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CAPES

Volume 16, Número 2, Abr/Jun - 2012

PESQUISA

Fragilidades, fortalezas e desafios na formação do enfermeiro

Jamila Geri Tomaschewski Barlem1
Valéria Lerch Lunardi2
Edison Luiz Devos Barlem3
Simoní Saraiva Bordignon4
Caroline Ceolin Zacarias5
Wilson Danilo Lunardi Filho6

1 Mestre em Enfermagem. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem PPGEnf) - Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Bolsista CAPES/FAPERGS. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem e Saúde (NEPES) - FURG. Rio Grande-RS. Brasil. Email: jamila_tomaschewski@hotmail.com
2 Doutora em Enfermagem. Docente do PPGEnf - FURG. Bolsista de Produtividade 1A em Pesquisa/CNPq. Líder do NEPES-FURG. Rio Grande- RS. Brasil. Email: vlunardi@terra.com.br
3Doutor em Enfermagem. Docente do PPGEnf - FURG. Pesquisador do NEPES-FURG. Rio Grande-RS. Brasil. Email: ebarlem@gmail.com
4 Mestranda do PPGEnf - Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Membro do NEPES-FURG. Pelotas - RS. Brasil. Email: simoni_bordignon@yahoo.com.br
5 Mestre em Enfermagem. Membro do NEPES-FURG. Porto Alegre-RS. Brasil. Email: carol-enfermagem@hotmail.com
4 Doutor em Enfermagem. Docente do PPGEnf - FURG. Membro do NEPES-FURG.Rio Grande- RS. Brasil. Email: lunardifilho@terra.com.br

Recebido em 28/06/2011
Reapresentado em 02/12/2012
Aprovado em 20/03/2012

RESUMO

Pesquisa qualitativa que objetivou identificar a percepção do enfermeiro quanto ao seu preparo profissional, a partir da formação conferida pela graduação, e identificar aspectos da formação que contribuem para o enfrentamento dos conflitos e dilemas do cotidiano de trabalho. Os dados foram coletados entre agosto e dezembro de 2009, com oito enfermeiras de um hospital público federal do extremo sul do Brasil, por meio de entrevistas semiestruturadas. Utilizou-se a análise temática no tratamento dos dados, emergindo duas categorias: fragilidades no processo formativo e fortalezas na formação profissional. Encontrar alternativas para melhor suprir as necessidades da prática profissional é um desafio que requer não só o conhecimento das lacunas deixadas pelo curso de graduação, mas, também, formas de consolidar as fortalezas existentes no processo de formação.

Palavras-chave: Enfermagem. Educação em Enfermagem. Pesquisa em avaliação de enfermagem. Ética

INTRODUÇÃO

O ensino de graduação em enfermagem vem sofrendo sucessivas mudanças curriculares, a partir de amplas discussões de novas propostas pedagógicas, no intuito de formar profissionais que atendam às necessidades do mercado de trabalho e de saúde da população, em uma perspectiva humanista1,2. Nesse sentido, espera-se que as instituições de ensino estejam comprometidas com a formação de profissionais críticos, reflexivos, éticos e políticos, impulsionando a profissão e repercutindo positivamente na formação de enfermeiros com maior inserção e participação social1.

Para acompanhar as transformações decorrentes das constantes modificações no quadro político-social e econômico do Brasil, faz-se necessário que a Enfermagem, como profissão atuante nesse novo contexto social e de saúde, reorganize-se, com a finalidade de avançar não apenas na formação de um novo profissional, mas, principalmente, de um indivíduo crítico capaz de contribuir para a transformação do contexto em que está inserido3,4. No entanto, observa-se que ainda não se produziram mudanças no ensino que estejam suficientemente em consonância com as exigências do mercado de trabalho e que sejam capazes de preparar profissionais centrados no cuidado humanizado e contextualizado, bem como envolvidos na transformação da realidade5.

As sucessivas mudanças curriculares nos cursos de graduação em enfermagem, comumente, não são precedidas de uma análise da realidade profissional dos enfermeiros, assim como não têm sofrido avaliações acerca do seu impacto, uma vez que, na literatura, são encontrados poucos estudos de acompanhamento de egressos das universidades com o objetivo de identificar as fragilidades e fortalezas da formação, para que, desse modo, se possa refletir sobre alterações que ainda necessitam ser implementadas6.

Considera-se que o desafio para ocupação de espaços pela enfermagem está relacionado, principalmente, à formação de enfermeiros competentes tecnicamente no cuidado humano, éticos, políticos e comprometidos com o papel social da enfermagem7. Dessa maneira, a formação profissional que se pretende para os estudantes dos cursos de enfermagem deve ser fundamentada em conhecimentos e, principalmente, na ética, direcionada para a capacidade de identificar problemas, buscando alternativas para superálos, por meio do desenvolvimento do raciocínio crítico, da autonomia, da criatividade e da comunicação.

É de grande relevância que os profissionais reflitam quanto ao seu processo de formação, a partir de suas experiências e enfrentamentos no cotidiano de trabalho, confrontando as competências adquiridas e desenvolvidas no curso de graduação com a realidade profissional, sugerindo mudanças e contribuindo para uma formação capaz de atender as necessidades do exercício da profissão8.

Assim, esse estudo justifica-se em vir tude da necessidade de identificar as fragilidades e fortalezas do processo de formação profissional do enfermeiro e os aspectos da formação que contribuem para o enfrentamento dos conflitos e dilemas do cotidiano de trabalho, o que poderá auxiliar na construção de estratégias para qualificar a formação profissional do enfermeiro.

O presente estudo teve como objetivos: identificar a percepção do enfermeiro quanto ao seu preparo profissional, a partir da formação conferida pela graduação; identificar aspectos da formação que contribuem para o enfrentamento dos conflitos e dilemas do cotidiano de trabalho.

 

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo exploratório-descritiva, a qual possibilita ao pesquisador uma aproximação maior com as experiências vivenciadas pelos sujeitos, envolvendo um universo de significados, crenças, valores e atitudes9.

A pesquisa foi desenvolvida em um hospital público federal do extremo sul do Brasil, com enfermeiros atuantes nessa instituição. Os critérios para a seleção dos sujeitos foram: ser enfermeiro, atuante no respectivo hospital; ter disponibilidade para responder ao instrumento de pesquisa; e ter concluído o curso de graduação nos últimos dez anos, por se entender que este período facilitaria a identificação das fortalezas e fragilidades da formação.

Foram respondentes do estudo oito enfermeiros, selecionados intencionalmente, por conveniência, realizandose a busca por informantes com as características apresentadas metodologicamente e privilegiando aqueles que tivessem os atributos que o pesquisador pretendia conhecer9.

A coleta de dados ocorreu no período de agosto a dezembro de 2009, por meio de entrevistas semiestruturadas, gravadas, com duração média de 50 minutos, contendo questões fechadas para a caracterização dos sujeitos, e as seguintes questões abertas, relacionadas à formação profissional e a como essa formação responde às necessidades da prática: Como você vê a sua formação na graduação? Você considera que o curso de graduação preparou para as necessidades da prática profissional? Quais as principais fortalezas na sua formação? Quais as principais fragilidades na sua formação? Você enfrenta conflitos e dilemas no cotidiano de trabalho? Em caso positivo, como a sua formação na graduação contribuiu para o enfrentamento desses conflitos e dilemas?

O processo de análise dos dados realizou-se por meio de análise temática, a partir dos objetivos propostos, com préanálise, exploração e codificação, análise e interpretação9. A análise temática consiste na busca pelos núcleos de sentido no texto analisado, cuja presença ou frequência apresentem significado e relevância para o objetivo visado9.

Os preceitos éticos foram obedecidos em sua totalidade. Submeteu-se o projeto de pesquisa ao Comitê de Ética em Pesquisa na Área da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande - CEPAS/FURG, sendo aprovado (PARECER N. 69/ 2009). Para garantir o anonimato, os sujeitos foram identificados pela letra E, seguida pelo número correspondente à ordem de realização da entrevista, de E1 a E8, acrescido de U1 ou U2, de acordo com a universidade de origem do curso de graduação

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A caracterização dos sujeitos foi realizada a partir da análise das questões fechadas. Os oito informantes eram do sexo feminino, todas enfermeiras concursadas, com idade entre 26 e 45 anos, graduadas por universidades federais do extremo sul do País; seis enfermeiras obtiveram sua formação na universidade U1 e duas, na universidade U2. Atuavam em diferentes unidades, dentre as quais: unidade de clínica médica, pediatria, centro obstétrico, maternidade e comissão de controle de infecção hospitalar (CCIH). O tempo de trabalho variou de dois a nove anos, com média de 5,06 anos.

A partir da análise temática dos dados obtidos com as respostas às questões abertas, construíram-se duas categorias: fragilidades do processo formativo e fortalezas na formação profissional, apresentadas a seguir.

Fragilidades do processo formativo

Mediante a análise das falas dos sujeitos entrevistados, perceberam-se algumas lacunas no processo formativo, principalmente relacionadas ao exercício de uma prática predominantemente generalista, em uma determinada área de especialidade, em detrimento das outras.

Foi mais visado, em toda graduação, o cuidado ao adulto. Os professores falavam mais no adulto. E eu sentia necessidade pra trabalhar com criança.(E1U1)

A graduação prepara muito mais e direciona muito mais para o adulto. (E2U2)

Eu acho que, na verdade, a noção geral tu consegues ver bem. Faltam coisas mais específicas. Pediatria foi uma grande fragilidade na minha graduação. Área de bloco cirúrgico foi bem complicado. (E4U2)

Assim como constatado por outro estudo, na percepção de egressos prevalece a necessidade de vivenciar experiências em unidades especializadas, fundamental para a formação profissional do enfermeiro7. Dessa forma, evidencia-se um desafio, havendo a necessidade de formar profissionais generalistas, considerando as questões políticas e econômicas, mas, também, atendendo às diversas especializações que emergem no âmbito da saúde7.

A realização de atividades práticas não próximas das funções desenvolvidas pelos enfermeiros das diferentes unidades é uma situação comumente adotada nas aulas práticas das disciplinas de alguns cursos de enfermagem, contribuindo para o distanciamento do estudante da dinâmica própria da unidade de trabalho nas instituições de saúde, reforçando a dicotomia entre teoria e prática. Verifica-se, assim, que:

O cenário de um hospital universitário é um cenário idealizador. A gente tenta se aproximar o mais possível do livro. Quando tu vais para uma instituição privada, a conversa é outra [...] (E1U1)

É muito diferente o que a gente vê durante nossos estágios e o que a gente vê enquanto trabalha [...] (E3U1)

Às vezes, acontecem outras situações mais interessantes que a gente não presencia, porque não foi o momento, não aconteceu aquilo ali, ou já tinha sido resolvida aquela situação. (E1U1)

À semelhança de nossos achados, foi identificado que ainda existem "contradições entre a formação teórico-prática e a práxis profissional", o que representa um desafio para formação profissional do enfermeiro7:559. Nessa perspectiva, faz-se necessário que estratégias pedagógicas, especialmente metodologias ativas, sejam mais bem exploradas no processo formativo do enfermeiro, contribuindo para aproximar a formação e a prática profissional7.

Quanto mais se aproximar teoria e prática, melhor vai ser a formação. Temos que visualizar aquilo que vimos na sala de aula. Discutir, aproximar, contextualizar e problematizar as situações que são vivenciadas, dentro da formação do profissional. (E6U1)

Apesar de os conteúdos abordados em sala de aula e nas aulas práticas favorecerem o desenvolvimento das habilidades e aptidões técnicas necessárias para o exercício profissional, são os conflitos e dilemas éticos que parecem exigir mais do profissional, necessitando que desenvolva sua capacidade de raciocínio crítico e tomada de decisão, buscando alternativas que favoreçam o cliente, a própria equipe profissional e a instituição.

A técnica, a habilidade, ela é importante, mas a gente aprende fazendo algumas vezes e, se tu não aprenderes a pensar, tu só sais repetindo. [...] Aprender a pensar é o mais importante. A capacidade de pensar, de questionar, de cogitar estratégias de enfrentamento para os problemas, isso é o mais importante (E6U1)

Esses conflitos apenas são vivenciados quando as aulas práticas e estágios aproximam-se da dinâmica das unidades.
Tal situação nem sempre é alcançada, o que é manifestado nas falas dos sujeitos entrevistados, evidenciando-se que a "formação deve ser pautada no contexto da realidade e não centrada em conteúdos descontextualizados dos aspectos sócio, político, econômico e cultural em que a sociedade se organiza"10:674.

Os conflitos [...] eles [os docentes] não mostram como são. Isso eles não dizem pra gente. Acompanhar mais a realidade iria ajudar a enxergar esses conflitos. (E2U2)

No trabalho da enfermagem, percebe-se que o modo como os conflitos éticos são enfrentados pode ser decorrente de uma formação acadêmica que não distingue os problemas cotidianos como situações que necessitam ser discutidas, problematizadas e repensadas, o que pode comprometer a formação ética dos sujeitos envolvidos11

A inabilidade técnica, em momento algum, foi enfatizada pelos entrevistados como uma fragilidade vivenciada, confirmando que a destreza manual é desenvolvida com o cotidiano de trabalho. A falta de habilidade no relacionamento pessoal, no entanto, apresenta-se, segundo os entrevistados, como uma das suas maiores fragilidades no exercício profissional, uma vez que não parece haver suficiente investimento na formação dos futuros enfermeiros para interagirem com outros sujeitos com origens, interesses, conhecimentos, culturas e papéis diferentes.

Quando eu comecei a trabalhar, eu vi que era a coisa que menos a gente sabe quando sai da faculdade, que é a questão das relações interpessoais. É o que tem de mais difícil. Em nenhum momento, na minha graduação, se falou e se discutiu essa questão de relação interpessoal, porque o que acontece, quando se vem pra campo de estágio, é que se vem com aquela visão de que a gente tem que aprender, tem que pegar os procedimentos. [...] a gente não se dá conta que não vai sair formada com a prática. A prática a gente tem no dia a dia. O que a gente precisa é pensar nas relações interpessoais e não querer ter apenas uma prática para saber passar uma sonda em cinco minutos. (E3U1)

Entende-se, assim, que a formação profissional do enfermeiro ultrapassa as habilidades para a execução de técnicas e procedimentos, perpassando o desenvolvimento do conhecimento, da diversidade de experiências vivenciadas e da ética, o que contribuirá para a construção e consolidação da vida profissional7.

A capacidade de comunicar-se adequadamente e de mediar relações é característica determinante de um profissional enfermeiro qualificado, especialmente por relacionar-se proximamente com múltiplos sujeitos. O "saber relacionar-se com os pacientes é um dos principais atributos de um bom enfermeiro", assim como são de fundamental importância os relacionamentos com a equipe multiprofissional8:559.

Também foram apontadas, ao longo das entrevistas, suas dificuldades em realizar mudanças nas unidades de trabalho, em desenvolver projetos que visem à melhoria na assistência ou mesmo em dialogar com as chefias. Materiais em quantidade insuficiente ou mesmo inexistentes, número reduzido de funcionários, implicando sobrecarga para as equipes e outras situações cotidianas podem potencializar as dificuldades já vivenciadas em resolver os conflitos da equipe de enfermagem, na elaboração de escalas diárias ou de férias, em divergências com outros profissionais da área da saúde, ou mesmo com os serviços de apoio.

Mostrar, também, para os alunos não só a parte bonita da assistência, mas mostrar para eles a falta de materiais, que faltam funcionários e que falta todo um suporte que, muitas vezes, a gente precisa.(E1U1)

Nos estágios, a gente não improvisava. [...] Tanto que a maioria dizia que na realidade era diferente.[...] Nem sempre tu vais fazer um curativo com um pacote de curativo. Mas, no estágio, a gente sempre fez com pacote de curativo. (E8U1)

Tu confeccionas a escala na aula, mas tu não sabes todos os conflitos que tu vais ter pra confeccionar aquela escala. Às vezes, tu passas por unidades calmas no estágio ou tem alguns professores que preferem até não pegar alguns tipos de intercorrências, pra não atrapalhar aquela rotina no estágio. (E2U2)

Quando fui trabalhar, não tinha nada daquilo que a gente imagina ter. Não tinha recursos e tinha toda uma burocracia que a gente não tinha visto. (E7U1)

Essas situações intensificam-se quando o campo de prática não é o hospital universitário, local que geralmente abriga as práticas de ensino e prioriza um modelo de assistência de enfermagem, visando e proporcionando condições essenciais ao processo de formação do profissional enfermeiro, o que diverge da realidade atual de grande parte das instituições de saúde12.

A existência de docentes afastados da assistência ou sem a suficiente experiência profissional é citada como fonte de fragilidades no processo de formação, uma vez que o distanciamento da prática assistencial dificulta ainda mais o exercício de um ensino mais próximo da realidade e, consequentemente, o enfrentamento de situações nem sempre abordadas nas aulas teóricas e práticas.

Nós temos professores que são muito teóricos e têm pouca prática. Então, a gente vem pra campo de estágio com professores que têm muita teoria e que são ótimos, mas que não têm a prática. Isso é uma falha da graduação. Os nossos professores não têm a parte clínica. Isso dificulta nossa formação. (E3U1)

Os professores, dentro da graduação, estão muito distantes da prática. Faz muito tempo que eles trabalharam na assistência. Então, isso dificulta muito pra gente, porque, quando eles estão dentro da sala de aula, é uma realidade, quando tu entras no hospital, é completamente diferente. (E4U2)

Fortalezas na formação profissional

No que se refere às potencialidades existentes no processo formativo, contraditoriamente, são enfatizadas a utilização do for te supor te teórico na construção do conhecimento nas diferentes disciplinas e a formulação de estratégias que contribuam para a superação das dificuldades enfrentadas ao longo da graduação.

A teoria a gente consegue vencer. Vemos tudo na teoria, sabemos o que temos que fazer e quando [...] (E8U1)

A gente precisa ter o conhecimento. Eu acho que isso é o fundamental na graduação, a questão de desenvolver o conhecimento, de refletir, de te formar um profissional crítico. [...] tu só conquistas alguma coisa, se tu tens conhecimento. Tu só vais poder discutir uma conduta que tu não achas ética, que tu não achas correta, se tu tiveres conhecimento. (E3U1)

"O embasamento teórico é considerado como sendo de fundamental importância para o início da atuação profissional"8:559, uma vez que a teoria, mesmo que concebida pelos entrevistados como pouco aproveitada e mal direcionada no período formativo, serve de base para o enfrentamento das experiências futuras. Para que o estudante desenvolva condições de tomar decisões e adotar condutas mais adequadas, a capacidade de observar, avaliar e sistematizar deve ser parte de suas habilidades pessoais, potencializadas pelo suporte teórico oferecido na graduação.

Essas capacidades são apontadas como essenciais na formação dos estudantes, pois a observação direta das situações vivenciadas na prática constitui-se como elemento fundamental na construção de estratégias para os enfrentamentos do exercício profissional, "uma vez que é pela reflexão e teorização, a partir de situações da prática, que se estabelece o processo de ensino-aprendizagem"13:293.

Quando a gente está na graduação, com todo conhecimento, com tudo que é discutido dentro da sala de aula, das atividades práticas, a gente consegue visualizar muitas coisas, a gente percebe. Então, eu acho que a graduação, ela me ensinou a perceber e trouxe alguns valores da profissão. (E6U1)

Quando eu fazia estágio, eu via muitas questões. Eu ficava observando, porque não adianta, também, o professor ficar falando na aula aquela coisa toda sobre conscientização, diálogo, trabalhar em equipe [...] isso a gente ouve em qualquer lugar. Só que tu só vais sentir isso, por meio da observação. (E1U1)

Foi salientada a importância do interesse pessoal do estudante para suprir possíveis lacunas existentes no ensino, principalmente através da vivência extracurricular, de leituras e da participação em projetos de pesquisa e extensão. Por meio dessas estratégias, os entrevistados afirmaram ser possível desenvolver competências, visualizando, de forma mais integral e participativa, a realidade repleta de conflitos e contradições não abordados satisfatoriamente nas aulas teóricas, ou mesmo nas aulas práticas.

A gente é preparada, desde que a gente busque isso. Eu sempre busquei fazer estágio voluntário. (E3U1)

Acho que muito da formação depende da gente. Eu acho que tu não podes te contentar só com o que tu vês na universidade. Eu fiz muito estágio voluntário. A gente tem que buscar. (E4U2)

Ainda, o interesse pessoal do estudante pode favorecer o exercício de mais autonomia nos processos de construção do conhecimento, "acarretando maior aproveitamento das práticas pedagógicas e, consequentemente, a formação de profissionais politizados e capacitados a atuar na construção da integralidade em favor da coletividade"14:12. A construção e a consolidação do conhecimento perpassam o ensino da teoria e da prática, no momento em que o estudante assume a responsabilidade da sua aprendizagem, através da interação com múltiplos sujeitos, da prática social e da vivência em realidades distintas7.

O que me ajudou bastante na minha formação, dentro da graduação, foram os estágios voluntários [...] e foi essa questão, de estar voltado não só dentro da pesquisa pra articular com a prática, mas tentar alicerçar na minha formação a leitura. (E1U1)

Ao citarem os pontos positivos da graduação, enfatizaram a articulação entre ensino, pesquisa e extensão, integrando saberes e práticas que subsidiaram o crescimento dos entrevistados, principalmente dos estudantes que demonstravam maior interesse pessoal ao longo do curso. Nesse sentido, necessita-se investir na formação, no intuito de potencializar qualidades e problematizar as diferentes situações vivenciadas, estimulando o estudante a buscar e construir possibilidades de intervenção, a partir da integração entre o aprendizado acadêmico e a realidade profissional15.

Eu acho que a minha graduação foi uma graduação boa, porque eu desenvolvi pesquisa, que é uma coisa muito importante, eu desenvolvi extensão, eu desenvolvi a questão de prática. Sempre fiz estágio voluntário. Eu tentei aliar a pesquisa à assistência. (E3U1)

Ao propiciar ao estudante distintas formas de aprendizagem, em diferentes cenários de prática, proporcionam-se o aprimoramento e a consolidação do conhecimento adquirido, permitindo que se torne um sujeito ativo, capaz de promover mudanças e recriar saberes e práticas7. Ainda, foi enfatizada pelos entrevistados a pesquisa como aspecto fundamental para a formação. Apontada como forma de construção e consolidação do conhecimento, a pesquisa articulada com o ensino e com a extensão possui o potencial de qualificar tanto os estudantes quanto o próprio curso, proporcionando subsídios e consistência para o desenvolvimento da sua autonomia no exercício das atividades como profissional8,16.

A universidade tem uma formação bem forte na questão da pesquisa, e isso é muito bom [...] porque a gente aprende a escrever, a gente aprende a pensar, a gente aprende a falar [...] (E6U1)

[...] faz com o que o curso em si se aprimore mais, busque novas formas de atualização, busque novas formas de fazer o cuidado. Isso é o objetivo maior da pesquisa. (E1U1)

Como constatado em um estudo que objetivou identificar a opinião dos graduandos de enfermagem sobre sua formação para o Sistema Único de Saúde, as atividades de pesquisa, durante a graduação, são imprescindíveis para o alcance de uma formação de qualidade, estimulando a criatividade, instrumentalizando e proporcionando subsídios na tomada de decisões1.

Entretanto, foi salientado pelos entrevistados que a ênfase somente na pesquisa pode acarretar um distanciamento das atividades desenvolvidas na assistência. E ainda que a aproximação entre a pesquisa e a assistência poderá possibilitar a utilização do conhecimento, no intuito de qualificar e fundamentar a prática assistencial, fortalecendo, também, a enfermagem nas diferentes dimensões da profissão.

É um erro muito grande só pesquisar ou só fazer assistência. Na prática, ser só enfermeira assistencial, simplesmente, fazer o teu papel e ir embora, isso é muito ruim. (E3U1)

Acho interessante a pesquisa contínua. Só que, também, não se pode só focalizar a questão de pesquisa. Tem que trazer, também, a questão prática. Levar o aluno lá pra prática. Focalizar um pouco mais isso. (E1U1)

Por fim, destacou-se a contribuição trazida por alguns professores que atuavam, simultaneamente, na assistência e docência, demonstrando, de forma mais real e concreta, o que a prática assistencial iria exigir do profissional, assim como quais seriam as principais atribuições a serem desenvolvidas pelo enfermeiro.

A gente aprende a fazer escala e a fazer um monte de coisas da administração. Eu fui ver isso, mas com um professor substituto, que era enfermeiro da unidade e me ensinou. Eu fui aprender com ele isso. (E1U1)

Essa experiência docente favoreceu a promoção de discussões e reflexões, oportunizando, assim, ao estudante, o desenvolvimento do pensamento crítico acerca das situações a serem vivenciadas17.

 

CONCLUSÃO

Possíveis lacunas na graduação parecem estar relacionadas à falta de preparo dos profissionais para responder algumas necessidades da prática, especialmente no que tange aos relacionamentos interpessoais e à resolução de conflitos. Deparar-se com realidades diferentes das vivenciadas, durante o processo formativo, traz aos profissionais dificuldades para o exercício da profissão, uma vez que os cenários ainda idealizadores dos hospitais universitários parecem não fornecer aos estudantes vivências de situações reais, em que dilemas, incertezas, conflitos pessoais e falta de recursos sejam enfrentados.

Em contrapartida, o forte suporte teórico desenvolvido durante a graduação é apontado como subsídio para o profissional, auxiliando o enfermeiro nos momentos de indecisão ou de dificuldades cotidianas e nos processos de tomada de decisão. Para contribuir ainda mais nesse sentido, dois aspectos foram salientados como fundamentais: um relacionado à observação das situações vivenciadas nas aulas práticas e estágios, e outro ao interesse pessoal do estudante. Também foi enfatizada a experiência de alguns professores que promoviam momentos de discussão e reflexão, durante as aulas teóricas e práticas, principalmente quando atuavam, simultaneamente, na docência e na prática assistencial.

Por fim, a pesquisa foi apontada como o fator articulador entre os múltiplos saberes do universo acadêmico, servindo de ponte entre extensão e ensino, além de promover o crescimento e desenvolvimento pessoal e profissional. Nesse sentido, encontrar alternativas para melhor suprir as necessidades da prática profissional é um desafio que requer não só o conhecimento das lacunas deixadas pelo curso de graduação, mas, também, modos de consolidar as fortalezas existentes no processo de formação.


O estudo apresenta as limitações de uma pesquisa qualitativa, a qual não pretende generalizações. Ainda, em virtude do baixo número de trabalhos relacionados à formação do enfermeiro, é apontada a necessidade de novas pesquisas que auxiliem no processo de conhecimento das fragilidades e fortalezas da formação profissional, melhor direcionando o ensino de graduação em enfermagem brasileiro, contribuindo com o fortalecimento da profissão.

 

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Recebido em 28/06/2011
Reapresentado em 02/12/2012
Aprovado em 20/03/2012

 

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