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CAPES

Volume 17, Número 2, Abr/Jun - 2013

PESQUISA

Reforma psiquiátrica brasileira: conhecimentos dos profissionais de saúde do serviço de atendimento móvel de urgência

Diego Bonfada1
Jacileide Guimarães2
Francisco Arnoldo Nunes de Miranda3
Andiara Araújo Cunegundes de Brito4

1. Enfermeiro. Mestre em Enfermagem (PGENF-UFRN). Aluno de Doutorado em Saúde Coletiva (PPGSCol-UFRN). Professor Assistente IV do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Campus Caicó, Caicó-RN. Brasil. E-mail: hpaprocki@ig.com.br
2. Enfermeira. Doutora em Enfermagem (USP-SP). Professora da Escola de Enfermagem de Natal da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal-RN. Brasil. E-mail: jaciguim@yahoo.com.br
3. Enfermeiro. Doutor em Enfermagem (USP-SP). Professor do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal-RN. Brasil. E-mail: farnoldo@gmail.com
4. Enfermeira. Aluna de Mestrado em Saúde Coletiva (PPGSCol-UFRN), Natal-RN. Brasil. E-mail: andiara_acm@hotmail.com

Recebido em 25/06/2012
Reapresentado em 20/08/2012
Aprovado em 06/10/2012

RESUMO

Objetivou-se identificar os conhecimentos dos profissionais de saúde do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência de Natal sobre a Reforma Psiquiátrica brasileira. As informações foram coletadas por meio de entrevistas semiestruturadas realizadas com 24 profissionais de saúde lotados na instituição. As entrevistas foram transcritas e submetidas à técnica da análise temática, que revelou três categorias de análise: internação do sujeito em crise como demanda social e familiar; Reforma Psiquiátrica: legislação e realidade no SAMU-Natal; e Reforma Psiquiátrica brasileira como promotora de desospitalização. Os profissionais demonstraram compreensões deturpadas e reducionistas da Reforma Psiquiátrica brasileira e, em sua maioria, não deram credibilidade ao atual modelo de atenção à saúde mental pautado no tratamento psicossocial, remetendo suas falas à necessidade de internamento dos pacientes psiquiátricos. Nesse sentido, percebemos que o modelo hospitalocêntrico e excludente concebido pela psiquiatria clássica ainda permanece vivo no ideário desses profissionais como referência para a assistência às urgências psiquiátricas.

Palavras-chave: Saúde mental. Emergências. Psiquiatria. Serviços de saúde.

INTRODUÇÃO

A Reforma Psiquiátrica brasileira procurou desconstruir a lógica de exclusão manicomial em prol de novas estratégias de atendimento ao sujeito em sofrimento psíquico, ampliando a discussão acerca da psiquiatria e seu modelo de assistência, bem como sobre os preconceitos e o estigma estabelecido em torno do conceito de periculosidade do louco. Atualmente, esses conceitos estão evidenciados na política, na legislação e nos serviços de atenção à saúde mental no Brasil1.

Além disso, a partir da Reforma Psiquiátrica houve a criação de critérios estritos para regulamentação das internações, percebidas como último recurso terapêutico em saúde mental, o que acarretou em uma diminuição de leitos disponíveis nos hospitais psiquiátricos. Em contrapartida, foram criados serviços substitutivos que oferecem uma abordagem terapêutica fortemente atrelada à convivência comunitária, trabalhando a (re)inserção social dos sujeitos em sofrimento psíquico.

No contexto de desinstitucionalização, a crise psíquica e as intervenções em saúde mental ganham as ruas, como um novo espaço para as manifestações da loucura, sem que o estigma da periculosidade e o medo do louco tenham sido plenamente desconstruídos no âmbito da sociedade2. Nessas circunstâncias, a crise que deveria ser cuidada a partir dos princípios de vinculação e acolhimento, adquire o rótulo de urgência psiquiátrica, sendo apreendida sob o viés da necessidade de contenção e exclusão dos sujeitos em prol da manutenção da ordem social3. Essa prática contraria os princípios e diretrizes da Reforma Psiquiátrica no Brasil.

Na realidade do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), esta situação fica ainda mais grave, pois, historicamente, essa área da urgência e emergência nega ou não pratica aquilo de que a atenção à crise psíquica necessita, ou seja, empatia, diálogo, corresponsabilização, humanização, subjetividade e criatividade2. Isso pode trazer consequências danosas ao sujeito em sofrimento psíquico, uma vez que o desprendimento com a realidade vivenciada naquele momento não implica a ausência de sensações, afetos e angústias próprias da sua condição humana, por mais estranha que a situação possa demonstrar4.

A argumentação contesta apenas o uso indiscriminado de medidas extremas em situações de crises psíquicas nas quais os sujeitos se mostram, até certo ponto, cooperativos e/ou abertos para o diálogo, interação e adoção de medidas terapêuticas que visem à vivência positiva daquele momento traumático.

Essa zona de interseção entre os serviços de urgências e as Políticas Públicas em Saúde Mental circunscreve o objeto de análise do presente estudo. Trata-se de uma temática contempladora de contradições por agregar compreensões e conceitos de assistência que divergem em vários aspectos. De um lado a saúde mental, com todas as prerrogativas de inclusão, respeito às singularidades, valorização do aspecto subjetivo, promoção de diálogo, intensificação das relações humanas como elemento terapêutico e luta pela construção de cidadania e justiça social para os usuários dos serviços. Do outro, o SAMU, setor de urgência onde se destaca a objetividade, otimização do tempo, valorização de equipamentos sofisticados, visão mecanicista e biológica do ser, compreensão das ações através do binômio causa-efeito e extrema formalização técnica.

Possivelmente, essa seja uma das razões que justifique a escassez de estudos produzidos, além de que os desafios são imensos e os questionamentos são complexos no contexto da assistência do SAMU aos casos de crise psíquica. No entanto, ao mesmo tempo, esses aspectos são um estímulo para a produção de conhecimento científico que venha a contribuir para a consolidação de uma intervenção em crise mais humanizada e articulada com a Reforma Psiquiátrica brasileira, garantindo inserção social e o resgate da cidadania para os sujeitos em sofrimento psíquico atendidos pelo SAMU.

A análise da realidade apresentada nesse estudo contribui nas discussões que visam à consolidação de uma rede de atenção à saúde mental que se aproxime das necessidades dos sujeitos em sofrimento psíquico, desconstruindo estereótipos, dissolvendo estigmas e promovendo cidadania e justiça social. Pesquisas que se ocupam dessas questões justificam a contribuição social da ciência, pois se engajam na busca por qualidade de vida, percebida enquanto emblema histórico dos profissionais e serviços de atenção à saúde mental.

Portanto, de maneira específica, o objetivo deste estudo foi identificar os conhecimentos dos profissionais de saúde do SAMU de Natal/RN sobre a Reforma Psiquiátrica brasileira.


MÉTODO

O estudo que deu origem a este artigo é fruto de uma dissertação de mestrado construída no programa de pós-graduação em enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa, exploratória e do tipo estudo de caso5, realizada no SAMU do município de Natal-RN.

O estudo de caso consiste no estudo profundo e exaustivo de um ou mais objetos, de maneira que permita seu amplo e detalhado conhecimento, em que é levada em consideração, principalmente, a compreensão do assunto investigado nas suas particularidades individuais, organizacionais, sociais e políticos6-7. Isso se aplica ao objeto de investigação, que teve um recorte organizacional representado pela atuação do profissional de saúde do SAMU diante das urgências psiquiátricas, mas que não perdeu de vista o enfoque social e político presente na construção histórica do processo saúde doença mental e nas políticas de saúde voltadas para a demanda relacionada a esse âmbito, antes e após a Reforma Psiquiátrica brasileira.

A entrevista semiestruturada foi adotada como instrumento de coleta de dados da pesquisa por permitir a presença ativa do pesquisador guiando a entrevista, conforme a necessidade, sem perder a possibilidade de descrição, explicação e compreensão dos fenômenos8. Essas características são fundamentais para tornar maleável o instrumento de coleta, uma vez que a complexidade do fenômeno estudado pode levantar a necessidade de inserção de novos questionamentos ou aprofundamento de outras questões como condição fundamental para garantir a coleta de informações fidedignas.

Assim, a pesquisa buscou respostas e suscitou questões a partir do seguinte mote: quais os impactos trazidos pelas concepções dos profissionais de saúde do SAMU de Natal sobre a Reforma Psiquiátrica brasileira para o atendimento a uma urgência psiquiátrica?

Os critérios de inclusão dos participantes da pesquisa foram atuar como profissional de saúde lotado no SAMU-Natal e exercer atividades assistenciais junto aos usuários durante as ocorrências. Por sua vez, o critério de exclusão foi ter a atuação profissional voltada, exclusivamente, para questões administrativas ou que não envolva assistência direta às urgências psiquiátricas. A amostra foi construída a partir dos critérios de saturação, que consiste em interromper a coleta de informações quando, gradativamente, não há acréscimo significativo do conteúdo apreendido, ou seja, quando a continuidade da coleta de informações traz repetições daquilo que já foi identificado em momentos anteriores9.

Os sujeitos participantes da pesquisa foram: quatro médicos, seis enfermeiros e catorze técnicos de enfermagem. Quanto à distribuição de gêneros, a amostra foi composta por dezessete homens e sete mulheres. Foi identificado que os profissionais arrolados tinham um tempo médio de atuação no SAMU-Natal de 43,9 meses.

Este estudo seguiu as diretrizes da resolução 196/96 que norteia a realização de pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil. Para tanto, o projeto foi avaliado e aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa da UFRN, anteriormente ao processo de coleta e análise de informações.

Como estratégia de tratamento dos dados coletados, o método da análise temática simples demonstrou-se útil para o estudo, pois possibilitou o alcance de níveis mais profundos que ultrapassam o que foi simplesmente manifesto nas falas, atingindo a relação das categorias com as estruturas sociais do problema de pesquisa. Dessa forma, realizou-se a leitura flutuante de todas as entrevistas transcritas, para assimilar o conteúdo do material em sua relação com os pressupostos teóricos e objetivos do estudo.

Nesse processo, agruparam-se os discursos que continham palavras idênticas ou com proximidade semântica para construção de unidades de significado encontradas nas falas dos sujeitos10, instituindo, portanto, as categorias de análise que serão descritas. Para garantir o sigilo e o anonimato dos entrevistados, os sujeitos foram identificados através da letra maiúscula "E" seguida de um número do 1 ao 24, referente à quantidade de participantes da pesquisa.


RESULTADOS E DISCUSSÃO

No intuito de identificar os conhecimentos dos profissionais de saúde do SAMU-Natal sobre a Reforma Psiquiátrica brasileira, foram constituídas três categorias: internação do sujeito em crise como demanda social e familiar; Reforma Psiquiátrica: legislação e realidade no SAMU-Natal; e Reforma Psiquiátrica brasileira como promotora de desospitalização.

Internação do sujeito em crise como demanda social e familiar

Conforme ressaltado, durante o processo de desinstitucionalização propugnado pela Reforma Psiquiátrica, as pessoas com transtorno psiquiátrico, paulatinamente, passaram a conviver em sociedade sem que o preconceito e o estigma sobre a doença mental fossem desconstruídos. Com o doente mental fora do hospital, as crises psíquicas geravam incômodo à comunidade e à família; nesse sentido, a crise é vista como urgente quando suas manifestações começam a afetar a rotina da família, dos vizinhos ou responsáveis3. Os profissionais do SAMU-Natal percebem essa realidade durante o atendimento às urgências psiquiátricas.

A família não sabe lidar e, às vezes, não quer lidar com aquele caso, preferem dizer que internar é a melhor solução, jogar ele lá em um quarto fechado é a melhor solução (E11).

Muitas vezes, o paciente nem é tão agressivo, mas com os problemas do dia-a-dia dele em casa é que a família fica querendo se ver livre (E13).

Você chega muitas vezes, conversa, desconversa e você aborda a ida desse doente ao hospital quando realmente ele não precisa do hospital (E1).

Observa-se que a Reforma Psiquiátrica brasileira transcende a simples reorganização do modelo assistencial, não somente intervindo na dinâmica dos serviços e na formação dos profissionais de saúde, mas também avançando no sentido profundo e complexo do fenômeno da representação social da loucura11.

Porém, segundo os destaques nas falas, esse nível de transformação ainda está em andamento. Aliás, seria ingênuo acreditar que representações sociais, construídas em um processo social e histórico, como é o caso da loucura, iriam se (re)significar de forma imediata na sociedade. Esse tipo de mudança precisa de um trabalho contínuo visando à transformação conceitual e paradigmática que, historicamente, acontece em longo prazo.

Diante disso, não se pode deferir contra a família qualquer tipo de julgamento moral que queira colocar sob sua responsabilidade toda a incapacidade de compreender a doença mental e as situações de crise psíquica. Afinal, essa questão faz parte de uma realidade em que familiares e vizinhos de pacientes psiquiátricos tem sido convidados a se tornarem cuidadores oficiais, quando o papel seria de parceiros dos profissionais inseridos nos serviços de saúde12-13.

De fato, conclui-se que, diante do despreparo da sociedade para conviver com o paciente psiquiátrico e da grande responsabilidade assumida, devido, principalmente, à carência na cobertura oferecida pelos serviços substitutivos em saúde mental, a família pede socorro às emergências, em busca de apoio e alívio para o seu desgaste e o do parente em crise14. Isso é ratificado na fala abaixo:

A população não tem acesso aos serviços de psiquiatria. Então, os doentes entram em crise pra poder ter o acesso ao serviço de psiquiatria (E1).

Porém, alguns profissionais de saúde entrevistados não compreendem os elementos envolvidos nessa discussão e apontam os familiares dos pacientes em crise psíquica como incompreensivos e intolerantes com as manifestações da doença.

Parece que a família deixa de dar a medicação ao paciente, para o paciente se agitar e ir para o hospital, passar 30 a 40 dias. É Natal, é Ano Novo, tem a época também de ter muita ocorrência, que a gente percebe que nessas épocas festivas as ocorrências aumentam (E9).

As pessoas ficam com esses pacientes em casa, querem sair cur tir sua praia, ter seu momento de lazer, e inventam que o paciente está em sur to para ele ficar (E7).

A intolerância e a incompreensão são fatores que interferem diretamente na iniciativa de procurar um hospital psiquiátrico para internação do paciente. No entanto, não se pode colocar toda a "culpa" pelas manifestações de exclusão ou preconceito nas famílias nos profissionais ou em qualquer segmento em particular. Toda sociedade deve sentir-se responsável pela transformação no papel social do doente mental e pela discussão das estratégias de assistência à saúde dos sujeitos em sofrimento psíquico. Se a comunidade e as famílias não estão preparadas para lidar com a loucura enquanto fenômeno, torna-se necessário articular ações com a rede de atenção a saúde mental para dar conta dessa demanda.

Reforma Psiquiátrica: legislação e realidade no SAMU-Natal

As discussões iniciadas anteriormente instigam a análise de que a Reforma Psiquiátrica brasileira precisa continuar avançando, construindo novas estratégias e consolidando outros espaços de discussão, para que a doença mental ganhe um lugar digno na convivência em sociedade. Mais do que reinserir a loucura no meio social, é preciso avançar na conquista de dignidade e reconhecimento de direitos de pessoas com transtornos psiquiátricos em suas manifestações crônicas e agudas.

O caráter lento, processual e paulatino das mudanças promovidas pela Reforma Psiquiátrica brasileira é reconhecido por alguns profissionais do SAMU-Natal.

A cultura hospitalocêntrica ainda está sendo mudada, ainda está no caminho. Isso é uma mudança, e, como qualquer mudança, ela não acontece do dia para a noite. A saúde está passando por algumas mudanças. Mudanças muito paulatinas e muito gradativas! Você percebe por parte de alguns profissionais, de alguns médicos, principalmente os mais novos, devido à formação, essa mudança, mas na equipe como um todo isso é muito lento (E6).

A fala supracitada reconhece que a formação dos profissionais é um elemento importante para a transformação da realidade dos serviços de saúde. Nesse contexto, destaca-se que a implantação de políticas de saúde, teoricamente, avançadas em suas diretrizes e compreensões sociais representa um avanço no contexto da assistência em saúde pública. Entretanto, para que aconteça a efetivação dessas políticas nos microespaços dos serviços é preciso que os profissionais de saúde transformem suas concepções e práticas, o que envolve, necessariamente, a discussão sobre formação e educação permanente em saúde. Nesse sentido, estudar os Projetos Pedagógicos dos cursos na área de saúde, referente à construção de competências da saúde mental, é fundamental para a operacionalização da Reforma Psiquiátrica brasileira na rede pública de saúde.

Os entrevistados apontaram ainda que a Reforma Psiquiátrica não teve impactos significativos para a melhoria da assistência prestada pela rede de saúde mental no Brasil. Partem da compreensão da reforma como uma política pública de saúde que não trouxe muitas implicações para a prática nos serviços.

A Política Nacional de saúde mental é perfeita no papel, na prática não está funcionando, e para funcionar vai ser muito difícil (E10).

Na prática precisaria que as pessoas tivessem mais conhecimento dessa reforma, da política de atenção à saúde mental, que os estados e municípios pudessem ampliar essa questão de lugares para onde mandar esses pacientes (E12).

Para ser muito franca até agora na prática não vi essa reforma acontecer. Não acredito não nessa reforma (E7).

Se existe a percepção de que a reforma não está funcionando, pergunta-se: quem tem dever de fazê-la funcionar? Portanto, não é apenas questão de ver a reforma acontecer, é necessário fazer acontecer, ou seja, é preciso que todos se sintam responsáveis pelos desafios embutidos no processo de inserção social dos sujeitos em sofrimento psíquico.

Além da percepção da Reforma Psiquiátrica, como uma política pública de saúde restrita ao aspecto legislativo ou burocrático, identificam-se nas entrevistas que os profissionais demonstraram descrédito com relação à funcionalidade e resolubilidade dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) na sua função de serviço substitutivo em saúde mental.

Na maioria das vezes, isso não funciona, esse negócio de CAPS e tudo mais, porque o próprio paciente não vai, aí a família também não tem como levá-lo a força. Então, isso aí não tá dando muito resultado não. Talvez fosse o caso de fazer o próprio CAPS mesmo como uns hospitais psiquiátricos (E3).

Esse paciente, quando ele volta para ser tratado em CAPS ambulatorial, acaba negligenciando o próprio tratamento. Seria muito mais eficaz se ele fosse tratado em um hospital internado, seria muito mais eficaz, pois é um tratamento continuado (E20).

As críticas ao atual modelo de atenção pautado no tratamento comunitário e de reinserção social, as sugestões dadas que remetem à necessidade de internamento dos pacientes, a falta de conhecimento sobre o caráter dos serviços substitutivos, associadas ao descrédito com a implantação da Reforma Psiquiátrica, são indícios fortes de que o modelo hospitalocêntrico e excludente concebido pela psiquiatria clássica ainda permanece vivo no ideário desses profissionais como referência de qualidade da assistência em saúde mental.

O conflito entre a proposta e a prática, entre a intenção e os gestos, no que remete à reforma, contribui com a perpetuação de dúvidas e tensões constantes na prática do serviço pré-hospitalar de urgência. Nesse processo, a inserção social do sujeito em sofrimento psíquico e a estruturação efetiva da rede comunitária de assistência em saúde mental ganham o rótulo da inviabilidade e do descrédito, dado pelos profissionais de saúde do SAMU-Natal. Somente em uma das 24 entrevistas obteve-se uma fala que aponta para mudanças positivas consolidadas pela Reforma Psiquiátrica brasileira.

Mudou pra melhor, os atendimentos são bem menos. Os pacientes são tratados também no CAPS, já tem um tratamento diferenciado com psicólogos, terapias, porque muitas vezes a gente levava o paciente porque não tinha vagas nos hospitais. Melhorou muito (E4).

Isso demonstra a necessidade de os profissionais discutirem com profundidade todo o processo de construção da Reforma Psiquiátrica, seus princípios e diretrizes, as incoerências e horrores promovidos pelo modelo hospitalocêntrico de atenção e o estigma construído, historicamente, em torno da doença mental. Essa reflexão deve apontar os limites e as perspectivas trazidas pela reforma no contexto dos serviços de atenção à saúde mental no Brasil.

Reforma Psiquiátrica brasileira como promotora de desospitalização

Nas entrevistas realizadas com os profissionais, percebe-se que a Reforma Psiquiátrica é vista como a promotora da redução de leitos em hospitais psiquiátricos e que, devido a isso, os pacientes foram abandonados pelas instituições públicas após a alta hospitalar.

Parece que a reforma psiquiátrica, a ideia da reforma psiquiátrica é fechar leitos na psiquiatria. Então, você fechar o leito psiquiátrico e deixar o doente na rua? Isso não me parece uma coisa bem decidida (E1).

A ideologia de que a Reforma Psiquiátrica legitimaria o abandono terapêutico do sujeito em sofrimento psíquico foi criada e difundida pelos atores ligados à chamada "indústria da loucura", como uma estratégia para dificultar o fechamento dos manicômios. É preciso compreender que a desinstitucionalização é um dos aspectos centrais da proposta de Reforma Psiquiátrica e tem uma conotação muito mais ampla do que a simples redução de leitos em hospitais associada ao abandono terapêutico dos sujeitos acometidos por transtornos mentais crônicos ou graves. Caso fosse esta a intenção, as políticas de saúde mental preconizariam a desospitalização, e não a desinstitucionalização. Está última requer a alta do paciente associada à concomitante criação de serviços substitutivos para a formação de uma rede comunitária de assistência em saúde mental.

Além disso, o processo de desinstitucionalização busca desmontar o aparato manicomial de intervenção sobre a doença mental por meio da promoção do contato efetivo com o paciente. No entanto, a Reforma Psiquiátrica brasileira enquanto movimento social transcende as discussões sobre a desinstitucionalização, uma vez que se buscam, ainda, novas formas de abordar o problema, a redefinição de princípios, a transformação dos valores e a mudança do olhar direcionado às pessoas em situação de sofrimento psíquico. Nesse processo, impulsiona-se a criação de formas substitutivas adequadas para o cuidado no âmbito familiar, social e cultural dos sujeitos15.

É preciso ter a clareza de que a Reforma Psiquiátrica não defende a desospitalização irresponsável dos pacientes psiquiátricos. O entendimento de alguns setores de que existe igualdade semântica entre desinstitucionalização e desospitalização os inclui no rol dos segmentos conservadores e resistentes às perspectivas dos direitos de grupos minoritários, como o das pessoas com transtorno mental1.

A resistência dos profissionais de saúde do SAMU-Natal em aceitar a assistência comunitária aos pacientes psiquiátricos como serviços resolutivos ainda contribui para a consolidação da ideia de que os casos de urgências psiquiátricas aumentaram após a reforma.

Então a diminuição de leitos pode ter acarretado na diminuição do conforto para os familiares, e, com a diminuição, querendo ou não, aumenta o índice das ocorrências psiquiátricas do SAMU (E17).

Aumenta o número de pacientes que estão sendo acompanhados em casa e aumenta o número de pacientes que não usam a medicação. Aí acaba aumentando o número de ocorrências do paciente em surto (E15).

Tais argumentos podem sofrer a influência da pouca investigação, uma vez que o SAMU-Natal foi criado no ano de 2002, um ano depois da entrada em vigor da Lei 10.216, da Reforma Psiquiátrica brasileira. Nesse sentido, não existem dados ou outros elementos que possam subsidiar a comparação entre os índices de atendimento de urgências psiquiátricas no SAMU antes e após o processo de implantação da reforma na saúde mental.

Portanto, o SAMU-Natal precisa avançar na compreensão dos princípios e diretrizes da Reforma Psiquiátrica brasileira e, acima de tudo, romper com o conservadorismo em suas práticas e concepções sobre a doença mental. Para isso, seus profissionais precisam se abrir para novas discussões oriundas do campo da saúde mental e do modo contra hegemônico de pensar e de fazer a clínica de urgência. Tal postura pode contribuir para a incorporação de qualidade à assistência prestada durante as urgências psiquiátricas16. Afinal, esses profissionais devem ter a capacidade de intervir além da doença, do estigma, das condições de vida adversas e pensar em outros modos de assistir, mediante as situações específicas que se apresentam.


CONCLUSÃO

Este estudo revelou uma série de aspectos e interfaces que nos fazem pensar a respeito dos desafios que a Reforma Psiquiátrica brasileira e toda a sociedade ainda precisam enfrentar para concretizar os princípios e diretrizes da proposta. Ficou claro nas discussões que os caminhos para efetivar essa transformação não são homogêneos, assim como as práticas profissionais executadas para o atendimento às urgências psiquiátricas também divergem segundo as concepções dos profissionais inseridos na assistência.

A fala dos profissionais entrevistados revelou também que, diante das carências nos serviços substitutivos em saúde mental, as famílias dos pacientes psiquiátricos adotam o SAMU como uma alternativa para propiciar o internamento diante das crises psíquicas. Nesse contexto, os profissionais relatam que, muitas vezes, a internação acontece como reflexo do despreparo dos familiares em conviver com a doença ou como consequência da intolerância diante das necessidades especiais de um sujeito em sofrimento psíquico.

No entanto, não se pode impor toda essa responsabilidade às famílias, pois esta deve ser percebida como parceira no acompanhamento terapêutico comunitário em saúde mental, e não como cuidadora exclusiva de pacientes com transtorno psíquico grave. Os espaços deixados pelas carências da rede assistencial aumentam a responsabilidade de parentes que, na maioria das vezes, não têm condições para assumir sozinhos algumas facetas da terapêutica do paciente psiquiátrico.

A diferença entre a intenção e o gesto na efetivação da política de atenção a saúde mental em Natal, associada à falta de participação em discussões e de capacitação em saúde mental, fortalece a perpetuação de visões deturpadas da Reforma Psiquiátrica no grupo de profissionais de saúde do SAMU-Natal.

Juntamente com compreensões deturpadas e reducionistas acerca do movimento de Reforma Psiquiátrica, os profissionais de saúde entrevistados, em sua maioria, não dão credibilidade ao atual modelo de atenção à saúde mental pautado no tratamento comunitário da doença mental e remetem-se, em suas falas, à necessidade de internamento dos pacientes psiquiátricos para tratamento. Nesse sentido, percebe-se que o modelo hospitalocêntrico e excludente concebido pela psiquiatria clássica ainda permanece vivo no ideário desses profissionais, como referência de qualidade da assistência em saúde mental.

Portanto, o SAMU-Natal precisa avançar na compreensão da Reforma Psiquiátrica brasileira como movimento válido e justo que visa devolver a dignidade aos doentes mentais, enquanto grupo historicamente excluído em prol da efetivação do poder psiquiátrico. Necessita também romper com o conservadorismo em suas concepções sobre a realidade de atenção às urgências psiquiátricas. A abertura para novas reflexões oriundas do campo da saúde mental e do modo contra-hegemônico de pensar/fazer a clínica de urgência é condição para a transformação paradigmática, necessária no contexto do atendimento pré-hospitalar de urgência às crises dos sujeitos em sofrimento psíquico.

Espera-se que outros estudos possam dedicar-se a necessidades surgidas a partir da execução da presente pesquisa, quais sejam: compreender qual a percepção dos familiares e os usuários sobre o serviço de atenção em crise psíquica prestado pelo SAMU, analisar as bases norteadoras do processo de formação dos profissionais de saúde no que se refere às urgências psiquiátricas e evidenciar como os demais serviços de saúde da rede SUS compreendem a dinâmica do atendimento em crise psíquica.

Quando a sociedade e os serviços de saúde tiverem a capacidade de aproximar-se efetivamente do sujeito em crise, ter-se-ia um indicativo de que o sujeito em sofrimento psíquico avançou no seu processo de inserção social. O caminho é permeado por avanços e retrocessos, mas a colaboração teórica dos estudos e avaliações da Reforma Psiquiátrica e os esforços realizados pelos sujeitos envolvidos na transformação da saúde mental no Brasil apontam para a compreensão e acolhimento dos sujeitos, especialmente em momentos em que seu sofrimento se mostra acirrado.


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