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CAPES

Volume 16, Número 4, Out/Dez - 2012

PESQUISA

Obstinação terapêutica em unidade de terapia intensiva: perspectiva de médicos e enfermeiros

Karla Cristiane Oliveira Silva1
Alberto Manuel Quintana2
Elisabeta Albertina Nietsche3

1. Enfermeira. Mestre em Enfermagem. Professor Assistente do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA) - Área da Saúde - Graduação e Pós-Graduação. Membro do Grupo Interdisciplinar de Pesquisas em Saúde (GIPES)/UNIFRA. Santa Maria - RS. Brasil. E-mail: k.karla@live.com.
2. Psicólogo. Doutor em Ciências Sociais - Antropologia Clínica. Professor Associado da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) - Graduação e Pós-Graduação - Mestrado em Enfermagem e Mestrado em Psicologia. Líder do Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Saúde (NEIS)/UFSM. Santa Maria-RS. Brasil. E-mail: albertom.quintana@gmail.com.
3. Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professor Associado da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) - Graduação em Enfermagem e Pós-Graduação (Mestrado) do Departamento de Enfermagem. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem e Saúde (GEPES)/UFSM. Santa Maria-RS. Brasil. E-mail: eanietsche@gmail.com.

Recebido em 16/04/2012
Reapresentado em 14/08/2012
Aprovado em 30/08/2012

RESUMO

O tema obstinação terapêutica ainda é insuficientemente estudado no Brasil, sobretudo pela enfermagem. Este estudo objetivou compreender as representações sociais de médicos e enfermeiros sobre o investimento excessivo no paciente terminal em Unidade de Terapia Intensiva Adulto. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratório-descritiva, fundamentada na Teoria das Representações Sociais. Os dados foram coletados por meio de entrevista focalizada e observação participante e interpretados pela análise de conteúdo. A seleção de cinco enfermeiros e oito médicos para concederem as entrevistas ocorreu por conveniência, a partir das escalas de serviço. Concluiu-se que estes profissionais constroem suas representações sociais sobre obstinação terapêutica partindo dos pedidos obstinados da família do paciente terminal para instituir medidas fúteis; das dificuldades de tomadas de decisão e da ausência de critérios quanto aos investimentos; e do receio das repercussões ético-legais em relação às decisões tomadas.

Palavras-chave: Futilidade médica. Morte. Enfermagem. Medicina. Unidade de Terapia Intensiva.

INTRODUÇÃO

No contexto ocidental, controlar a morte transformouse em finalidade da ciência, notadamente devido aos extraordinários avanços técnico-científicos observados nas últimas décadas. Em consequência, muitos doentes se encontram internados em hospitais, sobretudo em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), sem quaisquer perspectivas de melhora do seu sofrimento, dependentes de múltiplos equipamentos que não aliviam nem a sua dor física nem a psicológica, ou sequer trazem a certeza do aumento do tempo de sua existência. Tal fato pode levar os profissionais de saúde a estabelecerem a fase terminal como uma luta infatigável contra a morte.

O efeito é devastador para o doente, o qual sofre com o emprego da tecnologia, uma vez que esta, antes tida como instrumento de cura, agora se transformou em instrumento causador de sofrimento. Sem perspectivas de melhora, o doente é levado a padecer em decorrência da obstinação terapêutica, ou, como sinônimo, distanásia. Esta é considerada a morte vagarosa, ansiosa e sofrida, decorrente de tratamentos inúteis, ou fúteis, para manter o paciente vivo, por meio de medidas extraordinárias, geralmente caras, invasivas e tecnologicamente complexas1. Esta prática se traduz, na concepção de enfermeiros, como uma forma de morte cruel, com intensa dor e sofrimento, que, além de não beneficiar em aspecto algum, provoca a recusa à morte e o afastamento da vida2.

Por se tratar de um grave problema ético, especialmente nos dias atuais, nos quais o progresso tecnológico passou a interferir, decisivamente, na vida humana, compreender a obstinação terapêutica e seus porquês faz-se relevante, pois esta temática ainda não é claramente compreendida pelos profissionais de saúde. Talvez porque, dentre outros motivos, os estudiosos brasileiros ainda se mostram tímidos em discutir este tema, tornando-o de escassa produção, relacionada, mormente, a questões bioéticas e de produção essencialmente teórico-reflexiva. Todavia, a despeito disso, alguns estudos já demonstram que os enfermeiros estão começando a compreender e identificar a prática da obstinação terapêutica no local de trabalho2.

Nessa perspectiva, este estudo objetivou compreender as representações sociais de médicos e enfermeiros no que tange à obstinação terapêutica durante o processo de cuidar em uma Unidade de Terapia Intensiva Adulto. Seu arcabouço teórico-metodológico se fundamentou na Teoria das Representações Sociais, as quais se distinguem como um grupo de conceitos, suposições e elucidações decorrentes do dia a dia das comunicações interpessoais, equivalendo, na realidade, aos mitos e crenças das sociedades tradicionais. As representações sociais devem ser concebidas como um modo particular de compreender e compartilhar o que se sabe, estando presentes tanto no mundo (objetividade) quanto na mente (subjetividade)3.


METODOLOGIA

Este trabalho é um recorte da dissertação de Mestrado intitulada "Representações sociais de médicos e enfermeiros sobre distanásia em UTI", apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem - Mestrado da Universidade Federal de Santa Maria (PPGEnf/UFSM). Trata-se de uma investigação desenvolvida em uma UTI Adulto de um hospital-escola de grande porte, no Rio Grande do Sul. Configurou-se como uma pesquisa qualitativa, pois optou-se por utilizar um processo multimetodológico que investigou as coisas em seu setting natural, com vistas a dar sentido ou interpretar fenômenos nos termos das significações que as pessoas trouxeram para estes4.

Os dados foram coletados por meio de entrevista focalizada e observação participante.A primeira técnica, por ser livre e espontânea, foi eleita no intuito de possibilitar ao entrevistado discorrer sobre o tema do estudo, não obedecendo a um roteiro de questões preestabelecidas5. Assim sendo, as entrevistas seguiram os seguintes eixos norteadores: doente terminal e investimento excessivo; tomadas de decisão e situações de conflito entre investir ou não investir; legislação pertinente ao tema; registro das decisões.

Uma vez que os pesquisadores tomaram parte do universo do pesquisado, os dados foram coletados, também, por meio de observação participante, segundo os objetivos da investigação, na medida em que, por meio do contato direto com o local e com os sujeitos do estudo, passou-se a conhecer a ordem visível dos fatos e fenômenos existentes no universo do pesquisado4. Dessa forma, observaram-se os sujeitos em situações cotidianas e o modo como se comportaram perante elas, ao mesmo tempo em que se firmaram diálogos com os mesmos no intuito de desvendar suas interpretações sobre os acontecimentos notados em campo. O processo de observação ocorreu de maio a agosto de 2009, nos três turnos de trabalho da UTI. Os fatos observados relacionaram-se ao convívio dos profissionais com doentes terminais; discussões durante as tomadas de decisão sobre investir curativamente, ou não, no doente; e registro das decisões. Os dados foram sistematicamente registrados em diário de campo.

Foram selecionados para concederem as entrevistas cinco enfermeiros (Enf.) e oito médicos: seis plantonistas (Med.) e dois residentes (Res.). Como critérios de inclusão dos sujeitos elegeram-se: ser médico plantonista ou enfermeiro do quadro fixo de funcionários da UTI ou ser médico residente em estágio nesta unidade durante o período de coleta de dados. Excluíram-se da pesquisa: médicos assistentes dos pacientes internados na UTI e médicos ou enfermeiros em período de férias ou em afastamento decorrente qualquer natureza. A escolha dos sujeitos para concederem as entrevistas ocorreu por conveniência, por meio de datas pré-definidas pelos pesquisadores, nas quais o profissional que estivesse de plantão, ou em estágio de residência, era convidado a realizar a entrevista, no mesmo dia, ou em data e hora agendadas posteriormente, na sala de reuniões da UTI.

As entrevistas ocorreram até o momento em que se atingiu a saturação teórica dos dados. O fechamento amostral por saturação teórica tratou da suspensão da inclusão de novos participantes, quando os dados obtidos, na avaliação dos pesquisadores, passaram a apresentar certa redundância ou repetição, não sendo considerados relevantes para prosseguir com a coleta de dados6. O conteúdo das falas foi armazenado em gravador digital e transcrito na íntegra, para futura organização e análise.

O processo de análise de dados foi orientado pela análise de conteúdo, partindo-se de metodologias sistemáticas e objetivas para descrever os conteúdos das mensagens e das observações. Inicialmente, foi realizada a pré-análise dos dados registrados, por meio da leitura prévia das falas, originárias das entrevistas transcritas, e das anotações contidas no diário de campo, referentes aos eventos observados, no intuito de identificar as ideias centrais tanto das falas quanto dos fatos observados. A fim de dar prosseguimento à segunda etapa analítica, efetivou-se a exploração do material e tratamento dos resultados, por meio da elaboração de categorias, organizadas a partir da aproximação das ideias centrais provenientes das falas e das anotações do diário de campo. Em seguida, realizou-se o processo de inferência e a interpretação dos dados com discussão baseada em autores que estudam a presente temática7.

O projeto foi submetido à avaliação de um Comitê de Ética em Pesquisa, aprovado sob o registro CAAE nº 0031.0.243.000-09, de 14 de Abril de 2009. Os princípios éticos foram respeitados, protegendo-se os direitos dos participantes, com formalização por meio de consentimento livre e esclarecido, segundo o que preconiza a Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde.


RESULTADOS

Partindo-se das ideias centrais de médicos e enfermeiros sobre obstinação terapêutica em UTI, foram edificadas três categorias: os pedidos obstinados da família; as complexidades das tomadas de decisão; o receio das repercussões éticas e legais.

Os pedidos obstinados da família

Existe, com frequência, nas UTIs, um pedido constante direcionado aos profissionais: "por favor, faça tudo o que puder para salvar o meu pai". Esta frase, e suas variações, foram, habitualmente, ouvidas na UTI, visto que, por vezes, os doentes terminais permanecem nesta unidade devido aos pedidos incessantes dos seus familiares para que se apliquem todas as terapias possíveis na tentativa de que médicos e equipe de enfermagem adiem a morte do ente querido.

Às vezes, pacientes terminais são mantidos na UTI por problemas familiares. [...] quando eles vêm com isso, "eu quero que faça tudo o que é possível", a gente já sabe que eles não vão aceitar que a gente diga que não tem mais o que fazer (Med. 4).


Ao mesmo tempo, a equipe, por carência de contato prévio com o doente, não possui conhecimento acerca dos seus desejos em se tratando das decisões a serem tomadas no final de sua vida. Por consequência, é a família que fornece as informações necessárias para que essas decisões sejam definidas.

Nós devemos sempre nos valer da opinião da família, porque ela é a que mais conhece aquela pessoa para dizer se gostaria que fosse nela investido até o final, [...] mesmo que isso lhe trouxesse sofrimento (Enf. 1).


Entretanto, nem todos os familiares têm acesso ao prognóstico fidedigno acerca do seu familiar para prover auxílio no processo decisório, uma vez que, em determinadas ocasiões, expressões vagas, cuja interpretação pode ser ambígua, ou incerta, foram ditas tanto por médicos quanto por enfermeiros: "pode ser que o seu pai não melhore...", "estamos cuidando bem dele, mas a situação é muito complicada...". Este déficit comunicativo leva os familiares a criarem ou nutrirem esperanças não condizentes com a realidade prognóstica da doença. Por consequência, observou-se que existe um pacto, ainda que velado, entre o médico e a família do paciente: mesmo sem possuir uma informação clara sobre o prognóstico, a família exerce significante influência sobre as condutas para com o doente terminal, fato que determina, muitas vezes, a modificação da conduta médica.

Se a família é muito obstinada, a gente aceita a opinião e não retira o suporte. Mas a gente sabe que vai acabar prolongando o sofrimento do paciente (Med. 5).

Tem famílias que não aceitam de maneira nenhuma! [...] Então a gente acaba não comprando essa briga, e a família acaba, por falta de condição técnica e emocional, interferindo bastante nisso (Med. 6).


Percebeu-se que este fato angustia a equipe, por esta não saber lidar adequadamente com uma situação tão desafiadora. Observaram-se discussões acerca do sofrimento do paciente versus o sofrimento da família, mas não se comentava, entre os profissionais, sobre o sofrimento da própria equipe. Um enfermeiro referiu, durante as observações efetivadas, que "a gente fica de mãos atadas", uma vez que as medidas curativas inexistem quando se trata da doença terminal.

É mais fácil tratar um paciente [...] do que ter o stress de todo dia enfrentar um acompanhante que vem com esperança que tu não podes dar. Vem com o desejo de que tenham coisas novas a serem feitas e tu sabes que não tem nada a fazer mais (Res. 2).


Dessa forma, os familiares, por não aceitarem a morte de seu doente, pressionam os profissionais para investir, desnecessariamente, no processo de cura; estes últimos, por sua vez, optam pelo caminho mais fácil de comprazer o familiar ao invés de trabalhar com ele na compreensão e aceitação da condição do paciente.

As complexidades das tomadas de decisão

O grande leque de possibilidades terapêuticas oferecidas, nos dias atuais, em conjunto com as ambiguidades referentes às tomadas de decisões no fim da vida, geram intensos questionamentos sobre a obstinação terapêutica, pois os múltiplos e modernos tratamentos podem levar ao excesso de investimento, além do fato de não haver uma definição concisa sobre o que é o doente terminal, como afirmam estes médicos:

A grande dificuldade é decidir se o paciente é terminal! [...] Então, na dúvida, se investe! (Med. 3).

A gente tem muito medo de dar um basta, porque tem medo de não ter um diagnóstico certo. E se não for isso realmente? Se o paciente tiver alguma chance, eu vou causar a morte dele? (Res. 1).


Por outro ângulo, observou-se que a subjetividade dos profissionais que tomam as decisões torna as determinações inconstantes e dúbias, sobretudo do ponto de vista do médico que ainda se encontra em processo de formação.

Nunca tem consenso! Às vezes, um professor [médico mais experiente] fala uma coisa, às vezes, o outro fala outra coisa. [...] Depende muito de quem está de plantão, de quem está orientando no dia (Res. 2).


Esta assincronia diante das situações impostas na UTI é igualmente desconfortável para os enfermeiros, os quais (re)organizam parte de suas atividades diárias segundo as decisões da equipe médica, quando se trata do doente terminal, ainda que sejam contraditórias e dificultem a rotina de cuidados de enfermagem.

Você suspende tudo hoje, e vem outro e investe tudo de novo, e vem outro e tira tudo de novo. [...] Eu me vejo ridícula [...] me sinto mal (Enf. 5).

É uma coisa contraditória que tu não entendes. [...] acho que no momento em que se decidiu, por A mais B, que o paciente não é investível, não é investível e ponto (Enf. 3).


Por conseguinte, a rotina de cuidados de enfermagem dispensados ao paciente terminal internado em UTI pode permanecer na dependência das decisões dos médicos, ainda que estas sejam discordantes entre os próprios profissionais da área médica. As opiniões e condutas contrastantes podem, inclusive, vir a gerar sentimentos negativos nos enfermeiros.

O receio das repercussões éticas e legais

Os profissionais que integraram esta pesquisa consideram que a falta de transparência na legislação brasileira colabora para que os profissionais da saúde instituam terapias inúteis. No cenário desta investigação, uma das questões mais desafiadoras tratou sobre o que é correto ou ilícito no âmbito legal, o que provoca confusões de cunho prático no cotidiano dos profissionais intensivistas.

É extremamente difícil de estabelecer isso com clareza! Às vezes, não oferecer suporte fútil pode significar eutanásia passiva. [...] Suspender o antibiótico é uma situação muito complicada! [...] algum juiz pode entender isso como eutanásia passiva. A lei não é clara e as situações são muito nebulosas! (Med. 3).


Nota-se, com esta fala, que existe uma dificuldade de se determinar o que é uma conduta de limitação de esforço terapêutico e o que se configura em eutanásia passiva, quando se trata das indefinições das autoridades legais.

Sob o prisma do temor do processo judicial, durante a realização das observações e a partir do conteúdo das entrevistas, notou-se que os médicos e enfermeiros não registravam, por escrito, as informações sobre o diagnóstico de terminalidade do paciente.

[...] pela parte da enfermagem também não é escrito isso em lugar nenhum (Enf. 3).

Como eu vou escrever numa pasta "paciente não reanimável"? Eu não tenho como escrever isso na pasta! [...] o grande problema é que agora [...] qualquer um pode ter acesso ao prontuário. [...] O registro não existe. Isso aí é passado verbal (Med. 4).

[...] é passado só verbal (Enf. 5).


Nessa perspectiva, é o quesito legal, relacionado ao exercício da profissão, o maior temor no contexto da terminalidade de vida. Como resultado, são omitidas algumas informações nos prontuários, as quais são, tão somente, transmitidas de maneira verbal entre os membros da equipe multiprofissional da UTI.


DISCUSSÃO

O ambiente da terapia intensiva é um desafio constante na medida em que suscita reflexões acerca do sentido da vida, além de trazer à tona os significados agregados ao viver e ao morrer8. Nesse contexto, o paciente internado em UTI encontrase, comumente, sedoanalgesiado, fato que o priva das discussões sobre sua vida e morte. Por consequência, a família torna-se corresponsável por todas as decisões referentes à terapia a ser instituída. E diante da possibilidade de perda do doente, os profissionais sofrem significativa pressão de familiares para lançarem mão de todo o arsenal tecnológico no intuito de salvar a vida do ente querido2.

Paradoxalmente, evidencia-se que, embora a orientação formal seja de que, após a definição da terminalidade, a família deva ser informada e convidada a tomar parte das discussões acerca das condutas no fim de vida do doente, tal fato não ocorre em todas as UTIs8. Apesar de haver a orientação em divulgar, francamente, prognósticos terminais aos pacientes e seus familiares, os profissionais de saúde geralmente empregam, na prática, uma divulgação condicional9. Em outras palavras, nem todas as famílias têm acesso ao fidedigno prognóstico do caso, como pôde ser observado neste estudo. Assim sendo do familiares se sentem frustrados ao perderem o ente querido, quando sequer sabiam que ele estava morrendo. Tal problema decorre, muitas vezes, da ausência de comunicação equipefamília10. Estas imprecisões comunicativas levam à criação de falsas esperanças de cura e, portanto, à não aceitação da limitação de esforços terapêuticos e à prática de medidas de conforto e paliação, persistindo na exigência de terapêuticas adicionais infindáveis.

Por implicação disso, por meio desta pesquisa, afirmase que a família exerce importante influência sobre as condutas para com o doente terminal internado em UTI, fato que impõe intensos dilemas decisórios para a equipe. Como resultado, as condutas médicas e de enfermagem são extensa e extenuantemente discutidas e revistas, sobretudo em função dos pedidos obstinados da família pela busca do tratamento e cura do ente querido. Esta questão gera consideráveis angústias para a equipe, visto que não se sabe lidar, de forma clara, com situações tão complexas. Apesar de se discutir o sofrimento do paciente versus o sofrimento da família, não se comentava, abertamente, entre os profissionais, sobre o sofrimento da própria equipe, ainda que acontecesse a olhos vistos.

Com a influência incisiva dos familiares, os profissionais sentem-se coagidos a repensarem suas condutas, mesmo que discordem dos pedidos distanásicos. Muitas vezes, mesmo que em vão, tentam distintas estratégias de intervenção para com a família, no intuito de que esta compreenda a situação de terminalidade, e, a partir dessa compreensão, aceite e auxilie na decisão a ser tomada, devido à inexistência da cura da doença. Sob essa perspectiva, a participação dos familiares e a impossibilidade do próprio doente em participar do processo decisório contribuem, efetivamente, para que seja mantido o suporte de vida à plena, ainda que se trate de uma doença em fase terminal11.

No entanto, salienta-se que, nesse contexto, a opinião da família é de extrema importância no processo decisório em se tratando da conduta para com o doente terminal. Para estabelecer, com coerência ética e legal, os cuidados no final da vida, é imperativo o cumprimento de quatro etapas consecutivas: na primeira, a equipe multiprofissional busca, entre si, um consenso acerca do quadro irreversível do doente. Somente após essa decisão consensual, na segunda etapa, a comunicação é voltada para a família, por meio de diálogo franco e humano em local privado. Na terceira etapa, os planos de cuidados são elaborados juntamente com a família, culminando na definição de limitações de suporte de vida no intuito de estabelecer condutas que objetivem o conforto do paciente. Por fim, na quarta etapa, as metas traçadas pela família, em conjunto com a equipe multiprofissional, são efetivadas12.

Entretanto, o alto grau de tecnologia hospitalar tem acarretado decisões distanásicas, muitas vezes, além dos limites do próprio corpo humano. As possibilidades da tecnociência e o enorme anseio do homem em não morrer geram difíceis questões às equipes de saúde, as quais são afrontadas com o dilema conservação da vida versus cessação de tratamentos fúteis13.

Até quando investir sem agredir? Até quando prolongar a vida?14 Constatou-se nesta pesquisa que estas são intensas e profundas questões que influenciam a obstinação terapêutica em UTI. Nesse ponto, torna-se importante observar as tomadas de decisão por ângulos distintos: quem decidirá o objetivo do tratamento? Quando é possível se ter a certeza de que as chances de sobrevida são, verdadeiramente, nulas ou mínimas? Estas dúvidas causam grandes ansiedades para a equipe que decide a terapia a ser instituída nos casos de doença em fase terminal.

Nesse sentido, discute-se o fechamento do diagnóstico de terminalidade de vida, sobretudo pelas múltiplas imprecisões que surgem nesse contexto, pois não há uma padronização de conduta a ser praticada. Na América Latina, por exemplo, não existem protocolos assistenciais que indiquem normas concretas para o atendimento de pacientes incuráveis ou terminais12, tornando ainda mais complexa e desafiadora a assistência nesses casos.

A falta de um protocolo a ser seguido que permita uma maior isenção do profissional ao diagnosticar um paciente como fora de possibilidades de cura predispõe a que o diagnóstico de terminalidade seja visto como uma decisão pessoal subjetiva e não como uma ação profissional objetiva. Dessa forma, o sentimento de responsabilidade e, com efeito, a angústia causada pela decisão, por vezes, se tornam insustentáveis. Esse sentimento de ser o único responsável pela decisão é incrementado pela falta de coesão do trabalho em equipe. Esta ausência de sincronia diante de situações impostas na UTI é, do mesmo modo, percebida com desconforto pela equipe de enfermagem, uma vez que esta não participa ativamente dos processos decisórios15.

Se os médicos sofrem por terem que tomar decisões individuais, os enfermeiros, por sua vez, sofrem angústias ocasionadas pelas indefinições de conduta. Essas angústias, em consequência, podem ser somadas a outros sentimentos negativos, os quais podem ser desencadeados nos enfermeiros enquanto prestam a assistência ao paciente em processo de terminalidade. Além disso, o médico, nessas ocasiões, aparece como um profissional que lida com a morte de maneira impessoal, fria e objetiva, a partir de sentimentos aparentes de soberania que buscam controlar as circunstâncias que envolvem a vida e a morte, pois se considera o possuidor do poder de prolongar a vida16.

Sob outro ponto de vista, as ambiguidades da legislação brasileira quanto aos limites do esforço terapêutico contribuem de maneira significativa na forma como médicos e enfermeiros se posicionam diante da utilização, ou não, de medidas de suporte de vida. O Código de Ética de Enfermagem não aborda claramente este tema, todavia o novo Código de Ética Médica, em vigor desde 2010, no Capítulo V, Art. 41, veda a estes profissionais não somente abreviar a vida do paciente, mas também, nos casos confirmados de doença incurável e terminal, obriga o profissional a proporcionar ao doente tão somente os cuidados paliativos disponíveis a fim de não instituir ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas. Entretanto ressalta-se que esta decisão deve ser tomada em consonância com o desejo do doente ou do seu representante legal17. Contudo, no que se refere à Lei Brasileira, a sua falta de clareza impede que os doentes usufruam uma morte digna e colabora para que os profissionais instituam terapias inúteis, no intuito de não sofrerem aborrecimento legal, ético, moral, religioso ou pessoal. Assim sendo, na UTI surgem discussões acirradas sobre a licitude das ações, tamanho o grau de obscuridade presente nesta questão.

Um dos pontos mais complexos dessas discussões, detectados no presente estudo, remete às divergências do Código Penal Brasileiro. Discute-se se a limitação do tratamento ou a suspensão de recursos caracterizariam a eutanásia passiva, considerada homicídio pelas leis vigentes no Brasil17. E este impasse legal, como foi observado, provoca confusões de cunho prático no cotidiano dos profissionais intensivistas.

Deveria ser estabelecido que não se configure crime deixar de manter a vida por meios artificiais, se previamente atestada a morte como iminente e inevitável, e desde que houvesse consentimento do doente ou seu representante18. No entanto, persiste o medo do processo judicial. Como implicação deste fato, por meio das falas dos profissionais e das observações realizadas durante suas anotações, além de não haver registros, por escrito, sobre o prognóstico de terminalidade, como consequência, também não existem registros acerca de condutas terapêuticas restritivas. Conforme os depoimentos, o direito ao acesso ao prontuário, instituído juridicamente aos pacientes e seus familiares, constitui um importante fator que justifica esta ausência de anotações.

Nessa perspectiva, os profissionais mantêm receios no que se refere às repercussões éticas e/ou legais em relação aos seus registros. Pode-se considerar, inclusive, que este é o maior temor no contexto da terminalidade de vida. É exatamente o medo da cassação do diploma e do registro profissional, e, por conseguinte, a impossibilidade de exercer a profissão se, porventura, o profissional for processado devido a uma conduta que a família do doente discorde13. Inexistem anotações claras sobre o diagnóstico de terminalidade de vida e sobre Ordens de Não Ressuscitar (ONR) nos prontuários. Ao contrário, há, exclusivamente, o diagnóstico das patologias e comorbidades clínicas, além dos procedimentos realizados habitualmente na unidade.


CONCLUSÃO

As representações sociais de médicos e enfermeiros sobre obstinação terapêutica em UTI transcorrem de diversos fatores, os quais formam as ideias centrais dessas representações no cotidiano laboral, traduzindo a maneira pela qual os referidos profissionais se percebem no cotidiano das suas relações no processo de cuidado do doente terminal em uma UTI.

Por não haver um parâmetro que estabeleça, de maneira nítida, os procedimentos a serem empregados no fim da vida, dilemas e divergências de conduta existem, inevitavelmente. Médicos e enfermeiros vivenciam intensas dificuldades durante as tomadas de decisão entre investir ou não no doente terminal, pois optar pela continuidade do tratamento, ou por sua recusa, ocasiona grandes angústias, sobretudo no médico, o qual tem a palavra final no processo decisório.

Ademais, a insistência dos familiares em solicitar medidas extraordinárias incessantes na tentativa de "curar a morte" do ente querido gera um enorme receio entre os profissionais em relação às repercussões éticas e legais acerca da licitude de uma restrição terapêutica ou retirada de terapia fútil. A obstinação terapêutica decorre do medo de um possível processo ético ou legal, visto que não existem leis jurídicas claras, no Brasil, sobre o assunto. Dessa forma, a interpretação do Código Penal é ambígua com relação às questões concernentes ao doente terminal, tornando desafiador o cuidado no âmbito da terminalidade da vida.

Sugere-se, por conseguinte, que as condutas referentes à finitude humana sejam repensadas no sentido de se evitar a obstinação terapêutica e amenizar as dificuldades para lidar cotidianamente com a morte e o processo de morrer, no intuito de que enfermeiros e médicos prestem um cuidado verdadeiramente humanizado àquele que está morrendo.


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