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CAPES

Volume 16, Número 4, Out/Dez - 2012

PESQUISA

Desvelando o cuidado de enfermagem ao paciente transplantado hepático em uma unidade de terapia intensivaa

Maria Cristina Leite Araújo Borges1
Lucilane Maria Sales da Silva2
Maria Vilaní Cavalcante Guedes3
Joselany Áfio Caetano4

1. Mestre em Cuidados Clínicos em Enfermagem e Saúde pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Enfermeira do Hospital Universitário Walter Cantídio. Fortaleza-CE. Brasil. E-mail: mcristinaborges@hotmail.com.
2. Pós-doutora em Enfermagem. Docente do Programa de Pós-graduação em Cuidados Clínicos em Enfermagem e Saúde da UECE. Fortaleza-CE. Brasil. E-mail: lucilanemaria@yahoo.com.br.
3. Doutora em Enfermagem. Docente do Programa de Pós-graduação em Cuidados Clínicos em Enfermagem e Saúde da UECE. Fortaleza-CE. Brasil. E-mail: vilani.guedes@globo.com.
4 Doutora em Enfermagem. Docente dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza-CE. Brasil. E-mail: joselany@ufc.br

Recebido em 14/03/2012
Reapresentado em 14/07/2012
Aprovado em 20/07/2012

RESUMO

Pesquisa exploratória com abordagem qualitativa realizada em uma unidade de terapia intensiva cirúrgica de um hospital universitário de Fortaleza-CE, Brasil, com o objetivo de compreender a percepção da equipe de enfermagem sobre as ações de cuidado implementadas em uma UTI pós-operatória que atende a pacientes submetidos a transplante hepático. Participaram 20 profissionais de enfermagem. Utilizaram-se entrevistas semiestruturadas e observação sistemática. Os resultados apontaram que o cuidado de enfermagem ao transplantado hepático envolve aspectos técnicos e psicossociais amplos, necessitando de conhecimento e experiência. Observou-se que, muitas vezes, o cuidado de enfermagem foi aceito como resultante de uma prescrição médica, e não de uma avaliação individualizada do enfermeiro. Considera-se que a enfermagem precisa apropriar-se de instrumentos próprios da profissão para fortalecer o cuidado autônomo, individual e holístico.

Palavras-chave: Cuidados de enfermagem. Enfermagem. Transplante de fígado. Terapia intensiva.

INTRODUÇÃO

O transplante hepático é considerado uma das cirurgias mais complicadas da atualidade, pois nenhuma outra interfere em tantas funções do organismo. O procedimento complexo, com repercussões clínicas em vários sistemas orgânicos (cardiovascular, renal, metabólico, respiratório), necessita de uma boa infraestrutura hospitalar, além de uma equipe multiprofissional especialmente capacitada para sua realização1.

Atualmente, de acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil possui um dos maiores programas públicos de transplante do mundo e tem como diretrizes a gratuidade da doação, a beneficência com relação aos receptores e a não maleficência com relação aos doadores vivos2.

De 2007 até hoje, o Brasil tem apresentado uma taxa crescente em número de transplantes realizados, chegando próximo de atingir a meta estabelecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que é de 10 doadores efetivos por milhão de população (pmp). A taxa de efetivação, em 2010, chegou a 9,6 doadores pmp e, dentre os órgãos transplantados, os rins lideraram o ranking, correspondendo a 72, 3% do total de 6.402 transplantes de órgãos realizados naquele ano, seguidos de fígado (22,1%) e coração (2,6%). Três estados da Federação obtiveram destaque com um percentual acima de 10 transplantes pmp: São Paulo, Santa Catarina e Ceará3.

Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos e Tecidos, em 2010, foram realizados 1.413 transplantes hepáticos no Brasil, o que representou um aumento de 5,7 % em relação ao ano anterior. Dados atualizados demonstram que, no primeiro semestre de 2011, o Ceará foi o maior centro transplantador de fígado do Brasil, quando obteve uma taxa de 18,2 transplantes pmp, o que reafirma a importância que o estado ocupa, atualmente, no cenário nacional desse tipo de transplante4.

Na prática clínica de uma das autoras, percebeu-se que o receio da morte e as incertezas entre o diagnóstico médico e o tratamento cirúrgico fazem com que os pacientes que aguardam o transplante hepático convivam com mudanças significativas em suas vidas, não só físicas (por verem seus corpos serem modificados pelas complicações da doença), mas também emocionais e estruturais.

A mudança repentina no contexto de vida do doente hepático, após ser diagnosticada uma doença grave, traz uma série de implicações tanto na vida social quanto familiar, e a vivência da espera por um doador, representa uma carga física, emocional, social e econômica. Os pacientes passam a viver em função da espera do transplante e a rotina de vida resumese a fazer exames, frequentar consultas e aguardar a convocação para o procedimento5.

Após a realização da cirurgia, o paciente é encaminhado para uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Este período pós-operatório caracteriza-se por ser uma fase crítica que demanda cuidados necessários a qualquer paciente gravemente enfermo, porém com as peculiaridades das alterações multissistêmicas decorrentes das hepatopatias e da ausência de função hepática no período pós-operatório. As complicações pós-operatórias podem ser divididas em técnicas (sangramentos, disfunção primária do enxerto) e clínicas (imunológicas, pulmonares, cardiovasculares, renais, metabólicas, dentre outras)1.

Nesta complexa fase de pós-operatório, a equipe de enfermagem, sob a supervisão do enfermeiro, tem uma atuação imprescindível no cuidado aos pacientes transplantados hepáticos. O cuidado de enfermagem deve ser intensivo e envolver dedicação e vigilância, já que, assim como outras cirurgias de grande porte, há risco de repercussões hemodinâmicas que exigem conhecimento técnico-científico para atuar nos momentos de instabilidades. Os cuidados de enfermagem incluem: monitorização dos sinais vitais, balanço hídrico rigoroso, acompanhamento e coleta de exames laboratoriais, monitorização de sinais de sangramentos, troca de curativos, vigilância do padrão respiratório e cuidados relativos à imunossupressão, dentre outros.

Esta pesquisa busca contribuir para a compreensão do cuidado clínico de enfermagem ofertado a pacientes no período de pós-operatório de transplante hepático em uma UTI cirúrgica. O tema é relevante pela concepção de que o cuidado de enfermagem, nesse contexto, deve abranger, além dos aspectos técnicos necessários, a manutenção das funções vitais, os aspectos psicossociais envolvidos nos casos dos pacientes que convivem com o medo da morte ou do insucesso do enxerto e que necessitam se responsabilizar pelo próprio cuidado, por meio do uso de drogas imunossupressoras e adesão a um plano terapêutico pelo resto da vida.

Assim, tem-se como objetivo: Compreender a percepção da equipe de enfermagem sobre as ações de cuidado implementadas em uma UTI pós-operatória que atende a pacientes submetidos a transplante hepático.


METODOLOGIA

Trata-se de um estudo exploratório com abordagem qualitativa. No campo das pesquisas em enfermagem, a abordagem qualitativa contribui para o desenvolvimento científico da profissão já que, como ciência de cuidado, a enfermagem preocupa-se com as experiências dos seres humanos em questões relacionadas ao processo saúde/doença e as melhores formas de cuidar, tendo como foco principal o cuidado humano, processo interpessoal e interacional, que requer um conhecimento subjetivo, melhor revelado por esta abordagem. Dessa forma, os conhecimentos produzidos pelos estudos qualitativos permitem intervenções de enfermagem mais eficazes, baseadas nas necessidades reais dos pacientes e contextualizadas em situações específicas6.

O estudo foi realizado em uma UTI pós-operatória de um hospital público federal de ensino de Fortaleza-CE, Brasil. O hospital abriga em suas instalações o Centro de Transplante de Fígado do Ceará (CTFC), órgão ligado a Universidade, que é atualmente uma referência para os transplantes de fígado nas regiões Norte e Nordeste do país, e considerado um dos maiores centros transplantadores deste órgão no Brasil.

A dinâmica da UTI pós-operatória é complexa, pois envolve o cuidado de pacientes cirúrgicos distintos, desde aqueles que se recuperam de procedimentos bem simples, que ficam na unidade por um período de tempo menor que uma hora, até os pacientes que permanecem dias no setor, com todo o aparato tecnológico e humano de uma UTI.

Os sujeitos da pesquisa foram enfermeiros e técnicos de enfermagem lotados na UTI pós-operatória da instituição. Utilizaram-se como critérios de inclusão: atuar na unidade há pelo menos dois anos, estar presente durante o período de coleta de dados e ter disponibilidade para responder as entrevistas. Foi considerado o período de dois anos de atuação no setor como tempo suficiente para que os sujeitos detivessem conhecimentos sobre a dinâmica de trabalho na UTI e sobre o cuidado de enfermagem ofertado aos pacientes transplantados hepáticos. Utilizou-se como critério de exclusão: estar de licença médica no período de coleta dos dados.

A equipe de enfermagem da unidade era composta por onze enfermeiras, sendo uma coordenadora do setor e dez assistenciais, e por quinze técnicos de enfermagem, distribuídos a cada turno, de acordo com a escala de serviço. Aceitaram participar da pesquisa vinte sujeitos: nove enfermeiras e onze técnicos de enfermagem. A pesquisa atendeu aos preceitos éticos da pesquisa com seres humanos, conforme Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde7, tendo sido submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa, da Universidade Federal do Ceará, sob o protocolo número 013.02.11. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) após o esclarecimento dos aspectos éticos da pesquisa. As entrevistas foram gravadas em um dispositivo de mídia digital, após ser solicitada a permissão dos sujeitos. Para garantia do anonimato, as falas foram identificadas pelas letras E para os enfermeiros e TE para os técnicos de enfermagem, seguidos pelo número de ordem das entrevistas.

A coleta de dados ocorreu de março a julho de 2011 por meio das técnicas: entrevista semiestruturada e observação sistemática. O roteiro das entrevistas teve, inicialmente, questões fechadas para caracterização dos entrevistados em relação às variáveis: sexo, idade, tempo de formação, tempo de atuação na UTI, número de empregos e tipos de vínculos empregatícios, além de questões abertas que buscavam responder ao objetivo proposto por esta pesquisa.

O objetivo das observações foi obter dados fidedignos sobre o cuidado de enfermagem no ambiente pesquisado, que pudessem corroborar ou não o que foi dito durante as entrevistas. A observação foi realizada com registros em um diário de campo, seguindo um roteiro de observação, onde se priorizou a obtenção de situações importantes para responder ao objetivo proposto por esta pesquisa. As observações ocorreram no período diurno pela maior facilidade de acesso, já que este é considerado o período que reflete com maior fidedignidade a dinâmica do trabalho da enfermagem em suas diversas interlocuções.

A análise dos dados deu-se pela análise de conteúdo, que diz respeito às técnicas de pesquisa que permitem a replicação e validade de inferências de dados de um contexto, por meio de procedimentos científicos8. A análise de conteúdo ocorreu pela análise categorial9, buscando apreender os conteúdos representacionais relativos ao objeto de estudo. Foi constituída de três fases: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados.

Na pré-análise, iniciou-se o contato com as entrevistas transcritas por meio de leitura flutuante do material, com o objetivo de analisá-lo e conhecê-lo, dele retirando impressões, orientações, representações e expectativas. Na fase de exploração do material, foi constituído o corpus, ou seja, o conjunto de documentos que foi submetido aos procedimentos analíticos. O corpus, conforme recomenda a literatura, foi homogêneo, ou seja, obedeceu a critérios precisos. No caso das entrevistas, elas foram realizadas por técnicas semelhantes e pelo mesmo entrevistador9.

Na fase de tratamento dos resultados, elaborou-se a codificação do material através das escolhas das unidades de registro e de contexto. As unidades de registro consistem na unidade de base, ou seja, é a menor parte do conteúdo, cuja ocorrência é registrada de acordo com as categorias levantadas, visando à categorização e à contagem de frequência. Já a unidade de contexto pode ser considerada o "pano de fundo" que dá significado à unidade de análise, serve como unidade de compreensão para codificar a unidade de registro e corresponde ao segmento da mensagem. É a parte mais ampla do conteúdo analisado e indispensável para decodificação do material a ser analisado9. Nesta pesquisa, utilizou-se a frase como unidade de registro e, como unidade de contexto, o parágrafo. Após a codificação, foi realizado o agrupamento em categorias simbólicas, ou seja, a categorização.


RESULTADOS E DISCUSSÃO

Caracterização da amostra


A média de idade das enfermeiras participantes da pesquisa, em um total de nove, foi de 40,2 anos e, destas, sete eram casadas e com filhos. Todas possuíam especialização em enfermagem, duas eram mestres e três eram mestrandas. Quanto ao tempo de trabalho no setor, a média foi de 8,5 anos. No tocante ao vínculo empregatício, todas eram funcionárias públicas e oito delas trabalhavam em duas ou mais instituições hospitalares.

Em relação aos técnicos de enfermagem, em um total de onze, a média de idade foi de 37,8 anos, com tempo médio de trabalho na UTI de 9,1 anos. Oito eram casados e seis tinham filhos. Todos eram funcionários públicos e seis possuíam mais de um vínculo empregatício.

Apresentação da análise de conteúdo

O significado do cuidado de enfermagem ao paciente transplantado de fígado

Esta categoria foi assim denominada porque revela o significado atribuído pela equipe de enfermagem sobre o cuidado ao paciente no pós-operatório de transplante hepático.

O cuidado ao paciente transplantado hepático é um cuidado intensivo, exaustivo, estressante, porque você lida com uma vida; então, realmente a vida é algo superimportante... a gente sabe que, se de repente, cometer algum erro, pode causar danos e prejuízos, então, eu acho que este cuidado é de suma importância. Este cuidado requer muita responsabilidade, atenção, zelo, paciência... demanda muito tempo e muita competência técnica .... (E2)


O depoimento reflete a complexidade de cuidar do paciente transplantado de fígado, devido não só às complicações clínicas apresentadas nesta fase pós-operatória, mas também à necessidade de uma atenção especial aos aspectos emocionais que compreendam o ser humano de forma holística, demandando maior tempo de cuidado, além da competência técnica e do envolvimento humano.

No que se referem às complicações clínicas pósoperatórias, a literatura aponta a importância de o enfermeiro conhecer o estado geral do paciente no préoperatório, bem como as complicações cirúrgicas e anestésicas intraoperatórias, com o intuito de atuar na prevenção e detecção precoce dessas complicações. Assim, o enfermeiro deve possuir conhecimento científico e habilidade para lidar com estas potenciais intercorrências10.

O período de pós-operatório imediato exige atenção especial da equipe de enfermagem devido os riscos de instabilidade clínica desses pacientes. O balanço hídrico horário, o controle atento dos sinais vitais e níveis glicêmicos, cuidados com drenos e sondas, aspiração das vias aéreas, coleta de exames laboratoriais e manutenção do isolamento reverso são algumas das inúmeras atividades realizadas pela equipe de enfermagem. Por esta razão, o cuidado de enfermagem é considerado de alta complexidade técnica.

Além disso, é preciso estar atento aos aspectos emocionais do transplantado hepático. A trajetória de vida e o sofrimento de pacientes que esperam por um fígado, convivendo com o medo da morte e as incertezas quanto ao prognóstico e tratamento, exigem que a equipe esteja atenta também às questões psicossociais afetadas. E, especialmente nessa fase, quando o transplantado fica isolado da família, em um leito de UTI, a enfermagem tem destaque pela maior proximidade com o doente, promovendo cuidado, conforto e atenção.

Sabe-se que a enfermagem, enquanto relação interhumana, vivencia relações de adoecer e morrer, compartilhando sentimentos e atitudes que representam um posicionamento humanístico, baseado em um cuidado competente, humano e ético5. Assim, o conhecimento sobre hábitos, padrões e comportamentos de uma clientela, proporciona ao cuidador uma maior interação, o que contribuirá para propiciar um cuidado realmente significativo11.

Considera-se que os profissionais de saúde, ao cuidarem de pacientes em situação fragilizada e, algumas vezes, em estado psicológico regredido, devem ser dotados de um grau maior de sensibilidade com o objetivo de captar as necessidades subjetivas desses doentes12. Este compromisso de cuidar do transplantado também representa para a equipe a necessidade de atenção especial às questões específicas como as demandas emocionais e físicas peculiares, as quais não podem ser menosprezadas.

A literatura aponta que a aproximação dos profissionais de enfermagem com a realidade vivenciada pelo transplantado hepático poderá contribuir para uma melhor compreensão da experiência deste paciente, promovendo um cuidado individualizado, direcionado para as suas necessidades biopsicossociais, além de orientar mecanismos de suporte no enfrentamento dessa condição5. Assim, a enfermagem, pela sua proximidade com o paciente, deve investir em um cuidado integral e não meramente técnico.

Percepções da equipe de enfermagem sobre o paciente transplantado e o cuidado de enfermagem ofertado no pós-operatório

Nesta categoria, a equipe de enfermagem revela como percebe os pacientes em pós-operatório de transplante hepático e como o cuidado de enfermagem se realiza nessa fase crítica do tratamento:

Em especial, no transplante hepático, é um paciente que vem, muitas vezes, com comorbidades, às vezes vem precisando muito até de uma assistência psicológica, muitos deles são pacientes agitados, desorientados devido às encefalopatias... devido à perda do fígado, a problemas com alcoolismo ...(E2)

Os pacientes do transplante hepático caem no perfil destes pacientes mais complexos e que exigem muita prática, e conhecimento também é essencial.(TE9)

...por conta da sua imunossupressão, por conta da sua complexidade, é um usuário com quem a gente tem que ficar mais intensivamente...(E1)

É um paciente bem complexo, que necessita de uma assistência mais apurada... (E3)


Os depoimentos revelam que os pacientes transplantados de fígado são os mais graves na UTI, pois muitos apresentam, além das complicações clínicas relacionadas à doença de base, demandas emocionais, requerendo maior disponibilidade da equipe de enfermagem para um cuidado integral. O tempo de espera pelo transplante hepático e o estresse enfrentado pelo procedimento geram conflitos que podem interferir na saúde mental desses pacientes, pois eles convivem de perto com o medo da morte e o sofrimento associado às complicações da doença e às limitações em suas atividades diárias5.

Além disso, as falas apontam que é preciso desenvolver um cuidado com elevada complexidade técnica já que, devido às especificidades em relação à imunossupressão, esse paciente encontra-se em risco de complicações clínicas. Assim, esperase que o cuidado de enfermagem seja competente e holístico. Desta forma, os profissionais de enfermagem avaliam o trabalho realizado:

Eu não vou dizer que não é bom... é bom por conta de profissionais experientes e comprometidos... (E6)

Eu acho a assistência boa. Boa porque a maioria sai daqui, os que não saem, infelizmente, é porque já vem com alguma complicação, são raros os que complicam por falha na assistência de enfermagem.(E3)

Eu não acho que seja uma assistência muito boa, porque... por ser um hospital universitário, um hospital escola, eu acho que a gente deveria prestar uma assistência bem melhor aos pacientes... (E5)


Os depoentes fazem uma análise crítica do cuidado prestado. Para alguns, esse cuidado é considerado bom quando relacionado à dedicação, compromisso e capacitação dos profissionais, o que resulta em uma boa recuperação dos pacientes. Já para outros, este cuidado poderia ser melhor, já que, por tratar-se de um hospital-escola, esta qualidade deveria ser assegurada aos pacientes.

O que se espera dos hospitais de ensino é que eles possam reunir condições para atender as propostas de todos os segmentos incorporados à sua estrutura organizacional. Acredita-se que os enfermeiros lotados nesses hospitais sejam capazes de produzir modelos de práticas profissionais que possam ser reproduzidos em outros cenários; entretanto, esta parece ainda não ser uma realidade no nosso meio. Desta forma, faz-se necessária a implantação nestes hospitais de um modelo de assistência de enfermagem que proporcione aos alunos e profissionais uma assistência sistematizada e, aos pacientes, um cuidado qualificado13,14.

O cuidado sistematizado e qualificado pressupõe o compromisso ético entre o profissional e o paciente, em uma relação de respeito às individualidades, visando uma construção mútua. Na enfermagem, entende-se que o cuidado é sempre novo, já que ele se realiza em uma interação humana, entre, no mínimo, duas pessoas, em um processo interativo onde ocorre a conjunção de conhecimentos, experiência e sensibilidade11.

Entretanto, os entrevistados revelam que, por trabalharem há anos no mesmo serviço e pela experiência adquirida, o cuidado ao paciente transplantado hepático é simples e rotineiro:

De acordo com a dinâmica do serviço, da complexidade do nosso serviço, eles são os pacientes de maior complexidade, embora, com o passar dos anos, com a nossa prática, a gente ache que é tão simples cuidar deles...(TE4)

...eu não vejo tanta dificuldade.... é um paciente bom de se trabalhar, apesar de ser um transplante, que é uma cirurgia de grande porte, você desenrola as coisas... (E7)


O fato de o trabalho mostrar-se, algumas vezes, rotineiro, é uma preocupação para alguns trabalhadores que temem que o cuidado seja menosprezado ou subestimado:

... uma coisa que me chama a atenção é que a prescrição [médica] acaba sendo repetitiva e isso duplica a atenção da enfermagem, por medo de erros mesmo. A gente de repente já sabe de cor o que é a prescrição do primeiro, do segundo, do terceiro dia e o que mantém os pacientes quando complica, que retorna... o cuidado de tão repetitivo ... eu penso que o risco é esse, o medo de a gente subestimar e cometer um erro.(TE9)


A técnica de enfermagem menciona que, por trabalhar há anos no mesmo serviço e estar habituada com algumas "ações", teme por imperícias neste processo de cuidar, pois ele pode se tornar mecânico e repetitivo. Observa que, para ela, os cuidados de enfermagem mostram-se resultantes de uma prescrição médica e não de uma avaliação individualizada do enfermeiro. Conforme o relato, a prescrição médica é repetitiva, o que faz com que a equipe já saiba o que estará prescrito, o que pode levar a desatenção e erros por negligência.

A enfermagem vem, através dos tempos, buscando firmar o seu corpo de conhecimentos próprios, e, para isso, precisa refletir sobre o seu trabalho que deve ser ampliado para além do modelo biomédico hegemônico, para vislumbrar um cuidado integral, considerando os diferentes aspectos dos seres humanos. Especialmente nos campos de formação profissional, tais como nos hospitais escola, é preciso investir nessa formação ampla.

A adoção de uma concepção crítica-reflexiva pode facilitar a implementação de um cuidar consoante e congruente, com o rompimento do modelo hegemônico, centrado na doença, ou na prescrição médica, para se construir um pensar e um fazer que se sustentem como essência da enfermagem, já que esta se identifica com o cuidado profissional11,15.

Um dispositivo defendido pela comunidade científica de enfermagem que poderia ampliar o cuidado para além do biológico, agregando as questões psicossociais e espirituais, é a Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE). A SAE se constitui em ferramenta do processo gerencial e do cuidado, possibilitando planejamento, execução e avaliação da assistência prestada, proporcionando um cuidado individualizado13, 16,17. Ela é composta por fases: levantamento de dados, diagnóstico de enfermagem, plano assistencial, prescrição de enfermagem e evolução.

Entretanto, a unidade estudada não tem todas as fases do processo implementadas, apenas a fase de prescrição, diagnóstico e evolução. O fato é lamentável, já que se trata de um hospital-escola, campo de formação para os alunos dos cursos de graduação em enfermagem, que deveriam vivenciar, na prática, a SAE como instrumento de cuidado.

O relato de que o cuidado realizado na unidade é considerado "rotineiro" é um alerta para a equipe de enfermagem, que deve questionar seu papel no atendimento a pacientes com demandas de cuidados tão específicos que exigem, especialmente do enfermeiro, uma avaliação clínica apurada. Para tanto, autores afirmam que é necessário romper com esta ideologia da rotina e ter como meta um cuidado individualizado. Assim, afirmam, é preciso que haja uma reflexão na equipe sobre os valores éticos e morais que envolvem o processo de cuidar18.


CONCLUSÃO

O trabalho com pacientes em pós-operatório de transplante hepático, no hospital universitário em estudo, mostrou-se árduo, exigindo da equipe de enfermagem empenho em atender às demandas que se caracterizam não apenas pela gravidade clínica desses pacientes, mas também pela necessidade de atenção aos aspectos biopsicossociais frequentemente afetados.

O papel da enfermagem neste contexto de cuidado é inquestionável. A presença da equipe de enfermagem junto aos pacientes, realizando a maior parte dos cuidados em saúde, assegura a importância do trabalho desenvolvido. Entretanto, percebe-se que os enfermeiros têm tido dificuldades em utilizar instrumentos próprios da profissão, tal como a SAE.

Os depoimentos revelaram que o cuidado de enfermagem foi compreendido, antes de tudo, como derivado de uma prescrição médica, e não de uma avaliação individualizada do enfermeiro, fato preocupante, já que a enfermagem é uma profissão autônoma, que possui um corpo de conhecimentos próprios que embasam suas ações de cuidado.

Considera-se que, por tratar-se de um hospital universitário, esta constatação torna-se ainda mais preocupante, já que, neste local, deveriam ser produzidos modelos de cuidado baseados em conhecimentos científicos sólidos que pudessem ser reproduzidos em outros cenários, e é sabida a importância desses hospitais na formação acadêmica dos estudantes de saúde e, neste caso em especial, de enfermagem. Faz-se necessário que os enfermeiros reavaliem a sua prática clínica diária, de forma a modificar a realidade retratada nessa pesquisa, produzindo um cuidado de enfermagem realmente qualitativo, individualizado e holístico.


NOTA

a Recorte de dissertação: Gerência do cuidado em Unidade de Terapia Intensiva Pós-cirúrgica: enfoque no transplante hepático, apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico Cuidados em Saúde e Enfermagem da Universidade Estadual do Ceará-UECE, 2011


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