ambiente.

Este elemento do Processo Clinical Caritas retoma a importância de um olhar para dentro de si do próprio profissional, a fim de encontrar suas potencialidades e limitações e, assim, atuar no domicílio com consciência caritas. Ao encontrar essa consciência, o enfermeiro realizará um cuidado à criança pautado pelo amor, em sentido transcendental, como transformação humana, que atinge um significado de saúde global, na busca por reduzir situações de descuidado, como violência e o abuso infantil6,9.

Crê-se que o cuidado à criança requer o fortalecimento da intersubjetividade entre enfermeiro, criança e seus familiares, permitindo a estimulação do desenvolvimento, prevenção de agravos e promoção de sua saúde. Diante disso, o enfermeiro deve entender que a família tem seu próprio tempo para avançar ou não nesse encontro transpessoal, e precisa ter sensibilidade para respeitar o ritmo dessas pessoas, entendendo suas peculiaridades6.

O segundo elemento do Processo Clinical Caritas, definido como ser autenticamente presente, honrando o profundo sistema de crenças e o mundo subjetivo do ser cuidado, requer do enfermeiro que se integre à realidade vivenciada no domicílio e se conecte com o outro de forma autêntica6, que crie uma sintonia transpessoal9. Para tanto, necessita fortalecer e sustentar o sistema de crenças do ser cuidado, do seu mundo e da sua vida9.

Destarte, ressalta-se a importância da manutenção da fé neste processo de cuidar, respeitar a crença do outro, principalmente por estar em seu ambiente particular, o lar. Este reconhecimento metafísico possibilita conectar-se em profundidade ao outro, utilizando a essência do próprio ser como forma de valorizar suas capacidades particulares e assim aproximá-lo da saúde e do bem-estar8.

A criança em especial tem sua crença fortalecida nas mais variadas coisas ou situações, pois ela, muitas vezes, ainda não foi exposta às condições restritivas da objetividade cotidiana. Sendo assim, o estímulo à credibilidade em suas crenças pode representar significativo reforço positivo em sua busca pela melhora, pela saúde: Watson a isso se refere como o poder curativo da fé e da esperança9.

Ao entender a criança como transpessoal, como sistema que vai além das realidades individuais e isoladas, é possível perceber que o fortalecimento das crenças das famílias no cuidado no domicílio também se faz importante, pois estes sofrem influências pelas necessidades da criança em situação de enfermidade6,8.

Diante disso, é essencial que o enfermeiro mostre o devido respeito por sua fé a fim de aumentar suas capacidades interiores, estendendo o poder curativo da esperança e da fé a todos os envolvidos na condição social que levou à demanda do cuidado da criança no domicílio6.

Em consonância com os primeiro e segundo elementos anteriormente apresentados, o terceiro elemento do Processo Clinical Caritas é cultivar práticas espirituais próprias e do eu transpessoal e ir além do próprio ego, o qual aborda a suscetibilidade e crescimento espiritual do praticante, isto é, do profissional9.

A espiritualidade é considerada maior que a existência física, mental e emocional da pessoa, em um determinado ponto no tempo. Está ligada a um elevado grau de consciência, uma força interior e um poder que pode expandir as capacidades humanas e cultivar maior acesso às experiências intuitivas, místicas ou milagrosas7.

Assim, consideram-se relevantes as práticas espirituais que possibilitem o equilíbrio com o todo físico e metafísico, sendo que tanto o enfermeiro quanto o ser cuidado estão em constante evolução; esta evolução é possível pela ligação corpomente-espírito, em equilíbrio com o universo8.

Pode-se entender a junção corpo-mente-espírito, na perspectiva de comunidade, como um construto de componentes físicos, ambientais, culturais e políticos, que deve ser considerado análogo a uma pessoa inteira. Assim, o enfermeiro deve focar seu cuidado na totalidade da comunidade, embora cuide de indivíduos e famílias em seu interior11.

Neste ínterim percebe-se que o equilíbrio é alcançado de forma mais adequada para a criança cuidada, quando ela se encontra em seu domicílio, pois esse não representa apenas um espaço físico qualquer; é o ambiente íntimo para ela e sua família, com sua simbologia própria, abrigo de costumes, segredos, afetos e desafetos, o que representa a dinamicidade, integração e vinculação entre coisas, eventos e pessoas6, 12.

As particularidades desse ambiente são significativas, tanto para a criança, por ser o local em que ela contará com a proteção de sua rede social, quanto para sua família, que tem maior proximidade e autonomia com o infante adoecido. Assim, profissional, familiar e criança, cada qual na sua vez e no seu grau, conseguem uma abertura e atenção quanto ao espiritual, além do físico. Nessas dimensões existenciais da vida-morte, o cuidado da alma e do ser que está sendo cuidado pode ser entendido e trabalhado adequadamente.

Contudo, para que esse ambiente realmente tenha a função acolhedora e de incremento à saúde, levando à autonomia da família para a proteção e cuidado à criança, o enfermeiro deve compreender esse local, de forma a não torná-lo uma extensão do hospital, mas um ambiente de autorreconhecimento para o ser e de evolução para si próprio13.

O respeito ao domicílio, como ambiente sagrado, é um dos pontos críticos para que o enfermeiro consiga ser aceito pelo ser cuidado: criança e família. Vencida esta barreira, destaca-se a presença do profissional de forma integral, colocando-se no lugar do outro e apreendendo suas necessidades. Isso é o que Watson explana em seu quarto elemento do Processo Clinical Caritas, enunciado como desenvolver e sustentar uma autêntica relação de cuidado, de ajuda e confiança9.

Dessa forma requer-se do enfermeiro uma percepção para além de seus sentidos, mas que seja o reflexo do outro, sem julgamentos ou preconceitos, o que é indispensável para a criação de vínculo no cuidado domiciliar. Despir-se de suas próprias concepções facilita o entendimento do mundo particular da criança, ao mesmo tempo em que viabiliza a compreensão da ânsia dos familiares, com respeito à possibilidade de falha do ser6,14. Esta é uma opção para se estabelecer uma relação de ajuda e confiança no domicílio.

O espaço domiciliar propicia um ambiente para a construção e sustentação de uma relação cuidadora de ajuda e confiança autêntica. Além disso, o enfermeiro pode mostrar-se verdadeiramente comprometido em estar com a família e com a criança, ultrapassando a dimensão biológica, para um cuidar genuíno que pode confortar por meio do toque que acalma e pelo silêncio que contenta6.

O quinto elemento é estar presente e apoiar a expressão de sentimentos, positivos e negativos, como conexão profunda com o próprio espírito e o da pessoa cuidada isto aborda a precisão da expressão dos sentimentos, sejam eles bons ou ruins, no processo de ser, de tornar-se e de reconstituir-se dos indivíduos9. Este elemento se refere à valorização dos sentimentos, tanto do enfermeiro quanto da criança e sua família, pois faz perceber-se, sentir-se e pensar em sintonia com os indivíduos6.

Em uma conexão profunda, entre enfermeiro, criança e sua família, obtida com a criação de um relacionamento aberto e sincero, em que ambos saem transformados, a expressão dos sentimentos surge como consequência; mas, ainda assim, cumpre estimular essa expressão, pois ela é terapêutica. Contudo, não é saudável a persistência em sentimentos negativos6; reflete-se na busca pelo autocuidado, minimizando-o. 7; pois, se for devidamente estimulada, a criança eventualmente permite o acesso aos seus sentimentos, o que propicia um cuidado mais assertivo. Sua sinceridade possibilita ao enfermeiro saber quais são suas reais necessidades.

A família, muitas vezes, expressa dificuldades em manifestar seus sentimentos, por manter o foco no cuidado a seu filho, pela falta de atenção ao cuidado de si e pela ambiguidade de sentimentos que o cuidar no domicílio gera15. Desta forma, o enfermeiro precisa manter um olhar atento, estimular a expressão dos sentimentos pessoais do familiar, que muitas vezes são manifestos por atitudes de agitação, irritação e angústia, decorrentes da privação do sono da sensação de incapacidade e da sobrecarga do cuidado à criança enferma6.

A expressão de sentimentos pela criança também precisa de mediação, para que não haja transferência afetiva excessiva desta para o enfermeiro; importa lograr uma relação que, no final, se tenha alcançado maturidade suficiente, de modo que a afeição possa ser desfeita de forma suave e não abrupta6.

Percebe-se no cuidado transpessoal a possibilidade de o enfermeiro atuar nesse tipo de situação, de forma a superar a quebra do vínculo enfermeiro-criança-familiar, pois é um cuidado que busca a reconstituição de si próprio do ser cuidado; ou seja, no final da relação, tanto o profissional quanto o ser cuidado saem transformados, cuidados e reconstituídos no seu próprio ser self-propelled, preparados para continuar sem dependência da relação estabelecida previamente9.

Para isso, é necessário que se aplique o sexto elemento do processo: usar criativamente o eu e todos os caminhos do conhecimento, como parte do processo de cuidar e engajar-se em práticas artísticas de cuidado-reconstituição (healing)9.

Este elemento está ligado ao uso criativo de todas as maneiras de conhecer, ser e fazer, como elemento integrante do processo de cuidar em resolução de problemas e como instrumento de busca de soluções para os pacientes, famílias e comunidades7. Entende-se que o cuidado não deve ser somente fundamentado no conhecimento científico, mas também ser abarcado pelos conhecimentos seguintes: comum, ético, estético, religioso, ademais do pragmático empirismo do cuidador6.

No cuidado domiciliar de enfermagem à criança, a criatividade do profissional faz-se ainda mais necessária: trata-se de público-alvo fortemente atingido pelos recursos lúdicos; além disso, uma presença significativa pode ocorrer por meio do toque terapêutico, demonstrando seu desejo de prestar o cuidado para a criança e sua família, revelando a sua disposição.

Nessa interação profunda, os laços entre profissional, família e criança são fortalecidos, contribuindo para a proteção e estimulando o desenvolvimento do infante, por meio de ações e práticas que visem não somente aos aspectos biológicos, mas também aos psicológicos, sociais e espirituais.

Na elaboração do seu plano de cuidados, o enfermeiro necessita reconhecer as potencialidades e limitações que a família possui para cuidar da criança, e explorar a sua própria criatividade na proposição de intervenções que almejem facilitar a vivência do cuidado domiciliar à criança, considerando a realidade de cada família.

Diante disso, destaca-se a aplicação do sétimo elemento, que é engajar-se de forma genuína em experiências de ensino aprendizagem que atendam à pessoa por inteiro e aos seus significados, tentando permanecer dentro do referencial do outro9; o envolvimento constitui verdadeira experiência de ensino e aprendizado, que emerge de uma compreensão da interconectividade7.

O enfermeiro, ao se aproximar da criança a ser cuidada, deve valer-se de maneiras alternativas de autoconhecimento de suas fragilidades e habilidades. Precisa reconhecer o aprendizado para além da oferta de informações, fatos ou dados, mas como uma troca, viabilizando uma relação subjetiva interpessoal em sua essência, que afeta a forma e o contexto do processo de reconstituição da criança e de quem cuida6.

Diferentemente do ambiente normativo do hospital, com suas regras e prescrições, o domicílio constitui-se em oportunidade de intervenção do enfermeiro em busca da autonomia dos sujeitos13, tanto em ações educativas de saúde como para o cuidado à criança. Entretanto, seu êxito é condicional a uma devida adaptação aos costumes, crenças e valores da família, pois este espaço possibilita uma amplitude de troca entre o profissional, a criança e sua família: ambos ensinam e aprendem e, no fim, saem transformados; desta forma, são mais que sujeitos, porque são construtores de um futuro conjunto e coletivo.

Diante disso, ressalta-se o oitavo elemento delineado em criar e manter um ambiente de reconstituição (healing), em todos os níveis, físicos e não físicos, o que implica um ambiente sutil de energia e consciência, no qual totalidade, beleza, conforto, dignidade e paz sejam potenciados9. Isso se configura na criação e manutenção de um ambiente de reconstituição, considerando as correlações com o ambiente, o cosmos e o universo; portanto trata-se da totalidade pela qual a consciência energética irradia todo o campo, criando um clima de intimidade para o cuidado6.

As sutilezas do contexto domiciliar tornam extremamente relevantes o reconhecimento da criança como ser cuidado, em face das suas correlações, sejam elas familiares, sociais ou ambientais. Isso permite ao profissional desenvolver atitudes direcionadas às reais necessidades dos sujeitos, entender que a criança e seus familiares formam um todo e agir não apenas para a doença ou a prevenção, mas para a reconstrução desses seres15.

O enfermeiro precisa entender que elementos externos ao meio de reconstituição influenciam o clima adequado para o vínculo e aproximação imprescindíveis para o desenvolvimento do cuidado à criança, como: bem-estar, confiabilidade, conforto, além da limpeza e salubridade6.

Adiante, existe o nono elemento, expresso na ajuda com as necessidades básicas, com consciência intencional de cuidado, administrando o cuidado humano essencial. Isso pode potenciar o alinhamento da mente, corpo e espírito, vale dizer, a totalidade e unidade do ser em todos os aspectos do cuidado9, que consiste na administração de cuidados humanos essenciais, na ajuda mútua ao próximo, para a satisfação de suas demandas, e na consciência de cuidado intencional que honre a unidade entre espírito, mente e corpo7.

Ao oferecer cuidados humanos essenciais a uma criança, o enfermeiro deve procura satisfazer as demandas próprias da infância, sejam estas de cunho biológico, social, psicoafetivo e/ou espiritual. Perante elas, o enfermeiro deve intervir de forma humana e equilibrada no contexto domiciliar; busca ser e estar, com e para a criança. Para isso, necessita realizar a escuta ativa dos familiares e oferecer um cuidado genuíno, mediante a prática permanente do amor e da partilha, sendo capaz de constituir uma fidedigna relação de ajuda e de confiança com a família cuidadora da criança14.

A prestação do cuidado à criança demanda do enfermeiro a utilização de conhecimentos de toda monta para oferecer ao infante bem-estar, conforto, assim como a superação do desconforto de saúde14. Esta ação é considerada quanto à visão integral do ser humano, o que se contrapõe ao modelo cartesiano, que descreve o ser humano como máquina dividida em partes separadas e reduzidas15.

O décimo elemento do Processo Clinical Caritas é a abertura e o atendimento aos mistérios espirituais e dimensões existenciais da vida-morte, cuidar da sua própria alma e daquela do ser cuidado, o que é considerado pela autora como o elemento de mais difícil compreensão, pois aborda a presença de questões que a mente racional não pode explicar; porém o enfermeiro irá se deparar com as limitações da ciência; importa manter-se aberto em aceitar até mesmo milagres na vida9.

Estar diante de situações incontroláveis gera no enfermeiro angústia e ansiedade; particularmente no cuidado domiciliar, em que situações como a precariedade financeira, despreparo dos cuidadores e falta de infraestrutura domiciliar ampliam o grau de dificuldade para a concretização do cuidado de forma integral15. Contudo, as vantagens do cuidado nesse ambiente são ainda mais significativas; entre outras, há o incremento no autocuidado, acolhimento emocional, economia, melhora do atendimento e do paciente, humanização do cuidado e cuidado familiar além do individual15.

Algumas das vantagens atribuídas ao cuidado domiciliar nem sempre são compreensíveis cientificamente, vistas as dificuldades que coexistem, por estarem ligadas ao caráter emocional ou espiritual e não só ao concreto. Apesar disso, elas existem evidentemente; então cumpre retornar ao pensamento de Watson neste décimo elemento, no qual ela reconhece que muito existe além do horizonte da cientificidade; neste, a autora chega a reportar-se aos milagres da vida8.

No cuidado domiciliar da criança, especificamente este elemento representa relevante oportunidade de fortalecimento dos vínculos e das relações, considerando que se trata de uma situação na qual, muitas vezes, o estado psicoafetivo da família está abalado e comprometido pela situação de doença e sofrimento da criança; quando se percebe o mundo subjetivo das experiências internas de si e dos outros como mistério ou mesmo milagre da vida; o ser humano sofre alterações dos mais diversos fatores, de modo que nunca é totalmente explicado6, 8, 15.

Reconhecer a vida como milagre, do qual não se têm todas as respostas, propicia ao enfermeiro obter maior respeito das crenças e da fé dos familiares. Desta forma, disponibilizará uma intervenção baseada na oração, na meditação e na participação de líderes ou sacerdotes da religião familiar no processo de cuidar da criança.

O ser humano possui um potencial metafísico de autocura e transcendência para níveis mais elevados de consciência, sendo ele próprio o agente da mudança e primordialmente o responsável por permitir que a cura ocorra com ou sem a coparticipação de agentes externos de mudança11. Isso aponta uma oportunidade para o enfermeiro atuar na perspectiva das práticas complementares e alternativas, no âmbito da atenção primária à saúde.

Com a efetivação deste elemento do cuidado, a família se sentirá apoiada, encorajada, acompanhada, fortalecida e aliviada; perceberá que ficou com mais conhecimento para enfrentar o sofrimento de seu pequeno ente querido14. Alegra-se em ver sua estrutura reconstruída pela esperança da melhora da criança e pela confiança em suas crenças, que advém da certeza na cura e na restauração do estado de saúde e bem estar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A utilização da teoria do cuidado transpessoal de Jean Watson é uma possibilidade a ser seguida, para que o cuidado domiciliar de enfermagem à criança seja efetivo. Para tal, é necessário autoconhecimento e suporte teórico-filosófico por parte do enfermeiro; ademais, ele deve se dispor a tomar posse desse conhecimento e aplicá-lo, tornando a prática da enfermagem genuína e menos rotineira.

A transpessoalidade é um caminho possível a ser seguido pela Enfermagem, todavia ainda existem obstáculos para sua implementação, especialmente dentro da dimensão da atenção primária à saúde. Diante disso, o profissional precisa aprender a despir-se de seus julgamentos e preconceitos, e aceitar a espiritualidade como parte do cuidado, apesar da prevalência da abordagem técnico-científica que permeia sua formação. Por isso, vê-se como indispensável que ele tenha abertura para as novas práticas assistenciais, que ultrapassem o paradigma da objetividade e do biologicismo, apropriando-se do conhecimento da Enfermagem, a fim de converter a ciência de sua profissão também em sua arte.

O referencial de Watson pode contribuir para uma prática profissional do enfermeiro que promova um cuidado para além da dimensão objetiva, incluindo concepções, crenças e valores das famílias na atenção à saúde da criança, respeitando também a espiritualidade do ser cuidado e do profissional para que ocorra este encontro transpessoal. Esse processo pode propiciar que o enfermeiro seja elemento que atue na reconstituição (healing) da saúde da criança, mediante o fortalecimento de sua capacidade e da família em buscar a autocura e a transcendência.

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