INTRODUÇÃO
No contexto internacional, na década de 1980, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e os Escritórios Regionais da Europa e Américas da Organização Mundial da Saúde (OMS) promoveram uma ampla discussão para que um consenso fosse atingido em relação às tecnologias apropriadas para assistir ao pré-natal, ao parto e ao nascimento com base em pesquisa cientifica e nos direitos sexuais e reprodutivos1.
No início dos anos 1990, no município do Rio de Janeiro, o processo de municipalização das maternidades federais tomou força e, concomitantemente, o movimento de humanização do parto e nascimento atingiu expressão nacional. Como reflexo das lutas desse movimento que ainda hoje agrega feministas, profissionais de saúde e organizações não governamentais, observamos mudanças nas ações políticas dirigidas para o campo obstétrico brasileiro no sentido de incentivar o parto normal e para estimular a implantação de práticas menos intervencionistas. Tais ações podem ser consideradas contrárias ao modelo medicalizado de assistência ao parto, já consolidado em nossa sociedade desde meados do século XX.
Como consequência dessas ações políticas (municipalização e humanização), em junho de 1994, houve a inauguração da Maternidade Leila Diniz, instituição pertencente à Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. A criação dessa maternidade representou o início da implantação de um cuidado diferenciado à gestante e à parturiente e o início da luta das enfermeiras para que as práticas obstétricas humanizadas e menos intervencionistas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (ONU) fossem desenvolvidas2.
Em 29 de setembro de 1997, a Comissão Especial de Saúde da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro promoveu a 1ª Conferência Intermunicipal de Proteção ao Parto e ao Nascimento. Neste evento foram discutidas questões como a baixa qualidade do pré-natal, as altas taxas de cesarianas, a falta de investimento na estrutura das maternidades, a desinformação da população. Após os debates realizados nesta Conferência, foi assinado o termo de compromisso entre os secretários municipais de saúde do estado do Rio de Janeiro para que, em um prazo de seis meses, eles garantissem que as medidas preconizadas para humanização da assistência ao parto e ao nascimento fossem implantadas3. Salientamos que as medidas preconizadas estavam baseadas no documento da Organização Mundial da Saúde intitulado: "Assistência ao parto normal: um guia prático"4.
Para cumprir o compromisso assumido, as Instituições municipalizadas do estado do Rio de Janeiro, receberam investimentos em reformas, equipamentos e recursos humanos, e, no ano de 1998, houve o lançamento do Projeto de Implantação da Assistência de Enfermagem à Gestante e à Parturiente na área programática 3.3 da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-RJ). Esta área programática incluía os bairros de Irajá, Madureira, Pavuna e Anchieta. O Projeto previa a inserção de enfermeiras nos serviços de prénatal e na assistência ao parto nas maternidades Alexander Fleming e Herculano Pinheiro5.
Diante do exposto, este estudo tem por objetivo analisar o processo de inserção das enfermeiras na assistência ao parto e as lutas dessas profissionais para implantar as práticas obstétricas humanizadas na Maternidade Alexander Fleming.
Esta pesquisa aprofunda o conhecimento já produzido sobre a história da enfermagem obstétrica do Rio de Janeiro. Deste modo, contribui para a construção das histórias da enfermagem e das mulheres que participam do campo obstétrico brasileiro. Esta interpretação do passado poderá subsidiar os gestores públicos e as enfermeiras para suas ações no futuro, tanto no nível de elaboração das políticas públicas para a saúde da mulher quanto na sua implantação.
Na atualidade, este estudo histórico justifica-se pela sua necessidade para a criação de uma memória coletiva. Esta por sua vez, possibilita a tomada de consciência daquilo que realmente somos, o que ajudará as enfermeiras obstétricas na luta pela sua distinção no campo obstétrico.
METODOLOGIA E CONCEITOS TEÓRICOS
Estudo histórico-social, vinculado à dissertação de mestrado intitulada "A atualização do
habitus da enfermeira obstétrica no processo de implantação do modelo humanizado na maternidade Alexander Fleming (1998-2004)", a qual foi defendida no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Enfermagem da UERJ, em 2011.
A demarcação inicial deste estudo foi 1998, pois foi neste ano que teve início a inserção da enfermeira obstétrica na Maternidade Alexander Fleming por meio do Projeto de Implantação da Assistência de Enfermagem à Gestante e a Parturiente, na Área Programática 3.3.
O ano de 2004 foi escolhido como demarcação final devido à inauguração da Casa de Parto David Capistrano Filho, que teve a Maternidade Alexandre Fleming como referência hospitalar. Entendemos que o fato de esta maternidade ser considerada referência para os encaminhamentos da Casa de Parto David Capistrano Filho se deu não somente pela distância curta entre as instituições, mas também pela implantação e desenvolvimento do Projeto de Implantação da Assistência de Enfermagem à Gestante e à Parturiente.
As fontes primárias selecionadas foram: diários oficiais da época, memorandos, decretos, convênios, resoluções, protocolos, o material didático utilizado na capacitação do Projeto de Implantação da Assistência de Enfermagem à Gestante e à Parturiente na área programática 3.3 e depoimentos orais da Coordenadora do Projeto, a professora da Faculdade de Enfermagem da UERJ Maysa Luduvice Gomes, da co-coordenadora do Projeto, a enfermeira Jane Baptista Quitete, e da chefe do centro obstétrico da Maternidade Alexander Fleming, a enfermeira Silma de Fátima da Silva Araújo Nagipe. Também foram utilizados os depoimentos das enfermeiras obstétricas plantonistas da Maternidade Alexander Fleming que participaram do Projeto no período estudado: Inaiá de Santana Mattos;; Célia Regina Boaventura Alves; Rosana Figueiredo Gomes Pires e do enfermeiro obstétrico Almir Ferreira da Silva.
Os depoimentos dos sujeitos foram obtidos mediante entrevistas semiestruturadas que duraram em média cinquenta minutos e que foram agendadas de acordo com a disponibilidade de cada sujeito. No sentido de orientar a entrevista elaboramos um roteiro contendo os seguintes tópicos norteadores correlacionados com os objetivos da pesquisa: inserção das enfermeiras no processo de capacitação da Maternidade Alexander Fleming e estratégias de luta para implantação de práticas humanizadas na assistência ao parto.
A história oral temática foi utilizada com objetivo de reunir discursos dos sujeitos que foram testemunhas do seu tempo, ambiente e da sua realidade social, fazendo com que eles descressem sua história. Utilizar essa metodologia nos estudos de enfermagem permite a flexibilidade da articulação das fontes orais com fontes de outras naturezas6.
Para a análise dos depoimentos retornamos aos objetivos da pesquisa, o que possibilitou uma melhor delimitação e organização do material selecionado. Para análise e interpretação dos dados encontrados fizemos a ordenação, classificação e analise final,7 triangulando os achados entre as fontes primárias e com o referencial teórico.
Para sustentar este estudo, utilizamos os conceitos teóricos de campo, capital,
habitus, poder simbólico, luta simbólica e violência simbólica, desenvolvidos por Pierre Bourdieu em sua Teoria de Mundo Social.
Deste modo, neste estudo, o campo obstétrico foi entendido como um espaço onde seus agentes constroem e mantém relações de forças que dependem de suas posições sociais. A posição, por vez, depende do volume de capital que os agentes dispõem. Quanto mais capital tem um agente, mas poder simbólico ele exerce no mundo social. Esse poder simbólico é esse poder invisível, o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que exercem. Assim, luta simbólica é a disputa entre os agentes sociais (classes e frações de classes), sem agressão ou contato físico, para imporem a definição de mundo social, conforme seus interesses, além de imporem o campo das tomadas de posições ideológicas8.
Já a noção de
habitus indica um conhecimento adquirido ou mesmo a disposição incorporada, quase postural resultante de um processo de aprendizado, produto do contato com diversas estruturas sociais8.
Ressalta-se que a pesquisa foi norteada pelos princípios éticos e legais regidos pela resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) do Ministério da Saúde, que dispõe sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Foi solicitada a autorização para a identificação de seus nomes na pesquisa por se tratar de um estudo histórico, bem como o uso do nome da instituição pelo envio do termo ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro (SMSDC) que forneceu parecer favorável por meio do protocolo nº 188/09 em 09/11/2009.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Evidenciamos que a implantação da assistência humanizada ao parto na maternidade Alexander Fleming ocorreu durante a execução do Projeto Implantação da Assistência de Enfermagem à Gestante e à Parturiente, elaborado pela SMSRJ. Para materializar este projeto, foram utilizadas estratégias tanto pelo grupo de gerentes da Secretária Municipal de Saúde do Rio de Janeiro como pelas enfermeiras selecionadas para atuar na assistência ao parto com o objetivo de desenvolverem as práticas humanizadas.
O processo de inserção das enfermeiras na assistência ao parto da Maternidade Alexander Fleming
O campo de lutas é o resultado das relações de forças entre os agentes e instituições engajadas na luta ou, se preferirmos, da distribuição do capital específico que, acumulado no curso das lutas anteriores, orienta as estratégias posteriores8.
Neste sentido, para inserir as enfermeiras na assistência ao parto da Maternidade Alexander Fleming, os gerentes da SMS-RJ utilizaram o capital adquirido por meio de lutas passadas para a ocupação do campo obstétrico, como na experiência de implantação de um modelo diferenciado na Maternidade Leila Diniz, em 1994 2.
A equipe responsável por viabilizar o Projeto Implantação da Assistência de Enfermagem à Gestante e à Parturiente na área programática 3.3 foi composta pelos mesmos gerentes municipais que atuaram, em 1994, na criação da maternidade Leila Diniz. Esses agentes do nível central (da SMS-RJ) estavam na vanguarda do movimento de humanização no Rio de Janeiro e consideraram que a inserção da enfermeira obstétrica na assistência pré-natal e ao parto seria a melhor estratégia de mudança do modelo vigente.
A ideia de inserir enfermeiras obstétricas nos serviços de pré-natal e na assistência ao parto da área programática 3.3 foi divulgada em encontros com os representantes das Unidades de Saúde Hospitalares e de atenção básica:
Houve várias reuniões convocadas pela superintendência da área da mulher da SMS, reunindo chefes de obstetrícia, diretores de Posto de Assistência Médica (PAM), diretoras de maternidade. Os gerentes dessas áreas foram chamados e foi colocado e [...] que este projeto estava sendo implantado, e por um outro lado, tinha um apelo de colaboração (Coordenadora do Projeto Implantação da Assistência de Enfermagem à Parturiente).
Após divulgação da ideia e da formalização de alianças com os gerentes locais das unidades envolvidas, a inserção das enfermeiras na assistência ao parto da Maternidade Alexander Fleming se deu em três momentos, o primeiro foi o remanejamento e a seleção de para compor a equipe, o segundo foi o de capacitação e o terceiro foi o de inserção das enfermeiras nas unidades de saúde.
Durante anos, a SMS-RJ não reconheceu as enfermeiras obstétricas como especialistas da enfermagem, e, por isso mesmo, existiam poucas profissionais com essa especialidade na própria rede para atuar. Assim, primeiramente houve o remanejamento de enfermeiras obstétricas que estavam atuando em outras especialidades na própria Maternidade Alexander Fleming:
Fui para a Maternidade Alexander Fleming, eu fiquei um tempo no Centro Obstétrico como enfermeiro líder apesar de eu ser formado em Enfermagem Obstétrica com Habilitação. Passado um pequeno período de tempo, eu fui mandado para a UTI Neonatal, e isso foi muito ruim para mim [...] e em 98,[ ...] ia ser implantada a atuação da Enfermagem Obstétrica, e que eles estavam aguardando indicações de nomes [...]Eu falei [...], eu vou me inscrever e vou (Enf Obst. Almir Ferreira da Silva).
Logo após, a partir de 1998, os gerentes passaram a selecionar as enfermeiras provenientes do concurso público do ano de 1998, mesmo que elas não fossem portadoras do certificado de enfermeiras obstétricas, conforme determinava a portaria ministerial nº 163 de 22 de setembro de 1998 que incluía na tabela de procedimentos do SUS o parto normal sem distocia realizado por enfermeiro obstetra:
Eu fiz o concurso para o Município, e fui chamada em 98, acho que fui chamada na hora certa, porque foi a hora que a Secretaria estava querendo instituir as enfermeiras obstétricas na área programática 3.3, que incluía a Fleming. Foi aí que eu comecei a me interessar! Pois chamaram as enfermeiras, nós fomos uma parte pra Fleming, outra parte para Herculano Pinheiro (Enfª Obst. Célia Regina Boaventura Alves).
Durante o processo de implantação do Projeto de Assistência de Enfermagem à Gestante e à Parturiente, um dos aspectos que demonstraram a luta e o poder dos gestores da SMS-RJ para colocar em prática um modo diferenciado de partejar foi a garantia da entrada no campo de profissionais dispostos a desenvolver as ações propostas, ou seja, os gestores fizeram valer, crer e reconhecer a importância da presença de enfermeiras por meio dos remanejamentos e das lotações.
Desse modo, com os remanejamentos e as lotações de enfermeiras concursadas foi estabelecido um rito de instituição, em que a entrada dessas profissionais na Maternidade Alexander Fleming visava consagrar uma nova ordem no campo. O rito institucional é um ato de comunicação, quer no sentido de sua expressão, quer na notificação da autoridade. Ademais, o rito tem o efeito de consignação estatutária, porque institui a nova ordem estabelecida, evidenciando o poder das autoridades. Ele tende a consagrar ou legitimar uma ordem estabelecida, cuja eficácia simbólica reside no poder simbólico que a ação sobre o real tem na construção das representações da realidade9.
Na época, o processo de remanejamento e seleção das enfermeiras para atuarem especificamente na assistência ao parto da Maternidade Alexander Fleming foi um momento em que a identidade social da enfermeira obstétrica foi reconhecida, pois deu a oportunidade para que a enfermeira participasse da implantação de uma nova proposta e se tornasse membro de um grupo de especialista em enfermagem obstétrica, ou seja, um agente nomeado e distinto daqueles que não passaram por este rito.
No entanto, isso não acontece sem consequências. Ao ser instituído, são exigidas determinadas disposições e características relativas à posição a ser assumida pelo agente10. Por isso mesmo, as enfermeiras, mesmo não sendo especialistas na área, deveriam desejar e gostar da obstetrícia:
Olha! Eu sempre gostei de obstetrícia, mas acabei fazendo médico-cirúrgico..., logo depois, apareceu a chance de fazer residência... onde tive mais perto como é atuar na obstetrícia, apesar de ser uma atuação médica, mas pelo menos eu estava ali olhando, via os partos, muito raramente tinha um parto normal, mas a maioria, a grande parte era cesárea! (Enfª Obst Célia Regina Boaventura Alves).
Cada grupo social, em função das condições objetivas que caracterizam sua posição na estrutura social constitui um sistema específico de disposições. O fato de os agentes desejarem e gostarem da área obstétrica implicou, de certa maneira, a sua escolha. Esta escolha seguiu a orientação de suas disposições internas para desenvolver determinadas práticas no campo obstétrico8.
Contudo, podemos dizer também que, com a inserção das enfermeiras na assistência ao parto da Maternidade Alexander Fleming, teve início o processo de atualização do
habitus profissional das enfermeiras que participaram, pois o
habitus se constrói a partir da inserção do agente com disposições necessárias para se manter nos jogos e nas lutas dos campos sociais. Por sua vez, as lutas geram mudanças das posições no campo e transformam o volume e a estrutura de capitais dos agentes11.
Assim, após a composição da equipe de enfermeiras, teve início a capacitação dessas profissionais. Para a realização desta capacitação foi firmada uma parceria entre a Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Gerência do Programa de Saúde da Mulher por meio de um Convênio de Cooperação Técnica e Científica de número 438 de 1999.
Este convênio visava a formação de profissionais especializados na área de Enfermagem Obstétrica para atuarem nas unidades da SMS-RJ. Investir na humanização do cuidado requer concentrar esforços do campo do ensino e da formação profissional, visto a importância que a temática ocupa nas esferas da política pública, economia, cultura e ética 12 . Assim nesta parceria, a professora e enfermeira obstétrica Maysa Luduvice Gomes foi escolhida para coordenar as atividades de capacitação teórica e prática das enfermeiras selecionadas para atuação nas salas de parto das Maternidades Alexandre Fleming, Herculano Pinheiro e nos serviços de pré-natal da área programática 3.3:
Havia uma necessidade de fazer uma mudança de comportamento, de postura de cada uma daquelas enfermeiras e enfermeiros. Eu lembro bem numa discussão que eu falei... Não é possível passar pelo treinamento e terminá-lo sendo a mesma pessoa. Tendo as mesmas características profissionais. Era necessário fazer uma mudança que fosse marcante, e não dá pra mudar fora, se a gente não muda dentro. (Coordenadora do Projeto Implantação da Assistência de Enfermagem à Gestante e à Parturiente).
Deste modo, a capacitação teve início em agosto de 1998, e foi, do ponto de vista pedagógico, dividida em dois momentos, um momento de vivências para sensibilização e o outro teórico-prático:
Uma parte do treinamento foi teórico-prático, mas antes foi uma parte de vivências, tipo oficinas. Então o treinamento foi mesclado vindo de uma proposta... que foi a de implantação do PAISM de uma mudança político-estrutural (Coordenadora do Projeto Implantação da Assistência de Enfermagem à Gestante e à Parturiente).
As oficinas de sensibilização tiveram as coordenadas dadas pelo Espaço Mulher da SMS-RJ, que agregou ao grupo algumas colaboradoras do movimento de mulheres. Esta fase da capacitação foi dividida em sete encontros com o grupo de enfermeiras selecionadas.
Nestes encontros as participantes foram estimuladas a trocarem experiências com o objetivo abandonar velhas bagagens abrindo-se para o aprendizado com o objetivo de aprimorar as condutas profissionais. Foram abordadas questões referentes à identidade feminina, à diversidade e à comunicação nas relações interpessoais. Essas oficinas proporcionaram vivências que valorizaram o direito de escolha, e nesta perspectiva foram enfatizadas questões relativas ao amparo, ao aborto, ao parto, à gestação, ao puerpério e à fecundação13.
Finalmente, para a execução do momento prático da capacitação, as gerentes do nível central da SMS-RJ e a professora Maysa Luduvice Gomes contaram com as cocoordenadoras do Projeto de Capacitação, as enfermeiras Jane Quitete Monteiro e Elizabete Silva Rocha Cavalcante. Essas agentes que foram as co-coordenadoras do Projeto Implantação da Assistência de Enfermagem à Gestante e à Parturiente, juntamente com o enfermeiro Fernando Rocha Porto. As duas co-coordenadoras ficaram responsáveis pela capacitação prática das enfermeiras para assistência ao parto:
Nós (Jane Baptista Quitete, Elizabeth Silva Rocha Cavalcante e Fernando Rocha Porto) participamos do projeto de capacitação de enfermeiras para SMS, porém mais na fase de execução, nós estivemos presentes em alguns momentos teóricos que foram realizados na Faculdade de Enfermagem da UERJ; à parte, no campo prático fomos nós que lideramos, foi nossa competência, nossa execução (Cocoordenadora do Projeto Implantação da Assistência de Enfermagem à Gestantre e á Parturiente).
A enfermeira Jane Baptista Quitete, a enfermeira Elizabeth Silva Rocha Cavalcante e o enfermeiro Fernando Rocha Porto haviam participado ativamente em lutas passadas de ocupação do campo obstétrico na Maternidade Leila Diniz, que foi a primeira instituição pública do Rio de Janeiro concebida para o atendimento ao parto e ao nascimento nos moldes humanizados. Lá, estes enfermeiros foram agentes estratégicos para a SMS-RJ, pois dispunham de um capital institucionalizado eficiente para contribuir para a reconfiguração do campo obstétrico hospitalar2.
A aliança da equipe do nível central da SMS-RJ com o Espaço Mulher da SMS-RJ, com a Faculdade de Enfermagem da UERJ e com as ex-lideranças de enfermagem da Maternidade Leila Diniz para a capacitação de enfermeiras foi uma estratégia dos gerentes municipais que politicamente contemplava os ideais feministas para o campo obstétrico e a possibilidade de valorização do capital fornecido para as enfermeiras por meio do reconhecimento de uma academia.
Tal associação foi muito importante, pois aumentou o poder simbólico das enfermeiras que teriam a responsabilidade de implantar as práticas obstétricas seguindo as novas disposições que entrariam em luta com o grupo opositor médico atuante no centro obstétrico da Maternidade Alexandre Fleming.
As estratégias de luta das enfermeiras para a implantação das práticas obstétricas humanizadas na Maternidade Alexander Fleming
Após o treinamento teórico e com a inserção das enfermeiras no centro obstétrico da Maternidade Alexandre Fleming, teve início a luta destas para implantar as práticas humanizadas. Observamos que muitas enfermeiras, mesmo admitindo terem uma nova visão e prática, adotaram politicamente uma estratégia de luta de não desqualificar o modelo médico tecnicista do qual elas eram opositoras:
Quando falam: "Ai! Que absurdo, o modelo médico."Eu digo: Não! Ele me serviu, e me serve ainda, só que agora a gente tem outra visão, outro fazer, e que eu acredito que a gente pode alcançar muita coisa! Mas eu não vou renegar o que eu aprendi, a parte técnica... A técnica me respaldou e fez a gente conseguir muita coisa, da gente poder se respaldar, contra argumentar em outras situações e receber o respeito da equipe (Enfª Obst. Inaiá de Santana Mattos).
Esta estratégia evidencia que as enfermeiras sabiam da força do
habitus dos médicos no campo obstétrico hospitalar, tanto que seu capital linguístico o reconhece e espera reconhecimento pela ótica do dominador. Tal fato pode ser uma manifestação da dominação masculina no campo obstétrico:
Porque o enfermeiro obstetra é um profissional que, se não for bem inserido dentro da equipe, ele fica sozinho, porque ele não é aceito pelo médico, ele é aceito em termos, porque a mão-de-obra é necessária. Tipo, eu quero que você trabalhe para mim, não comigo. Você trabalha para mim, mas não é comigo, quer dizer, eu sou seu superior. Não é ao lado, a visão é de cima para baixo. É o que a gente percebe (Enfª Obst. Célia Regina Boaventura Alves).
Diante da clareza de sua posição no campo hospitalar, tal estratégia foi fundamental para que elas se mantivessem no campo e determinou o sentido do jogo. Assim, em um primeiro momento, as enfermeiras jogaram conforme as regras anteriores, isto é, cederam em algumas concepções; no entanto, no jogo o que acontece não é previsível.
Deste modo, fizeram uso do campo ao seu favor, quando sem negar sua diferença, significaram o conceito de humanização:
A humanização não fala que você não tem que ter competência, o modelo diferenciado de assistência não diz isso, diz que você tem que cuidar e tal... Mas você tem que ter o conhecimento técnico para você poder assistir, e até fazer diferente ou o que a gente entende como diferente, que é bem legal e que atende a mulher na sua totalidade (Enfª Obst. Inaiá de Santana Mattos).
As enfermeiras, com base em uma proposta inovadora, perceberam que eram diferentes e que esta diferença é que lhes permitiriam distinguir-se e, assim, lutar pela ocupação do campo obstétrico na Maternidade Alexander Fleming.
Na época, coube à enfermeira chefe do centro obstétrico da Maternidade Alexander Fleming, Silma de Fátima da Silva Araújo Nagipe, liderar o processo de implantação das práticas obstétricas que seriam desenvolvidas pelas enfermeiras.. Uma de suas primeiras estratégias administrativas, que contou com o apoio do Chefe do Serviço de Enfermagem da Maternidade Alexander Fleming, foi elaborar uma escala para as enfermeiras com plantões de 12 horas com 60 horas de descanso, não acompanhando as equipes médicas de plantão, mas sim a equipe de enfermagem.
Tal atitude simbolicamente refletia uma demonstração de poder porque desvinculou as enfermeiras que assistiram ao par to da dominação dos plantonistas médicos. Este posicionamento da chefia da Maternidade Alexander Fleming foi diferente da experiência adotada na Maternidade Leila Diniz, onde, para facilitar a relação de confiança do agente dominante e reduzir os embates da inserção das enfermeiras na sala de parto, optaram por plantões fixos de 24 horas seguindo as equipes médicas2.
Com a inserção das enfermeiras no centro obstétrico da Maternidade Alexander Fleming, evidenciamos que os médicos obstetras reagiram para manter suas posições no campo. Em um primeiro momento não interagiram com o grupo de enfermeiras, praticamente deixando-as sozinhas durante a assistência ao parto:
Então [...] não teve nenhum atrito, nenhum embate mais severo, porque na verdade eles ignoravam a nossa presença. Eu lembro que, no pré-parto, [...] os médicos todos se ausentavam e não entravam no pré-parto enquanto nós estávamos lá. (Cocoordenadora do Projeto Implantação da Assistência de Enfermagem à Gestante e a Parturiente).
Porém, estes agentes não poderiam permanecer ausentes das lutas, por causa das suas responsabilidades com a assistência às mulheres internadas, então outro sentido ao jogo foi dado; e, no desenrolar dos conflitos, a forma e as divisões do campo se tornam o objetivo central, porque alterar a distribuição e o peso relativo dos tipos de capital (das formas de poder) é fundamental para modificar a estrutura do campo14. Desta maneira, as enfermeiras, começaram a impor sua visão de mundo diferenciada e criaram, no ano de 2000, uma sala de relaxamento que possibilitavam a vivência do parto segundo os princípios que foram incorporados em seus
habitus:
Então, ali na Alexander Fleming, uma das coisas que foi importante para essa questão da parte de humanização foi a formação da sala de relaxamento... É, a sala de relaxamento foi um espaço criado pelo grupo de enfermagem para estar propiciando esse modelo diferenciado dentro da Instituição biomédica. Esse espaço diferenciado foi para que essa mulher tivesse a oportunidade de parir, diferenciado daquilo que era padronizado por todas as instituições (Enfª Obst. Rosana Figueiredo Gomes Pires).
A criação desta sala, próxima à sala de parto, foi uma estratégia que as enfermeiras utilizaram para se diferenciar:
Então ali nós passamos 1999 pensando e 2000 concretizando. Um espaço tão pequeno, eu acho que levou quase dois anos para que a gente efetivasse. Então em 1999 foi assim, pensar como vamos fazer, até porque você tinha que ter algum embasamento; então, o primeiro passo para diferenciar, para nos diferenciar. Para mostrar que nós tínhamos um local onde nós poderíamos trabalhar sem tanta interferência externa. (Enfª chefe do centro obstétrico da Maternidade Alexander Fleming)
As práticas de uma classe se revelam em consequência do
"habitus" que se torna um princípio de distinção. E assim o
habitus se manifesta como um organizador de percepções de mundo, ele é também produto da divisão social em classes. A distinção só existe em razão das lutas por apropriação dos códigos distintivos11, 15.
Temos aqui a luta pela apropriação simbólica e pelos mecanismos de atribuição de poder simbólico e de legitimação, pois, no momento em que é feita uma distinção, é estabelecido um parâmetro de reconhecimento legitimado, uma identidade, um parâmetro de competência (nos dois sentidos). Essa identidade se afirma sobre outras com o aval dos grupos sociais envolvidos e encerra o princípio da dominação de uma identidade sobre outra, da negação de uma identidade por outra16.
No entanto, este espaço se tornou um território que foi interditado para os profissionais médicos pela imposição de barreiras simbólicas:
Porque embora nós não tenhamos colocado ali, naquela sala, nenhuma barreira física, qualquer um poderia entrar ali, qualquer profissional... Mas acabou acontecendo, parecia que tinha uma barreira. A barreira não é física, mas é uma barreira emocional e filosófica, enfim existe. Os médicos nunca gostaram de entrar naquela sala para prestar nenhum tipo de assistência, então aquele espaço acabou sendo da enfermagem obstétrica. (Enfª chefe do centro obstétrico da Maternidade Alexander Fleming)
Um espaço estruturado, como a sala de relaxamento, respondeu aos desafios e interesses próprios dos agentes do campo que lutavam pela sua transformação. Assim, estas demarcações de territorialidade e localismo tomaram a forma de violência, tanto simbólica quanto física, na busca de manutenção do poder8.
Deste modo, o Centro Obstétrico da Maternidade Alexander Fleming foi simbolicamente e fisicamente dividido em dois espaços, um representado pelo modelo médico e o outro, pela enfermagem. As enfermeiras circulavam no espaço médico porque cederam em algumas concepções e desejavam conquistar espaços no território alheio, e os médicos não circulavam no espaço delas, evitando a possibilidade de atualizarem seu
habitus diante da prática destas agentes. Mas ao manterem sua própria distinção, reforçaram também a distinção das enfermeiras no campo.
Após a ocupação do Centro Obstetrício da Maternidade Alexander Fleming pela sala de relaxamento em 2000, as enfermeiras sentiram a necessidade de criar novas estratégias para manterem as posições já conquistadas no campo. Então, elaboraram o Protocolo de Assistência de Enfermagem Obstétrica Maternidade Alexander Fleming17.
Este documento foi amparado legalmente pela lei do exercício profissional da enfermagem e fundamentado cientificamente por obras do Ministério da Saúde e da OMS. Por isso mesmo, em junho de 2001 foi aprovado pela Direção da Maternidade Alexander Fleming como a primeira versão de um trabalho conjunto com objetivos claros17.
O protocolo definia o pré-parto, o espaço de relaxamento e a sala de parto como locais de atuação da enfermeira e a população de mulheres que seriam atendidas por elas. Ao analisarmos este documento, aprovado pela Direção da Maternidade Alexander Fleming em junho 2001, evidenciamos que ele ampliava os espaços de atuação das enfermeiras no centro obstétrico da Maternidade Alexander Fleming.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de inserção das enfermeiras na assistência ao parto da Maternidade Alexander Fleming ocorreu durante a implantação do Projeto de Implantação da Assistência de Enfermagem à Gestante e à Parturiente na Área Programática 3.3 e foi uma estratégia utilizada pelos gerentes da SMS-RJ, a partir do acúmulo de experiências, em que a figura da enfermeira obstétrica despontou como agente estratégico capaz de promover as mudanças no modelo de assistência ao parto.
Evidenciamos que a inserção das enfermeiras no centro obstétrico da Maternidade Alexander Fleming ocorreu em três etapas. A primeira foi o remanejamento interno e seleção de enfermeiras concursadas com interesse em atuar na atenção obstétrica. A segunda foi a de sensibilização destas profissionais segundo o ideário do movimento de humanização, que naquele momento era representado na SMS-RJ pelo Espaço Mulher e pelas gerentes da Área Técnica da Mulher. A terceira etapa foi uma capacitação intensiva com duração de quatro meses. Esta capacitação foi composta de um momento teórico realizado na Faculdade de Enfermagem da UERJ e de um momento prático desenvolvido na própria Maternidade Alexander Fleming.
Ao serem inseridas no campo prático, tive início a luta simbólica para ocupar espaços no centro obstétrico da Maternidade Alexander Fleming com objetivo de implantar as práticas obstétricas humanizadas. As principais estratégias de luta utilizadas pelas enfermeiras foram no sentido de romper com o domínio dos médicos neste campo. Assim, dedicaram-se à criação de espaços próprios, mostrando simbolicamente sua distinção, e elaboraram um documento legal que ampliou sua atuação neste mesmo campo.
Ao concluirmos este estudo, podemos dizer que as estratégias de luta simbólica utilizadas pelas enfermeiras contribuíram para a conquista de espaços que as distinguiram no campo pelo desenvolvimento de práticas humanizadas que estavam de acordo com seu
habitus.
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