ISSN (on-line): 2177-9465
ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
COPE
ABEC
BVS
CNPQ
FAPERJ
SCIELO
REDALYC
MCTI
Ministério da Educação
CAPES

Volume 16, Número 2, Abr/Jun - 2012

PESQUISA

Primeira década do curso de enfermagem na Universidade Federal de Juiz de Fora: 1979 -1989

Maria Cristina Pinto de Jesus1
Sueli Maria dos Reis Santos2
Mariangela Aparecida Gonçalves Figueiredo3
Grazielli Fabiana Gava4
Fernanda de Oliveira Pereira5

1 Enfermeira, Doutora, Professora Associada da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Juiz de Fora - MG. Brasil. E-mail:cristina.pinto@acessa.com
2 Enfermeira, Doutora, Professora Associada da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Juiz de Fora - MG. Brasil. E-mail: sueli.santos@ufjf.edu.br
3 Enfermeira, Doutora, Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora - MG. Brasil. E-mail:
mary.hu@ig.com.br
4 Estudante do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista PIBIC/CNPq/UFJF. Juiz de Fora - MG. Brasil. E-mail: grazy_gava@hotmail.com
5 Estudante do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista BIC/UFJF. Juiz de Fora - MG. Brasil. E-mail: nandaop13@hotmail.com

Recebido em 23/06/2011
Reapresentado em 15/09/2011
Aprovado em 26/01/2012

RESUMO

O curso de graduação em enfermagem foi criado na Universidade Federal de Juiz de Fora em 1979, com a incorporação do corpo social da Faculdade de Enfermagem Hermantina Beraldo. Este estudo de abordagem histórico-social objetivou discutir a formação do enfermeiro na primeira década (1979 a 1989) após a criação do curso de graduação na Universidade Federal de Juiz de Fora. As fontes primárias foram documentos arquivados e depoimentos de professores que vivenciaram este momento histórico. Os dados foram coletados em 2009, organizados e classificados em conformidade com o método histórico à luz da teoria de Pierre Bourdieu. A análise dos dados permitiu evidenciar ações estratégicas dos docentes da enfermagem interessados na conservação das características do processo de ensino da Faculdade de Enfermagem Hermantina Beraldo, na primeira década de criação do curso na Universidade Federal de Juiz de Fora.

Palavras-chave: Enfermagem. Ensino superior. História da Enfermagem

INTRODUÇÃO

Nas décadas de 1970 e 1980, a educação superior em enfermagem passou por diversas modificações oriundas das transformações ocorridas nos âmbitos nacional e internacional. Entre elas, podemos citar a criação de novos cursos em instituições públicas federais, a Reforma Universitária de 1968, o Plano Decenal de Saúde de 1972 e as reformas curriculares e de ensino1. Especialmente na década de 1970, foram criados 34 cursos superiores de enfermagem no Brasil. Isso foi possível principalmente pelo Programa desenvolvido pelo Departamento de Assuntos Universitários do Ministério da Educação e Cultura (DAU/MEC), a partir de 1972 e, posteriormente, com a criação do Programa de Crédito Educativo em 19762.

Em Juiz de Fora, o ensino superior de enfermagem estava sob influência das políticas de saúde e de educação nacionais. Além dessas influências, cabe ressaltar aquelas determinadas pelo Estado de Minas Gerais, responsável pela Faculdade de Enfermagem Hermantina Beraldo (FEHB). A FEHB visava à formação de recursos humanos na área de enfermagem e se manteve estável no campo da educação em Juiz de Fora por 30 anos, até o DAU/MEC implantar a sua política de ampliação do número de cursos na área de saúde, bem como de vagas na área de enfermagem, fortalecendo a meta que a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) havia estabelecido de criar o curso de enfermagem1.

A interferência do DAU/MEC e da UFJF no campo da educação superior em Enfermagem em Juiz de Fora e a aliança destes com dirigentes do Estado de Minas Gerais colocaram o ensino de enfermagem da FEHB em foco e em julgamento, uma vez que o número de enfermeiros formados anualmente não atendia à demanda das políticas públicas de saúde e de educação à época. Estas políticas buscavam também redefinir a formação dos enfermeiros em todo o país. A criação de escolas de enfermagem em universidades públicas federais passou a ser primordial para o atendimento destas políticas2.

O movimento de criação do curso de enfermagem na UFJF chegou ao seu ápice a partir da Lei Estadual nº 7.131, de 16 de novembro de 1977, que autorizou o estabelecimento de um convênio entre o Estado de Minas Gerais, a Fundação Hermantina Beraldo e a UFJF para a incorporação do corpo social da FEHB na UFJF3. Este foi também o primeiro passo para a extinção do curso de enfermagem e obstetrícia na FEHB.

A partir da extinção do Curso de Enfermagem e Obstetrícia da FEHB, nasceu o Curso de Enfermagem e Obstetrícia da UFJF, sem autonomia acadêmica, como um departamento da Faculdade de Medicina da UFJF, que, criado no final de 1977, começou a funcionar no ano de 1979, a partir da Resolução nº 62 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), de 2 de dezembro de 19774. O reconhecimento do curso se deu ainda em 1979, segundo a Portaria nº 1.084 do Ministério da Educação e Cultura, de 29 de outubro de 19795.

A consolidação da incorporação do corpo social da FEHB à UFJF ocorre com a Lei nº 6.954, de 18 de novembro de 1981, assinada pelo então presidente da República do Brasil, João Batista Figueiredo, que determinou a incorporação de todos os agentes da FEHB, sob qualquer regime jurídico6.

A criação do curso de graduação em enfermagem e obstetrícia na UFJF, com a incorporação do corpo social, materiais e equipamentos e acervo bibliográfico da FEHB, contribuiu para a operacionalização do ensino na primeira década de seu funcionamento, o que julgamos de interesse à investigação. As seguintes questões nortearam a presente pesquisa: como se deu a implantação do currículo na primeira década de criação do curso de enfermagem e obstetrícia na UFJF? Que mudanças ocorreram no currículo e na prática pedagógica no âmbito do ensino superior desta instituição federal?

Este estudo objetivou caracterizar o primeiro currículo do curso de enfermagem e obstetrícia, analisar sua operacionalização no contexto da universidade e discutir a formação do enfermeiro na primeira década (1979 - 1989) após a criação do Curso de Graduação em Enfermagem na Universidade Federal de Juiz de Fora.

Justifica-se pela contribuição que as evidências científicas podem representar no conjunto da história das instituições públicas de ensino superior da enfermagem, no Brasil, no que diz respeito à singularidade no modo de criação e operacionalização do Curso de Enfermagem no âmbito de uma universidade federal.

 

MÉTODOS

Estudo sócio-histórico, com abordagem qualitativa, que utilizou o recorte temporal: 1979 a 1989. O marco inicial corresponde ao início do funcionamento do Curso de Enfermagem e Obstetrícia da UFJF e o marco final, o início do funcionamento da Faculdade de Enfermagem.

Para a coleta de dados foram utilizadas as seguintes fontes primárias: documentos escritos pertencentes aos arquivos da UFJF e referentes ao curso de enfermagem e obstetrícia da FEHB e depoimentos de docentes que participaram da construção da história do ensino de enfermagem na UFJF, coletados na perspectiva da história oral temática. Este método busca ampliar o conhecimento sobre acontecimentos e conjunturas do passado através do estudo aprofundado de experiências e versões particulares, buscando compreender a sociedade por meio da pessoa que nela viveu7.

Os documentos selecionados foram armazenados fisicamente em pastas. Procedeu-se à leitura, ao fichamento e à organização dos dados por similaridade, pertinência temática, cronologia e origem.

Foram entrevistados cinco professores de enfermagem que vivenciaram a criação do curso na condição de docentes no período de 1979 a 1989, exercendo ou não cargos de chefe do departamento e coordenador do curso de enfermagem e obstetrícia. Foram excluídos aqueles que não atuaram como professores no Departamento de Enfermagem durante a década estudada.

Os dados foram obtidos no ano de 2009. Para a entrevista, utilizou-se um roteiro com as questões orientadoras: como era o ensino de enfermagem na primeira década de criação do curso na UFJF?

Como eram ministradas as disciplinas do curso? As entrevistas foram agendadas e realizadas em local e hora de escolha dos participantes. A delimitação do número de participantes não foi definida a priori, mas determinada a partir das repetições dos relatos e quando os pesquisadores consideraram que as inquietações foram respondidas e o objetivo do estudo, alcançado. Os depoentes foram identificados pela letra D, seguida de um número arábico, conforme sequência das entrevistas realizadas.

A operacionalização do estudo empregou o sistema de análise temática8 que inclui leitura flutuante, constituição de corpus e formulação de objetivos. Foram feitos recortes textuais dos documentos e dos depoimentos e transformados em unidades de registro. Esses recortes foram palavras, frases, assuntos e personagens. Por último, realizaram-se a classificação e agregação dos dados, com a organização por similaridade e pertinência temática dos achados que possibilitou a interpretação. Tanto a coleta como a análise dos dados e a discussão dos resultados foram orientadas por conceitos de Bourdieu: campo, habitus, capital, luta, violência e poder simbólico9.

Esta pesquisa está vinculada ao projeto "Trajetória do Curso de Enfermagem na Universidade Federal de Juiz de Fora: 1979-2009";, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa CEPHU CAS/UFJF sob o Parecer de nº 0043/09.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A criação do curso de enfermagem e obstetrícia na UFJF foi vinculada à incorporação de docentes, técnicosadministrativos, estudantes, acervo bibliográfico, materiais didático-pedagógicos e estrutura curricular do curso superior de enfermagem que funcionava sob a chancela do serviço de saúde do Estado de Minas Gerais - Faculdade de Enfermagem Hermantina Beraldo1.

Os resultados mostram que o processo de criação do curso na UFJF exigiu adaptações pedagógicas e administrativas em consonância ao Regimento Geral da instituição federal. As contínuas mudanças foram permeadas de resistências e avanços.

Adaptações curriculares do Curso de Enfermagem na UFJF: processo lento, porém progressivo

Os professores do curso de enfermagem e obstetrícia da FEHB, além das atividades pedagógicas, atuavam como enfermeiros no Hospital Escola da UFJF - cenário principal das atividades práticas e estágio dos cursos da área de saúde. Esta organização foi alterada na UFJF com a criação do curso de enfermagem e obstetrícia, separando-se o corpo docente - lotado na Faculdade de Medicina da UFJF, dos enfermeiros concursados para o serviço de enfermagem do hospital.

[...] a gente tinha o domínio do hospital escola na mão [...] Enquanto a gente era da Hermantina, nós éramos professores e enfermeiros do hospital escola [...] enfermeiras do setor e de manhã estávamos com aluno no estágio e chefiando o setor e de tarde saia na hora de dar aula, ia lá à faculdade dava aula e voltava [...] (D1).

O fragmento deste discurso expressa o poder conferido aos dirigentes da UFJF de impor a política vigente nesta instituição e imprimir às professoras um ato de violência, transfigurando a posição destas no campo, com perda de posição e de poder. Remete à questão do conceito de poder e violência simbólica de Bourdieu, que se define nas relações entre os agentes que o exercem e aqueles que são dominados no próprio campo9.

Os depoimentos mostram que toda estrutura do curso que existia na FEHB foi mantida, inclusive o currículo e as características do ensino vigentes naquela instituição.

Em um período a gente manteve o mesmo currículo da Hermantina Beraldo, que eu particularmente acho que era muito melhor [...] (D1).

[...] as professoras foram colocadas na UFJF, assim como os alunos e os funcionários. Também o material veio de lá, os livros [...] tudo que foi possível [...] comecei a trabalhar em junho de 1982 [...]eu percebia é que o ensino continuava sendo o mesmo que era dado na Hermantina (D2).

[...] a proposta de currículo que foi sendo discutida e atualizada na universidade com os professores, comissão organizadora de estágio [...] (D3).

Para fazer valer suas posições e garantir os ganhos necessários, os docentes empreenderam diversas estratégias de luta, dentre elas a conservação do modelo educacional. Ao agirem, exprimiam as disposições adquiridas dentro da instituição incorporada9.

A Reforma Universitária de 1968, entre outros, determinou a formação de um maior número de profissionais e a reestruturação do currículo mínimo para os cursos de graduação da área da saúde. O currículo mínimo de enfermagem, à época, foi aprovado pelo Parecer nº 163/72 e Resolução 04/72 do Conselho Federal de Educação. Este se pautava no modelo biologicista, individualista e hospitalocêntrico e apoiava-se em uma visão tecnicista da saúde e ainda não valorizava os determinantes sociais do processo saúde/doença10.

O curso de enfermagem criado na UFJF teve como proposta o currículo mínimo adotado na FEHB que seguia a legislação vigente, mas necessitava de adaptações para atender ao Regimento Geral da universidade.

A primeira adaptação se deu pela Resolução nº 43/78 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFJF que atribuiu ao currículo do curso de enfermagem e obstetrícia 3.975 horas - 174 créditos distribuídos em oito períodos letivos e separados em pré-profissional, profissional e estágios supervisionados. O art. 4º da mesma resolução atribuía o grau de licenciado ao aluno que concluísse 34 créditos das disciplinas de licenciatura em enfermagem11. Ressalta-se que, para obtenção do grau de licenciado em enfermagem, era necessária a conclusão do bacharelado, mesmo que concomitante12. Posteriormente, a Resolução 13/82 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFJF, em reunião do dia 19 de abril de 1982, aprovou a grade curricular do curso com a primeira reestruturação. Este currículo permaneceu inalterado até 198613.

Para organizar o currículo do curso de enfermagem e obstetrícia recém-criado, os dirigentes da UFJF solicitaram a participação dos professores incorporados da FEHB, que tivessem capital institucionalizado na área de planejamento curricular. Coube a liderança desse processo à coordenadora do curso de enfermagem e obstetrícia na FEHB à época12.

A admissão de novos agentes no campo e o direito de entrada neste campo são dados pelo reconhecimento dos seus valores fundamentais, pelo conhecimento das regras do jogo, isto é, da história do campo, e pela posse do capital específico. Isto é o que conta na disputa interna entre os agentes9.

Com a participação do grupo de professores, o currículo do curso de enfermagem e obstetrícia do departamento da Faculdade de Medicina da UFJF, a partir de 1979, foi organizado em disciplinas pelo sistema de créditos e em ciclos básicos por área de conhecimento (Ciências Humanas e Biológicas) e ciclo profissionalizante, classificando-as em obrigatórias e eletivas. Em conformidade com o currículo original da FEHB, a formação em enfermagem na UFJF seria também em quatro anos12.

Para realizar as adaptações necessárias ao funcionamento do curso de enfermagem e obstetrícia na UFJF, o grupo de professores teve como parâmetro o estatuto, o regimento geral, além das orientações dos gestores acadêmicos da graduação da UFJF. No período de 1986 a 1990, o currículo do curso foi alterado quanto ao número de créditos, desmembramento de disciplinas e alteração de pré-requisitos.

[...] continuou funcionando da forma como estava na Hermantina Beraldo e, oficialmente, houve um tempo para que os órgãos da Universidade aprovassem até que o curso fosse realmente da Universidade (D2).

No decorrer do tempo, por um processo não deliberado de ajustamento entre investimentos e condições objetivas de ação, as estratégias mais adequadas, mais viáveis, foram adotadas pelo grupo e incorporadas pelos docentes como parte do seu habitus9.

Entre as adaptações do currículo à UFJF, salienta-se a diminuição e redistribuição da carga horária12, considerando as três áreas de formação do enfermeiro: biológicas e humanas, fundamentos e assistência de enfermagem (ensino teóricoprático) e o estágio supervisionado, conforme as normas do sistema de créditos vigente na universidade.

[...] mesmo na época da Hermantina Beraldo, as disciplinas, como anatomia, eram no Instituto de Ciências Biológicas da UFJF. [...] tinha convênio. Os professores da federal davam aula para o curso de enfermagem também [...] Não houve mudanças, eles continuaram [...] (D1).

[...] para fazer a adequação do currículo da FEHB à UFJF houve redução da carga horária porque o curso era imenso e não cabia na UFJF [...]. [...] foi um período de adequação ao sistema da Universidade [...] (D2).

Promoveram-se encontros, reuniões e oficinas de trabalho de modo regular e intensivo, com vistas às exigências do contexto da enfermagem no cenário nacional e a necessidade de envolver os enfermeiros dos serviços de saúde, principalmente da rede pública, e a comunidade acadêmica do curso de enfermagem para construir coletivamente um projeto educacional para o curso de enfermagem e obstetrícia na UFJF.

[...] nos reuníamos toda semana [...]discutindo as questões que deveriam ser modificadas no currículo [...] fazia seminário, envolvia os alunos, os enfermeiros do hospital escola [...] Tudo para tentar pensar uma nova proposta de formação do enfermeiro (D2).

[...] por volta de 1985, discutia-se a reestruturação curricular na faculdade de Enfermagem [...] o currículo vigente era aquele currículo que foi adaptado da Hermantina Beraldo para a universidade [...] (D5).

O movimento de adaptações do currículo do curso de enfermagem e obstetrícia na UFJF acontecia de forma lenta, contudo, em consonância com o processo de redemocratização do país. Este processo contou com a participação efetiva das universidades brasileiras, no que diz respeito ao movimento da reforma sanitária, à constituinte e à mobilização das entidades de classe para a reestruturação do ensino. O corpo docente da instituição de ensino estudada envolveu-se na discussão da proposta de reestruturação curricular da enfermagem que ocorreu no nível nacional, desde 198712.

O currículo do curso de enfermagem no período 1979- 1989: resistências e avanços

A partir da análise das adequações e posterior reorganização do currículo de enfermagem e dos depoimentos de professores que vivenciaram o processo de criação do curso, foi possível identificar resistências e avanços do curso de enfermagem e obstetrícia da UFJF na década de 1980.

Essas resistências dizem respeito às mudanças relativas à cultura institucional, padrão de atitudes, hierarquia e (des)construção de modelos e valores relacionados à formação de enfermeiros e ao mundo do trabalho em uma instituição que congrega múltiplas áreas do saber, tolerância à diversidade de condutas, aberta ao processo dialógico - a universidade. Agindo dessa forma, os agentes colaboraram, sem o saberem, para reproduzir as propriedades do seu grupo social de origem e a própria estrutura das posições sociais na qual eles foram formados14.

Os professores salientam em seus depoimentos a influência da FEHB na formação do enfermeiro, tanto que expressam a continuidade do processo pedagógico na UFJF, tendo como modelo aquela instituição, principalmente, na operacionalização das atividades docentes e discentes. Nesse sentido, a manutenção deste modelo constituiu-se como uma das estratégias objetivas e práticas para garantir as posições destes agentes na estrutura do campo da educação em enfermagem9.

O primeiro conflito vivenciado pelos docentes em relação ao cumprimento das normas da UFJF foi relacionado à efetivação da matrícula dos estudantes. O depoimento a seguir mostra a dificuldade que os docentes tinham de aceitar o direito do estudante de planejar sua vida acadêmica, valendo-se do sistema de créditos15.

[...] embora na universidade funcionasse o sistema de créditos, para nós, as coisas funcionavam como curso seriado. [...] a gente não tinha essa noção de fazer uma disciplina na bioestatística, não tínhamos essa informação (D5).

Outro aspecto é que, mesmo o currículo apontando para a ênfase no aspecto intelectual no que diz respeito à construção do corpo de conhecimentos da profissão, o currículo era implementado, valorizando, em excesso, a execução de procedimentos de enfermagem até que o estudante adquirisse habilidades para realizar o cuidado ao paciente internado.

[...] a gente simulava os procedimentos antes de ir fazer no cliente [...] higiene oral, higiene dos cabelos, curativo, injeção, tudo isso a gente fazia e depois ia para o hospital. [...] no hospital, a gente fazia nos clientes para desenvolver habilidades (D5).

O depoimento a seguir mostra que a formação era pautada na fundamentação essencialmente biológica e postura profissional acrítica.

[...] a gente tinha algumas aulas que só falavam da assistência de enfermagem. Fazer isso, fazer aquilo, olhar isso, olhar aquilo. Não tinha fundamentação do porquê fazer aquilo ou não fazer. Ou a fundamentação era médica (D5).

Mesmo tendo o currículo um corpo de conhecimentos próprios da enfermagem, a carga horária de disciplinas com conteúdos das ciências médicas permanecia elevada12.

Embora se ampliassem as discussões sobre a mudança do modelo de assistência - curativista e hospitalocêntrico - para o da vigilância à saúde, na década de 80, o ensino de enfermagem continuava centrado na instituição hospitalar.

[...] na verdade, o foco da nossa formação era todo voltado para o hospital (D2).

[...] as práticas eram dentro de hospital, com pouca inserção em comunidade [...] (D3).

A repetição dos procedimentos durante as aulas práticas visava alcançar habilidades em termos de destreza e rapidez na realização das técnicas. O desenvolvimento do ensino teórico pautado nas ciências médicas impedia a reflexão sobre a formação do enfermeiro capaz de ar ticular conhecimentos e atitudes para o desenvolvimento da competência profissional. Na década de 1970, a principal modalidade da prática e organização de saúde no Brasil era a medicina hospitalar, com tendência à concentração e especialização16.

A organização dos conteúdos na composição do currículo e os depoimentos não deixam dúvidas de que o curso de enfermagem e obstetrícia da UFJF continuou o trabalho da FEHB que preparava as enfermeiras para atuar na área hospitalar. O ensino de enfermagem constituía-se em torno da medicina, visando à assistência, contudo a exigência do mercado de trabalho hospitalar levava o enfermeiro a assumir o papel de administrador de saúde e o afastava do cuidado direto12. O enfoque principal da formação em enfermagem era a preparação para a gerência do serviço de enfermagem.

[...] no último período, o aluno era colocado para fazer o estágio [...] essencialmente gerencial [...] as professoras da disciplina de administração supervisionavam este estágio [...] (D2).

Na estruturação curricular, havia uma definição clara do que se constituía o ensino prático e o estágio em cada disciplina da área de enfermagem. Contudo, na operacionalização, não havia distinção entre estas duas modalidades, no tocante às atividades executadas e avaliação. O estágio era realizado concomitante ao desenvolvimento do ensino teórico e prático. A única disciplina em que o estudante atuava como estagiário, com a supervisão indireta do professor e com a preceptoria do enfermeiro, era a Disciplina "Estágio em Administração Aplicada à Enfermagem II", realizada no último período do curso.

[...] ao mesmo tempo que você estava fazendo prática, você estava fazendo estágio, não tinha uma questão separada. Era uma carga em bloco teoria, prática e estágio, então não tinha essa separação (D5).

No currículo vigente, à época da criação do curso na UFJF, a disciplina pedagógica "Didática Aplicada à Enfermagem" era um componente curricular do bacharelado. As alterações curriculares suprimiram esta disciplina a partir da criação da licenciatura em enfermagem, tendência nacional que se consolidou com o último currículo mínimo da enfermagem aprovado pela Portaria nº 1.721, em 199417.

[...] também tinha a matéria pedagógica que instrumentalizava o enfermeiro para fazer a educação em saúde e a capacitação de técnicos e auxiliares: Didática aplicada à Enfermagem [...], nessa disciplina, nós aprendíamos a fazer ensino em Enfermagem (D2).

A avaliação do estudante era rigorosa em relação ao desempenho individual e pouco participativa. Era utilizada como uma ferramenta de controle do processo de aprendizagem, sendo esperados dois resultados: aprovação ou reprovação, ou seja, a avaliação formativa era pouco enfatizada.

[...] na Hermantina, a gente tinha uma cadernetinha preta; o aluno fazia uma técnica errada, a gente ia, chamava o aluno. Era uma avaliação diária que a gente tinha com o aluno. Então eu chegava e dizia: "você passou nessa prática e foi reprovado na outra por causa disso e disso [...] no dia tal, você fez isso [...]" (D1).

Na UFJF, a partir do regimento acadêmico da graduação, a avaliação tornou-se parte do processo de aprendizagem, abrindo possibilidades para o estudante se recuperar e estruturar seu plano de estudos de acordo com suas necessidades e desempenho obtidos nas disciplinas cursadas anteriormente15.

Na federal, eu sentia meio solto, entendeu? [...] a gente não tem uma ferramenta segura [...] A própria estrutura da federal não é assim de cobrar isso, então é complicado (D1).

Mesmo com todas as resistências, muitas vezes edificadas no desconhecimento e despreparo para atuar na UFJF, a comunidade acadêmica empreendeu esforços para acompanhar as mudanças referentes à instituição, à formação do enfermeiro e à necessidade de participação do movimento de redemocratização do Brasil. Isso significa que o habitus profissional das professoras da FEHB passou por uma atualização, para que elas dessem conta das transformações que estavam ocorrendo no campo da educação.

No final dos anos 80, o curso de enfermagem da UFJF foi parceiro do Programa de Desenvolvimento da Enfermagem - PRODEN, realizado sob a coordenação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais. Este programa tinha como proposta impulsionar a reorientação da formação do enfermeiro a partir de reflexões e capacitações do corpo docente para ampliar horizontes na formação e atuação do enfermeiro em consonância com o movimento de reforma sanitária no Brasil.

[...] o Programa de Desenvolvimento da Enfermagem - PRODEN, coordenado pela Escola de Enfermagem da UFMG em convênio com a UFJF e outras escolas de Minas Gerais, apoiou a qualificação dos professores para a mudança do modelo assistencial de saúde e reformulação curricular (D3).

Os depoimentos mostram que a comunidade acadêmica acompanhava as discussões nacionais e internacionais acerca da necessidade de mudanças do modelo de saúde e da formação profissional.

[...] as disciplinas do curso de Enfermagem começam a modificar a distribuição da carga horária, incluindo atividade hospitalar e atividade de atenção primária, ou seja, extrahospitalar [...] aí começa a atividade nas Unidades de Saúde [...] nas Unidades de creches, Abrigo de apoio aos idosos [...] (D5).

Os movimentos sociais da década de 80 voltaramse para articular e propor a criação de um sistema único de saúde cujo desencadeamento foi a reforma sanitária brasileira, considerada como integrante do processo de democratização do Estado e da sociedade18. A formação precisava ser reestruturada de modo a acompanhar as
profundas transformações apontadas para ampliar o acesso e a qualidade de ações e serviços de saúde, além da concepção e experimentação de modelos de atenção à saúde que contemplassem os princípios e diretrizes do sistema de saúde que vinha sendo construído - O Sistema Único de Saúde.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de os resultados desta pesquisa estarem limitados à criação de um Curso de Enfermagem em um município da região sudeste do Brasil, este acrescenta contribuições aos estudos já publicados sobre a temática, na medida em que ressalta o modo singular de criação e operacionalização deste curso, que viria a preencher uma lacuna na área de saúde na universidade.

O curso de graduação em enfermagem da UFJF, no período 1979 a 1989, foi marcado por conflitos relacionados à resistência em adequar o processo de formação do enfermeiro, criado originalmente na instituição incorporada, aos aspectos legais da instituição federal.

A dificuldade em aceitar o sistema de créditos e os equívocos apontados em relação à concepção de estágio podem ser entendidos como uma forma de controle do processo de aprendizagem e manutenção do modelo educacional vigente na Faculdade de Enfermagem Hermantina Beraldo.

A repetição dos procedimentos de enfermagem em laboratórios e aulas práticas mostrada na análise deste estudo aponta a abordagem tecnicista combatida pelos estudiosos da enfermagem, na década de 1980. Esta posição ia de encontro à da enfermagem brasileira, à época, que se preocupava com a necessidade da construção do corpo de conhecimentos específicos e aconselhava uma formação crítica e reflexiva, no sentido de o enfermeiro ser valorizado pela competência profissional garantida pelo conhecimento científico, habilidade e atitude.

A exclusão de disciplinas pedagógicas como componente curricular do bacharelado pode ser considerada negativa para a formação, a despeito da ofer ta da licenciatura em enfermagem, que é opcional. Assim, a formação do bacharel em enfermagem da UFJF ficou prejudicada, considerando-se que o enfermeiro é um educador em saúde.

Diante das resistências, cujas razões são variadas e complexas, ressalta-se a dificuldade do entendimento do processo de avaliação no desempenho do estudante nas atividades práticas e de estágio, com minimização do aspecto formativo.

Por outro lado, o fato de estar na UFJF possibilitou o envolvimento da comunidade acadêmica do curso de enfermagem e obstetrícia com outras instituições, propiciando maior compreensão da necessidade das mudanças curriculares em conformidade com a discussão sobre a inversão do modelo de assistência à saúde em vigor no Brasil, à época.

A despeito de todas as dificuldades e resistências enfrentadas no período analisado, o curso de enfermagem e obstetrícia consolidou-se na UFJF, em consonância com as exigências institucionais, sociais e da própria profissão.

 

REFERÊNCIAS

1. Figueiredo MAG, Baptista SS. Curso de Enfermagem da Universidade Federal de Juiz de Fora: 1977-1979. Rev Bras. Enferm. 2009;62(4):512-17.

2. Baptista SS, Almeida Filho AJ, Barbosa TSC, Xavier ML. Nexos entre o contexto histórico e a expansão do número de cursos superiores de enfermagem nas regiões sudeste e sul do Brasil. Referencia. 2010;13:73-80.

3. Lei n.7.131, de 16 de novembro de 1977. Autoriza o Poder Executivo a promover a transferência da Faculdade de Enfermagem mantida pela Fundação Hermantina Beraldo para a Universidade Federal de Juiz de Fora. Diário do Estado de Minas Gerais- Poder, Belo Horizonte (MG), 17 nov 1977:Seção 5:1.

4. Universidade Federal de Juiz de Fora. Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão. Resolução n. 62, de 02 de dezembro de 1977. Curso de Enfermagem e Obstetrícia: proposta de criação. Bol Reitoria n.192, Juiz de Fora (MG), 1977:15.

5. Universidade Federal de Juiz de Fora. Portaria nº 1.084, de 29 de outubro de 1979. Reconhecimento do Curso de Enfermagem da Universidade Federal de Juiz de Fora. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília (DF), 1979. Seção 1:1.

6. Lei nº 6.954 de 18 de novembro de 1981. Dispõe sobre aproveitamento de pessoal na Universidade Federal de Juiz de Fora. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília (DF), 19 nov 1981:Seção 1:21742.

7. Alberti V. Manual de história oral. 2ª ed. Rio de Janeiro:FGV; 2004.

8. Minayo MCS. Pesquisa social. 19ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2000.

9. Bourdieu P. O poder simbólico. 7.ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2007.

10. Teixeira E, Vale EG, Fernandes JD, De Sordi MRL. Trajetória e tendências dos cursos de enfermagem no Brasil. Rev Bras Enferm. 2006;59(4):479-87.

11. Universidade Federal de Juiz de Fora. Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão. Resolução n. 43, de novembro de 1978. Curso de Enfermagem e Obstetrícia: currículo. Bol Reitoria nº 203, Juiz de Fora (MG),1978:17.

12. Castro EPB. O ensino de enfermagem na Universidade Federal de Juiz de Fora e a prática profissional do enfermeiro na rede hospitalar [dissertação de mestrado]. Juiz de Fora: Faculdade de Educação/UFJF; 1999.

13. Universidade Federal de Juiz de Fora. Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão. Resolução n. 13, de 19 de abril de 1982. Curso de Enfermagem e Obstetrícia: reestruturação. Bol Reitoria nº 245, Juiz de Fora (MG), 1982:12-5.

14. Nogueira MA, Nogueira CMM. Bourdieu& Educação. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica; 2009.

15. Universidade Federal de Juiz de Fora. Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão. Resolução n.11, de 13 de março de 1997. Autoriza a republicação do Regulamento Acadêmico da Graduação. Juiz de Fora (MG); [citado 2011 fev 03]. Disponível em: http://www.ufjf.br/prograd/legislacao/regulamento-academico-da-graduacao/.

16. Vietta EP, Uehara M, Silva Netto KA. Evolução da enfermagem no contexto do hospital-escola: depoimentos de enfermeiros representantes da década de 70. Rev Latino-Am Enfermagem. 1996;4(3):135-54.

17. Ministério da Educação e Desporto(BR). Portaria n°1.721 de 15 de dezembro de 1994. Dispõe sobre a formação do Enfermeiro, que será feita em curso de graduação e cumprirá os mínimos de conteúdo e de duração fixados pela presente. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília(DF), 16 dez 1994. Seção 19:801.

18. Paim JS. Desafios para a saúde coletiva no século XXI. Salvador: EDUFBA; 2008.

 

 

Recebido em 23/06/2011
Reapresentado em 15/09/2011
Aprovado em 26/01/2012

 

© Copyright 2024 - Escola Anna Nery Revista de Enfermagem - Todos os Direitos Reservados
GN1