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CAPES

Volume 17, Número 2, Abr/Jun - 2013

PESQUISA

Cuidado da criança com anomalia congênita: a experiência da famíliaa

Bruna Aparecida Bolla1
Stéphany Noujain Fulconi2
Marja Rany Rigotti Baltor3
Giselle Dupas4

1. Aluna da Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de São Carlos. Barra Bonita - SP. Brasil. E-mail: brunabolla@uol.com.br
2. Aluna da Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de São Carlos. Campinas -SP. Brasil. E-mail: tepy711@yahoo.com.br
3. Enfermeira. Mestre em Enfermagem. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de São Carlos. Membro do Grupo Saúde e Família. São Carlos - SP. Brasil. E-mail: marjabaltor@gmail.com
4. Enfermeira. Doutora. Professora Associada. Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de São Carlos. Líder e pesquisadora do Grupo Saúde e Família/CNPq. São Carlos - SP. Brasil. E-mail: gdupas@ufscar.br

Recebido em 02/05/2012
Reapresentado em 10/08/2012
Aprovado em 11/09/2012

RESUMO

O prognóstico de sobrevida de crianças com anomalia congênita vem apresentando melhora; deste modo, é importante conhecer a vivência da família ao aceitar e inserir essa criança na sociedade. Entretanto, os profissionais da saúde, dentre eles o enfermeiro, ainda têm dificuldades relacionadas ao acompanhamento e orientação da família. O objetivo deste trabalho foi conhecer a experiência da família no cuidado à criança portadora de anomalia congênita. O referencial teórico utilizado foi o Interacionismo Simbólico, e o método, a Narrativa. Das experiências vivenciadas, o momento do diagnóstico foi considerado um dos que causa maior sofrimento à família. Após esse período, o enfrentamento diário para a saúde e bem-estar da criança tornou-se objetivo fundamental. Concluiu-se que a assistência à família deve se basear em uma rede de apoio que a acolha principalmente no momento do diagnóstico e durante as especificidades do cuidado à criança.

Palavras-chave: Anormalidade congênita. Enfermagem. Família. Criança.

INTRODUÇÃO

Em decorrência dos avanços tecnológicos para melhoria das condições de nascimento e de assistência à saúde infantil, observa-se um aumento na sobrevida de crianças que nascem com anomalia congênita. O avanço da medicina também permitiu identificar patologias na gestação e realizar intervenções intrauterinas, colaborando, consequentemente, com o prognóstico fetal1.

As anomalias congênitas acarretam grande impacto à família já que a deficiência traz consigo a perda do filho idealizado. Esse processo de luto é diferente, pois a criança está viva e os pais, em um primeiro momento, não acreditam no diagnóstico, ocorrendo choque e descrença2.

Logo, a notícia da anomalia congênita causa um grande impacto no ambiente familiar e desperta sentimentos de pavor diante do desconhecido. A família apreende o momento como uma sentença de conotação negativa para a criança e para si. Os familiares se percebem frágeis e demonstram medo perante as possíveis dificuldades que irão enfrentar. Inicialmente a preocupação centra-se nos aspectos do cuidado à criança e é envolta por ansiedade quanto à sobrevivência e alimentação; posteriormente surgem preocupações com a questão estética da deformidade estrutural3.

Para superar as adversidades é fundamental que as famílias recebam apoio e informações dos profissionais envolvidos com a assistência, preferencialmente de uma equipe multidisciplinar. Não basta o tratamento clínico, é necessário conhecer formas que promovam a inserção dessa criança no meio familiar e na sociedade, bem como a prevenção da discriminação que ela pode vir a sofrer3. Nesse contexto, as propostas de intervenções de enfermagem na família ainda são deficitárias1.

Quando é ofertado suporte às famílias que enfrentam essa situação, elas apresentam menor nível de estresse, ansiedade e depressão, além de manter uma perspectiva mais positiva em relação à doença da criança e visualizar a situação de forma realista3.

A partir dessas proposições, o presente estudo teve como objetivo geral conhecer a experiência da família no cuidado da criança com anomalia congênita.


METODOLOGIA

Esta pesquisa utilizou o Interacionismo Simbólico (IS) como referencial teórico, cujos fundamentos se apoiam em três premissas: o ser humano age em relação às coisas com base nos sentidos que tais coisas têm para ele; o sentido das coisas se origina na interação social que o indivíduo estabelece com os outros; os significados são modificados por meio da interpretação pessoal4.

Como método foi utilizada a Narrativa, já que narrar é uma manifestação humana. Ao narrar a sua vivência, a família permite que captemos a sua visão de mundo, seus valores e pressupostos que utiliza para definir a sua experiência e, assim, nos possibilita uma maior compreensão da vivência5.

Assim, foram realizadas entrevistas, as quais, após transcrição sistemática, foram relidas com a finalidade de depreender a experiência da família. Também foram realizadas seleções de falas/expressões que contribuíam com a proposta do projeto. Essas falas/expressões foram selecionadas e transformadas em discursos. Esses discursos (tendo apenas as falas dos familiares em seu conteúdo) foram analisados de maneira a identificar os anseios e vivências experienciadas pela família, de acordo com sequências que nos permitissem o encontro de conexões em outros momentos das narrativas. Foram destacadas palavras e/ou expressões tratadas com maior ênfase pelos entrevistados5.

Analisando as narrativas uma a uma, interpretou-se o que cada participante fazia da sua experiência em ter uma criança com anomalia congênita. Com a releitura exaustiva foi possível delinear sentimentos, vivências incomuns às famílias embora cada experiência fosse única. Por conseguinte, as narrativas foram agrupadas de acordo com a semelhança de momentos, sentimentos e/ou ações. A partir desses temas emergiram subtemas que revelavam a experiência da família5.

Todos os critérios éticos foram atendidos. O projeto teve aprovação no Comitê de Ética de Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos pelo parecer nº. 189/2011 e número do processo: 0160.0.135.000-10. Os membros familiares participantes foram esclarecidos e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Para a realização das entrevistas, o Centro de Especialidades do município foi contactado já que nesse estabelecimento há um ambulatório de genética destinado às famílias de crianças portadoras de anomalias congênitas. De acordo com critérios de inclusão, ou seja, estar em idade pré-escolar e apresentar alguma anomalia congênita, vinte e cinco crianças foram contactadas. A pesquisa se deu com a aceitação e participação de sete famílias, que relataram suas experiências por meio de entrevistas, as quais se iniciavam com a questão norteadora: "Como é para vocês cuidar de uma criança com anomalia congênita?" As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. Para garantir o anonimato utilizamos siglas M (mãe), A (avó) e P (pai) seguidas dos respectivos números das entrevistas (Quadro 1).




RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise dos dados segundo os parâmetros da narrativa5 e à luz do IS permitiu três temas: VIVENCIANDO A ANOMALIA: INCERTEZAS E ACEITAÇÕES, que abarca os subtemas: Luto pelo filho idealizado; Diagnóstico e suas peculiaridades, Anomalia e sociedade; e Vibrando com os progressos; FAMÍLIA E REDE DE APOIO, com os subtemas: Apoio dos profissionais da saúde; Apoio religioso; Apoio familiar; e Apoio financeiro; MUNDO QUE ENVOLVE O CUIDADO e seus subtemas: Sentimentos do Cuidador; Superproteção; e Momentos de lazer.

Vivenciando a anomalia:incertezas e aceitações

Os familiares têm dificuldade em compreender o diagnóstico quando a criança nasce com anomalia congênita. Os pais se mostram preocupados com o impacto e reação que a notícia causará aos outros membros da família. À medida que a família reflete sobre a rejeição e preconceitos que a criança pode vir a sofrer, sente-se insegura e angustiada. Diante dessa notícia cada integrante busca explicações e maneiras para enfrentar essa fase. Quanto ao crescimento e desenvolvimento da criança, a família possui muitas expectativas e vibra nos momentos de demonstrações de sinais de melhora da condição de saúde, acreditando no progresso paulatino da criança. Os subtemas que contemplam este tema são apresentados a seguir.

O processo de interação consigo mesmo, com o outro mais próximo, com a sociedade, por assim dizer, aparece o tempo todo nessa vivência. O impacto da situação permeia as relações atuais e as projeções futuras que a família realiza.

Luto pelo filho idealizado

Durante o período gestacional, a família cria expectativa relacionada à aparência da criança esperada. Os pais aguardam e desejam uma criança perfeita e saudável. Quando o filho vem ao mundo apresentando anomalias, principalmente as que interferem na imagem corporal, a decepção e tristeza são claras, evidenciadas tanto no choro ao receber a notícia quanto na atitude de esconder a criança.

Meu marido me falou bem assim: "Nossa filha está com problema no olho, problema na boca, problema no nariz, nos braços, nas mãos, nas pernas e nos pés". Então eu comecei a chorar porque eu estava esperando uma criança perfeita. (M2)

Eu não saía na rua de jeito nenhum. Eu a escondia. Eu tinha vergonha. Mas agora não. (M5)

Assim, observa-se um processo de luto, uma vez que o sonho do filho idealizado não é concretizado. Em alguns casos a família rejeita momentaneamente aquela criança, acreditando não merecer tal fardo. É comum em primeira instância não acreditar no diagnóstico, como verbalizado por algumas mães.

Quando ela nasceu foi bem difícil. Eu até cortei os meus pulsos. Eu só fiquei sabendo no dia do parto. Eu fiz quatro ultrassons na gestação e não deu. Então foi um baque. Eu entrei em estado de choque porque eu não sabia que ela ia nascer desse jeito. (M5)

A literatura aponta que o diagnóstico de anomalia congênita gera reações de negação da doença, questionamento sobre o merecimento de ter esse filho, rejeição quanto à condição da criança, perda do sonho do filho perfeito2. Não obstante, a família vivencia momentos de inquietude por desconhecer os cuidados especiais de que a criança irá necessitar6.

Diagnóstico e as suas peculiaridades

Compreender o diagnóstico é um processo permeado por inquietudes. A família busca as possíveis razões que possam explicar a causa da anomalia. Procuram auxílio em diferentes especialidades médicas e em genética, e até mesmo informações de fontes informais e nos saberes populares.

Falaram que quando é Down não nasce com risco na mão. Então nós [avó e a madrinha] ficávamos nos vidros falando para minha filha: "Ergue a mãozinha dele, olha na mãozinha dele" para nós vermos se tinha. Ai nós olhamos e tinha as marquinhas. E falei: 'Graças a Deus não é'. (A1)

Quando a família percebe algo diferente em sua criança, mas não existem diagnóstico e reconhecimento por parte dos profissionais de que algo diferente possa estar acontecendo, ela mesma realiza movimento próprio de busca por respostas.

Ele não sentava e não firmava a cabeça. Alguma coisa a gente sabia que tinha de errado. Mas como a gente já vinha fazendo vários exames que vinham com os resultados negativos, a gente não esperava que na ressonância. [...] desse esse resultado. (A3)

Com o diagnóstico em mãos, a família questiona-se sobre as razões da anomalia. Aquelas que não tiveram o diagnóstico no período de pré-natal, ao refletirem sobre a possibilidade de o terem tido durante a gestação, não cogitavam o aborto, mas consideravam que haveria mais tempo de preparo para o enfrentamento. Por outro lado, quando há tal diagnóstico, a gestação torna-se difícil, já que prospecta o futuro a ser enfrentado.

Você está no oitavo mês e vai fazer um ultrassom para saber se é menino ou menina. Então descobre que vai nascer com problema. É um choque. Você vai criando força para levar a gravidez até o fim. (M7)

Eu acho que eu reagiria da mesma forma. Não ia pensar em tirar, jamais.(M2)

O Interacionismo Simbólico tem seus fundamentos em três premissas: o ser humano age em relação às coisas com base nos sentidos que tais coisas têm para ele; o sentido das coisas é derivado, ou se origina da interação social que o indivíduo estabelece com os outros; esses sentidos são manipulados e modificados através de um processo interpretativo, usado pela pessoa ao lidar com as coisas e situações em que ela se encontra4.

Dessa forma, os familiares interpretam o diagnóstico a partir do seu contexto sociocultural, espiritual, cogitando motivos para sua ocorrência. Esse fenômeno é esperado já que o ser humano precisa atribuir um motivo para enfrentar tal situação7.

Anomalia e sociedade

Essa categoria retrata as situações e comentários preconceituosos que a família enfrenta por parte da sociedade ao sair de casa com a criança. Tal fato desperta sentimentos de tristeza e indignação ao perceber que sua criança não é aceita e é tratada com preconceito e distanciamento por alguns membros da sociedade. A criança malformada chama a atenção e torna-se alvo de comentários maldosos e preconceituosos, gerando assim situação conflituosa e desconfortável. Toda essa cena é captada pela família que sofre pela rejeição da criança, assim como pelas dificuldades no convívio e inserção social.

O problema é que as pessoas são ignorantes, elas começam a falar muita besteira como "Não vai conseguir fazer isso, não vai conseguir fazer aquilo." (P5)

Um casal de senhores cochichava: "Olha lá, olha lá". O senhor falou: "Olha, eu não gosto de ver nem sangue, imagina ver isso!" (M2)

Manifestações de estranhamento causam muito sofrimento nas famílias e refletem o medo que o ser humano tem do desconhecido8. O preconceito da sociedade em relação às deformidades associa-se à dificuldade que há em estabelecer uma perspectiva positiva de futuro para a criança, pois culturalmente as qualificações são atribuídas de acordo com as capacidades produtivas da pessoa9.

Vibrando com os progressos

A família da criança portadora de anomalia congênita sabe que ela tem um crescimento e desenvolvimento vagarosos se comparada a outras sem anomalia; no entanto, acredita que, mesmo com suas limitações, também se desenvolverá dentro de suas possibilidades. Com isso, há esperança e expectativa diante do desenvolvimento saudável e todas as demonstrações do progresso infantil são captadas, gerando intensa vibração familiar.

São coisas bobas para as outras pessoas, mas para a gente é uma farra, é uma alegria, é diferente [...] Quando ele aprendeu a bater palminha foi uma festa [...] Foi comemorado com bolo, com direito a tudo. É mais gostoso, é mais esperado, tudo se torna muito mais gostoso. Eu acho que as famílias deveriam olhar mais o lado positivo, e não o negativo. (A3)

Os eventos que demonstram evolução no desenvolvimento da criança despertam muita expectativa diante do futuro e contribuem para um melhor enfrentamento das situações, já que se acredita na superação das dificuldades e na recuperação da criança10.

Família e rede de apoio

O apoio proporciona segurança e força para a família prosseguir com os cuidados. Quando não tem apoio, a família transita em busca de alternativas almejando o bem-estar da criança. O suporte pode ser dado por profissionais da saúde, pela religião, pela própria família ou até mesmo pela assistência pública e privada. As interações estabelecidas ajudam ou não o processo de sustentação da família.

Apoio dos profissionais da área da saúde

A maneira como a família é amparada no momento do diagnóstico de uma doença crônica interfere na experiência de enfrentamento da enfermidade7. Constatamos que os profissionais da área da saúde que, no momento da divulgação da má notícia, agiram de forma empática, foram considerados peças-chave para o enfrentamento, o que corrobora as premissas do Interacionismo Simbólico, que discerne que o ser humano atribui um significado a partir das suas relações sociais4; ou seja, ser amparado por um profissional o faz depreender que a situação pode ser enfrentada e, então, é menos complicada do que parece.

Ao se relacionarem com profissionais que propiciaram suporte e esclarecimento, mães de crianças hospitalizadas se sentiram seguras para assumir o cuidado integral já que o acolhimento e a empatia desses profissionais as fortaleceram11.

Foi trazida na narrativa de todas as famílias a deficiência no funcionamento do mecanismo de referência e contrarreferência no atendimento à criança, sendo que a maioria dos serviços não contempla o apoio em relação aos cuidados, à assistência profissional e atenção à família como um todo. Para suprir essa lacuna, as famílias buscam a assistência privada para a criança, alegando perceber melhores condições de atendimento, agilidade e segurança.

Tudo é melhor [na assistência privada]! Até mesmo no jeito de tratar a criança e o tempo de espera na fila. Porque, pensa bem, você sair de casa de madrugada com uma criança com 14 Kg, especial, que você tem que ter cuidados e ficar numa fila até o meio dia para ter consulta não tem cabimento. (A3)

A experiência vivenciada por essas famílias com os profissionais do serviço público de assistência à saúde foi ruim, pois não encontraram facilidades diante da condição da criança e nem perceberam manifestação de interesse deles em relação à criança.

Uma vez que ele ficou doente, antes de ter o plano [convênio particular], eu levei ele no hospital. O médico olhou para minha cara e falou "Seria bom se você tivesse um plano de saúde, porque esse tipo de criança eu não aconselho você trazer aqui". Eu falei 'Então você fecha o hospital'. (A3)

Na literatura11 descobrimos que as famílias criam uma expectativa antes de conhecerem os profissionais da saúde e ao se depararem com aqueles que não as acolhem, não as auxiliam nos cuidados específicos da criança e não escutam seus anseios e necessidades, sentem-se desamparadas.

Apoio familiar

Ao atravessar dificuldades a família extensa se une e fortalece seus vínculos, o que é percebido desde a ocasião do diagnóstico, bem como no auxílio ao cuidado, aceitação e carinho pela criança, priorizando seu bem-estar e enfrentamento das adversidades. Em muitos casos, a criança torna-se centro de todas as atenções, como se a existência dela fortalecesse os laços. A aceitação da criança como ela é passa a ser um ponto fundamental para a família, que a defende e a protege.

Ele veio para ajudar a família a aprender alguma coisa. A minha família era cada um por si e Deus por todos. Eu via a minha mãe uma vez por ano sendo que minha mãe mora na mesma cidade. Minha irmã eu passei três anos sem vê-la, sendo que ela mora a três quarteirões daqui. Hoje não! Se tem uma data que dá para juntar todo mundo nós nos reunimos. (A3)

Contudo, nem todas as famílias vivenciam o apoio em suas relações. A rejeição é evidenciada quando os membros negam a condição da criança e não auxiliam nas atividades de vida diária, por acreditarem que existem peculiaridades que eles não dominam ou julgam que cuidar não é o seu papel. Isso provoca no cuidador principal tristeza, pois sente falta de apoio, fazendo-o refletir sobre como seria bom se alguns membros distantes estivessem por perto.

A família por parte do pai nem quer saber que o menino existe. Eles vêm ver uma vez por ano e olhe lá! (A3)

Possivelmente a anormalidade estreita os laços familiares pelo fato de os pais conceberem na diferença da criança uma oportunidade para potencializar a comunicação12. O auxílio e o apoio dos demais familiares no cuidado da criança são de suma importância para enfrentar a situação7.

Apoio religioso

A família encontra na religião amparo para a trajetória, bem como respostas para os questionamentos sobre o motivo da vinda dessa criança. Essas respostas abarcam diversos modos de significar a condição imposta à família, desde um aspecto positivo, ou seja, a missão de ensinar o próximo ou a possibilidade de estabelecer relação com pessoas que vão auxiliar na trajetória, até uma conotação negativa ao considerar o aspecto justiceiro.

Sei que eles [os filhos] chegaram à minha existência por Deus e fico seguro de que, se um dia for chamado de retorno à vida espiritual antes deles, Deus haverá de fazê-los chegar a quem os ame como eu os amo! (P4)

A família se pauta na religião para atribuir significados à sua vivência e para se sentir acolhida nos momentos de sofrimento. Os familiares creem que Deus, mesmo não atendendo a todas as suas preces, tem o poder de curar a criança e livrá-la de complicações, fortalecendo a família para continuar a luta13.

Apoio financeiro

A família enfrenta momentos difíceis relacionados à falta de recursos financeiros, já que os custos envolvidos no cuidado à criança são altos, geralmente incompatíveis com a renda mensal. Recebe apoio de parentes, amigos e solidariedade da comunidade para adquirir produtos e medicamentos. Tal ajuda não é constante, e quando a família não a recebe, tem que despender recursos próprios. A rede pública fornece apoio seja por auxílio financeiro ou recurso material, o qual abarca transporte, alimentação e vestimentas.

Eu recebo três pacotes de fralda da Assistente Social. É pouco, mas já ajuda. (M2)

Ela recebe um benefício do governo. (M2)

Se tem um brinquedo, uma novidade que tenha luz, som, eles dão um jeito de trazer. Eles [os tios] não compram para os filhos deles, mais compram para ele. (A3)

Certos autores14 pontuam algumas ações governamentais e não governamentais no apoio à criança com anomalia congênita, dentre elas o Programa de Doença de Gaucher, Programa de Osteogênese Imperfeita, ECLAMC (Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas), SIATs (Sistema de Informações sobre Agentes Teratogênicos), SIEM (Serviço de Informação sobre Erros Inatos do Metabolismo), PNTN (Programa Nacional de Triagem Neonatal), além dos programas de prevenção. No presente estudo foi constatado que algumas famílias são assistidas por benefícios públicos, o que deveria ser aplicado a todas, uma vez que as condições especiais das crianças, como imobilidade, deficiência visual, auditiva e cognitiva causam gastos com materiais específicos, como sondas, aparelho auditivo, cadeira de rodas, além da necessidade de assistência médica rotineira, que os familiares não têm condição de arcar.

Mundo que envolve o cuidado

A família assume os cuidados da criança integralmente. Porém, é na figura do cuidador que esse amparo está centrado. Sua rotina contempla os horários de cuidados e consultas médicas. Com isso, a dedicação exclusiva à família, e mais especificamente à criança, acaba anulando as possibilidades de o cuidador de realizar outras atividades, tanto pelo cansaço quanto pela falta de tempo.

Apesar de as demandas diárias serem desgastantes e o cuidado estar centralizado na figura de uma pessoa, o significado que lhe é atribuído também é concebido como gratificante.

Sentimentos relativos ao cuidado

Ao contar sua história sobre a experiência de vivenciar a doença, a família demonstra querer que a criança faça sentido em suas vidas e que, de alguma maneira, influencie o futuro5.

Assim a família acredita ser inexplicável a sensação de cuidar de uma criança com necessidades especiais e atribui imensa alegria e satisfação a essa relação. O cuidador se sente privilegiado, pois acredita que também é especial e que está em constante aprendizado com a criança. Independentemente da anomalia, ama e cuida da melhor maneira possível. Além disso, acredita que seu papel não se restringe apenas diretamente ao cuidado prestado, mas também às lições de vida que devem ser atentamente observadas e aprendidas. Evidencia-se nas narrativas a importância das interações estabelecidas, pois por meio delas os laços se fortalecem e no processo de cuidar há o encantamento pela criança e menor percepção da anomalia.

Quanto às dificuldades sentidas pela família, essas se devem principalmente ao cuidado centralizado na figura de uma pessoa, a qual é responsável por atender a criança em todas as suas necessidades, o que pode tornar a rotina exaustiva. Porém, mesmo diante das dificuldades, ela se dedica e acredita que todos esses fatores são compensados pelo bem-estar e felicidade da criança, e sente-se culpada quando experiencia sentimentos de cansaço e falta de paciência.

É uma emoção viver com ele [...]. É gratificante, porque eu vejo nele o que eu posso fazer. (A3)

Todo dia é uma luta. [...]. Eu diria então que cuidar bem é viver perigosamente. Dor está no nome e deveria ser sobrenome de todo cuidador. Dor nas costas, nos braços, no pescoço, na alma, no coração, na consciência. Dói tudo, mas só reclama quem quer! (P6)

Em um primeiro momento a família sente-se no dever de cuidar da criança, como sendo sua obrigação atender a suas necessidades. Porém, à medida que o tempo passa os vínculos entre a família e a criança se estreitam de maneira tão forte e positiva que o cuidar não é mais encarado como obrigação, e sim como forma de demonstração de amor. A família classifica esse amor como incondicional e não mede esforços para cuidar da criança da melhor maneira possível15. O cuidar atrelado ao amar desperta e traz a sensação de prazer e felicidade nas famílias que se sentem completas com a criança.

A cumplicidade entre mãe e filho faz com que a primeira, nos momentos de sofrimento, reflita sobre tudo o que aprendeu ao longo do tempo com as dificuldades e acredita que levará esse aprendizado para toda a vida e se engrandece, pois se caracteriza como ser humano especial16.

Eu me sinto uma pessoa muito privilegiada de ter a G. comigo [...] a criança é especial, mas os pais também. (M2)

[...] devemos aceitá-los como são, pois eles têm muito para nos ensinar, mesmo parecendo que somos só nós que damos e cuidamos. O dia a dia, o tempo, vai mostrando isso. Tenho certeza que lá na frente vamos olhar para trás e ver tudo que a gente passou, tudo que aprendemos, quão útil fomos nessa vida e quanto amor existiu nela. (M6)

Superproteção

A família sente-se insegura em deixar a criança realizar algumas atividades sozinha, pois a concebe como frágil e a vê necessitando de cuidados especiais, supervisão direta e ininterrupta. A preocupação central com a criança no período pré-escolar (de 0 a 6 anos) diz respeito ao receio quando se alimenta sozinha, pois há o medo de possíveis engasgos. Acreditar que a criança é mais passível de infecções também provoca insegurança relacionada à higiene.

Eu não deixo ir lá fora, porque eu tenho medo que ela coloque alguma coisa na boca. Então limpo bastante o chão, e só na hora que está bem limpo eu coloco ela para brincar. Também tenho medo que ela engasgue, bala eu nem dou para ela. Bolacha eu macero e dou na boca. Ela precisa de cuidados especiais, e são esses que eu e meu esposo damos a ela. (M5)

A mãe sente-se bem em cercar todas as possibilidades de falhas no cuidado, pois isso a tranquiliza e faz com que acredite que está fazendo o melhor. Essas atitudes são caracterizadas como uma barreira utilizada pela mãe e que, ao mesmo tempo, servem para seu próprio cuidado e proteção17.

Momentos de lazer

Para amenizar os fatores estressores, a família busca atividades de lazer e diversão para a criança. Com isso, o vínculo acaba sendo reforçado e a criança sente-se feliz por aproveitar outros espaços e estar cercada por seus familiares em um momento prazeroso. Nessas ocasiões, as interações são mais descontraídas e fluem em clima de alegria.

Meu lazer é brincar com a G. Vou lá e sento com ela, canto as musiquinhas e brinco. Parece que eu voltei a ser criança! (M2)

A família, ao se ver envolvida com atividades de lazer, acredita que está contribuindo para melhor inclusão e desenvolvimento da criança e também melhorando o casamento e a comunicação no ambiente familiar18. Entretanto, apesar dos benefícios para a família e para a criança, essa prática acaba ficando em segundo plano diante das tantas obrigações do dia dia.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo teve por finalidade compreender a experiência da família no cuidado da criança portadora de anomalia congênita. Trata-se de uma vivência vasta e rica, permeada de momentos de dor, mas também de muita força e enfrentamento.

A limitação da pesquisa se relaciona à delimitação da faixa etária (pré-escolar), o que não possibilitou comparações entre as experiências ao longo dos anos. Ademais, aponta-se a necessidade de realizar maior número de encontros com essas famílias, pois por meio do fortalecimento do vínculo poderiam surgir novas demandas que, possivelmente, ajudariam ainda mais os profissionais de saúde a conhecerem as suas necessidades.

Percebeu-se que o Interacionismo Simbólico permeou toda a experiência e colaborou para a compreensão das narrativas, uma vez que a interação da família (o núcleo familiar, tanto na relação mais extensa quanto na mais distante) com a criança, com a anormalidade e com a sociedade, com os profissionais de saúde, com as redes de apoio gerou significados que foram expostos pelos familiares.

Com a análise dos resultados, pode-se evidenciar a necessidade de os profissionais da saúde atuarem como um real apoio a essas famílias, mais do que orientando a realização do cuidado, como a escuta qualificada, também investindo nas relações interpessoais, para efetivamente qualificar a assistência e auxiliar a família da criança com anomalia.


REFERÊNCIAS

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NOTA

a Parte dos resultados do Projeto de Iniciação Científica vinculado à FAPESP desenvolvido no período de janeiro 2011 a janeiro de 2012.

 

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