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CAPES

Volume 15, Número 3, Jul/Set - 2011

PESQUISA

 

As novas práticas em saúde mental e o trabalho no serviço residencial terapêuticoª

 

New practices in mental health and work in therapeutic residential service

 

Las nuevas prácticas en salud mental y el trabajo en servicio residencial terapéutico

 

 

Danielle Souza SilvaI; Dulcian Medeiros de AzevedoII

IBolsista PIBIC/UERN/CNPq. Acadêmica do Curso de Graduação em Enfermagem (Licenciatura e Bacharelado), Universidade do Estado do Rio Grande do Norte- UERN, Campus do Seridó, Caicó-RN, Brasil. E-mail: daniellerafson@hotmail.com
IIEnfermeiro. Mestre em Enfermagem (PGENF-UFRN), Doutorando em Ciências da Saúde (PPGCSa-UFRN). Professor Assistente II, Curso de Graduação em Enfermagem (UERN), Campus do Seridó, Caicó-RN, Brasil. Líder do Grupo de Pesquisa "A enfermagem no processo saúde-doença individual/coletiva, na educação em saúde e na assistência/gerência de serviços de saúde". E-mail: professordulcian@gmail.com

 

 


RESUMO

Objetivou-se investigar a percepção de cuidadores sobre o trabalho desenvolvido no Serviço Residencial Terapêutico (SRT) de Caicó-RN. Pesquisa descritiva e qualitativa, realizada em 2009 com seis profissionais de enfermagem atuantes como cuidadores, por meio de entrevista semiestruturada. Emergiram duas categorias: O trabalho realizado no SRT e os resultados alcançados; Dificuldades e desafios encontrados na dinâmica do SRT. O SRT foi implantado com o intuito de (re)socializar os moradores na vida em comunidade, de aumentar a autonomia e a capacidade de interação social. A morada e o seu cotidiano possibilitam aos usuários mudanças no seu estilo e qualidade de vida, apesar de apresentar problemas graves como a precariedade da estrutura física, recursos materiais e humanos insuficientes. O trabalho dos cuidadores parte da incorporação unânime do enfoque psicossocial, mas ainda precisa melhorar no sentido de enfatizar a atuação dos moradores enquanto sujeitos ativos.

Palavras-chave: Atenção à Saúde. Equipe de Enfermagem. Moradias Assistidas. Saúde Mental. Serviços de Saúde Mental.


ABSTRACT

The objective was to investigate the perception of caregivers about their work in Therapeutic Residential Services (TRS) of Caicó-RN. It was a descriptive and qualitative research, conducted in 2009 with six nursing professionals working as caregivers, through a semi-structured interview. Two categories were discovered: the work performed at TRS and its achievements; Difficulties and challenges encountered in the dynamics of the SRT. The SRT was deployed in order to (re) socialize the residents in community life, to increase the autonomy and capacity for social interaction. The address and their routine enable users to make daily changes in their lifestyle and quality of life, despite the existence of severe problems such as instability of the physical infrastructure, inadequate human and material resources. The work of the caregivers comes from the unanimous incorporation of the psychosocial approach, but still needs improvement in order to emphasize the role of the residents as active subjects.

Keywords: Health Care. Nursing, Team. Assisted Living Facilities. Mental Health. Mental Health Services.


RESUMEN

El objetivo fue investigar la percepción de los cuidadores acerca del trabajo en el Servicio Residencial Terapéutico (SRT) de Caicó-RN. Investigación descriptiva y cualitativa, realizada en 2009 con seis profesionales de enfermería que actúan como cuidadores, a través de entrevista seme estructurada. Surgieron dos categorías: El trabajo en SRT y sus logros; las dificultades y retos encontrados en la dinámica del SRT. El SRT se desplegó con el fin de (re) socialización de los residentes en la vida comunitaria, de aumentar la autonomía y la capacidad de interacción social. La residencia y su vida cotidiana permiten a los usuarios cambios en su estilo y calidad de vida, a pesar de graves problemas como la precaria infraestructura física y la insuficiencia de recursos humanos y materiales. El trabajo de los cuidadores se produce por la incorporación unánime del enfoque psicosocial, pero aún necesita mejorar para hacer empeño en el papel de los residentes como sujetos activos.

Palabras-claves: Atención a la Salud. Grupo de Enfermería. Instituciones de Vida Asistida. Salud Mental. Servicios de Salud Mental.


 

 

INTRODUÇÃO

Com a Reforma Psiquiátrica brasileira, as práticas profissionais realizadas no espaço do manicômio, embasadas pela psiquiátrica clássica, passam a ser modificadas. O enfoque biológico, psiquiatrizante, que prioriza a doença como foco de assistência no hospital, dá lugar ao sujeito adoecido, à sua subjetividade, à qualidade e produção de vida nos serviços substitutivos em saúde mental.

O paradigma da psiquiatria tradicional é então superado pelo conceito da reabilitação psicossocial, entendida como um conjunto de ações que se destinam a aumentar as habilidades dos sujeitos, mediada pela inserção na sociedade, em que os portadores de sofrimento mental são convocados a exercer sua cidadania.1

Nessa concepção, estratégias para envolver os usuários e sua família na corresponsabilização pelo tratamento2 e a utilização de tecnologias leves, subsidiada por uma visão ampliada e integrada de saúde, que preserve um espaço de acolhimento e escuta3, parecem fazer parte do foco de trabalho do profissional de saúde mental.

É através da construção de um novo olhar sob a doença mental e de um cuidado diferenciado que ultrapasse as barreiras impostas pelo estigma social, que os portadores de sofrimento mental tendem a ser reinseridos na comunidade, mesmo que esta não seja a sua de origem4, mas onde eles possam circular e reconquistar espaços no retorno a vida em sociedade.

O Serviço Residencial Terapêutico (SRT) surge em meio a estas estratégias como um dispositivo que propõe acolher os egressos ou não de hospitais psiquiátricos, que por falta de suporte social e/ou familiar, não tem condições de garantia de espaço adequado de moradia.5

Ressocializar, resgatar a autonomia desses sujeitos e incentivá-los a assumir uma posição de agentes ativos de produção de vida são objetivos do SRT, que pode acomodar de um a oito moradores, com auxílio do cuidador (profissional de nível médio capacitado por uma equipe de referência), e o suporte de caráter interdisciplinar é garantido pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), a Estratégia Saúde da Família (ESF), ou outros serviços de saúde.5

A implementação e o financiamento desse serviço têm papel decisivo na política de saúde mental em busca da concretização das diretrizes de superação do modelo de atenção centrado no hospital. Dados do Ministério da Saúde6 mostram que existem 564 SRTs em funcionamento e em implantação no Brasil, acolhendo um total de 3.062 moradores.

No Estado do Rio Grande do Norte, há três SRT em funcionamento e 20 moradores beneficiados.6 O município de Caicó-RN, localizado na região do Seridó, aderiu ao processo de reestruturação da rede de saúde mental, substituindo o antigo hospital psiquiátrico por um CAPS III e um SRT no ano de 2008. Nesse contexto de mudanças e práticas, objetivou-se investigar a percepção de cuidadores sobre o trabalho desenvolvido no SRT de Caicó-RN.

 

MÉTODO

Estudo de natureza descritiva, com abordagem qualitativa, desenvolvido no SRT pertencente à Secretaria Municipal de Saúde de Caicó-RN, entre os meses de outubro e dezembro de 2009. Participaram da pesquisa os profissionais de enfermagem atuantes neste serviço como cuidadores (três técnicos e dois auxiliares de enfermagem), além de um enfermeiro de referência, totalizando seis sujeitos de pesquisa. O critério de inclusão estabelecido foi trabalhar há pelo menos um mês no SRT, e o instrumento de coleta de dados utilizado foi a entrevista semiestruturada.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina do Juazeiro (CEP-FMJ, Parecer 2009/0543). Os sujeitos foram esclarecidos sobre os objetivos e finalidades da pesquisa pela apresentação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

A coleta de dados ocorreu em sala fechada nas dependências do CAPS III (quatro entrevistas) e do SRT (duas entrevistas). As entrevistas foram gravadas em áudio digital (aparelho MP4) e, posteriormente, transcritas na íntegra pelos pesquisadores. Os discursos sofreram a escuta flutuante e exaustiva, da qual foi possível visualizar a emergência de duas categorias: O trabalho realizado no SRT e os resultados alcançados; Dificuldades e desafios na dinâmica do SRT.

A identificação dos entrevistados é feita pela abreviação "Prof." (profissional), seguida pelo numeração de 1 a 6, total de sujeitos entrevistados. Essa numeração foi dada de forma aleatória, dispensando a sequência das entrevistas e preservada a identidade dos sujeitos.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Participaram do estudo seis profissionais de enfermagem, sendo mulheres (100%), casadas (83%) com idade superior a 30 anos (100%). A maioria eram técnicas de enfermagem (50%), com tempo de trabalho no SRT menor a 1 ano (67%) e com experiência na área da saúde mental superior a 11 anos (67%). É importante que isso seja esclarecido, pois, os sujeitos se concentram no trabalho realizado no hospital psiquiátrico e confrontam com o trabalho realizado atualmente no SRT.

O Trabalho Realizado no SRT e os Resultados Alcançados

Apresenta-se nesta categoria a percepção dos profissionais acerca do propósito do SRT, como é desenvolvido o trabalho pelo cuidador neste serviço, e os resultados alcançados. Segundo os entrevistados, o SRT foi implantado com o intuito de (re)socializar os moradores na vida em comunidade, de aumentar a autonomia e a capacidade de interação social.

Eu particularmente entendi que a residência terapêutica é pra trazer de volta eles [moradores] pra sociedade [...] com a inclusão social, que eles tenham mais independência. Eu sei que é difícil, mas de pouquinho e pouquinho vai trazendo eles pra sociedade (Prof. 6).

Tentar é [...] fazer com que essas pessoas [moradores] que hoje lá [SRT] estão, tentar interagir com eles na sociedade. Sempre orientando, e sempre tentando levá-los pra uma vida social (Prof. 1).

O trabalho no SRT pretende resgatar a autonomia do morador perdida pela tutela do hospital e pelo afastamento do núcleo familiar, através da convivência com os outros moradores, cuidadores e comunidade no território, além da equipe técnica de referência. Isso possibilita modificações de comportamentos e de produção de vida, como evidenciado nos discursos.

Antes ele [morador] fazia as necessidades junto com o cachorro, hoje já usa o banheiro [...] tem noção que a geladeira tem comida e que tem que ir quando tá com fome. Ele abre o armário, vai no gelá'gua [...] (Prof. 6).

Ele [morador] não comia na mesa, e hoje em dia ele come com a gente na mesa, mudou totalmente (Prof. 2).

Ele [morador] já convive com as pessoas normalmente, sai, vai comprar roupa, antes ele não sabia comprar nada. O outro [morador] também, vai numa mercearia com dinheiro, compra e traz o troco, assim totalmente diferente (Prof. 6).

Esse (re)aprendizado das atividades cotidianas é considerado essencial para (re)socialização dos moradores na comunidade inserida. Tais resultados se assemelham aos encontrados em outra pesquisa7, realizada nos SRTs de Campina Grande-PB, em que os profissionais relataram que ao ingressarem nas residências os moradores foram incentivados ao (re)aprendizado do autocuidado.

É importante ressaltar que o trabalho no SRT requer dos profissionais cuidadores a realização de atividades que ultrapassam sua formação profissional, tais como auxiliar em tarefas domésticas, ajudar no pagamento de contas, na administração do próprio dinheiro, exigindo dos trabalhadores o desenvolvimento de novas formas de cuidar.5

Para os entrevistados, a morada no SRT e o seu cotidiano possibilitam aos usuários mudanças no seu estilo e qualidade de vida. A condição de morador "valoriza" o portador de sofrimento mental por ele saber que possui um lar, pessoas a sua espera, e que seus desejos/perspectivas ainda podem ser concretizados.

Antes ele [morador] ficava no Hospital em maus estados, a família não vinha, ele sentia uma necessidade. A própria família não tem aquela estrutura, por não saber lhe dar e isso reservava muito o paciente [.](Prof. 4).

Porque eles [moradores] precisavam de um lar, eles ficavam bons, passava uma semana e a família já devolvia pra o hospital. [...] Com a reforma e a residência ele achou, se identificou, lá no fundo ele sabe que tem um lar, uma casa, quarto, roupa, uma família, que no hospital não tinha (Prof. 6).

No tocante ao processo de trabalho da enfermagem em saúde mental, surge um novo modelo de trabalho pautado na humanização, que preza pela promoção e prevenção da saúde mental, e na ajuda ao portador de sofrimento mental a enfrentar as pressões e dificuldades advindas do cotidiano. Além disso, assiste à família e à comunidade, no encontro com o verdadeiro sentido para o sofrimento mental.8

Os profissionais de enfermagem que trabalham no SRT pesquisado se baseiam neste novo enfoque como meio de alcançar ou possibilitar as estratégias de (re)socialização e de respeito à singularidade dos sujeitos.

A gente procura mais fazer a parte social com eles [moradores] Tentar interagir com eles na sociedade, levar pra passeios, trazendo pro CAPS, buscando cada vez mais ocupá-los, estimular a ter atividades (Prof. 1).

Assim, eles vão pra o CAPS, mas tem morador que não gosta de ir pro CAPS. [...] Eu descobri que eles gostam muito de praça, aí eu levo eles pra praça. Uns gostam de ouvir música, eu já coloco as músicas, outros já gostam de assistir, já boto a televisão [...]. E tem a medicação que a gente dá, às 7:00 h, 15:00 h e as 20:00 h (Prof. 6).

Os depoimentos evidenciam a necessidade de interação com os moradores no sentido de conhecer suas necessidades e subjetividades. Entretanto, deve-se ir mais além do que "executar" determinada ação por eles (ligar TV e aparelho de som, administrar medicação). É preciso instigar a volição e a autonomia dos moradores, na tentativa de conferir uma posição mais ativa e menos dependente, mesmo reconhecendo que a herança manicomial os levem, quase sempre, a esperar pelo "outro que cuida".

Cabe aqui ressaltar que o processo de reabilitação psicossocial está estreitamente relacionado à ideia de morar/ habitar em uma casa, existindo a diferença entre "o estar" e "o habitar" em um determinado lugar. O primeiro indicaria pouca ou nenhuma relação de propriedade do espaço no qual o indivíduo vive; o segundo designaria, por sua vez, um grau de propriedade maior deste espaço com participação na organização material e simbólica. A transformação de "estar" em "habitar" seria, portanto, um dos elementos fundamentais da qualidade de vida de um indivíduo e de sua capacidade contratual.9

Assim, quando um egresso de um hospital psiquiátrico vai morar numa casa, ele não habita necessariamente nela, ele pode ter passado do estado de não ter uma casa ao estado de ter uma casa concreta. Devese inicialmente desconstruir o modo de vida asilar por meio de um trabalho de subjetivação dos espaços, de (re)aquisição do direito ao uso dos espaços e do seu melhoramento; é o processo de transformação do espaço do SRT em habitat, em casa, o que dá sentido à reabilitação.9

Nesse sentido, os cuidadores devem mostrar abertura e flexibilidade diante dos anseios de cada morador. Estimular a sua autonomia, colocando-o em uma posição privilegiada e de agente que vive em comunidade, partícipe das relações e trocas sociais existentes. Isso intensifica a satisfação do usuário no processo de produção de vida em sociedade e do exercício da cidadania.

Surge um imperioso desafio ao trabalho de enfermagem quando se redimensiona o indivíduo como centro do trabalho em saúde mental, devendo-se incluir no rol de práticas a escuta e a relação terapêutica, como forma de se aproximar das propostas inovadoras da Reforma Psiquiátrica.10

Apesar de os pesquisadores observarem que nesta pesquisa os entrevistados consideram a relação terapêutica profissional-usuário, a escuta e a liberdade de expressão como recursos de auxílio no processo de reabilitação, quando questionados sobre as atividades desenvolvidas no espaço do SRT, tais ações não foram lembradas. Tiveram destaque a administração de medicamentos, o acompanhamento ao CAPS III e ao Hospital Geral.

Lá na residência o que a gente faz é dar medicação nas horas corretas, levar ao médico quando necessário, trazer pra o CAPS pra fazer as atividades ocupacionais, a alimentação é a gente também quem cuida, [...] banho, essas coisas, é tudo a gente que faz (Prof. 3).

A gente sempre coloca músicas pra eles escutar, filme [...]. E quando eles vêm pra o CAPS pra fazer as atividades, é [...] pintar, fazer crochê, fazer trabalho manual, ajuda bastante (Prof. 2).

Dar a medicação e observar, porque se lembra, nós temos diabéticos, temos 'hipertensivos', e a gente tem todo aquele cuidado, sabe? [...] cuidar da higienização deles, fazer limpeza corporal, orientar, cortar as unhas deles (Prof. 4).

Neste ínterim, o que se estranha nos discursos é a não inclusão/menção da atenção básica nesta assistência, não identificando a Unidade Básica de Saúde da Família (UBSF) do território como referência para esses problemas.

Até o tempo todinho que trabalho aqui [SRT] eles [equipe da ESF] nunca vieram aqui. O [...] aparelho de pressão tem, é a gente [cuidadores] que verifica, porque tem três que tomam remédio pra pressão (Prof. 6).

Segundo a entrevistada, a equipe da ESF adstrita no território do SRT nunca fez visita aos moradores. Esse dado demonstra uma deficiência na articulação entre a ESF, o SRT e o CAPS III, apontando uma fragilidade do cuidado em saúde mental na rede, que dificulta o processo de desinstitucionalização iniciado com o fechamento do hospital psiquiátrico local.

Esta situação vivenciada pelo SRT assemelha-se muito a outras realidades, onde a UBSF do território não é percebida como um serviço inerente à rede de saúde mental. Uma pesquisa11 realizada em Cuiabá-MTaponta que os profissionais da ESF não percebem os portadores de sofrimento mental como um público-alvo de sua assistência, deixando-os a cargo dos serviços de saúde mental especializados. Entre os fatores que contribuem para esta situação está a falta de preparação/ capacitação da equipe em lhe dar com esta clientela, visto a fundamentação do modelo biomédico hospitalocêntrico ainda presente na sua prática assistencial.

Neste sentido, a implantação de uma equipe matricial no município de Caicó constituiria uma alternativa de parceria entre UBSF e CAPS. O matriciamento implicaria na corresponsabilização destes serviços pela assistência continuada dos usuários, evitando encaminhamentos desnecessários ou encargos exclusivos ao CAPS.

É fato que não é uma equipe ou serviço especializado em saúde mental que trará sucesso ou resolutividade aos problemas de saúde mental de um território. São necessários esforços conjuntos de uma equipe multidisciplinar, embasada pelo princípio da reabilitação, que promove estratégias eficazes, resultando em melhoria na assistência ao portador de sofrimento mental e sua família.12

Esta articulação demanda o envolvimento e a disponibilidade dos profissionais de saúde, por meio da interdisciplinaridade e intersetorialidade, no desenvolvimento de atividades comunitárias que trabalhem as potencialidades dos sujeitos no âmbito sociocomunitário.8

No entanto, as estratégias de reabilitação encontradas nesta pesquisa ainda se limitam ao espaço do CAPS III, com o desenvolvimento das oficinas terapêuticas (OTs). As OTs auxiliam os usuários a se (re)adaptarem na vida em sociedade, seja por (re)criarem espaços de vínculos sociais ou por permitirem a produção do trabalho manual e/ou expressivo dos usuários. De ambas as formas, as ações desenvolvidas estimulam a autonomia e autoestima, por meio da valorização do potencial criativo, produtivo e expressivo do usuário, podendo ainda atribuir o valor de trabalhador e cidadão, digno de direito e deveres.13,14

Apesar destes impasses, a vivência no SRT tem proporcionado aos moradores o (re)aprendizado de várias habilidades cotidianas, embora ainda de forma lenta; o desenvolvimento da autonomia e de atividades contratuais, que ainda necessitam ser bastante enfocadas e trabalhadas pelos cuidadores; e o estabelecimento de vínculo com a comunidade e os espaços habitados socialmente.

Esse último ponto merece avançar no sentido de atingir mais setores da sociedade, chegando ao conhecimento da população a existência do SRT e seus propósitos, o que pode ampliar e potencializar as estratégias de reabilitação preconizadas pela atual política de saúde mental.

Dificuldades e Desafios Encontrados na Dinâmica do SRT

Nesta categoria, emergiram as dificuldades percebidas e vivenciadas pelos sujeitos da pesquisa. Problemas de ordem econômica (suporte financeiro) e de estrutura física, a escassez de recursos humanos e a precariedade de "instrumentos" para a realização do trabalho pelos cuidadores foram ressaltados como empecilhos para a concretização das estratégias de reabilitação no SRT.

Experiências de implantação em outras localidades do país apontam que a regulamentação da vida no SRT se dá por meio de reuniões semanais ou quinzenais onde são construídas/ decididas as regras de convivência e funcionamento do dia-adia, com a participação dos moradores, funcionários do serviço e técnicos envolvidos. As reuniões seriam uma oportunidade para exteriorizar os problemas percebidos pelos moradores ou funcionários na dinâmica do serviço.9,15

Na realidade pesquisada, essas reuniões pouco têm contribuído para mudanças efetivas na dinâmica do SRT de Caicó. São diversas as sugestões referidas pelos cuidadores, além de dificuldades cotidianas, como a deterioração das instalações físicas.

Hoje uma menina estava dizendo: "vai ter uma reunião amanhã". Pra quê essa reunião? A porta da cozinha daqui da residência está quebrada faz quatro meses. O ventilador do quarto deles está quebrado, a gente fica reclamando, aí eles dizem [...] vai ajeitar, e nunca vêm, não vêm! A gente aqui não se sente seguro (Prof. 5).

A morosidade da gestão municipal em resolver estes impasses tem provocado o descontentamento dos trabalhadores em atuar neste serviço, uma vez que não estão sendo disponibilizadas condições mínimas de segurança e salubridade no trabalho. A ausência de instrumentos, necessários ao trabalho dos cuidadores também foram ressaltados, como a inexistência de aparelho telefônico e de um transporte.

Aqui [SRT] a gente, pra procurar a família, tem que usar o nosso telefone, porque aqui não existe. Quer dizer se há uma urgência e a gente não tiver crédito no celular, como é que a gente vai fazer contato? (Prof. 5).

Levar eles [moradores] pra passear, a gente depende de outras pessoas, a gente não tem [...] autonomia pra fazer nada, porque não tem transporte, [...] tudo depende de outras pessoas, é complicado trabalhar por isso (Prof. 3).

Em estudo16 realizado com profissionais de saúde mental do Rio de Janeiro, foi constatado que as precárias condições de trabalho, tais como as instalações físicas inadequadas e a falta de recursos materiais e humanos, foram os fatores que mais contribuíam para a menor satisfação com o trabalho e mais impacto sobre a saúde do trabalhador.

Nesta perspectiva, condições dignas de moradia e de trabalho precisam ser oferecidas tanto aos moradores da SRT quanto aos seus trabalhadores de saúde. Esforços para conduzir o serviço na perspectiva de reinserção social dos portadores de sofrimento mental devem ser uma meta a ser conquistada, e não requerem somente iniciativas individuais dos seus trabalhadores. É preciso o apoio dos demais profissionais que atuam na rede de serviços de saúde do município, da comunidade e, especialmente, dos gestores municipais.

A quantidade de cuidadores no SRT também foi referida como uma dificuldade vivenciada. No momento da pesquisa, o serviço funcionava com apenas quatro profissionais que se revezam semanalmente em plantões de 24 horas, resultando em uma sobrecarga de trabalho semanal.

A gente precisava muito do apoio do CAPS III e não pegar os funcionários daqui [Caps III] e pedir pra eles ir tirar plantão lá [SRT]. Então, está havendo falta de funcionários lá (Prof. 1).

O que parece acontecer é que os profissionais do CAPS estão preenchendo temporariamente esta escala de trabalho, trazendo prejuízos para os dois serviços (CAPS e SRT), além do descontentamento dos cuidadores com esta situação. A reclamação por parte dos direitos trabalhistas dos funcionários também teve destaque e precisa ser respeitada e considerada pela gestão municipal.

A gente nem recebe gratificação de desgaste mental, nem de salubridade, e a gente sabe que tem direito, mas eles não pagam, não querem pagar e dizem que nós não temos direito. E a gente tem direito (Prof. 1).

Atualmente, o processo de trabalho em saúde recebe influências diversas da dinâmica social, afetando inclusive

o perfil saúde-doença dos trabalhadores da saúde. Os profissionais que atuam na área da saúde mental vivenciam constantemente situações complexas que acabam, por vezes, influenciando-os emocionalmente.

Neste sentido, políticas nacionais foram discutidas e consolidadas para valorizar o trabalhador de saúde mental na produção do ato de cuidar, intentando-se garantir aos profissionais capacitações e qualificação continuada; remuneração justa; garantia de condições de trabalho e de planos de cargos, carreira e salários. Entretanto, o que se percebe é que o investimento nesta área, no que se refere à saúde do trabalhador, acaba ficando sob o encargo de cada gestor local17, revertendo-se em iniciativas isoladas e descontinuadas.

Outra dificuldade relatada foi a limitação das atividades de reabilitação ao espaço do CAPS III, agravada quando associada à recusa constante dos moradores em visitar este serviço. Isso exige dos cuidadores o elenco de outras atividades para suprir a ociosidade no SRT. Algumas soluções expressas pelos entrevistados foram a inclusão das atividades desenvolvidas no CAPS III.

Eu acho que lá [SRT] deveriam mandar mais atividades pra eles [moradores]. Já que eles muitos não querem vir pra cá [CAPS III], tem uns que não querem vir, você faz de tudo e eles não querem vim, eu acredito que deveria ir pra lá [SRT] (Prof. 2).

Na mesma perspectiva, crescem as críticas e questionamentos acerca da dependência dos usuários aos CAPS, devendo ser alertada a frequência das visitas e a permanência destes no serviço durante a semana.15 O mais coerente seria estimular a vida externa ao CAPS e ao SRT, considerando o projeto terapêutico individual de cada usuário, além de instigar atividades que promovam a circulação/interação com a cidade. Esta percepção precisa ser compreendida pelo serviço e profissionais pesquisados, a fim de que esta realidade mude.

Em meio a este contexto, os cuidadores participantes desta pesquisa idealizam estratégias de lazer "extramuros" ao serviço, mas não encontram suporte para desenvolvêlas. A falta de meios e instrumentos para trabalhar, e o receio da sociedade perante a loucura, dificultam:

Eu queria um carro que ficasse à disposição deles [moradores] no sábado e domingo, porque nos sábados todo mundo quer ir passear. E eles ficam aqui [SRT] sem fazer nada! Queria que eles tivessem mais visitas das pessoas, mas o povo tem receio de entrar [no SRT]. Eu acho que deve ter mais apoio (Prof. 6).

Percebe-se, ao longo dos discursos, que as dificuldades referentes ao suporte a este serviço não se limitam ao espaço/ estrutura física, mas se estendem aos recursos necessários para potencializar as estratégias de reabilitação. Nesta perspectiva, a relação morador-profissional no SRT é insuficiente para a ressocialização requerida.

Deve-se incumbir à comunidade e à gestão a corresponsabilidade na defesa e prática da reabilitação psicossocial dos portadores de sofrimento mental. Os cuidadores referem a carência do envolvimento da comunidade, almejando mais oportunidades na vida extramuros para o moradores.

Eu queria que eles [moradores] tivessem mais oportunidade. Queria pra x [usuário] uma escola, porque ele é muito novo, tem tudo pra terminar os estudos dele, mais aí não depende só de mim, né? Depende de outras pessoas, pra dar a oportunidade a eles, porque eles são capazes de aprender outras coisas, de refazer o que eles pararam há muito tempo (Prof. 6).

Evidencia-se, neste discurso, o interesse dos cuidadores de reinserir socialmente os moradores, de vêlos envolvidos em atividades comunitárias, em escolas, no ingresso ao mercado de trabalho, entre outras. Estas oportunidades seriam fruto de uma reabilitação concretizada, de um trabalho idealizado com vistas à autonomia e independência, ultrapassando os limites impostos pelo estigma social da loucura, pela medicalização e pelo modelo hospitalocêntrico.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados deste estudo demonstraram que o trabalho dos cuidadores realizado no SRT parte da incorporação unânime do enfoque psicossocial, com a adoção de uma postura mais horizontal e humanizada que procura responsabilizar-se pela evolução, recuperação e reabilitação dos moradores.

Entretanto, apesar da vontade de mudança e novos aprendizados, a prática diária no SRT e as atividades desenvolvidas pelos cuidadores ainda precisam melhorar no sentido de enfatizar a atuação dos moradores enquanto sujeitos ativos. As ações relatadas pelos sujeitos de pesquisa pouco se materializam em ações que busquem/ resultem na autonomia concreta dos moradores ou em sua reabilitação psicossocial.

A dinâmica de funcionamento do SRT apresenta problemas graves, como a precariedade da estrutura física e recursos materiais e humanos insuficientes. São necessárias iniciativas conjuntas, não somente dos profissionais diretamente inseridos no SRT, mas dos demais serviços/profissionais de saúde e, especialmente, da atenção e investimento da gestão municipal de saúde, na tentativa de sanar as dificuldades constantemente enfrentadas.

Espera-se que os resultados aqui apresentados possam fomentar a discussão e reflexão sobre o processo de Reforma Psiquiátrica vivenciado pelo município, elegendo-se estratégias de superação. Além do mais, configura-se também num momento de debate e de troca de experiências entre gestores, antigos e novos trabalhadores e a academia. Entretanto, sabe-se da importância de novos estudos a serem desenvolvidos, enxergando-se suas limitações.

Intenta-se que esta experiência não se limite à área da saúde mental, mas ultrapasse esta dimensão, e se aproxime das demais áreas de conhecimento e de atuação do profissional enfermeiro. Isso contribuirá para uma melhor assistência/prática profissional sob o enfoque interdisciplinar e, principalmente, no alcance e retorno positivo na promoção, prevenção, recuperação, reabilitação e manutenção da saúde dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).

O resultado deste estudo impulsiona o desejo de realizar novas pesquisas na área da saúde mental no que se refere à influência/repercussão do processo de trabalho de enfermagem nos serviços substitutivos, além do funcionamento/articulação da rede de saúde mental no contexto pesquisado.

 

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17. Silva EA, Costa II. Saúde mental dos trabalhadores em saúde mental: estudo exploratório com os profissionais dos Centros de Atenção Psicossocial de Goiânia/GO. Psicol Rev. 2008 jun;14(1):83-106.

 

NOTA

a Recorte do relatório de Pesquisa PIBIC/UERN/CNPq (vigência 20092010), intitulada: "A equipe de enfermagem e as novas práticas em saúde mental: conformação e implantação do Serviço Residencial Terapêutico no município de Caicó-RN".

 

 

Recebido em 15/10/2010
Reapresentado em 28/02/2011
Aprovado em 04/06/2011

 

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