Volume 15, Número 3, Jul/Set - 2011
REFLEXÃO
A mãe em sofrimento psíquico: objeto da ciência ou sujeito da clínica?
Mother in psychic suffering: object of science or subject of the clinic?
La madre en sufrimiento psíquico: ¿objeto de la ciencia o sujeto de la clínica?
Denise Tomaz AguiarI; Lia Carneiro SilveiraII; Sandra Mara Nunes DouradoIII
IEnfermeira, Mestranda em Cuidados Clínicos em Saúde ? Área de concentração: Enfermagem pela Universidade Estadual do Ceará ? UECE.Fortaleza-CE Brasil. E-mail: denisetmz@yahoo.com.br
IIEnfermeira, Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal do Ceará ? UFC, Docente do Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos em Saúde ? Área de concentração: Enfermagem da Universidade Estadual do Ceará ? UECE.Fortaleza-CE Brasil. E-mail: silveiralia@gmail.com
IIIPsicóloga, Mestra em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará ? UFC Docente da Faculdade do Nordeste ? FANOR. For taleza-CE.Brasil. E-mail: sandra.lacaniana@gmail.com
RESUMO
A vivência da maternidade é abordada no modelo médico científico do ponto de vista orgânico. Porém, para algumas mulheres, isso se dá como uma experiência de intenso sofrimento psíquico. Desenvolvemos uma reflexão teórica visando refletir acerca das possibilidades de abordagem dessa questão na perspectiva de uma clínica do sujeito, conforme delimitado na abordagem psicanalítica, contrapondo-a à visão do modelo médico científico. A ciência moderna institui-se como práxis pela exclusão do sujeito, e é esta racionalidade que subsidia a abordagem dos sintomas psíquicos no modelo médico, percebidos como algo a ser eliminado. A psicanálise surge a partir da descoberta do inconsciente e do sintoma como portando uma verdade sobre o sujeito que sofre. Consideramos que os conceitos apontados pela perspectiva psicanalítica podem nos apoiar na construção de uma clínica menos objetificadora, que permita ao próprio sujeito se interrogar sobre o sentido daquilo que o faz sofrer.
Palavras-chave: Depressão Pós-parto. Psicanálise. Ciência
ABSTRACT
The maternity experience is seen in the medical scientific model and approached under the organic point of view. However, for some women this is an experience of intense psychic suffering. We developed a theoretical reflection aiming to reflect on the possibilities of approaching this matter in the perspective of a clinic of subject as delimited in the psychoanalytic approach, opposing it to the medical scientific model view. The modern science institutes the exclusion of the subject as praxis, and it is this rationality that supports the approach of psychic symptoms in the medical model, seen as something to be eliminated. Psychoanalysis comes from the discovery of the unconscious and the symptom as a truth on the subject in suffering. We consider that the concepts pointed by the psychoanalytic perspective can support us on the construction of a less objectifying clinic that allows the subject to interrogate himself on the meaning of what makes him suffer.
Keywords: Depression, postpartum. Psychoanalysis. Science.
RESUMEN
La experiencia de la maternidad es mirada en el modelo médico científico y discutida bajo la perspectiva orgánica. Sin embargo, para algunas mujeres, esto se realiza como una experiencia de gran sufrimiento psíquico. Desarrollamos una reflexión teórica con el fin de reflexionar sobre las posibilidades de abordar esta cuestión desde la perspectiva de una clínica del sujeto, definida en el abordaje psicoanalítico, en contraste con la visión del modelo médico científico. La ciencia moderna se ha establecido como práctica para la exclusión del sujeto, y es esta racionalidad que subsidia el abordaje de los síntomas psicológicos en el modelo médico, que se percibe como algo que debe eliminarse. El psicoanálisis surge a través del descubrimiento del inconsciente y del síntoma como una verdad sobre el sujeto que sufre. Creemos que los conceptos subrayados por la perspectiva psicoanalítica nos pueden ayudar en la construcción de una clínica menos objetiva, que permita al propio sujeto la pregunta sobre el significado de lo que le hace sufrir.
Palabras clave: Depresión Posparto. Psicoanálisis. Ciencia.
INTRODUÇÃO
A vivência da maternidade muitas vezes é vista como algo naturalizado, um fato corriqueiro que se dá de acordo com um instinto pré-programado, iniciando com a concepção e finalizando com a feliz experiência de interação do par mãe/ bebê. Entretanto, desde que estamos imersos no mundo da linguagem, esta experiência está longe de ser algo da ordem do natural. Nota-se que a experiência de ser mãe não é reproduzível, não segue parâmetros instintivos, nem sempre acontece de forma alegre, nem sempre acontece de forma sofrida, nem sempre ela acontece; mas irá se apresentar de forma única para cada sujeito.
Além das questões singulares, pensar a maternidade na contemporaneidade implica pensar também as características de nossa época. Respira-se o ar obscuro e confuso daquilo que se convencionou chamar "pósmodernidade". Tudo é rápido, prático, líquido. A tecnologia tece caminhos de aproximação enquanto, paradoxalmente, mantém as pessoas cada vez mais afastadas umas das outras. Vive-se a era da exposição, da divulgação profusa de seios, pernas, corpos, da hipersexualidade que se enviesa nas mais diferentes formas. Nesse contexto, a mulher se ressignifica em meio ao pano de fundo das contínuas transformações que têm configurado historicamente sobre seu papel na sociedade. Com o advento da Revolução Sexual a mulher se olha sob um novo espelho, cria novas estratégias de si, assume outros papéis, tem outros questionamentos e também outros desejos.
Ao contrário do que se rotula, não raro, para algumas mulheres, ser mãe se acompanha de uma gama de afetos depressivos ou experiências de desorganização. Essas experiências de tristeza no pós-parto são nomeadas pelas ciências médicas de várias formas. Podemos citar como exemplo, o chamado "Baby Blues", descrito como estado depressivo mais brando, transitório, que aparece em geral no terceiro dia do pós-parto e tem duração aproximada de duas semanas; a depressão puerperal, caracterizada por uma tristeza muito grande de caráter prolongado, com perda da autoestima, perda de motivação para a vida, sendo na maioria das vezes incapacitante; e as psicoses puerperais, perturbações graves com surgimento súbito de forma brusca de condutas estranhas, diferentes, pouco comuns nos cuidados que a mãe dispensa a si, ao seu bebe e às suas relações, apresentando discursos e comportamentos inadequados.1
No campo da saúde essas experiências são tomadas como sintomas a serem classificados e abordados principalmente seguindo as considerações do modelo científico. Neste discurso, a experiência da maternidade é considerada naquilo que ela tem de comum, que se repetiria para todas. O sintoma é tomado como algo a ser eliminado, restabelecendo-se assim uma situação de cura.
No âmbito da dimensão subjetiva, no entanto, esse modelo de racionalidade encontra alguns impasses. Para existir, a ciência estabelece uma relação que interioriza o sujeito à custa da exteriorização do objeto, passando a tomar o sujeito como objeto de sua práxis. Na psiquiatria, trata-se de lidar com um objeto (a mente) que, devido sua especificidade, não pode ser abordado como orgânico e nem descrito na perspectiva científica objetificadora. Percebe-se que o próprio do sofrimento psíquico é justamente não ser passível de uma objetificação.2
A psicanálise aposta na possibilidade de encontrar outras vias para se pensar a clínica, de uma forma não objetificadora, em que aquele que sofre seja considerado efetivamente como sujeito. Partindo dessas inquietações nos perguntamos: quais as possibilidades de se abordar a mãe em sofrimento psíquico, para além do modelo biomédico? Como pensar uma prática clínica que, podendo ser desenvolvida nos serviços de saúde, escape à objetificação do sujeito em quadros nosológicos, característica desses espaços? Sendo assim, desenvolvemos um estudo de reflexão teórica com o objetivo de refletir acerca das possibilidades de abordagem da dimensão do sofrimento psíquico que eventualmente acompanha a experiência da maternidade na perspectiva de uma clínica do sujeito, contrapondo-a à visão do modelo médico científico.
A MÃE EM SOFRIMENTO PSÍQUICO COMO OBJETO DA CIÊNCIA
A ciência moderna institui-se como práxis exatamente pela exclusão do sujeito, baseada nos pressupostos da objetividade, universalidade e generalização. No modelo da racionalidade moderna, conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. Esse "conhecimento", próprio da ciência, aspira à formulação de leis à luz de regularidades observadas, com vista a prever o comportamento futuro dos fenômenos.
O solo filosófico que dá origem a essa definição de ciência moderna baseia-se, principalmente, no paradigma cartesiano do cogito ergo sum ? 'Penso, logo existo' ? no qual o sujeito é caracterizado como aquele da consciência, do pensamento, o qual procura a verdade na razão lógica dos fatos. Nessa perspectiva, o homem é um ser de pensamento que pode, através da aplicação rigorosa do método, alcançar a verdade.
A apropriação do discurso científico pelas ciências biomédicas se deu, principalmente, enraizado no corpo de conhecimento das disciplinas da anatomia e da fisiologia, delimitando como seu objeto de trabalho o corpo orgânico, revelado como uma verdadeira máquina constituída de partes separadas e que funciona mecanicamente dissociado da mente.3 Retrata-se o modelo da clínica anatomopatológica, conforme apresentada por Foucault, no "Nascimento da Clínica"
Na experiência anatomoclínica, o olho médico deve ver o mal expor-se e dispor-se diante dele à medida que penetra no corpo, avança por entre seus volumes, contorna ou levanta as massas e desce em sua profundidade. A doença não é mais um feixe de características disseminadas pela superfície do corpo e ligadas entre si por concomitâncias e sucessões estatísticas observáveis; é um conjunto de formas e deformações, figuras, acidentes, elementos deslocados, destruídos ou modificados que se encadeiam uns com os outros, segundo uma geografia que se pode seguir passo a passo. Não é mais uma espécie patológica inserindo-se no corpo, onde é possível; é o próprio corpo tornando-se doente. 4:154
Na mesma obra, Foucault mostra algumas características dessa forma de pensar a clínica: o sujeito é objetificado na sua condição de doente, o silêncio do cadáver passa a ser mais instrutivo que a fala do paciente. Além disso, o local privilegiado dessa clínica é o hospital, e seu principal ator é o médico, com o papel de descobrir a doença no corpo do doente. 4
Esse modelo prosperou fortemente em diversos ramos da medicina, mas trouxe alguns problemas para aqueles onde a lesão anatômica não podia ser encontrada. Nesse último grupo encontram-se os fenômenos abordados pela psiquiatria, que têm como característica principal o fato de serem predominantemente psíquicos, sem localização orgânica. 2
A opção por aproximar o sofrimento psíquico às patologias no modelo orgânico levou à formulação de um modelo clínico-biológico: prática hegemônica centrada na busca pela cura por meio dos psicofármacos; apoiada nas decisões, conhecimentos e prescrições médicas, tendo como modelo de atenção o hospitalar e objeto de intervenção a doença.
Essa prática da medicina psiquiátrica, centrada na medicalização do sofrimento, mascara a angústia e estabiliza as manifestações iniciais dos sintomas, mas não considera as questões do sujeito e impede que este elabore um saber sobre aquilo que o faz sofrer. Assim, a prática de assistir o sujeito com sofrimento fixa-se em adequá-lo às normas e trazê-lo de volta a uma suposta "realidade objetiva". Pressupõe, portanto, um sujeito racional, capaz de dirigir conscientemente suas ações rumo à superação daquilo que o aflige.
No plano da abordagem das experiências de sofrimento psíquico que acompanham a vivência da maternidade, podemos identificar essas mesmas características. O que prevalece no meio acadêmico científico é a busca pela regularidade, a caracterização e a padronização dessa experiência. Tomando como via de análise a produção científica sobre o tema, percebemos que se sobressai, nesses estudos, a busca por relações causais e a procura de regularidades na ótica da prevalência. 5,6,7,8 A fundamentação desses estudos recai, principalmente, em uma suposta vulnerabilidade biológica (principalmente de base hormonal) para os transtornos de humor no período puerperal.
Esses estudos pautam os "fatores de risco" em uma perspectiva social, em busca de determinantes que possam caracterizar e padronizar o sofrimento dessas mulheres com dados objetivos, como os socioeconômicos e demográficos (renda familiar e idade), 6,7 dados obstétricos (número de filhos, condições do parto), 6,9 entre outros.
No entanto, o que se percebe é que, na maioria dos estudos, os resultados demonstram-se inconclusivos. Entendemos que isso reforça o argumento de que o método das ciências positivistas é incompatível com uma abordagem do sujeito. Embora tenha havido, nas últimas décadas, todo um movimento de crítica ao modelo científico e o reconhecimento de sua limitação para lidar com questões mais amplas e complexas como aquelas despertadas no campo da saúde (pensamos aqui especificamente nas propostas de organização do Sistema Único de Saúde, do Programa Saúde da Família e da Reforma Psiquiátrica Brasileira), percebemos que, na prática, o que realmente acontece ainda está muito próximo das concepções positivistas e das ações fragmentadas características do modelo biomédico.
A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM) estabelece, em relação à abordagem do ciclo gravídico puerperal, que os objetivos da assistência centram-se em reduzir a mortalidade materna e neonatal, ampliar a adesão ao PHPN (Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento), ampliar a realização de exames de rotina de pré-natal, garantir a oferta de ácido fólico e sulfato ferroso para gestantes, ampliar o número de profissionais de saúde capacitados, organizar rede de serviços de atenção obstétrica e neonatal e reduzir as cirurgias cesarianas.10 Percebemos, no delineamento dessa política, como o foco ainda é muito voltado para uma compreensão organicista e do adoecimento em uma perspectiva de causa e efeito. É certo que vemos delinear-se, nas políticas de saúde, uma proposta incipiente de abordagem da subjetividade da mulher, quando se referem, por exemplo, à necessidade de humanização das ações. Porém, não fica claro na elaboração dessas políticas a que conceito de subjetividade elas se remetem. Parece que essa subjetividade se pauta nas questões da cidadania, em que os termos sujeito, indivíduo ou ser humano coincidem, pois o que os define é o fato de serem centrados na consciência reflexiva cartesiana. 11
Na prática, o início da abordagem à mãe em sofrimento psíquico se dá, geralmente, ainda no nível da atenção básica. Lá, o profissional que a recebe quase sempre se sente inseguro e se considera sem saber como proceder diante daquilo que lhe é estranho (uma mãe que deveria estar feliz pelo nascimento do seu filho surge angustiada e sentindo-se incapaz de realizar suas atividades de mãe). Como algo que deveria ser instintivo surge em forma de adoecimento? Esse profissional, sem saber lidar com esse estranhamento, geralmente realiza o encaminhamento aos Centros de Atenção Psicossocial ? CAPS.
Chegando ao CAPS, esta mulher encontra um serviço do qual se exige um saber-fazer acerca do sofrimento psíquico. Desenvolve-se, então, uma assistência que geralmente parte de um conhecimento prévio, pautado nas relações causa-efeito. Seu objetivo será o de nomear o mais rápido possível esse sintoma, rotulando-o com um diagnóstico médico (exigência para que ela "exista" no serviço com um número de prontuário) para posteriormente receber uma intervenção rápida e objetiva.
Diante disso, a mãe continua não sendo tomada em sua singularidade. Não há espaço para o questionamento de suas inseguranças, daquilo que a faz sofrer: quem é essa mulher? Quais os significantes que marcam sua história de vida? Como ela ama, odeia, trabalha?
Os sintomas, que muito poderiam dizer de sua questão em relação à maternidade, são reunidos sobre a rubrica dos "transtornos do humor" de forma homogeneizada. Mas, afinal, será que podemos tomar da mesma forma questões tão diversas: "não consigo olhar para o bebê que começo a chorar. Não sei o que fazer com ele, tenho medo de machucá-lo"; "estou muito sensível, de uma hora para a outra começo a chorar"; "eu me sinto muito estranha com alguém mamando no meu seio". Essas questões apontam para um estranhamento em relação ao próprio corpo e à simbolização do bebê recém chegado. No entanto, geralmente não se abre um verdadeiro espaço para o endereçamento da angústia e as ações se voltam para um tamponamento dessas questões através da prescrição indiscriminada de benzodiazepínicos e antidepressivos.
Diante dessas reflexões nos perguntamos sobre as possibilidades de uma prática clínica que, podendo ser desenvolvida nos serviços de saúde, não esteja centrada nessa lógica que toma a mulher como corpo orgânico e que a objetifica como espaço de intervenção do especialista. Entendemos que a psicanálise pode vir em nosso auxílio, trazendo questões e conceitos que podem contribuir com essa reflexão.
A MÃE EM SOFRIMENTO PSÍQUICO COMO OBJETO DA PSICANÁLISE
Apesar de toda a tradição científica erigida em torno do cogito cartesiano, o corpo não para de colocar problemas, principalmente para a medicina, que tentou fazer deste saber científico o seu meio de acesso ao corpo. A psicanálise, que também vai se interessar por essa relação mente-corpo é contemporânea da ciência moderna. Ela nasce a partir da descoberta radical e inovadora de Sigmund Freud de que algo fala no corpo que não obedece às leis da consciência. Sua pesquisa vai se dar especificamente em torno daquilo que a medicina descartava como fingimento. Abordando as histéricas, deparou-se com paralisias que não obedeciam à estrutura anatômica dos nervos, cegueiras sem alteração dos olhos, partos consumados de ventres vazios.
Freud decidiu, então, escutar essas mulheres, e o que ele acabou descobrindo foi que suas falas desvelavam outra racionalidade que, embora desconhecida por quem falava, portava um sentido a respeito dos sintomas e da própria verdade do sujeito. Trata-se da descoberta do inconsciente. 12
O que Freud percebeu, ao longo de sua investigação, foi que alguma coisa estranha fazia com que essas mulheres sentissem coisas que não correspondiam ao saber da medicina. Mas, ao contrário do que se pensava, elas não estavam fingindo, apenas desconheciam completamente o porquê de seus sintomas. As pessoas que ele ouvia diziam: "isso" me acontece, mas eu não sei por quê. Eu não sei de onde "isso" vem, está fora de mim, fora do meu controle! Até hoje é assim que se apresenta na clínica o sujeito que sofre, inclusive a mãe que não entende porque se sente tão triste diante do filho esperado com carinho.
Sua descoberta tem a ver, então, com esse "isso", com esse algo que parece estranho, mas ao mesmo tempo tão íntimo. Algo que não nos deixa em paz, está lá a todo momento: fazendo repetir coisas, sempre em torno do mesmo; fazendo sintomas no corpo; falando por nós, em nós, "como se fosse" um outro. Mais que isso, ele descobriu que esse "isso", esse "outro", fala mesmo. A descoberta freudiana do inconsciente é a de que ele tem certas leis de funcionamento e comporta o desejo, sobre o qual nem sempre o sujeito quer saber.
O desejo inconsciente é proibido, interditado, incestuoso e, portanto, insuportável para o eu, para o sujeito consciente. No entanto, o fato de não querermos saber, não faz com que ele desapareça. Há algo lá querendo se realizar, fazendo pressão. Às vezes, essa pressão é enorme e vaza na forma de angústia; às vezes fazemos algum sintoma, que tem por função satisfazer, de alguma forma meio "torta", esse desejo.
Algumas décadas depois, um psicanalista francês chamado Jacques Lacan retomou a descoberta de Freud, mas dessa vez fazendo uso da linguística estrutural. Assim, ele afirma que esse sujeito é, antes de tudo, um ser dividido pela linguagem. Nascemos em um mundo de discurso que, antes mesmo de nascer, a criança já tem um lugar preparado, preestabelecido no universo linguístico dos pais.12 Porém, essa linguagem não diz tudo, sempre resta algo não nomeável, traumático. Esse resto vai ser recalcado, exatamente por não poder ser dito, fundando assim a dimensão do inconsciente. Esse inconsciente é constituído pela dimensão simbólica costurada por cadeias de significantes que marcam a história do sujeito.
Essa concepção de sujeito permitiu abordar o inconsciente não apenas como o lugar de destino de todas as experiências humanas vividas e que permanecem em lugares inacessíveis da memória humana. O inconsciente porta um saber. Embora não sabido pela consciência, é lá que se delineiam as trilhas por onde o sintoma foi construído.
O sintoma na psicanálise adquire um estatuto bem diferente daquele que lhe confere a medicina. Aqui ele também é signo, mas não de uma doença a ser eliminada. É, antes, o signo de um saber enigmático, recalcado, mas que porta uma verdade sobre o sujeito.12 Assim, não podemos tomar a tristeza, a falta de interesse e o desânimo da mesma maneira para qualquer mãe que experiencia esses sentimentos. É preciso, através da abertura de um espaço para a fala, que se permita a esse sujeito significar o que lhe acontece, ou seja, o sentido do sintoma não está do lado do profissional com seu saber pronto, mas sim do lado da própria pessoa que sofre.
No que diz respeito ao que faz sofrer a mãe, Freud nos deixou contribuições teóricas relevantes, que nos permitem perceber que este sofrimento tem estreitas relações com a forma como essa mulher vivenciou sua própria estruturação subjetiva. Sigamos então suas formulações acerca da feminilidade e vejamos que contribuições podemos tirar para abordar esse sofrimento que se relaciona ao nascimento de um filho.
Freud, ao discutir a feminilidade, começa abordando as dificuldades de estabelecer critérios para definir o que é ser masculino ou feminino. Refere que a ciência, recorrendo à anatomia, compartilha da certeza em diferenciar o que é homem e o que é mulher através dos órgãos genitais, mas que a própria experiência mostra que não se trata disso. O que Freud vai confirmar em sua prática clínica é que, aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida, que foge do alcance da anatomia.14 Em resumo, o que a psicanálise nos ajuda a perceber é que não se nasce mulher, é preciso todo um processo de construção, um vir-aser. Acompanhemos, então, alguns elementos que estão em jogo nesse percurso.
O primeiro momento é o da constatação da diferença sexual. A menina percebe que existe no menino algo que ela não tem. Essa constatação inicial pode até ser desconsiderada, mas ao perceber que à mãe também falta algo, a menina (que até então tomava a mãe como objeto de amor) se ressentirá contra ela, culpando-a por tê-la feito incompleta. Sem poder amparar-se numa identificação à mãe, também faltosa na sua constatação, a menina terá que empreender um percurso nada fácil em busca de se tornar mulher, tarefa que envolve em si mesma seus percalços. Freud afirma que a comparação com o que acontece com os meninos mostra que o desenvolvimento da menina é mais difícil e mais complexo, uma vez que inclui duas tarefas extras, às quais não há nada de equivalente no desenvolvimento de um homem.14
"Duas tarefas extras", dois movimentos que a menina precisa executar para advir mulher: 1) mudar de zona erógena ? abandonando a ideia de um faloª imaginário e passando da excitação clitoriana para a vagina; e 2) mudar de objeto ? desviando o interesse inicial todo concentrado na mãe, e passando para uma escolha objetal do sexo masculino. Essa troca de objeto se dá da mãe em direção ao pai. É junto a ele que a menina irá buscar obter o falo que a mãe não lhe deu. Nesse complexo de Édipo as meninas demoram-se um pouco, muitas vezes destruindo-o de forma incompleta. Isso pode se dar sem muitos sofrimentos, mas também pode deixar marcas para toda a vida dessa mulher.
A percepção dessa falta do falo, a descoberta da castração, representa um marco decisivo no crescimento da menina. Daí partem três linhas de desenvolvimento possíveis: uma conduz à inibição sexual; outra, à modificação do caráter no sentido de um complexo de masculinidade; a terceira, finalmente, à feminilidade normal.14
A feminilidade só é estabelecida quando o desejo do falo é substituído pelo desejo de um bebê, um bebê que poderia receber do pai. Como esse não chega e por outras vicissitudes que contribuem para que essa espera se mostre infrutífera, a menina acaba desistindo de seu intento e entra numa fase de latência. Todo esse movimento, no entanto, não desaparece simplesmente, ele passa a ser recalcado e continua existindo no inconsciente.14
Um dia a menina cresce, e surge a oportunidade de ser mãe; e as marcas inconscientes dessa experiência serão reinvestidas, reativadas. Porém, esse bebê que agora surge, na realidade não corresponde exatamente àquele inconscientemente esperado. Na verdade ele surge longe de uma relação de completude, pois o bebê real não corresponde ao bebê imaginário. O bebê será nomeado, esta imagem perfeita ganhará formas pelas palavras, que significam e dão sentido à presença dele. Ele ganhará um nome, um sexo e características físicas e psicológicas mesmo antes de nascer. O simbólico medeia essa relação entre o bebê marcado no inconsciente e o bebê que chega na realidade. Mas a linguagem não é suficiente para dar conta de tudo e sempre sobra algo impossível de simbolizar, revelando que o desejo não pode nunca ser totalmente satisfeito, que o bebê não pode preencher todas as demandas da mãe e, sendo assim, não corresponderá totalmente à imagem e às identificações nele projetadas. A perda do bebê fantasiado, o bebê imaginário, é inevitável. 15
Com esse abalo na fantasia da mulher/mãe, surge uma angústia que não tem razão e nem palavras que possa definir, caracteriza-se como uma perda de algo que lhe foi retirado das suas entranhas, uma perda da anterior função de mulher, subvertendo-se para uma função de mãe e a perda do filho imaginário.
Assim, a maternidade, na acepção freudiana, é um dos nomes da castração, pois a mulher novamente vai perder o falo (bebê), algo que fazia parte dela lhe é tirado. Para muitas mulheres, o período puerperal é sentido como uma segunda castração, pois lhe arranca o falo, esse que para o inconsciente continua sendo o mesmo da época da sua busca infantil, marcado pela atemporalidade do inconsciente. Por isso, ansiedade e depressão são experiências tão comuns nesse momento, pois a realidade do bebê esperado difere da realidade do recémnascido.16
Percebemos, então, que a gravidez é um momento de reatualização de tudo que uma mulher teve que percorrer para tornar-se o que é. Isso envolve o que ela viveu em relação à própria mãe, as relações que, enquanto mulher, estabelece com seu parceiro e todas as expectativas/frustrações que experimentará desde que se sabe grávida. Isso terá incidência na forma como cada mulher se situará em face do ser mãe e em como cada criança será incluída nesse desejo. A maternidade, longe de ser uma resposta para o que resta de enigmático da sexualidade feminina, é uma versão para a ausência de um significante que possa dar conta do que é uma mulher, para a falta de resposta ao enigma da feminilidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ciência confunde explicação com simplificação. Assim tornou-se um método objetivo, atributo da boa prática, o "recorte" mais definido, a resposta mais clara, a conclusão mais precisa. A ciência tende a naturalizar os fenômenos humanos, negando sua dimensão simbólica.
No âmbito das práticas de saúde esse saber surge de forma disciplinadora do orgânico em um processo de naturalização das representações sintomatológicas, situando a abordagem do sofrimento psíquico no discurso hegemônico médico-psiquiátrico.
Reduzir a experiência subjetiva às questões hormonais ou mesmo a fatores sociais isolados é desconhecer que o sujeito, apesar de habitar um corpo, não se reduz a ele. O sujeito não "é" a fenda sináptica, a dosagem hormonal. Desde que falamos entramos no mundo da simbolização e desnaturalizamos nossa relação com nós mesmos e com o mundo que nos cerca.
O que muitas vezes se apresenta no cotidiano dos serviços de saúde é uma "sujeição" daqueles que buscam assistência aos saberes dos já prontos, em que o profissional já sabe, de antemão, o que cada um deve ou não fazer para alcançar a cura. O saber científico representa a verdade sobre os sujeitos, e estes não são detentores de nenhum saber.
Em busca de romper essa perspectiva propõe-se, ao invés do recorte, a abrangência; no lugar do modelo reducionista, a complexidade, com o conhecimento de que o saber sobre o sujeito não está ao alcance de todos, e não estará ao alcance de ninguém, a não ser pela reintrodução de um questionamento sobre o sujeito, sua história de vida, seus significantes.
Essa forma de abordar o sujeito implica em reconhecer que não lidamos apenas com necessidades biofisiológicas, mas com a dimensão do desejo e no que ela implica de articulação com o Outro. No caso da mulher, o profissional de saúde não pode se limitar a vê-la apenas como um aparelho reprodutor; deve, antes de tudo, se perguntar: quem é essa mulher? Qual sua história de vida? Quais os significantes que marcam sua história? Como ela se tornou mulher? O que é para ela ser mulher?
Essas e muitas outras questões se presentificam a partir do momento que passamos a considerar a existência do sujeito do inconsciente, reconhecendo que este se constitui a partir do seu encontro com a linguagem e na amarração de suas cadeias significantes. Levar em conta apenas o sujeito aparente, o sujeito da consciência, implica negar o "outro" que existe nesse sujeito, que se impõe naquilo que não pode ser dito, no sintoma ou em outras manifestações do inconsciente.
Para transcender uma clínica que responda apenas à dimensão consciente, é recomendável que a abordagem ao sujeito se dê por meio do reconhecimento de sua singularidade. Apostamos no fato de que, através desta consideração da dimensão do sujeito articulado ao seu desejo, podemos reinventar os espaços e ferramentas de assistir àqueles que demandam nosso cuidado.
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on-line 2008. citado 2009 nov 03. Disponível em:16. Schiavo RA. Gravidez: um retorno às vivências edipianas. São Paulo: Redepsi- Portal de Psicologia; 2008.
NOTA
a O conceito de falo na psicanálise é bastante complexo e foge às pretensões deste estudo analisá-lo. No entanto, vale especificar que seu desenvolvimento como conceito dar-se-á a partir de Lacan e não se limita a descrever algo orgânico (o pênis). O falo está relacionado à ilusão de completude, um objeto do desejo que poderia tamponar a falta constituinte do sujeito, mas que escapa sempre.
Recebido em 14/07/2010
Reapresentado em 17/01/2011
Aprovado em 10/05/2011