Volume 16, Número 1, Jan/Mar - 2012
PESQUISA
A compreensão das necessidades de saúde segundo usuários de um serviço de saúde: subsídios para a enfermagem
Understanding the health needs according to health service users: elements for nursing
Comprensión de las necesidades de salud según los usuarios de un servicio de salud: subsidios para la enfermería
Fernanda Aparecida FrancoI; Paula HinoII; Lúcia Yasuko Izumi NichiataIII; Maria Rita BertolozziIV
IEnfermeira da Estratégia de Saúde da Família. Especialista em Enfermagem em Saúde Coletiva com ênfase no Programa de Saúde da Família pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Mestre em Ciências pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo - SP. Brasil. Email: ferfranco@usp.br
IIEnfermeira. Pós-Doutoranda da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Bolsista CNPQ. São Paulo - SP. Brasil. Email: paulahino@usp.br
IIIEnfermeira. Professora Associada do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo - SP. Brasil. Email: izumi@usp.br
IVProfessora Associada do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo - SP. Brasil. Email: mrbertol@usp.br
RESUMO
Trata-se de estudo qualitativo, com objetivo de conhecer o conceito de necessidades de saúde, segundo a percepção de usuários de um serviço de saúde do Município de São Paulo. Foram realizadas 15 entrevistas por meio de roteiro semiestruturado, em dezembro de 2008. A leitura exaustiva do material permitiu a apreensão de elementos que compõem a classificação baseada na Taxonomia de Necessidades. As necessidades de saúde foram relacionadas à presença de emprego, moradia e condições de saneamento básico, bem como acesso às consultas médicas, medicação e realização de exames. Também foi reconhecida a necessidade relacionada ao vínculo entre usuário e equipe de saúde, manifesta como desejo de atendimento gentil e com maior disponibilidade de tempo. Ressalta-se a necessidade de instrumentos que auxiliem o profissional da área da Saúde Coletiva a identificar as necessidades de saúde dos usuários, que não se limitam às de âmbito biológico.
Palavras-chave: Necessidades e demandas de serviços de saúde. Acolhimento. Atenção primária à saúde.
ABSTRACT
It is a qualitative study aiming at knowing the concept of health needs according to the user´s perceptions of any health service in São Paulo. 15 interviews were conducted through semistructured script, in December, 2008. A thorough reading of the material led to the gather elements that make up the classification based on the Taxonomy Needs. The health needs were related to the presence of employment, housing and sanitation conditions and access to medical appointments, medication and laboratory tests. It also recognized the need related to the bond between the user and the health care team, it manifested as a desire of gentle care and greater availability of time. We stress the need for tools that assist the professional in the field of Public Health to identify the health needs of users, which are not limited to the biological field.
Keywords: Health services needs and demand. User embracement. Primary Health Care.
RESUMEN
Se trata de un estudio cualitativo, con el fin de conocer el concepto de necesidades de salud, de acuerdo a las percepciones de los usuarios de un servicio de salud en São Paulo. Se realizaron 15 entrevistas seme estructuradas en diciembre de 2008. Una lectura minuciosa del material llevó a la incautación de los elementos que componen la clasificación basada en la Taxonomía de las Necesidades. Las necesidades de salud estaban relacionadas con la presencia de condiciones de empleo, vivienda y saneamiento y el acceso a consultas médicas, medicamentos y pruebas de laboratorio. También reconoció la necesidad relacionada con el vínculo entre el usuario y el equipo médico, se manifiesta como un deseo de un cuidado suave y una mayor disponibilidad de tiempo. Resaltamos la necesidad de herramientas que ayuden a los profesionales en el campo de la salud pública para la identificación de las necesidades de salud de los usuarios, que no se limitan a la esfera biológica.
Palabras clave: Necesidades y Demandas de Servicios de Salud. Acogimiento. Atención Primaria de Salud.
INTRODUÇÃO
A compreensão do conceito de necessidades de saúde é condição para que se possa organizar um sistema de saúde no espaço da atenção básica e planejar a prestação de serviços para atender as necessidades de saúde da população.1 Partese da compreensão de que as unidades básicas de saúde devem responder a uma necessidade social, o que inclui as necessidades de saúde de uma dada população. No desenvolvimento de sua prática diária, o trabalho do profissional de saúde deve ter como meta a satisfação das necessidades relacionadas ao processo saúde-doença.
As necessidades de saúde refletem a singularidade dos processos saúde-doença de indivíduos e famílias e as particularidades dos processos de produção e reprodução social dos distintos grupos sociais.2
Considera-se que as necessidades de saúde são social e historicamente determinadas, situam-se entre a natureza e a cultura, ou seja, não dizem respeito apenas à conservação da vida, mas também à realização de um projeto de vida em que o indivíduo progressivamente se humaniza.3 Quanto mais desigual for uma sociedade, quanto mais a desigualdade for sancionada culturalmente, maiores serão as necessidades de saúde dos diferentes grupos da população.4
Na perspectiva da Saúde Coletiva, os serviços de saúde têm como finalidade atender às necessidades de saúde da população, considerando que tanto necessidade quanto saúde são fenômenos complexos, mudam ao longo da história humana e em cada sociedade. Portanto, são conceitos relativos, dependem de quem, como e quando são definidos.
As necessidades estão diretamente associadas ao consumo e não dizem respeito somente ao consumo ampliado, ou seja, aquele que é determinado pela lógica de expansão do capital e relacionado às necessidades socialmente criadas, mas também integram o consumo para o cotidiano, para o viver a vida. Considerando que o consumo é dado pela possibilidade de apropriação de recursos econômicos, esta possibilidade é determinada e mediada pela inserção das pessoas no trabalho. As desiguais inserções no modo de produção determinam formas diferenciadas de viver e de trabalhar.5 Sendo assim, necessidades não são naturais, nem iguais, na medida em que desiguais são o acesso ao trabalho, o consumo dos produtos do processo de trabalho e, portanto, também, o acesso aos mesmos.6
Neste sentido, também a satisfação das necessidades de saúde está relacionada à capacidade humana de trabalhar, à capacidade de produzir bens e às relações sociais. A capacidade humana de trabalhar transforma a vida em sociedade para suprir necessidades para a reprodução social.7
O processo de determinação de necessidades deve ser instaurado com base na lógica de "dar voz" aos indivíduos, considerando-se que as necessidades de saúde e as práticas dos serviços estão atreladas, já que as necessidades de saúde designam uma condição que requer ações dos serviços de saúde. A escuta das necessidades dos usuários permite aos profissionais de saúde ampliar a capacidade e potencializar as intervenções em relação aos problemas trazidos pela população.8
A captação de necessidades requer admitir um conceito de necessidades que transcenda o cunho clínico e biológico e que articule as necessidades de saúde às necessidades sociais, uma vez que a saúde integra a vida em sociedade. Desta forma, os serviços de saúde devem estar preparados para lidar com as necessidades para compreender e produzir significados sobre sua natureza, na interseção dos sujeitos implicados - nos momentos de produção e do consumo da saúde - promovendo a sua autonomia. Assim, saber escutar o que o usuário tem a dizer, compreender e significar as necessidades é fundamental nas práticas de saúde.6
A proposta de uma Taxonomia para as necessidades de saúde coloca em questão alguns elementos para o entendimento da realidade, a partir da perspectiva dos sujeitos imersos na sociedade. A taxonomia adotada classifica o conceito Necessidades em quatro grupos: boas condições de vida; acesso ao consumo de tecnologias de saúde capazes de melhorar e prolongar a vida; criação de vínculos afetivos entre usuários e equipes de saúde e graus crescentes de autonomia.9
As intervenções devem produzir, nos sujeitos e no coletivo, "graus crescentes de autonomia" nos seus "modos de andar na vida", e isto requer que o usuário confie no serviço e nos profissionais de saúde.10
Diante do exposto, este estudo teve como objetivo identificar como os usuários de um serviço de saúde da atenção básica entendem o tema necessidades de saúde.
METODOLOGIA
Trata-se de estudo de natureza qualitativa, de caráter exploratório, do tipo estudo de caso. Foi realizado em um Centro de Saúde Escola (CSE), localizado no Distrito Administrativo do Butantã, região oeste do Município de São Paulo. O CSE vem desenvolvendo, desde 1977, ações em atenção básica, sob gestão da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e tem como objetivo, desenvolver, de maneira integrada, o ensino de graduação em medicina, enfermagem e fonoaudiologia; desenvolver linhas de pesquisas relacionadas aos projetos de ensino e às tecnologias inovadoras em atenção à saúde e oferecer assistência à saúde de qualidade à população da sua área de abrangência, nos campos da promoção da saúde, prevenção de doenças e atendimento a agravos.
Foram realizadas entrevistas por meio de roteiro semiestruturado, com 15 usuários que aguardavam consulta médica na unidade de saúde e que aceitaram participar do estudo. Os critérios de inclusão foram: idade igual ou superior a 18 anos e estar em condições de saúde que possibilitassem responder ao instrumento de coleta de dados. As entrevistas foram realizadas na segunda quinzena de dezembro de 2008. O número de participantes não foi preestabelecido, sendo utilizado o critério de saturação dos depoimentos.
O instrumento de coleta de dados foi composto por duas partes. A primeira abordava questões relativas a dados sociodemográficos, visando caracterizar os sujeitos do estudo, e a segunda parte constou de duas questões norteadoras que permitissem ao entrevistado discorrer livremente sobre o tema necessidades de saúde: "O que é necessidade de saúde?", "Você considera que as suas necessidades de saúde são satisfeitas neste serviço?".
As entrevistas ocorreram em sala reservada, nas dependências da unidade de saúde, e duraram cerca de 15 minutos, sendo gravadas e transcritas na íntegra por uma das autoras do presente artigo. Os usuários foram convidados a participar da entrevista enquanto aguardavam suas consultas médicas. Nesse momento, foram esclarecidos sobre a realização do estudo e sobre os preceitos éticos. Aqueles que aceitaram participar assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Os depoimentos foram submetidos à análise temática, que proporcionou a emergência de elementos articulados ao tema necessidades. A análise dos resultados e discussão pautou-se no referencial teórico da Teoria da Determinação Social do Processo Saúde-Doença, admitindo-se que a forma como a sociedade está organizada imprime a expressão do processo saúde-doença.11 Já os significados do conceito de Necessidades de Saúde foram analisados com base na taxonomia proposta, que reúne quatro grandes conjuntos: boas condições de vida, acesso ao consumo de tecnologias de saúde capazes de melhorar e prolongar a vida, criação de vínculos afetivos entre usuários e equipe de saúde e graus crescentes de autonomia.12
Atendendo à Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), o projeto de pesquisa foi previamente submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP), sendo aprovado sob o parecer nº 783/2008.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Em relação à caracterização dos sujeitos do estudo, houve predomínio do sexo feminino (11 sujeitos), com idade que variou entre 20 e 65 anos e cuja procedência foi, principalmente, das regiões norte e nordeste do País. Em relação à escolaridade, seis entrevistados referiram ter completado o ensino fundamental. Ainda que o montante de sujeitos seja bastante reduzido, algumas características que constituíram as variáveis sociodemográficas refletem o que ocorre na sociedade brasileira. Assim, embora as mulheres tenham apresentado nível de escolaridade superior ao dos homens, a situação de trabalho e a renda média mensal entre eles refletem a relação de desigualdade, em que as mulheres frequentemente realizam atividades de trabalho informal, com menores salários.
No que se refere à análise dos depoimentos, identificouse, com relação ao conjunto que se refere à Necessidade de boas condições de vida, que a maioria dos usuários relaciona diretamente como necessidades de saúde dispor de moradia digna, qualificada como aquela que dispõe de água e esgoto; além de possuir emprego e ter acesso à alimentação de boa qualidade. esses elementos foram apontados principalmente pela parcela de entrevistados que, no momento da coleta de dados, estavam desempregados e necessitavam da ajuda de familiares, assim como aposentados com renda mensal inferior a um salário mínimo ou que realizavam atividades informais para complementar a renda.
A saúde pressupõe condições de vida adequadas, incluindo-se o direito à moradia, saneamento básico, alimentação, emprego e educação. Tais direitos encontram-se, inclusive, contidos no conceito que consta da Constituição brasileira. Assim, o atendimento a tais necessidades também depende da intersetorialidade como estratégia política e operacional orientada para a integralidade.12
Ainda em relação ao conjunto que se refere às boas condições de vida, encontraram-se referências dos usuários a elementos como religião, esporte, lazer e companhia, o que indica que as atividades sociais e as relações interpessoais têm relevância na vida dos usuários, explicitando a necessidade de participação na sociedade.
Com relação à dimensão Necessidade de ter acesso e poder consumir toda tecnologia de saúde capaz de melhorar e prolongar a vida, emergiu dos depoimentos como referida ao acesso ao sistema de referência e contrarreferência. Ainda que o serviço onde foi realizado o estudo busque retirar de foco o modelo de assistência biomédico, e esteja orientado para as ações programáticas, os usuários relacionaram fortemente as necessidades de saúde às enfermidades, ao atendimento médico, ao acesso à exames e medicamentos. Na opinião dos usuários, ter medicamentos e dispor de exames laboratoriais seria a conduta esperada para a satisfação das necessidades. Ora, a valorização de tais ações evidencia que os usuários também reconhecem a eficácia do modelo orientado para o curativo.13
Isso pode ser corroborado, pois, quando os sujeitos do estudo foram questionados se as necessidades de saúde eram satisfeitas no serviço de saúde, alguns sujeitos confirmaram, atribuindo a satisfação das necessidades ao agendamento de consultas, à realização de exames e ao acesso à medicação gratuita. Por outro lado, as pessoas que discordaram que o serviço de saúde atendia as necessidades de saúde referiram ter acesso limitado às consultas, exames e medicação.
De modo geral, os depoimentos dos usuários que apontaram as dificuldades na satisfação das necessidades envolvem: demora no agendamento de consultas e exames especializados, a obtenção de medicação, a morosidade na resolução dos problemas de saúde, tanto no âmbito da unidade básica, como fora dela, como, por exemplo, a insuficiência de serviços especializados, as quais estão relacionadas à acessibilidade do ponto de vista organizacional e ao sistema de referência e contrarreferência.
Com relação à acessibilidade organizacional, os obstáculos enfrentados pelos sujeitos estão relacionados à entrada na unidade de saúde como, por exemplo, a demora para conseguir consulta médica e os turnos de funcionamento, dentre outros; além daqueles referentes ao tempo de espera para ser atendido para a realização de exames, bem como as dificuldades na continuidade da assistência, o que se refere à longitudinalidade do cuidado.14 E isto é particularmente importante, pois a falta de recursos humanos, materiais e equipamentos também repercute no processo de trabalho de profissionais de saúde e na satisfação do usuário com o serviço oferecido.15
Identificou-se nos relatos de usuários que apontavam a necessidade de ampliação do olhar da equipe de profissionais para além dos limites da Unidade de Saúde, como adequação dos agendamentos, levando em consideração os horários de trabalho dos usuários que apresentam dificuldade para serem dispensados para o tratamento prolongado. Ademais, duas mulheres entrevistadas relataram necessitar de adequação do horário de atendimento da Unidade de Saúde ao horário escolar de seus filhos, já que a terceira ausência consecutiva da criança ao grupo escolar levaria à perda do benefício do leite oferecido pela Prefeitura de São Paulo, com reflexos diretos sobre o orçamento da família e sobre o estado nutricional das crianças.
Segundo os relatos, é importante a escuta apurada dos profissionais em relação às necessidades de cada usuário. É preciso haver maior flexibilização em relação ao atendimento na unidade de saúde. Isso significa entender, por exemplo, o que pode estar por trás de uma baixa adesão ao tratamento e buscar, de alguma forma, oferecer outras opções para os usuários. A proximidade entre o usuário e o profissional de saúde é parte constitutiva da integralidade.Outro elemento fundamental na construção da integralidade refere-se ao sistema de referência e contrarreferência, que deve garantir o acesso do indivíduo a todos os níveis de atenção e a possibilidade de resolução, de acordo com a necessidade de cada um.14
De acordo com os sujeitos do estudo, há dificuldade em conseguir realizar exames específicos devido às falhas nas informações dos profissionais de saúde do serviço e à falta de especialistas. É preciso pensar na integralidade referida ao trabalho de cada profissional da equipe e a integralidade pensada em rede, ou seja, a articulação entre cada serviço de saúde e uma rede mais ampla, composta por outras instituições que não necessariamente do setor saúde, pois a integralidade nunca será plena em um serviço de saúde. O acesso a toda a tecnologia de saúde, capaz de melhorar e prolongar a vida só será possível se pensarmos a integralidade nesta lógica, já que tais tecnologias estão dispersas pelos serviços de saúde.12
Ao refletir sobre a integralidade na atenção à saúde, afirma-se sobre a necessidade de rever os processos de trabalho no interior do serviço de saúde, assim como no espaço extramuros, problematizando-os, pois a resposta para uma necessidade depende da compreensão do momento de vida de cada usuário.
No que diz respeito à dimensão Necessidade de vínculo afetivo entre cada usuário e a equipe e/ou profissional, os sujeitos da pesquisa demonstraram uma visão que pode ser considerada como construtiva ou negativa em relação ao atendimento dos profissionais de saúde. Os usuários fizeram menção a elementos que são constitutivos deste conjunto ao apontarem como positivo o comportamento gentil e educado por parte do profissional de saúde. Por outro lado, foi apontada a falta de confiança nos profissionais de saúde para o estabelecimento de vínculo entre usuário e equipe de saúde como aspecto negativo.
Assim, quando questionados sobre a satisfação de suas necessidades naquele serviço de saúde, houve também os que responderam afirmativamente e relataram receber atendimento qualificado como "bom", ao apontarem quando eram atendidos com educação, pontualidade e tempo suficiente para expressarem suas queixas, além do fato de perceberem suas necessidades valorizadas.
Acredita-se que o vínculo é muito mais do que a inscrição de um usuário a um serviço de saúde: é uma relação contínua, pessoal e intransferível, um encontro de subjetividades.12 Baseia-se na afetividade, aceitação e confiança, além de ser um elemento fundamental para um bom atendimento.15
A Necessidade de graus crescentes de autonomia no modo de levar a vida pouco emergiu entre as falas dos usuários. Esta dimensão permaneceu mais oculta no discurso dos sujeitos, manifestando-se apenas como necessidade de conhecer melhor a patologia, a forma de tratamento, além de referir-se a informações importantes para que cuidassem melhor de sua saúde. Ao responderem à questão relacionada à satisfação das necessidades no serviço de saúde, os usuários consideraram ter suas necessidades atendidas, porém relataram que, mesmo tendo acesso às orientações e informações fornecidas pelos profissionais que os atendem, isto não resultou em mudança de seu comportamento para o tratamento.
Entretanto, é necessário compreender que informação não necessariamente reflete em mudança de comportamento, sendo a informação e a educação em saúde parte do processo de construção da autonomia das pessoas. A autonomia implicaria a possibilidade de reconstrução, pelos sujeitos, dos sentidos de sua vida e esta ressignificação teria peso efetivo no seu modo de viver, incluindo aí a luta pela satisfação de suas necessidades, da forma mais ampla possível.12
Um dos usuários, ao considerar que o serviço não atendia completamente suas necessidades, refere que precisam de mais informação e orientação, não apenas para o tratamento de uma enfermidade, mas principalmente sobre hábitos que os ajudem a cuidar melhor de sua saúde.
A utilização de um instrumento para o reconhecimento de vulnerabilidades sociais e de necessidades de saúde tem potencial para reestruturar as práticas de saúde, orientando profissionais de saúde a adotarem práticas condizentes aos pressupostos do campo da Saúde Coletiva, a partir do momento que considera dimensões da realidade objetiva, como a constituição da família, as formas de trabalho (ou de produzir) e de viver (ou de consumir) dos grupos sociais.16
Neste sentido, a incorporação de instrumentos específicos de captação de necessidades de saúde requer reflexão sobre a lógica do trabalho, permeada pela escuta qualificada dos usuários que buscam os serviços de saúde, considerando que, muitas vezes, as necessidades de saúde não são expressas, cabendo ao profissional de saúde estar apto a fazer a leitura das necessidades de saúde trazidas pela população.17
Um estudo conduzido em serviços de saúde da atenção básica do Município de São Paulo mostrou a diversidade de práticas de saúde no reconhecimento e enfrentamento das necessidades de saúde da população, como visita domiciliária, Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), dados epidemiológicos, registro de atendimentos, dentre outros. No entanto, nesse estudo destaca-se a inexistência de instrumentos específicos utilizados pelas unidades e equipes de saúde entrevistadas, para o reconhecimento das necessidades de saúde e vulnerabilidades da população.18
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio dos depoimentos, foram identificadas as quatro dimensões que integram a taxonomia proposta para analisar as necessidades de saúde. Os usuários entendem que as necessidades de saúde relacionam-se às boas condições de vida, ao acesso às tecnologias de saúde que possibilitam melhorar e prolongar a vida e, também ao vínculo com os profissionais de saúde. Porém, a dimensão relativa aos graus crescentes de autonomia no modo de levar a vida pouco emergiu dos depoimentos, aparecendo apenas relacionada ao âmbito do conhecimento sobre a enfermidade e tratamento, o que não deixa de ser indicativo de que os profissionais devem atentar para tal fato no cotidiano da assistência.
De modo geral, os usuários do serviço relacionam mais diretamente o tema necessidades de saúde ao atendimento médico e ao acesso aos medicamentos. Nota-se que os usuários não compreendem o sistema de saúde como uma rede integrada e, quando necessitam utilizar recursos não disponíveis no próprio serviço, consideram tal situação como falha, sentindose desrespeitados.
Ainda que grande parte das entrevistas tenha demonstrado que os usuários consideram outras necessidades importantes, além do atendimento médico, medicação e exames complementares, ao responderem à pergunta relacionada ao atendimento das necessidades, também consideraram que o serviço atendia plenamente suas necessidades de saúde, exemplificando como justificativa para tal a presença de médicos e a possibilidade de obterem a medicação gratuitamente. Os sujeitos que referiram não ter suas necessidades satisfeitas mencionaram a demora na resolução dos problemas relacionados à saúde. Tal fato reforça a ideia de que o usuário parece não entender o sistema como rede, e não percebe o serviço como parte de tal sistema, que se articula com outras instituições que não necessariamente do setor saúde.
Espera-se que o presente estudo desperte o interesse dos profissionais de saúde na busca de caminhos para operacionalizar o conceito de necessidades de saúde em suas práticas profissionais, bem como estimule os responsáveis por conduzir os cursos de graduação da área da saúde com vistas à formação profissional voltada ao atendimento da população baseada na satisfação de suas necessidades de saúde.
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Recebido em 08/08/2010
Reapresentado em 29/04/2011
Aprovado em 28/06/2011