Volume 15, Número 3, Jul/Set - 2011
PESQUISA
Cuidado familiar à idosa em condição crônica por sofrimento psíquicoª
Family care to elderly in condition for psychic chronic suffering
Aténcion familiar a la anciana em condición crónica por sufrimiento psíquico
Marilene HillerI; Roseney BellatoII; Laura Filomena Santos AraújoIII
IEnfermeira, Mestre em Enfermagem pela Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso (FAEN/UFMT), integrante do Grupo de Pesquisa "Enfermagem, Saúde, e Cidadania" (GPESC). Cuiabá ? MT. Brasil. Email: marilenehiller@hotmail.com
IIEnfermeira, Professora Doutora da FAEN/ UFMT, líder do GPESC. Cuiabá ? MT. Brasil. Email: roseney@terra.com.br
IIIEnfermeira, Professora Doutora da FAEN/UFMT, membro do GPESC. Cuiabá ? MT. Brasil. Email: laurafil1@yahoo.com.br
RESUMO
Este estudo tem por objetivo compreender que repercussões a busca, a produção e o gerenciamento do cuidado a uma pessoa idosa com condição crônica por sofrimento psíquico têm na vida de sua família. Considerando-se que essa condição crônica exige cuidado permanente e progressivo, procuramos compreender o desgaste e as implicações que esse cuidado tem para a família. Trata-se de um Estudo de Caso que utilizou a História de Vida Focal como estratégia metodológica operacionalizada pela entrevista em profundidade, com os membros da família de uma pessoa idosa com sofrimento psíquico. Como forma de organização e análise dos dados utilizamos o Itinerário Terapêutico e suas ferramentas. O estudo nos convida a refletir que o cuidado produzido repercute não apenas sobre a pessoa idosa em sofrimento psíquico, mas também no modo de viver de cada cuidador e da família como um todo.
Palavras-chave: Sofrimento Psíquico. Enfermagem. Família.
ABSTRACT
The objective of this study is to understand the repercussion of the search, production and management of care to an elderly person suffering with a psychic chronic condition has on the life of the family. Considering that such chronic condition requires a progressive and permanent care, we aimed to understand the wear and the implications that such care causes to the family. It handles of a Case Study, utilizing the History of the Focal Life as a methodological strategy turned operational by in-depth interviews with the members of the family of an elderly person under psychic suffering. As a form to organize and analyze the data we used the Therapeutic Itinerary and its tools. The study invites us to reflect that the care produced has a repercussion not only on the aged person under psychic suffering but also on the way of life of each nurse and of the family as a whole.
Keywords: Psychic Suffering. Nursing. Family.
RESUMEN
Este estudio tiene por objeto comprender qué repercusiones la búsqueda, la producción y la gestión de la atención a una persona anciana en condición crónica por el sufrimiento psíquico ocasiona en la vida de su familia. Considerándose que esa condición crónica exige atención permanente y progresiva, buscamos comprender el desgaste y las implicaciones que esta atención ocasiona a la familia. Se trata de un Estudio de Caso que utilizó la historia de vida focal como estrategia metodológica operacional con la entrevista en profundidad, con los miembros de la familia de una persona anciana con sufrimiento psíquico. Como forma de organización y análisis de los datos, utilizamos el Itinerario Terapéutico y sus herramientas. El estudio nos invita a reflexionar que la atención producida repercute no solo sobre la anciana con sufrimiento psíquico, pero también en la manera de vivir de cada cuidador y de la familia como un todo.
Palabras clave: Sufrimiento psíquico. Enfermería. Familia
INTRODUÇÃO
O número de idosos tem crescido consideravelmente nos últimos anos e tende a atingir o maior contingente populacional no Brasil e no mundo. A população na América Latina e Caribe acima de 60 anos terá, em média, dobrado ou triplicado antes do ano 2025; diante desse processo de envelhecimento, torna-se importante conhecer as condições de vida, de saúde, econômicas e de suporte social dos idosos, de modo que se possa estar preparado para atender às demandas sociais, sanitárias, econômicas e afetivas dessa parcela da população. 1
Em decorrência de vários fatores, entre eles o envelhecimento da população, está havendo uma mudança no perfil epidemiológico, tornando as doenças crônicas a principal causa de mortalidade e incapacidade no mundo.2 A Organização Mundial de Saúde3, ao tratar dos agravos crônicos, utiliza o termo "condição crônica" para aqueles que exigem cuidado continuado e prolongado, sendo essa sua característica principal, abrangendo sob essa denominação tanto as doenças não transmissíveis como as transmissíveis de longa duração, ampliando, assim, o seu significado. Prevê ainda que, até o ano 2020, as condições crônicas, incluindo os casos de invalidez permanente por acidente de trânsito e os distúrbios mentais, serão responsáveis por 78% da carga global de doença nos países em desenvolvimento. Porém, os serviços de saúde não estão preparados para esta demanda, pois foram constituídos e organizados em função de um perfil de saúde distinto do que se apresenta hoje, centrando-se no atendimento à problemas de caráter agudo, o que dificulta acompanhar a demanda atual por cuidados continuados e prolongados requeridos na condição crônica, constituindo-se este o grande desafio do setor saúde neste século.
No que se refere ao impacto dessa condição, é importante lembrar que todos "pagam o preço", e as pessoas por ela acometidas e seus familiares se responsabilizam por custos econômicos, como também sociais, profissionais e familiares, dentre outros, invisibilizados para os sistemas, serviços e profissionais de saúde, por não serem quantificáveis. Assim, torna-se necessário e premente compreender em que medida e de que modo esses múltiplos custos incidem sobre as pessoas que vivenciam o adoecimento por uma condição crônica, bem como as suas famílias. Ao associarmos a mudança do perfil demográfico decorrente do envelhecimento da população, com a mudança do perfil epidemiológico que aponta para um incremento importante das condições crônicas, encontramos um vasto campo de estudos possíveis em saúde.
Este estudo recorta-se, assim, dentro do campo das condições crônicas que afetam a população idosa, sendo nosso interesse a experiência de uma pessoa idosa em condição crônica por sofrimento psíquico e a busca, produção e gerenciamento do cuidado por sua família.
O sofrimento psíquico constitui-se em um conjunto de condições psicológicas que, apesar de não caracterizar uma doença, gera determinados sinais e sintomas que indicam sofrimento.4 Algumas de suas expressões mais frequentes são as inibições, as angústias, os distúrbios de caráter, as compulsões à repetição, dentre outras.5
Partimos do pressuposto de que a família não apenas participa do processo de adoecimento, mas é quem primariamente cuida da pessoa adoecida, sendo afetada e sofrendo profundas implicações em sua dinâmica, organização e modo de vida na ocorrência de uma ou mais condição crônica entre seus membros.6 Desta forma, considerando estas múltiplas implicações para os familiares cuidadores, com desgaste dos seus potenciais e de suas próprias vidas; e que esta condição crônica tem como característica ser continuada e, geralmente, progressiva e exigir, portanto, cuidado permanente e paulatinamente mais intensivo, justificou a necessidade deste estudo, de modo a dar visibilidade a essa realidade vivida por muitas famílias, visto que possibilita compreender algumas dimensões desse cuidado familiar. Assim, nosso objetivo o foi compreender as repercussões do cuidado a uma pessoa idosa em condição crônica por sofrimento psíquico na vida de sua família.
METODOLOGIA
Estudo de caso de uma família residente em Cuiabá-MT, que vivencia a condição crônica de dona Anab, idosa de 72 anos em sofrimento psíquico e com história de adoecimento ao longo de 20 anos, com muitas buscas a serviços de saúde públicos, bem como conveniados e particulares nos últimos 12 anos, com diagnósticos médicos variados, entre eles depressão e doença de Alzheimer. Atualmente, a idosa está sem diagnóstico médico firmado e é acompanhada por dois profissionais, um geriatra e um psiquiatra, ambos do sistema de saúde suplementar, por meio de convênio médico. A família de dona Ana é abordada, neste estudo, em três gerações, com ênfase aos seus diferentes núcleos de cuidado, sendo estes considerados como as pessoas com as quais ela morou em determinados momentos de sua vida e que estavam mais próximos a ela como seus cuidadores.
A família foi selecionada com base no fato de ter um de seus membros vivenciando uma condição crônica por sofrimento psíquico, ser idosa e fazer uso de serviços públicos de saúde no município de Cuiabá. A busca se deu através do Núcleo de Medicamentos de Alto Custo da Secretaria de Estado de Saúde, conhecido como "Farmácia de Alto Custo", por ser o local que oferecia medicação de alto custo para uma gama de condições crônicas. Assim, a família da idosa foi contatada através deste serviço, pois fazia uso de medicamento para o, então, diagnóstico de Alzheimer, tendo aceito participar deste estudo.
Utilizamos a História de Vida Focal (HVF) como estratégia metodológica para conhecer a experiência de adoecimento, segundo a perspectiva de quem a vivencia, pois permite obtermos a narrativa das pessoas quanto à experiência de um dado fenômeno relevante em suas vidas. Esta estratégia foi operacionalizada pela Entrevista em Profundidade (EP), na qual as narrativas são obtidas de modo a garantir o aprofundamento gradual das experiências, através de encontros sucessivos, sendo que as vivências narradas anteriormente são retomadas e/ou ampliadas com novos elementos nos encontros posteriores. Em sua condução há de ser considerada a relação entrevistador/entrevistado, o que exige esforços reflexivos e de direcionamento para que seja obtida uma interação que possibilite a imersão no universo cotidiano do entrevistado, sem que isso se caracterize como uma invasão ou afronta à intimidade da pessoa. Assim, pressupõe-se o estabelecimento de um relacionamento aberto e informal, e a manutenção de uma disposição sincera para compreender a experiência do outro.7
A EP foi realizada com a idosa, seus filhos, Ivete e José, e um neto, em momentos diferentes e requerendo vários encontros. Seguiu a seguinte questão norteadora: "conte-me como tem sido a experiência de adoecimento e a busca por cuidados para a dona Ana, e como isto tem afetado a sua vida e a de sua família". Os encontros foram gravados e filmados, o que nos possibilitou apreender a narrativa dessas pessoas, bem como suas expressões e seu contexto.
O material gravado foi transcrito minuciosamente, acrescido das notas de observação, registradas no Diário de Campo realizado durante todo o trabalho de campo. Também fizemos o detalhamento da leitura das imagens produzidas, formando-se, assim, o corpus de análise, submetido a leituras exaustivas quando se procurou compreender os sentidos da experiência de adoecimento e cuidado segundo a lógica da própria família. Para melhor compreensão do modo como a família se organizou para cuidar de dona Ana ao longo dos muitos anos de seu adoecimento, elaboramos o genograma da família8, bem como realizamos o desenho representativo da repercussão mútua do adoecimento e do desenvolvimento da vida familiar, o que conferiu certa visibilidade para os núcleos de cuidado à idosa, dentre as categorias do estudo. Tais desenhos compõem o Itinerário Terapêutico, uma ferramenta analítica que permite compreender como a família se organiza para poder produzir, buscar e gerenciar o cuidado para seu ente adoecido; possibilita também, apreender o modo como os serviços de saúde produzem e disponibilizam cuidados ao mesmo.9
RESULTADO E DISCUSSÃO
No processo de adoecimento de dona Ana é possível discutirmos as dimensões que compõem o cuidado produzido pela família, e o modo como essa produção afeta cada um dos seus membros, pressupondo que a condição crônica exige cuidado continuado e prolongado, sendo, via de regra, produzido e gerenciado pela família e suas redes para o cuidado, das quais os serviços e profissionais de saúde participam de modo mais pontual e em momentos específicos, particularmente quando se exacerbam os sinais e sintomas, marcando o que as pessoas denominam de "crise" e que os profissionais evidenciam como agudização.9
Dona Ana tem uma condição que perdura por anos, sem cuidado profissional adequado, o que deixa a família sem perspectivas com relação a como conduzir a vida. Chamou-nos a atenção que, embora essencial, o cuidado produzido por seus membros sofre desvalorização dentro da própria família.
A minha irmã não trabalhava nem estudava, e eu viajava e estudava. Eu viajava muito. Agora está invertido, agora ela trabalha e estuda e eu não estou fazendo nada. [...] Eu trabalhava, eu sou representante comercial (Ivete).
Não raro chamado de "cuidado doméstico", o cuidado às pessoas doentes realizado pela família tende a se perder na enormidade de atividades que compõem o seu cotidiano, sem que a ele se atribua valor, a não ser na sua ausência. Quando se analisam os sentidos atribuídos ao trabalho doméstico por serventes de limpeza, este se mostra "... econômica e culturalmente desvalorizado na sociedade patriarcal, não sendo muitas vezes reconhecido nem mesmo por quem o consome, ou seja, pela própria família".10
Ivete mostra esse desvalor e invisibilidade ao comparar sua intensa atividade de cuidado à mãe doente com o trabalho e estudo da irmã. No entanto, procura dar ênfase ao fato de que tem uma profissão. Sendo desvalorizado pela sociedade, o cuidado familiar também se mostra desvalorizado por quem o realiza, seja direta ou indiretamente, tornando-se um circulo vicioso:
Estudava, comecei até a fazer um estágio, lá no consumidor. Mas, daí eu parei porque não dava, ou eu deixava ela lá em cima sozinha, caindo, e continuava com a minha vida. Eu peguei e levei ela pra casa, e está lá até hoje (Ivete).
A própria cuidadora aponta que o cuidado que dispensa à sua mãe é imprescindível, não sendo possível a alternativa de deixá-la sozinha. Ao mesmo tempo mostra que essa opção, se assim podemos considerá-la diante da imposição da necessidade, trouxe consequências para sua vida, aspecto importante para compreendermos o modo como é definido o cuidador dentro da família.
Esta designação do cuidador parece seguir certas regras, refletidas em quatro fatores, de parentesco, gênero, proximidade física e proximidade afetiva, destacando-se a relação entre pais e filhos,11 considerando-se que a decisão de assumir os cuidados é consciente, embora informal e decorrente de uma dinâmica. Embora certas "regras" estejam, em alguma medida, presentes na designação dos cuidadores de dona Ana, pudemos apreender que essa atribuição de responsabilidades pelo cuidado é menos desta ordem do que de toda uma conjuntura de vida que se impõe em dado momento do adoecimento vivenciado pela família. Assim, concordamos que o sistema de cuidado familiar à idosa se dá em um contexto de complexidades e singularidades, diferente do contexto de cuidado profissional regulado e normatizado por relações objetivas e situações preestabelecidas.12 No contexto domiciliar, estas condições não estão dadas, mas construídas estrategicamente e internalizadas na dinâmica familiar, integrando-se à própria identidade deste cuidado.
Diante da necessidade do cuidado prolongado à pessoa idosa a família vivencia sentimentos de culpa, frustração, amor e solidariedade, em um processo que envolve aceitação do fato, mas que também é atravessado pela negação, entrega à dor, podendo gerar depressão e suas consequências deletérias nos familiares mais próximos.13 Ser cuidador, portanto, traz consequências importantes para a vida dos familiares, não se tratando, porém, de atribuir um valor positivo ou negativo à esta experiência, mas sim que fazem parte de um mesmo movimento ininterrupto em que o sensível e o objetivo, o pessoal e o impessoal, o intuitivo e o racional constituem modalidades de uma mesma experiência - o cuidado familiar. E essa ambiguidade abre possibilidades de ressignificações, tanto pelo cuidador como pela pessoa cuidada, de seus projetos de vida e de criação de estratégias próprias de cuidado para ambos.14
Diversos arranjos na dinâmica de cuidar e ser cuidado permeiam as relações familiares, dada a temporalidade da condição crônica de dona Ana, em diferentes momentos desta família.
O exercício do cuidado aos irmãos, quando ainda adolescente, parece ter representado um peso para Ivete, mesmo que não fosse, ainda, pela presença de uma doença: "sempre tinha que cuidar de alguém", mas já com sentidos implícitos de privação de algo. E na vida adulta, precisar cuidar da mãe, com toda a carga de responsabilidades e dedicação que ela exige, mostra-se uma situação penosa para Ivete, demonstrando como o adoecimento foi se instalando em sua vida. Ela reage afirmando que "eu quero voltar pra minha vida normal", embora também tenha consciência da impossibilidade desse desejo: "mas como que eu vou fazer? Como é que eu vou fazer?"
Um estudo evidencia que, no papel de ser cuidador, a pessoa retoma sua história vivencial, e, nesse sentido, em seu cotidiano do cuidar estão copresentes os eventos marcantes de sua vida e também o seu horizonte de futuro.15 Este horizonte pode apresentar-se prejudicado e chegar à falta de perspectivas de vida. Ivete denota que o cansaço na função de cuidador é dominador, não apenas físico, mas também existencial, podendo afetar o seu próprio potencial cuidador.
Quando vivo, o pai foi figura importante na rede de cuidado tecida em torno de dona Ana nos primeiros anos do seu adoecimento, com diferentes nuances de acordo com as necessidades que sua condição crônica exigia ao longo de seu desenvolvimento.
[...] Meu pai tinha um problema no braço, que não tinha esse osso daqui pra cá, tinha assim só.... Ele que fazia comida pra ele, pro meu sobrinho, pra ela (Ivete).
Meu pai dava uma segurada na barra [...] Ele estava segurando sozinho [...] Então, a gente não via o problema com a magnitude que era pra ser visto. Quem sabia era só ele mesmo. Então, quando ele faleceu, que nós começamos a ver o dia a dia dela mesmo (José).
Tornar-se um cuidador implica uma multiplicidade de interações, negociações, aproximações e separações que precisam ser bem estudadas e planejadas por toda a família, a fim de não sobrecarregar apenas um membro, pois a extensão e a complexidade de algumas doenças crônicas progressivas degenerativas repercutem de tal forma sobre a família como um todo e sobre o familiar responsável, que este deve receber atenção especial dos profissionais de saúde.15
À medida que a condição crônica progride, intensificam-se os cuidados demandados pela pessoa idosa, bem como se torna cada vez mais desgastantes para o cuidador a sua realização, dada a necessidade de sua repetição ad infinitum.
[...] ela anda, anda, anda sem parar. Uma andação que seu sangue vai subindo, vai subindo, vai subindo, que você não aguenta, isso. [...] Ah! a gente cansa, fica nervosa. Eu falei pro médico, eu falei pra ele: "olha eu tô pra ter um negócio" (Ivete).
Então, estressa quem mora com ela, estressa... Os sobrinhos, estressa o marido da minha ex, meus cunhados... Tem hora que todo mundo fica nervoso! Todo mundo fica estressado. (pausa) Aí é essa hora que tem que ir pra outra casa. Pra outra irmã! (risos)" (José).
Dona Ana ainda não vivencia a perda progressiva de sua funcionalidade orgânica, mas suas manifestações psíquicas exigem cuidado constante e continuado, tanto com o ambiente doméstico, evitando danos físicos, bem como em relação às suas atividades cotidianas, de higiene e cuidado pessoal, alimentação, locomoção e eliminações, uso de medicação, entre outras, assim como às suas relações afetivas familiares. Estas manifestações psíquicas a tornam dependente, mas de outra maneira ao considerarmos a compreensão:
A dependência se traduz por uma ajuda indispensável para a realização dos atos elementares da vida. Não é apenas a incapacidade que cria a dependência, mas sim o somatório da incapacidade com a necessidade. Por outro lado, a dependência não é um estado permanente. É um processo dinâmico cuja evolução pode se modificar e até ser prevenida ou reduzida se houver ambiente e assistência adequados.11:773
A dependência da idosa em relação aos familiares exige atenção constante para com as suas manifestações psíquicas, o que, geralmente, não tem sido avaliado ao se "medir" o grau de dependência de uma pessoa idosa. A família de dona Ana não refere que o autocuidado cotidiano seja uma dificuldade para a idosa, ou que gere demanda de cuidado familiar, mas, sim, que a dimensão psíquica, tal como o esquecimento e a agitação, gera intensa demanda de cuidado familiar, tal como expresso por José:
Hoje ela tem uma dificuldade pra dormir. Ela fala que ela não consegue dormir. Só que na verdade ela dorme com a ajuda de medicamento, ela consegue dormir, mas, sempre tem a impressão que não dormiu. Ela dorme hoje, vamos supor, oito horas, ela dorme das dez às... das dez da noite às sete, oito horas. Às vezes até dez horas de sono, e fala que não dormiu. Falo: "mãe, a senhora já está de idade, idoso dorme cada vez menos." "Ah, mas eu não consigo dormir" (José).
Dentre as manifestações do adoecimento que mais desgastam a família, estão a agitação e a ansiedade, que produzem comportamentos repetidos à exaustão, tornando o cuidado cansativo e penoso:
[...] Ah! a gente cansa, fica nervosa. Eu falei pro médico, eu falei pra ele: "olha eu estou pra ter um negócio" [...] Eu nunca vi um trem daquele, ela queria agredir todo mundo, ela queria avançar em todo mundo. [...] Ela batia no vizinho de madrugada, pra pedir pra entrar, ela não tem aquela noção de respeito (Ivete).
O desgaste físico e emocional deste cuidado é resultado das manifestações psíquicas de dona Ana, como um estressor potencializado pela repetição, intensidade e frequência, repercutindo na saúde física e emocional dos seus cuidadores familiares:
[...] porque eu já tive muito problema de saúde, muito mesmo. Eu já fiz umas 15 cirurgias. Tive muito problema de saúde, e a minha pressão é alta.
Várias vezes já fui pro hospital porque minha pressão sobe muito. Então eu tento me controlar, só que já falei pro médico: "ultimamente, está difícil, eu preciso voltar a fazer as coisas que eu fazia antes, porque senão eu infarto" (Ivete).
Outro ponto a ser destacado é o desgaste de lidar com situações que envolvem o julgamento moral, tanto da família quanto da pessoa idosa, perante os quais o possível julgamento por maus-tratos são precavidos pela família, conforme José afirma:
Então todo mundo, primeiro, têm dois preconceitos: o primeiro é o preconceito com ela: "ah, é doida!". Já rotula de doida (ênfase) e pronto. E o outro é: "essa família não trata essa pessoa direito." "Como que essa família faz isso com ela, como a família faz isso, nãom sei o quê! Como que fulano maltrata desse jeito ou que deixa ela ficar desse jeito!". Então tem o preconceito desses dois lados: ou a gente é rotulado de ruim, mas não sabe que a gente não maltrata ela de forma alguma, não tem como fazer isso. Ou rotula ela como doida, como louca. Então, é complicado (José).
Você toma cuidado porque, se um vizinho chama a polícia, vai falar que está batendo num idoso. Aí ela vai falar com o policial que você bateu nela. [...] Mas, é fácil, você pega e fala pra fazer um corpo de delito nela, porque, se não, vai presa (José).
As crenças culturais da nossa sociedade, ao preconizar valores de autonomia, podem ocasionar uma diminuição na autoestima e um forte impacto emocional negativo naqueles idosos que, por perda de potencial de autocuidado, se veem dependentes da ajuda da família para manter as atividades do seu dia-a-dia. Também se sabe que seus hábitos de higiene vão se modificando, e isso pode traduzir-se em rechaço e isola-mento social, inclusive de sua família, a qual lhe presta ajuda e apoio; assim, estes idosos podem ser marginalizados.16
Não podemos desconsiderar que pode haver maustratos por parte de famílias de pessoas idosas, principalmente quando o nível de desgaste atinge níveis insuportáveis para o cuidador, lembrando sempre que esse limite do insuportável é de cunho individual, dependente da própria maturidade da pessoa e de seu equilíbrio psicológico.
A própria organização familiar sofre interferências decorrentes deste desgaste:
As mudanças pra nós foram grandes, principalmente pras minhas irmãs que ficam com ela. A vida social complica um pouco, sim. Não pode ter muita vida social porque tem que sempre estar meio de plantão [...] Minha irmã Vera já quase separou do marido porque ela (a mãe) morava com minha irmã. [...] Aí ela fica nessa. Realmente uma perturbação a noite inteira. Então, estressa quem mora com ela, estressa os sobrinhos, estressa o marido da minha ex, meus cunhados [...] (José).
Mesmo as pessoas da família que não se envolvem diretamente no cuidado sofrem com as manifestações psíquicas de dona Ana, especialmente seu comportamento repetitivo, sua ansiedade e agressividade. Trata-se, então, de uma afetação na vida da família, uma vez que, estar próximo, conviver, ainda que apenas sob o mesmo teto, é já um elemento de desgaste para seus membros.
Alguns estudos sobre família empregam, geralmente, modelos de avaliação de sua dinâmica baseados em padrões preestabelecidos, e, embora tenham méritos na compreensão da dinâmica familiar, ainda são insuficientes, pois parece-nos não ser possível submeter a vida familiar a padrões, porque o "desenvolvimento familiar" não se mostra como uma "sequência ordenada de mudanças que passam por uma série de estágios previsíveis em pontos específicos que delimitam estes estágios".17
A compreensão que nos foi possível alcançar da vivência da família de dona Ana leva-nos a concordar que o cuidado familiar é uma experiência que se desenvolve no laboratório natural da vida cotidiana e reflete, em grande medida, um modo particular de pensar, agir e sentir perante a experiência de adoecimento.12 A família precisa, de algum modo, encontrar formas de produzir esse cuidado, como também de buscá-lo nos serviços de saúde, de intermediar a relação entre as necessidades do familiar doente e as respostas que possam obter, colocando nessa relação, também suas expectativas, potencialidades e limitações, o que designamos como gerenciamento do cuidado pela família diante do processo de adoecimento por ela vivenciado. José, filho da idosa, expõe essa ideia do seguinte modo:
Simplesmente está na mão da família. A família tem que absorver isso. A família às vezes não tem o conhecimento técnico para isso, não tem suporte técnico para isso. Nós ainda conseguimos uma Unimed, uma coisinha assim, né. Conseguimos trocar uma ideia, somos vários irmãos. E se eu fosse sozinho? E se minha irmã fosse sozinha pra tratar da minha mãe? Ia enlouquecer junto com ela! (José).
A família de dona Ana buscou se organizar para produzir o cuidado, por meio do rodízio dos núcleos de cuidado entre os filhos e suas respectivas famílias, tal como demonstramos no genograma familiar..8
Esse rodízio não é planejado, no sentido de ser preparado antecipadamente, mas acontece no momento de maior nível de estresse, quando o cuidador e/ou sua família não suporta mais a situação.8 E embora este rodízio possa ocasionar, para dona Ana, a perda das referências já tão prejudicadas em sua vida, essa foi a forma possível de a família pensar em seu próprio bem-estar; caso contrário, não suportaria a sobrecarga do cuidado permanente e progressivo que dona Ana exige.
E quando tem esse pico de estresse, a gente vê que não dá mais, né, geralmente eu fico com ela uma semana sim e outra não também, quando eu estou aqui. Pego ela nos fins de semana. Aí eu levo ela pra casa e fico sexta, sábado, domingo; na segundafeira de manhã levo ela pra respectiva irmã ...É isso aí, acho que não vai ter como a gente escapar, vai sempre fazer essa rotatividade, esse rodízio aí, pra aliviar a tensão dentro de casa (José).
Estes arranjos trazem problemas familiares para quem fica com dona Ana; além disso, é necessário considerar que as diversas pessoas que constituem a família não têm a mesma maturidade para o enfrentamento da experiência de adoecimento:
...Então a minha esposa ficou sozinha com ela, e me ligou. Falou: "olha, não estou aguentando mais! Vem embora pra casa!" Falei: "o que é que foi?". "Não, ela só fica andando atrás de mim falando, falando, falando... E eu não consigo fazer as coisas aqui em casa, não consigo, fazer nada!" ...Minha irmã não, ela brigava, como se fosse normal. Como se fosse uma pessoa normal brigando com outra normal. Então: "ah, a senhora está agressiva, está isso, aquilo..." Aí já brigava, já xingava, uma xingando a outra. Aí já virava briga! (José)
Um estudo sobre perfil do familiar cuidador do idoso demonstra que cuidar de um idoso em tempo prolongado traz riscos de adoecimento para os cuidadores, bem como predispõe à condição de autodescuido, pois, ao assumirem total responsabilidade, se tornam sobrecarregados. Esta exposição é mais evidente para cuidadores únicos e para mulheres que, em geral, acumulam diversos outros papéis.18
Constatamos que os cuidadores familiares de dona Ana têm sido, em maior ou menor medida e em diferentes momentos, intensamente afetados pela situação de adoecimento e cuidado, lidando cada ente à sua maneira com essa afetação. Compreendemos o quanto se faz necessário o apoio à família pelos profissionais de saúde, ajudando-a a encontrar soluções possíveis para as situações que enfrenta dentro de sua própria realidade de vida.
Nossa compreensão da experiência da família de dona Ana nos permite avançar desse patamar de mostrar os efeitos do adoecimento na vida dos cuidadores, considerando sua importância, principalmente, para apreendermos os diferentes modos de cuidar que cada um dos cuidadores desenvolveu ao longo do processo de adoecimento da idosa. E nesses modos, o espelhamento das múltiplas dimensões do cuidado que a família produz.
CONCLUSÃO
Consideramos que este estudo nos permitiu visualizar que o modo de adoecer tem vinculação direta com o modo de viver da pessoa, bem como de sua família, pois o adoecer não é "um evento a parte" na vida, mas, sim, parte do próprio viver. Assim, as pessoas vivenciam o adoecimento e produzem cuidados de modo intersubjetivo, visto que é um processo que resulta da interação "de cada subjetividade". Também o cuidado produzido repercute no modo de viver da pessoa idosa adoecida, de cada cuidador e da família como um todo: cuida-se a partir daquilo que se considera importante, ou seja, dos valores que cultivamos ao longo da vida. Podemos dizer, portanto, que o cuidado é personalíssimo, produzido por um cuidador no contexto de sua condição e modo de vida, respondendo àquilo que o cuidador entende que sejam as necessidades da pessoa adoecida, bem como dependente do modo como esta reage ao cuidado. Dessa forma, entendemos que o cuidado só é possível dentro das relações.
Necessário se faz, então, que os profissionais de saúde se disponham a conhecer a pessoa doente e sua família, o seu modo de viver e de cuidar, empregando para isso o mesmo afinco com que, atualmente, busca conhecer a doença. Assim, também eles poderão produzir práticas mais cuidativas e menos intervencionistas, ou seja, um conjunto de práticas personalizadas e não padronizadas. Este convite à reflexão é dirigido especialmente ao profissional enfermeiro visto que a busca por profissionais se faz guiada pela sua compreensão daqueles que possam oferecer certo alívio ao seu sofrimento. Como contribuição deste estudo consideramos que o conceito de dependência do idoso, ao vivenciar a condição crônica por sofrimento psíquico, precisa abarcar dimensões não limitadas à deterioração física, tomada como perda da funcionalidade, pois são tão devastadoras quanto esta, trazendo diversas dependências, muitas vezes concomitantes e sinérgicas, da pessoa adoecida para realização dos cuidados mais elementares de sua vida diária.
Os efeitos que as práticas profissionais produzem na vida dessas pessoas condicionam novas buscas, considerando, ainda que as respostas obtidas dos profissionais também repercutam no modo como a família produz o seu cuidado. Criase, com isso, um círculo, que pode ser virtuoso ou vicioso, a depender do modo como as práticas profissionais tragam, ou não, respostas efetivas às necessidades de cuidado da pessoa doente e sua família.
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NOTA
a Parte da dissertação "Repercussões para a família no cuidado à pessoa idosa em condição crônica por sofrimento psíquico", no âmbito do Projeto de Pesquisa matricial "Avaliação dos múltiplos custos em saúde na perspectiva dos itinerários terapêuticos de famílias e da produção do cuidado em saúde em municípios de Mato Grosso", financiada por meio do Edital PPSUS-MT 2006/FAPEMAT ? Nº. 010/2006, de "apoio a projetos de pesquisa para o SUS", sob responsabilidade do "Grupo de Pesquisa Enfermagem, Saúde e Cidadania" (GPESC) da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso (FAEN/UFMT)
b Todos os nomes são fictícios, preservando o anonimato dos sujeitos da pesquisa.
Recebido em 05/05/2010
Reapresentado em 03/03/2011
Aprovado em 06/06/2011