ISSN (on-line): 2177-9465
ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
COPE
ABEC
BVS
CNPQ
FAPERJ
SCIELO
REDALYC
MCTI
Ministério da Educação
CAPES

Volume 15, Número 4, Out/Dez - 2011

PESQUISA

 

Ações de saúde mental na estratégia saúde da família e as tecnologias em saúdea

 

Actions of mental health in family health strategy and the health technologies

 

Acciones de salud mental en la estrategia salud de la familia y las tecnologías en salud

 

 

Fernanda Barreto MielkeI; Agnes OlschowskyII

IEnfermeira. Mestre em Enfermagem - UFRGS. Doutoranda do PPGENF/UFRGS. Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Enfermagem Psiquiátrica e Saúde Mental (GEPESM). Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Endereço para correspondência: Porto Alegre-RS. Brasil. Email: fbmielke@gmail.com
IIEnfermeira. Doutora em Enfermagem - USP. Professora Adjunta da Escola de Enfermagem e do PPGENF - UFRGS. Líder do GEPESM. Porto Alegre-RS. Brasil. Email: agnes@enf.ufrgs.br

 

 


RESUMO

O presente artigo teve o objetivo de avaliar as tecnologias em saúde utilizadas por equipes da Estratégia Saúde da Família para o desenvolvimento de ações de saúde mental no território. Estudo avaliativo qualitativo, realizado com duas equipes de saúde da família, desenvolvido por meio da Avaliação de Quarta Geração. Para a coleta de dados utilizou-se observação participante e entrevista individual. Os dados foram analisados pelo Método Comparativo Constante. Os resultados apontaram que os profissionais utilizam diversas tecnologias para a inclusão da saúde mental no território, tais como acolhimento, escuta, vínculo, visita domiciliar, discussão de casos, consulta médica e grupo terapêutico. O desenvolvimento dessas ações tem possibilitado a construção de uma nova prática em saúde mental no território que valoriza o indivíduo em sofrimento psíquico como protagonista de sua existência.

Palavras-chave: Avaliação em saúde. Saúde mental. Saúde da família. Tecnologia.


ABSTRACT

The current article aims to assess health technologies used by Family Health Strategy teams to develop mental health actions in the territory. This is a qualitative evaluative study, carried out with two family health teams, developed with Fourth Generation Evaluation. In order to collect the data, methods used were participant observation and individual interview. The data were analyzed using Constant Comparative Method. The results showed that professional used several technologies for mental health inclusion in the territory, such as receptivity, qualified listening, therapeutic bond, home visits, discussion of case, medical consultation and therapeutic group. Development of these actions has made possible to build a new mental health practice that values the individual under psychic suffering as a main actor of his own existence.

Keywords: Health evaluation. Mental health. Family health. Technology


RESUMEN

El presente artículo tiene el objetivo de evaluar las tecnologías en salud utilizadas por equipos de la Estrategia Salud de la Familia para el desarrollo de acciones de salud mental en el territorio. Estudio de evaluación cualitativo, desarrollado con dos equipos de salud de la familia, por medio de la Evaluación de Cuarta Generación. Los datos fueran recogidos por medio de observación y entrevista individual. Los datos fueran analizados pelo Método Comparativo Constante. Los resultados muestran que los profesionales utilizan diversas tecnologías para la inclusión de la salud mental en el territorio, como acogimiento, escucha, vínculo, visitas en casa, discusiones de los casos, consulta medica y grupo terapéutico. El desarrollo de esas acciones posibilitan la construcción de una nueva práctica en salud mental en el territorio que valorizan el individuo en sufrimiento psíquico como protagonista de su existencia.

Palabras clave: Evaluación en Salud. Salud mental. Salud de la familia. Tecnología.


 

 

INTRODUÇÃO

O Sistema Único de Saúde (SUS), pautado nas diretrizes de descentralização, atendimento integral e participação da comunidade, é um sistema complexo, com a responsabilidade de articular e coordenar ações promocionais, preventivas, de tratamento e de reabilitação à saúde da população.1,2 Caracteriza-se como a conquista de uma luta social e política que, para sua efetivação, necessita modificações no modelo assistencial em saúde, exigindo ações que privilegiem a promoção e prevenção da saúde, bem como nos processos de trabalho estabelecidos.

Buscando atingir os pressupostos do SUS, a atenção básica tem sido priorizada pelas políticas públicas, sendo a porta de entrada preferencial do sistema de saúde,3 particularmente a partir da implantação da Estratégia Saúde da Família (ESF), em 1994.

O objetivo da ESF é reorganizar a prática assistencial, centrando o cuidado à saúde no núcleo familiar como foco das ações de saúde, tendo o território como ponto estratégico de desenvolvimento do cuidado, e apostando em práticas que vão além daquelas baseadas na cura da doença e na hospitalização.3 Por esse fato, a utilização de novas tecnologias em saúde, pautadas nos aspectos relacionais, tem se tornado fundamental para a efetividade da assistência.

O termo tecnologias em saúde frequentemente era utilizado para determinar somente o conjunto de instrumentos materiais de trabalho e, especialmente em saúde, remetia à função técnica dos objetos materiais nos processos produtivos. A nova concepção de tecnologia em saúde apresenta-se como o conjunto de saberes e instrumentos que expressam a rede de relações sociais em que seus agentes articulam sua prática em uma totalidade social.4

A classificação de tecnologias em saúde que tem sido amplamente utilizada caracteriza três tipos: leve, que envolve as tecnologias das relações do tipo produção de vínculo, autonomização, acolhimento; leve-dura, que é o caso dos saberes bem-estruturados que operam no processo de trabalho em saúde como a clínica médica, a psicanálise, a epidemiologia; e dura, que abrange os equipamentos tecnológicos como máquinas, normas, estruturas organizacionais.5

A ESF tem seu trabalho organizado prioritariamente a partir das tecnologias leves, pois está pautada nos princípios da integralidade, da qualidade, da equidade e da participação social, estabelecendo vínculo com a população, possibilitando compromisso e corresponsabilidade entre equipe e comunidade.6 As tecnologias leve-duras também estão presentes no contexto do processo de trabalho da ESF, uma vez que, para organizar o trabalho, os saberes estruturados como a clínica são fundamentais para a eficácia da atenção à saúde.

No campo da saúde mental, também vem ocorrendo um movimento de transformação das práticas assistenciais, modificando a concepção de saúde e doença mental e da própria loucura. O movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira tem possibilitado a construção de um novo modo de atenção em saúde mental que se orienta pelo psicossocial, no qual o sofrimento mental não é um fenômeno exclusivamente individual, mas ocorre em pessoas que se relacionam, dando uma perspectiva sociocultural, política, biológica e psicológica para as intervenções de saúde.7

As práticas desenvolvidas no modo psicossocial orientam-se pela lógica da territorialidade, estando os serviços de saúde mental localizados geograficamente no espaço de vida dos indivíduos em sofrimento psíquico. Mas, para além do espaço geográfico, o entendimento de territorialidade envolve também a ideia de território como uma força viva de relações sociais concretas, sendo o lugar onde se tecem as referências de vida da pessoa.8 Assim, o território é considerado como importante espaço de cuidado, permitindo a aproximação entre a saúde mental e a atenção básica, pois ambas congregam semelhantes objetivos diante do objeto de cuidado da saúde: o sujeito; seja ele coletivo ou individual, doente ou sadio.

Para desenvolver a inclusão de ações de saúde mental na atenção básica, particularmente na ESF, o uso de tecnologias em saúde é essencial, pois o cuidado em saúde mental, de acordo com os pressupostos da Reforma Psiquiátrica, preconiza o diálogo, o vínculo, a acolhida, a escuta, oferecendo continuidade da atenção. Essas tecnologias em saúde possibilitam compreender o sofrimento psíquico a partir do contexto do usuário, valorizando suas experiências e atentando para suas necessidades, incluindo no cuidado os diferentes aspectos que compõem o cotidiano desse indivíduo. Surgem, assim, como instrumentos facilitadores e transformadores, sendo estratégicos no desenvolvimento da autonomia e inclusão social, bem como no agenciamento de modos menos endurecidos de trabalho.

Neste artigo, avaliamos as tecnologias em saúde utilizadas por duas equipes da Estratégia Saúde da Família para desenvolver ações de saúde mental no território, que incluem acolhimento, escuta, vínculo, visita domiciliar, discussão de casos, consulta médica e grupo terapêutico.9

 

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo avaliativo qualitativo, do tipo estudo de caso, utilizando os pressupostos metodológicos da Avaliação de Quarta Geração,10 caracterizada por ser construtivista responsiva, ou seja, os limites e parâmetros do processo avaliativo são delimitados pelos grupos de interesse, em um processo interativo e de negociação, constituindo um modo responsivo de focar e construtivista de fazer. Outra característica dessa avaliação é que busca ser formativa, na medida em que é possível discutir sobre determinados aspectos, julgados pelos grupos de interesse e/ou pelo pesquisador como importantes no processo avaliativo.10

Os grupos de interesse são formados por pessoas com características em comum que têm algum interesse no resultado do processo avaliativo, isto é, estão envolvidas ou potencialmente afetadas por ele.10. Esta pesquisa foi realizada em uma unidade de saúde da família que possui duas equipes, e o grupo de interesse foi composto pelos profissionais dessas equipes, totalizando 14 sujeitos: dois médicos, dois enfermeiros, quatro técnicos de enfermagem e seis agentes comunitários de saúde.

Para a coleta dos dados, utilizamos a observação participante, totalizando 226 horas, e entrevistas individuais a partir da aplicação do círculo hermenêutico-dialético, gravadas e transcritas na íntegra. A observação participante foi utilizada para conhecer a dinâmica de trabalho da unidade em estudo, tendo a pesquisadora acompanhado consultas de enfermagem, grupos em saúde, acolhimento, vacinação, recepção, visitas domiciliares, dentre outras atividades. A observação serviu para aproximar a pesquisadora da realidade de trabalho dos profissionais. Neste artigo, identificamos as observações por "O", acompanhado do número da observação, e as entrevistas por "P", também acompanhado pelo número da entrevista.

Para a aplicação prática da coleta dos dados, conforme propõe a metodologia escolhida, utilizamos os seguintes passos11: contato com o campo, organização da avaliação, identificação dos grupos de interesse, desenvolvimento das construções conjuntas, ampliação das construções conjuntas, preparação da agenda para a negociação e execução da negociação.

No contato com o campo foi realizado um encontro com a equipe do serviço, sendo apresentada e discutida a proposta do estudo, momento no qual o grupo optou por sua participação.

Na organização da avaliação, a principal tarefa foi ganhar o direito de entrada, envolvendo a construção de uma relação de confiança.

Como não é possível privilegiar todos os grupos de interesse identificados no cenário da avaliação10, escolhemos o grupo de interesse dos profissionais das equipes de saúde da família, objetivando um processo formativo deles a partir da identificação de questões relacionadas às ações de saúde mental no território.

O desenvolvimento das construções conjuntas envolveu a aplicação do círculo hermenêutico-dialético. A primeira entrevista realizada foi aberta, para determinar uma construção inicial em relação ao foco do estudo. O entrevistado foi convidado a comentar a questão norteadora do estudo: Fale sobre as dificuldades e facilidades para realizar o atendimento em saúde mental nesta unidade de saúde da família. As questões apresentadas pelo primeiro entrevistado foram analisadas, formulando a primeira construção. Após o entrevistado comentar sobre a questão norteadora do estudo, os temas da análise da primeira construção foram introduzidos na segunda entrevista, caso ainda não tivessem sido contemplados. Assim, na análise da segunda entrevista, obtivemos a produção do segundo entrevistado acrescida de seus comentários sobre a construção do primeiro entrevistado, gerando uma construção mais sofisticada. E assim foi realizado com todas as entrevistas.10

A ampliação das construções conjuntas consiste na introdução, no círculo hermenêutico dialético, de outras informações disponíveis, com o objetivo de sofisticar as construções dos entrevistados.10 Foram introduzidos documentos ministeriais sobre a inclusão da saúde mental na atenção básica, dados da observação participante e a construção ética da pesquisadora.

A preparação da agenda para a negociação foi realizada quando a pesquisadora havia finalizado a aplicação do círculo hermenêutico dialético com todos os componentes do grupo de interesse. Assim, foram definidas as unidades de informação a partir do material empírico, organizadas em categorias prévias. O material foi impresso para que cada um dos participantes tivesse acesso aos dados prévios. E foi agendado com o grupo de interesse o melhor dia e horário para a negociação.

A negociação é o momento em que os entrevistados têm acesso ao conjunto de informações obtidas na coleta de dados, previamente analisadas pelo pesquisador. Essa reunião tem o objetivo de validar os dados obtidos e de decidir quais dados comporão o relatório final, buscando consenso possível acerca das informações apresentadas pelo pesquisador.

A análise dos dados foi realizada por meio do Método Comparativo Constante, que permite que a análise ocorra de maneira concomitante à coleta de dados. O método apresenta duas etapas: identificação das unidades de informação, que consistiu na leitura do material empírico (entrevistas e observação), sendo registrados de forma clara, compreensível a qualquer leitor. A segunda etapa é a categorização, em que se buscou unificar as unidades de informação em categorias prévias, obtendo consistência interna das categorias. Após a negociação com o grupo de interesse, chegamos às categorias definitivas:12 ações de saúde mental, facilidades para desenvolver ações de saúde mental e dificuldades para desenvolver ações de saúde. As tecnologias em saúde fazem parte da categoria ações de saúde mental.

Todos os aspectos éticos foram respeitados conforme a Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde, tendo sido o projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, sob o número 238. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

No processo avaliativo, os profissionais da ESF estudada avaliaram que utilizam diversas tecnologias em saúde para realizar ações de saúde mental, entre elas acolhimento, escuta, vínculo, visita domiciliar, discussão de casos, consulta médica e grupo terapêutico.

O acolhimento é entendido como uma prática de trabalho que busca garantir a escuta, o vínculo, a responsabilização, a atenção resolutiva, a promoção da cidadania e a autonomização do usuário.13 Nessa ação, espera-se a produção do encontro entre trabalhador e usuário, em um momento de relação interpessoal e troca mútua. A prática do acolhimento deve desencadear a prática da escuta, pois se espera que o profissional se volte para o usuário, estabelecendo uma relação de empatia, coproduzindo saúde.

...] primeiro a escuta ...] a gente faz as abordagens nas famílias ou então os familiares vêm direto aqui (na unidade) ...] e aqui passa pelo acolhimento que é feito com a enfermagem, e o médico sempre faz uma escuta. (P8)

A prática do acolhimento é uma possibilidade de universalização do acesso, na medida em que todos são acolhidos pelo serviço, e se baseia na inversão da organização e do funcionamento do serviço, quando passa a ser centrada no usuário, qualificando as relações que se estabelecem entre trabalhadores e usuários a partir de parâmetros humanitários, de solidariedade e cidadania.14 Nesse sentido, na ESF estudada, a prioridade no atendimento é a acolhida e escuta ao usuário e, mesmo que, aparentemente, não se possa ser resolutivo, os entrevistados avaliaram essas atividades como ações de saúde mental, pois entendem que o aspecto relacional implicado nessas intervenções atende a uma necessidade de saúde daqueles que lá chegam, promovendo saúde mental.

Na negociação, foi discutida a importância do acolhimento e da escuta em saúde mental. No momento em que foi exposto que essas tecnologias em saúde eram ações importantes em saúde mental no âmbito da ESF, muitos profissionais expressaram perplexidade. A partir do esclarecimento do valor da escuta e do acolhimento, concordaram que ambas as ações constituem-se em importantes estratégias de tratamento e de reinserção social, pois, no contexto do território, aparecem como ações importantes no estabelecimento do vínculo.

Pode-se considerar o acolhimento e a escuta como ferramentas essenciais no trabalho em saúde, particularmente em saúde mental, quando se dá voz ao sofrimento do outro, propondo-se a auxiliá-lo na busca da resolução de seu problema. Por isso, uma escuta qualificada faz diferença na decisão da conduta adequada. Especificamente na área de saúde mental, a escuta minimiza o problema, fazendo com que a pessoa tenha condições de refletir melhor sobre sua situação e tomar a melhor decisão.

A escuta não se limita somente ao que foi falado, mas também às lacunas do discurso, exigindo do profissional percepção para trabalhar sob esses silêncios; além disso, para escutar é imprescindível conhecer quem se escuta, sobre o que fala e como fala,15 envolvendo o vínculo entre trabalhador-usuário.

O acolhimento, especialmente quando se fala em serviços no território, está diretamente relacionado ao estabelecimento do vínculo, que é outra ação de saúde mental desenvolvida no contexto estudado. O vínculo refere-se a uma relação de confiança, permeada pela responsabilização e pelo compromisso. O vínculo traz consigo a ideia do usuário enquanto sujeito autônomo, participante ativo do processo de saúde, tendo dois enfoques: o do profissional e o do usuário, que juntos são responsáveis pela produção do cuidado, construindo a responsabilidade mútua entre eles.16

A partir do vínculo, assume-se um compromisso com o problema do usuário, envolvendo responsabilização no cuidado em saúde. Quando o usuário entra no sistema de saúde, pela atenção básica, ele passa a ser de responsabilidade daquela equipe, que, junto dele, o acompanha na promoção de sua saúde.

Na saúde mental, o acolhimento, a escuta e o vínculo caracterizam-se como ações preponderantes para as intervenções, sendo tecnologias estratégicas para o cuidado no território, permitindo uma "intimidade terapêutica" no sentido de o trabalhador estar aberto à escuta das necessidades de saúde do usuário, em uma postura mais acolhedora.

Essas tecnologias vão ao encontro da reinserção social proposta pela Reforma Psiquiátrica, estimulando o usuário na retomada de sua vida com autonomia, valorizando sua cidadania, fortalecendo a capacidade de conhecer o outro a partir de seus desejos e necessidades, possibilitando a desmistificação da loucura como incapacitante, trazendo o sujeito para o foco da atenção.

Outra ação de saúde mental avaliada pelas equipes é a visita domiciliar. A visita domiciliar não é uma prática nova no campo da saúde, mas na atualidade aparece como tecnologia inovadora, pois facilita o acesso ao serviço, bem como as ações de saúde, respondendo às necessidades dos usuários por meio do acolhimento e do vínculo, sendo um instrumento que busca o fortalecimento das mudanças propostas para a atenção básica.17

A visita domiciliar, na ESF estudada, é com maior frequência realizada pelo agente comunitário de saúde, pois, além de ser uma atividade inerente ao seu trabalho, é esse profissional que vive e transita no território com maior facilidade, possibilitando seu acesso à comunidade. Essa visita é uma tecnologia que facilita a entrada dos demais profissionais das equipes.

A visita domiciliar, enquanto ação de saúde mental, possibilita uma interação mais efetiva entre os atores envolvidos, aparecendo como uma tecnologia que pode facilitar a assistência integral ao usuário, assim como o cuidado à família.

Outra questão avaliada como ação de saúde mental é a discussão de casos dos usuários com sofrimento psíquico no cotidiano do trabalho da equipe, espaço no qual cada profissional apresenta seu ponto de vista, e juntos decidem por estratégias de cuidado a essas pessoas.

As discussões de casos acontecem em diferentes momentos do trabalho, buscando a troca de informações para promover ações de saúde mental. No dia-a-dia: nas consultas, nas conversas informais no horário do lanche, no acolhimento, na recepção, de diferentes modos a equipe da ESF estudada busca organizar ações de saúde mental, tendo na discussão das impressões sobre os usuários e suas famílias recursos para pensar e inventar o cuidado aos indivíduos em sofrimento psíquico.

Nas reuniões de equipe, essa discussão é mais socializada com todos os profissionais, tendo formalmente um espaço de pauta intitulado "famílias-problemas", abrangendo não só os casos de saúde mental como todos considerados "problemáticos", ou seja, aqueles nos quais são identificadas questões de dificuldades de abordagem e aproximação do usuário e/ou da família, desorganização das atividades da vida diária, tais como não ter recursos para alimentação, para levar ao médico, para comprar medicação, não ter familiar ou alguma rede de apoio, não aderir ao tratamento indicado, estar apresentando sintomas de crise, entre outros.

Na discussão do caso, é levada em consideração a história familiar e de vida de cada usuário, singularizando sua existência. Cada profissional contribui com alguma informação para a definição da melhor conduta para cada caso. Por exemplo, o agente comunitário de saúde relata como foi a visita domiciliar, o técnico em enfermagem traz o relato do acolhimento, a enfermeira e o médico comentam sobre as consultas e a equipe passa a conhecer o caso de um modo mais integral, o que possibilita diferentes ideias e olhares para a atenção em saúde.

Por isso, ter espaços para reflexão das tecnologias em saúde possíveis e necessárias é uma importante ação de saúde mental, pois é no coletivo que produzimos no outro possibilidades de viver com mais dignidade. Permite-se que o trabalhador esteja aberto para modificar seu processo de trabalho e aprenda com o próprio fazer do outro, um fazer compromissado com a produção de relações vivificados que veem no outro um sujeito fundamental.5

O momento da discussão do caso provoca, também, a corresponsabilização da equipe com seus usuários, propondo mudança nos profissionais, novas configurações no trabalho e construção de novos valores, bem como uma cultura e um comportamento pautados pela solidariedade, cidadania e humanização da assistência. Assim, o trabalho em saúde estará ligado a uma "face humanitária", dando sentido à produção do acolhimento, da responsabilização e do vínculo, implicando a construção de uma nova postura dos profissionais ante os usuários e intensificando no "trabalho vivo em ato" a produção de relações, tão fundamentais para o trabalho em saúde.3.

A consulta médica também se constitui em uma ação importante no âmbito da saúde mental. O momento da consulta, assim como o acolhimento, é uma importante tecnologia para a escuta das necessidades do usuário.

Esse espaço de encontro entre trabalhador e usuário fortalece os laços vinculares, na medida em que valoriza e permite a expressão do sofrimento, das necessidades, das dúvidas e dos afetos, "no sentido de passarem a ter seu trabalho determinado pelo uso de tecnologias leves, que operam em relações intercessoras entre trabalhador-usuário".3 É um local no qual o usuário tem a liberdade de expor seus anseios e desejos, suas necessidades de saúde, confiando e sentindo que é cuidado. Essa tecnologia em saúde produz alívio e a sensação de resolutividade diante das suas demandas.

Na consulta, utiliza-se o acolhimento enquanto técnica, que gera procedimentos e ações organizadas que facilitam a escuta, a análise, a avaliação do risco e a oferta de soluções ou alternativas aos problemas apresentados.15 O aspecto relacional que permeia a consulta é importante na reabilitação psicossocial do usuário, pois nesse espaço é possível desenvolver melhor a questão da "reconquista" da vida, retomando a cidadania do usuário.

...] ele (médico) tenta ver o que ele pode fazer ...] e orienta a marcar uma consulta para essa pessoa, para vir até ele e conversar com ele. (P9)

A consulta deve ser uma ação clínica, norteada pela ideia de encontro e atenção à necessidade de saúde apresentada, se constituindo em um dispositivo de cuidado. É importante atentar que a consulta médica hegemonicamente é um procedimento centrado no profissional médico que prescreve uma intervenção.

Na ESF estudada, a consulta médica de saúde mental está muito relacionada com a questão da farmacologia, ou seja, o ato da renovação da receita dos psicofármacos. Não resta dúvida que uma boa clínica, a qual identifica e avalia sintomas que orientam uma conduta terapêutica, é fundamental no trabalho em saúde.

Deve-se atentar, no entanto, ao fato de não reduzir a consulta médica à simples renovação da prescrição de medicamentos e tratamento. Os profissionais que realizam a consulta na ESF estudada devem buscar construir espaços de troca e de produção de saúde, colocando a doença entre parênteses e propiciando um contato que rompe com a estrutura simplificada de diagnosticar e prescrever. O que se quer em qualquer ação de saúde é dar atenção, acolher, considerar e escutar atentamente uma pessoa que não está reduzida à sua doença, ou seja, uma clínica ampliada.

É preciso valorizar o conjunto de opções terapêuticas disponíveis, dando um valor às tecnologias em saúde, pois promovem um encontro entre o profissional e o usuário, reconhecendo a existência de um processo singular que facilita a descoberta da responsabilidade da intervenção que persegue a produção de cuidado.5

Assim, nas ações de saúde mental, o vínculo, por meio do encontro com o profissional, é essencial na promoção de resultados que ampliem a vida dos usuários em sofrimento psíquico, pois escutando, acolhendo, interagindo, estaremos construindo novas relações e novas formas de atenção em saúde mental.

Na ESF estudada, é realizado um grupo terapêutico que ocorre mensalmente, do qual participam cerca de dez usuários com sofrimento psíquico acompanhados de um familiar, avaliado como outra ação de saúde mental.

Essa atividade iniciou em dezembro 2007, por iniciativa de uma médica que compunha a equipe anteriormente e pela professora enfermeira da área de saúde mental da UFRGS, que desenvolve estágio curricular na unidade em questão. À época da coleta dos dados, o grupo era coordenado pela professora, contando ainda com a participação de dois agentes comunitários de saúde, dois mestrandos e acadêmicos de graduação. É uma ação de extensão universitária que tem efetivado o processo de integração docente assistencial, possibilitando a construção de espaços de reabilitação psicossocial no território e fomentado ações para diminuir o preconceito e a segregação das pessoas com diagnóstico de doença mental.

O grupo tem como objetivo atuar conjuntamente com equipe, usuários e familiares de indivíduos em sofrimento psíquico, buscando a inserção social, a manutenção da desinstitucionalização, o estabelecimento de vínculo e acolhimento das demandas da vivência com o sofrimento psíquico.

Os profissionais da ESF estudada avaliam essa tecnologia como uma ação que contribui no atendimento em saúde mental.

...] eu achei maravilhoso! Eu nunca participei de nenhum, mas o fato deles estarem vindo, coisa que a gente nunca teve aqui antes ...] Eu achei superimportante, e o último grupo que eles fizeram aqui do lado eu achei bem legal, eles participam e gostam ...] Achei bem interessante, acho que é um grupo que tinha que se firmar. (P5)

Os grupos terapêuticos também têm sua vertente socioeducativa. Muitos dos usuários que participam do grupo pouco saem de casa, e os temas abordados nesse espaço, escolhidos pelos participantes, versam sobre a vida cotidiana e, também, sobre a doença mental e a medicação que utilizam.

Hoje falamos sobre como cada um havia passado o mês e iniciamos a leitura do material distribuído no grupo anterior sobre esquizofrenia. Quando comentamos sobre a crise, um usuário disse que o que acontecia na crise era um "excesso de loucura". Achei interessante essa maneira de descrever a crise. (O8)

A utilização do grupo terapêutico como tecnologia de atenção em saúde mental e de reinserção social aparece como um dispositivo estratégico de ação de saúde mental, pois, por meio da socialização, da fala, da convivência, tem propiciado encontros em que há comunicação, participação promovendo conhecimento, confiança, novas relações com o outro e com o espaço do território. O grupo tem dado visibilidade para a ESF estudada, mostrando que os seus participantes são pessoas capazes, autônomas, que convivem naquele espaço da cidade. É uma atividade que reinventa a vida em seu aspecto mais cotidiano, pois é do cotidiano, principalmente, que se encontram privados os chamados doentes mentais.18

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As práticas desenvolvidas no modo psicossocial trazem a loucura para o espaço do território que passa a fazer parte da vida em sociedade. Desse modo, acredita-se em um cuidado participativo, integrando os profissionais de saúde, usuários da saúde mental, seus familiares e comunidade, cada um com uma parcela de responsabilidade pela inclusão social daqueles que sofrem psiquicamente.

Nesse novo modo de cuidar em saúde mental, a atenção básica, particularmente na ESF, surge como uma grande parceira no processo de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial; e o uso de tecnologias em saúde é essencial para desenvolver esse cuidado, pois propicia a valorização e a singularização do usuário em sofrimento psíquico, reposicionando-o enquanto sujeito cidadão, autônomo, capaz de viver em sociedade.

Avaliamos que as equipes da unidade de saúde da família estudada utilizam diferentes tecnologias em saúde junto aos indivíduos com sofrimento psíquico, concretizando ações de saúde mental, tais como acolhimento, escuta, vínculo, visita domiciliar, discussão de casos, consulta médica e grupo terapêutico.

Essas tecnologias têm possibilitado a construção de uma nova prática em saúde mental, demonstrando que essas pessoas consideradas diferentes são sujeitos com direitos e deveres, e que a diferença que as afasta da sociedade é passível de convivência.

As tecnologias têm também possibilitado o entendimento da saúde como um processo dinâmico que envolve ações que consideram o sujeito e seu espaço social, incorporando novos modos de agir que consideram o cotidiano e suas relações como importante fonte na implementação de atenção a saúde.

Nesse sentido, avaliamos que as tecnologias em saúde surgem como uma capacidade criativa que, por meio das ações desenvolvidas na ESF estudada, procura responder às demandas dos usuários, naquele momento único de sua existência, estando eles alertas para escutar e acolher, sendo empáticos e resolutivos. Essas tecnologias surgem como um conjunto de propostas terapêuticas articuladas que valorizam os aspectos biomédicos, a formação de vínculos, a participação de diversos atores e diferentes setores da comunidade, responsabilizando-se em coparceria na construção da atenção integral.

 

REFERÊNCIAS

1. Brasil. Constituição 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília(DF): Senado; 1988. Artigos nº 196 e nº198.

2. Vasconcelos CM, Pasche DF. O Sistema Único de Saúde. In: Campos GWS, et al, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec, 2006.p.531-62.

3. Ministério da Saúde(BR) Atenção Básica e a Saúde da Família; 2004 [citado 2006 out 15]]. Disponível em: http://dtr2004.saude.gov.br/dab/atencaobasica.php.

4. Gonçalves RBM. Tecnologia e organização social das práticas de saúde: características tecnológicas do processo de trabalho na rede estadual de centros de saúde de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1994.

5. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 3ª ed. São Paulo: Hucitec, 2007.

6. Franco TB, Merhy EE. Programa de Saúde da Família (PSF): contradições de um programa destinado à mudança do modelo tecnoassistencial. In: Merhy EE, et al. O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano: o debate no campo da saúde coletiva. 4ª ed. São Paulo: Hucitec, 2007.p.55-124.

7. Oliveira AGB. Trabalho e cuidado no contexto da atenção psicossocial: algumas reflexões. Esc Anna Nery. 2007;10(4):694-702.

8. Amarante PDC. Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994.

9. Mielke FB. Ações de saúde mental na Estratégia Saúde da Família: um estudo avaliativo dissertação]. Porto Alegre: Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2009.

10. Guba E, Lincoln Y. Fourth Generation evaluation. Newbury Park: Sage Publications; 1989.

11. Wetzel C. Avaliação de serviço em saúde mental: a construção de um processo participativo. [tese]]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2005.

12. Lincoln Y, Guba E. Naturalistic inquiry. Newbury Park: Sage Publications; 1985.

13. Oliveira LML, Silva F, Tunin A. Acolhimento em saúde: reorganização do processo de trabalho e a qualidade do atendimento. Anais dos resumos ampliados do 6º Seminário do Projeto Integralidade. Rio de Janeiro, 2002. p.111-17.

14. Franco TB, Bueno WS, Merhy EE. O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: Betim, Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica 1999;15(2):345-53.

15. Silva Junior AG, Mascarenhas MTM. Avaliação da atenção básica em saúde sob a ótica da integralidade: aspectos conceituais e metodológicos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ/ IMS/ ABRASCO; 2006.p.241-257.

16. Merhy EE. Em busca da qualidade dos serviços de saúde: os serviços de porta aberta para a saúde e o modelo tecno-assistencial em defesa da vida (ou como aproveitar os ruídos do cotidiano dos serviços de saúde e colegiadamente reorganizar o processo de trabalho na busca da qualidade das ações de saúde. In: Cecilio LCO, organizador. Inventando a mudança na saúde. São Paulo: Hucitec, 1994.p.117-60.

17. Mandú ENT, Gaíva MAM, Silva MA, Silva AMN. Visita domiciliária sob o olhar de usuários do Programa Saúde da Família. Texto&Contexto Enferm. 2008;17(1):131-40.

18. Saraceno B. Reabilitação psicossocial: uma prática à espera de teoria. In: Pitta. organizador. Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996. p.150-54.

 

 

Recebido em 29/03/2011
Reapresentado em 04/07/2011
Aprovado em 02/08/2011

 

 

a Resultados parciais da Dissertação de Mestrado, intitulada 'Ações de saúde mental na Estratégia Saúde da Família: um estudo avaliativo', defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGENF/UFRGS), em 2009. Apoio CAPES

 

© Copyright 2024 - Escola Anna Nery Revista de Enfermagem - Todos os Direitos Reservados
GN1