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CAPES

Volume 15, Número 1, Jan/Mar - 2011

PESQUISA

 

Interagindo com a equipe multiprofissional: as interfaces da assistência na gestação de alto risco

 

Interacting with the multiprofessional staff: the interfaces of high risk pregnancy assistance

 

Interactuando con el equipo multiprofesional las interfaces de la asistencia en la gravidez de riesgo

 

 

Virgínia Junqueira OliveiraI; Anézia Moreira Faria MadeiraII

IEnfermeira obstetra, Mestre em Enfermagem pela UFMG, Professora Assistente da Disciplina Saúde da Mulher da Universidade Federal de São João Del-Rei. CCO em Divinópolis-MG. Brasil. E-mail: viju.funed@yahoo.com.br
IIDoutora em Enfermagem. Professora Associada do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública, da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte-MG. Brasil. E-mail: aneziamoreira@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Estudo de natureza qualitativa, parte da dissertação de mestrado intitulada "Vivenciando a gravidez de alto risco: entre a luz e a escuridão". Retrata como se dá a relação entre os profissionais de saúde de uma equipe interdisciplinar de atenção ao pré-natal de risco e as gestantes que frequentam esse serviço. Participaram do estudo 16 gestantes que estavam sendo acompanhadas no Pré-natal de Alto Risco da Policlínica Municipal da cidade de Divinópolis/MG. Na busca da compreensão do fenômeno em estudo, este trabalho procura descrever como a mulher recebe o diagnóstico de alto risco na gravidez. As narrativas mostram como a gestante adere à nova situação de risco e ao tratamento prescrito; revelam quais são suas reais necessidades e como assimilam as orientações e os cuidados disponibilizados por uma equipe interdisciplinar e multiprofissional na atenção ao pré-natal de alto risco.

Palavras-chave: Risco. Cuidado pré-natal. Saúde da Mulher


ABSTRACT

Quantitative study, part of the Master thesis entitled "Experiencing the high-risk pregnancy: between light and darkness". It pictures the relationship between the staff of a prenatal high-risk pregnancy care and the pregnant women who attended the program. Sixteen pregnant women took part in the program at the " Pré-natal de Alto Risco da Policlínica Municipal" in Divinopolis, MG. By trying to understand this phenomenon, this work describes how the woman receives the diagnosis of a high-risk pregnancy. Their narratives show how they accept the new situation of risk and the prescribed treatment; they also reveal what their real necessities are and how they take in the directions and the available help given by the multiprofessional staff, during the high-risk prenatal care.

Keywords: Risk. Prenatal care. Women's health.


RESUMEN

Estudio de carácter cualitativo, parte de la tesis de maestría sobre el tema "Vivir el embarazo de alto riesgo: entre la luz y la oscuridad". Retrata cómo se da la relación de profesionales de salud de un equipo interdisciplinario de atención prenatal en el riesgo y las mujeres embarazadas que asisten a este servicio. Los participantes del estudio fueron dieciséis embarazadas, que fueron acompañados en el prenatal de alto riesgo del Policlínico Municipal de la Ciudad de Divinópolis / MG. En busca de la comprensión del fenómeno en estudio, este trabajo intenta describir cómo la mujer recibe un diagnóstico de embarazo de alto riesgo. Las narraciones muestran de qué manera la mujer embarazada se adapta a la nueva situación de riesgo y el tratamiento prescrito; muestran cuáles son sus necesidades reales y la forma de asimilar la orientación y la atención prestada por un equipo

Palabras chave: Riesgo. Atención Prenatal. Salud de la mujer.


 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo é fruto da dissertação de mestrado Vivenciando a gravidez de alto risco: entre a luz e a escuridão1. O estudo emergiu da experiência como enfermeira obstetra e docente, ao perceber que as gestantes diagnosticadas como alto risco, após vencido o impacto do diagnóstico, entregavam sua saúde à equipe multiprofissional; mudavam hábitos de vida e procuravam seguir condutas ditadas pelos profissionais de saúde.

A atenção pré-natal tem sido uma preocupação constante do Ministério da Saúde, o qual tem investido na capacitação de profissionais de todo o sistema de saúde, através da criação de protocolos e da implementação de unidades de referência.

Os manuais enfatizam que o cuidado pré-natal deve ter como características primordiais a qualidade e a humanização no atendimento à gestante. Os serviços de saúde e seus profissionais devem acolher a mulher com dignidade, tendo um olhar crítico e consciência de que ela é sujeito de direito e não objeto passivo da atenção prestada.ª

Há evidências científicas de que os níveis de mortalidade materna e perinatal são influenciados pelas condições de vida e pela qualidade da assistência obstétrica, assim como do pré-natal. E ainda que existam controvérsias, pesquisas sugerem que a assistência pré-natal pode contribuir para a redução da ocorrência de prematuridade e do baixo peso ao nascer.2

Nesse contexto, essa associação entre a qualidade da assistência pré-natal e os indicadores de saúde da mulher é mais evidente quando se constata que 529.000 mulheres morrem a cada ano por causas relacionadas com a maternidade em países em desenvolvimento, sendo que 80% dos casos se devem a causas obstétricas diretas, e que, para cada mulher que morre, muitas outras sofrem enfermidades que as incapacitam, de alguma forma, em sua vida produtiva e responsabilidades. Além do mais, podemos observar que quase quatro milhões de recém-nascidos morrem antes de completarem um mês de vida devido a complicações como prematuridade, baixo peso ao nascer e malformações congênitas.3

Com base nessas questões, o programa de atenção ao pré-natal em vigor nas unidades do Sistema Único de Saúde - SUS, enfatiza a necessidade de melhorar a qualidade do atendimento profissional à gestação, ao parto e ao puerpério, e a garantia de um padrão mínimo de assistência pré-natal.4

Transcorrida quase uma década, pode-se observar que, apesar de a implementação do programa de software SISPRENATAL ter ocorrido na maioria dos municípios brasileiros, ele não alcançou o êxito esperado. Em parte, isso foi devido a falhas de alimentação do sistema por parte dos serviços de saúde. Segundo avaliação do Ministério da Saúde, esse sistema não retrata de forma integral a realidade do atendimento realizado no local de atenção, apresentando uma defasagem na periodização e no quantitativo dos dados disponíveis em nível local, se comparado com o nível central.5

Dessa forma, os dados estatísticos em relação à atenção pré-natal nos fazem acreditar que somente a alta cobertura e a concentração de consultas no acompanhamento pré-natal não garantem a redução da mortalidade materna e perinatal. E ainda, para adentrar nesta vivência complexa em que as gestantes e a equipe convivem com as dificuldades do dia-a-dia dos serviços de saúde, torna-se necessário conhecer como se dá a interação entre a gestante e a equipe interdisciplinar.

Um estudo transversal mostra que, apesar da alta cobertura alcançada no pré-natal com as gestantes usuárias do SUS, apenas 17,8% das mulheres receberam assistência adequada, ou seja, conseguem realizar o elenco mínimo das ações preconizadas. Além disso, apenas 17,7% dessas mulheres realizaram exame clínico das mamas; 21,1%, o exame preventivo para câncer de mama; e 82,2% não receberam assistência de qualidade, considerando-se os critérios mínimos exigidos pelo PHPN.2.1

O próprio Ministério da Saúde aponta como questão crítica, na atenção pré-natal, a chamada "alta" do pré-natal, que implica a falta de acompanhamento ambulatorial da gestante no final da gestação, momento em que é mais acentuada a probabilidade de intercorrências objetivas.1.1

Desvelar o que acontece de fato na assistência às gestantes em todo o seu contexto não é uma tarefa fácil. Esta dificuldade se deve à escassez de literatura específica referente ao tema comunicação entre os membros da equipe de saúde e as gestantes, assim como ao número limitado de locais onde a assistência à gestante seja desenvolvida por uma equipe multiprofissional.6

Acreditamos que, quando a mulher vivencia uma relação mútua com o outro, como ocorre no momento da gravidez, ela vive esta situação em um mundo onde estão seus projetos, suas lembranças e seus desejos, ela está cheia de dúvidas e expectativas. Neste instante, ela pode sentir prazer ou dor, confiança ou desconfiança, como pode reservar para si o que tem de mais íntimo e o que, muitas vezes, não pode revelar. Assim, é preciso compreender, respeitar e cuidar deste momento.

Nesse sentido, este trabalho apresenta como objetivo discutir a interação entre a equipe multiprofissional e essas mulheres, durante o pré-natal de alto risco.

 

METODOLOGIA

O percurso metodológico do estudo foi pautado na abordagem fenomenológica existencial, fundamentada nos pressupostos teóricos de Maurice Merleau-Ponty. A compreensão do fenômeno em estudo, ou seja, a percepção da gestante sobre o risco na gravidez, efetuou-se por meio da análise minuciosa dos depoimentos de 16 gestantes em uma faixa etária entre 22 e 39 anos, com idade gestacional igual ou maior a 20 semanas, avaliadas em situação de alto risco, segundo classificação do Ministério da Saúde.1.2

Das mulheres participantes do estudo, onze eram casadas, quatro residiam com o companheiro numa situação amigável há mais de dois anos, e uma era solteira. Quanto à escolaridade, oito possuíam o 1º grau incompleto, sendo cinco a média de anos cursados; sete concluíram o 2º grau; e apenas uma delas conseguiu ingressar na universidade.

Metade das gestantes entrevistadas era hipertensa, sendo que quatro, além da pré-eclampsia, tinham como determinantes de risco obesidade; três apresentavam hemorragia na segunda metade da gravidez, e duas tinham diagnóstico de diabetes gestacional.

Quanto à paridade, cinco delas eram primigestas, sete estavam esperando o segundo filho e quatro eram multíparas.

O cenário da pesquisa foi a Unidade de Obstetrícia da Policlínica Municipal de Divinópolis, Minas Gerais, escolhida pelo fato de as gestantes que realizam a consulta de pré-natal na atenção primária de saúde do município serem referenciadas para esta unidade, quando classificadas como pertencentes ao grupo de alto risco.

A coleta de dados foi feita durante os meses de junho e julho do ano de 2007. Após o aceite dos sujeitos em participar dessa pesquisa e mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), atendendo aos aspectos éticos e legais da Resolução 196/967 e ao parecer do Comitê de Ética em Pesquisa nº 019/07, demos início ao processo de coleta dos dados, por meio de realização de entrevista aberta norteada pela seguinte questão: "O que é, para você, gerar um filho na sua condição de gravidez de alto risco?".

As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. Para preservarmos o anonimato das mulheres, pedimos a elas que se rebatizassem com o nome de uma mulher por quem tivessem admiração.

De posse dos depoimentos das mulheres, iniciamos o processo de análise compreensiva8; seguindo os passos: 1) Leitura vertical das entrevistas visando o sentido do todo; 2) Leitura horizontalizada para apreensão das unidades de significado, chamado também de redução fenomenológica; 3) Transformação das unidades em linguagem articulada, porém sem perder a originalidade das falas dos sujeitos; 4) Construção dos temas de análise; 5) Elaboração das grandes categorias do estudo.

Finalmente, após obtermos as grandes categorias, demos início ao processo de compreensão/interpretação dos discursos. Neste artigo optamos apresentar a categoria: Interagindo com a equipe multiprofissional: as interfaces da assistência na gestação de alto risco.

 

CONSTRUÇÃO DOS RESULTADOS

Os discursos dos sujeitos da pesquisa mostram que a atenção e a disponibilidade oferecida pelos profissionais de saúde no pré-natal de alto risco em esclarecer dúvidas e dar orientações detalhadas, dissipam o medo e a angústia apresentados pelas mulheres ao vivenciarem uma gravidez de alto risco. Após serem orientadas, as gestantes sentem-se mais seguras. Segundo elas, basta apenas seguir o tratamento:

[...] Depois que eu comecei a vir aqui no PNAR [...] aí foi esclarecendo, aí o medo sumiu [...] era só mesmo fazer o tratamento [...] dar mais atenção que no posto [...] aqui tem mais pessoas para dar atenção. (Gabriela)

As mulheres conseguem fazer uma comparação entre a assistência prestada em um "posto de saúde", na maioria das vezes massificada, e um serviço especializado, com equipe multiprofissional que oferece um atendimento diferenciado à gestante de alto risco.

A atenção às necessidades das gestantes é uma das propostas do acolhimento, sendo que este é proporcionado toda vez que a usuária entre em contato com o serviço de saúde e recebe uma resposta às suas necessidades, por meio da assistência ou através de orientações, ou seja, quando a equipe demonstra interesse pelos seus problemas e se empenha na busca de soluções. 9

Atender à demanda do pré-natal de alto risco ainda representa um desafio substancial para os serviços de saúde vinculados ao SUS, dado que 43,8% dos municípios brasileiros ainda não conseguem atender esta modalidade de demanda.10

Como se sabe, normalmente o primeiro contato da gestante com a equipe de saúde acontece no momento da confirmação da gravidez, e é justamente nas primeiras consultas que podemos perceber o impacto que o diagnóstico de gravidez de alto risco pode causar na gestante. Em geral, as mulheres sentem-se desesperadas, revoltadas, transtornadas ao saberem que estão gerando um filho em situação de alto risco. O sofrimento evidente faz com que a mulher se arrependa de ter engravidado:

[...] me surpreendeu, fiquei meio chocada [...] chorava muito [...] fiquei sem rumo [...] revoltada [...] arrependi de ter engravidado (Maria)

[...] quando eu fiquei sabendo que eu tava grávida [...] e que era de risco [...] eu fiquei muito transtornada, me senti muito isolada [...] eu sofri muito [...] falava que eu não queria [...] minha ficha não caía [...] (Marlene)

Assim, é nesta primeira oportunidade, ou seja, no momento do diagnóstico, que poderá ser estabelecida uma relação de afeto, respeito e carinho com essa mulher. É nesse primeiro contato que se efetivará o vínculo profissional. O profissional de saúde sensível aos sentimentos da gestante, expressos de forma verbal e não verbal, poderá traçar condutas, capazes de proporcionar mais tranquilidade à mulher e, por sua vez, aceitação do filho. Merleau-Ponty afirma que o corpo é o meio de comunicação com o mundo, é nosso ancoradouro, um espaço expressivo no qual eu mostro, em gestos e atitudes, as várias maneiras de sentir o mundo. Dirijo-me ao mundo intencionalmente através de meu corpo e nele estabeleço um sentido para minha existência.11

As gestantes, ao tomarem conhecimento de sua situação e da impossibilidade de serem acompanhadas em sua cidade ou na unidade de origem,sentem-se sem rumo na vida e, muitas vezes, são obrigadas a interromperem seus projetos de vida.

[...] de repente o médico fala assim, sua gravidez é de alto risco [...] você não pode tratar aqui [...] bate aquela coisa [...] tive que sair do meu serviço [...] larguei tudo [...] (Maria)

[...] eu tive que sair de um lugar onde todas as mulheres estavam fazendo o pré-natal [...] porque a médica disse [...] você não tem condições para ficar fazendo pré-natal normal [...] requer um pouco mais de cuidado, de dedicação, mais seriedade nos exames [...] (Maria de Jesus)

Mais uma vez percebe-se a falta de perspicácia do profissional de saúde ao lidar com a mulher, associada à carência de recursos especializados para acompanhar gestações de alto risco. O impacto da notícia, a necessidade de (re) organização da vida e a privação de recursos materiais trazem insegurança e medo às gestantes.

A segurança e a tranquilidade adquirida por meio da garantia de atendimento e o vínculo estabelecido entre a mulher e a equipe de saúde são um quesito importante para humanização da atenção e para adesão e a permanência das gestantes no serviço de atenção ao pré-natal. Idealmente todo o serviço de atenção pré-natal de baixo risco deveria priorizar os aspectos que o usuário deseja ver solucionado e dispor da possibilidade de referência para os casos de alto risco identificados.10.1

Ao se falar de risco, segundo o modelo vigente de assistência que vem sendo prestada à gestação, ao parto e ao nascimento, inspirado no paradigma americano, as gestações são classificadas em alto, médio e baixo risco; consequentemente na atualidade, não há gestação sem risco.12

Nesse sentido, o que se observa é que essa ênfase que tem sido dada ao risco na gravidez, repercute na gestante, como podemos ver na fala de Gabriela:"

[...] era assustador [...] palavra alto risco assusta [...] fiquei muito nervosa [...]".

Se pensarmos na variedade de sentidos (até mesmo em um sentido pejorativo) que podem ser atribuídos à palavra risco (complicação, alteração, anormalidade, evolução desfavorável), torna-se mais fácil compreender o medo de Gabriela e a ambiguidade de sentimentos que o diagnóstico de risco pode evocar na mulher.

Obviamente, a eminência de risco de vida é o principal objetivo da atenção da equipe de saúde. No entanto, compreender a situação de crise da cliente (gestante) como algo que se estende para além do físico, psicológico e social, possibilita, sem dúvidas, recursos mais interativos à equipe, o que otimizará o trabalho e permitirá que a cliente se sinta parte integrante de um processo saúde-doença humanizado. 13

Maria e Gabriela iniciam seus depoimentos se queixando da falta de orientação. Segundo elas, as informações recebidas na unidade de origem são escassas, contraditórias e pouco esclarecedoras, sendo referenciadas para o pré- natal de alto risco, sem conhecerem o real motivo deste encaminhamento.

[...] ninguém explicou direito [...] tive que vir pro lado de cá, pro alto risco [...] (Maria)

[...] o médico passou, mas assim, só mandou, mas não esclareceu muito quais os riscos [...] (Gabriela)

Quando Maria fala "ninguém explicou direito", ela quer dizer que nenhum profissional de saúde, na sua percepção, conseguiu realmente prestar-lhe o cuidado na sua plenitude. Embora tenham lhes orientado, ficaram, para elas, muitas dúvidas e, consequentemente medo da situação.

Por outro lado, ao serem admitidas e atendidas na unidade de referência para o pré-natal de alto risco, a primeira impressão causada pelo diagnóstico de risco é atenuada com as informações recebidas pelos profissionais de saúde, os quais conseguem minimizar a ansiedade e o medo causados pelo impacto do diagnóstico de alto risco, como podemos ver na narrativa de Maria e Gabriela.

[...] aqui na policlínica conversei com a assistente social [...] aí que ela me explicou [...] (Maria)

[...] depois que eu comecei a vir aqui [...] aí foi esclarecendo, aí o medo sumiu, era só mesmo dar mais atenção [...] (Gabriela)

A partir das narrativas, entende-se que o cuidado à gestante deve ser permeado pelo acolhimento, por meio da escuta sensível de suas demandas, considerando a influência das relações de gênero, classe social e de raça, no processo saúde/doença das mulheres. As práticas de atenção à saúde da mulher devem garantir o seu acesso a ações resolutivas e em acordo com as especificidades do ciclo vital feminino, em todo o seu contexto.14

Ao imergirmos nos discursos das mulheres, pudemos perceber que a gestante de alto risco demonstra, por meio de sua fala, conhecer as complicações que podem lhe suceder em consequência ao não cumprimento das recomendações da equipe de saúde. Porém, elas encontram dificuldades de seguir as orientações e restrições que lhes são impostas. As próprias gestantes utilizam o termo "seguir regras". Normalmente, regras são ditadas e transmitidas de uma forma verticalizada e talvez seja por isso que elas resistem em aceitá-las como se pode perceber nas seguintes falas:

[...] antes, tudo que o médico me indicava pra não fazer eu fazia[...](Maria das Dores)

[...] tem que ter todos aqueles cuidados [...] não posso engordar [...] tenho que tomar remédio [...] minha pressão não pode aumentar [...] não posso pegar peso e eu estou pegando [...] (Irani)

[...]eu não era de seguir regras [...] ir ao médico [...] não era de tomar remédio direito [...] ( Maria)

As falas acima demonstram, ainda, que as gestantes têm dificuldades em efetivar, na sua rotina diária, os cuidados e orientações de promoção da saúde e prevenção de agravos propostos pela equipe.

Nas conversas informais e durante as atividades em grupo, pudemos perceber que o cotidiano dessas mulheres é vivido com dificuldades e limitações, uma vez que seus momentos de lazer são escassos, suas condições socioeconômicas são deficitárias. Isso justifica, de certa forma, pelo fato de elas terem que se dedicar às tarefas domésticas, cuidando dos outros filhos e do marido, não encontrando, assim, tempo para cuidar de si mesmas.

Ao se referirem à consulta de pré-natal, algumas gestantes demonstraram uma preocupação com o exame clínico, revelando vergonha em expor o corpo, preocupação com os achados clínicos durante a consulta e desejo de monitorar a gravidez o tempo todo.

[...] exame de toque [...] falar em parto [...] fico morrendo de vergonha [...] Eu tô com medo por causa de tudo, tudo quanto é medo, que tem pra mulher eu tô sentindo [...] sempre é uma luta para escutar o coração, saio daqui quase doida, para fazer ultrassom [...] (Irani)

[...] o médico [...] sentiu um carocinho aqui [...] Tô preocupada em fazer um novo ultrassom pra mim saber como que tá [...] (Mercedes)

A consulta de pré-natal representa uma alternativa para gestante saber sobre as condições de saúde dela e da vitalidade do bebê, possibilitando-lhe dispensar um cuidado com o seu próprio corpo e com o corpo do outro (o feto). Neste instante, a preocupação com o bem-estar do bebê lhe absorve de tal forma que a mulher passa a não dar tanta importância à vergonha e ao medo do "exame de toque", como diz Irani, e se deixa submeter aos cuidados necessários durante a consulta.

Para Irani e Mercedes, o momento da consulta causa constrangimento, mas ao mesmo tempo, possibilita à mulher certificar-se de que o bebê está bem, através do exame de ultrassonografia. O avanço da tecnologia e o uso da propedêutica de imagem, como o sonar e o exame de ultrassom, às vezes conseguem minimizar a ansiedade da gestante, à medida que se descortina uma imagem auditiva e visual do feto.15

As mulheres, de uma maneira geral, lidam com seus ciclos biológicos como algo que faz parte da sua intimidade e como motivo de vergonha. E quase sempre o desconhecimento sobre o próprio corpo, os preconceitos, os tabus e os medos são fatores que interferem no momento da consulta, dificultando a expressão de problemas e dúvidas.16

Ao se referir ao cuidado oferecido por uma equipe multiprofissional, como a do PNAR, a gestante quase sempre avalia esta "estratégia" como positiva. O fato de ter o acompanhamento de vários profissionais a deixa mais segura e confiante, como bem afirma Rosa em seu discurso: "eu fico cercada de gente". Outro ponto que é avaliado como benéfico pela usuária é a questão da resolutividade do serviço e o apoio da equipe.

[...] o acompanhamento que a gente tem aqui [...] por ser alto risco parece que é uma atenção mais voltada pra gente e pro bebê [...] tem acompanhamento da psicóloga, nutricionista [...] eu fico cercada de gente [...] então a gente fica mais tranquila, né [...] Porque lá no SUS tem acompanhamento, mas não é tão assim [...] (Rosa)

[...] aqui na policlínica o problema está sendo resolvido [...] estou tendo um tratamento melhor [...] estou recebendo muito apoio, podendo contar com muitos profissionais [...] pra mim poder ficar mais informada [...] (Carmem)

É na relação com o outro e com o mundo, e na ação expressiva, que o corpo é percebido através do laço e do encontro. A interação com o profissional de saúde e com toda equipe permite, por meio da expressão do gesto, do toque, do saber ouvir atentamente, que a gestante encontra a sua verdadeira essência humana.17

Segundo Merleau-Ponty 17:130, "não há um só movimento em um corpo vivo que seja um acaso absoluto em relação às intenções psíquicas". Assim, o ser-no-mundo interage com os outros que com ele com-vivem, desvelando sua subjetividade através da unidade entre corpo a mente que se direciona ao mundo.

A descrição de Rosa sobre a forma como se relaciona e interage com a equipe do PNAR, "cercada de gente", é vista por ela como uma possibilidade de compartilhar, de ser-com-os-outros (seus semelhantes) e de ser consigo mesma. É o que Heidegger denomina de circumundaneidade.

O cuidar é o modo como o ser (ser-aí-humano) se relaciona com o outro. É este zelar que define o ser-aí, sendo o cuidado a sua essência. Ou seja, o cuidado é ontológico, nós somos o cuidado, e, para compreendermos o ser humano, em todas as suas dimensões, devemos nos entregar aos cuidados do outro18. Rosa descreve esse cuidado "como uma atenção voltada pra gente e pro bebê e que a deixa tranquila".

Estes mesmos relatos acima nos indicam, ainda, que quando a atuação profissional é realizada de maneira humanizada, ou seja, com respeito, dedicação e sensibilidade, os resultados alcançados tendem a ser duradouros e significativos.

O cuidar do outro tem o sentido de libertá-lo para si mesmo. Quando a pessoa se propõe a fazer algo em comum, como cuidar e permitir ser cuidado, ela se torna ligada ao outro de forma autêntica. Nos dois movimentos que orientam o desvelo (se visto por trás, é a consideração, e se visto pela frente, é a paciência), o outro se revela ao cuidador e se mostra livre para si mesmo, para fazer o que deve ser feito.18

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À medida que discutimos a interação entre a equipe multiprofissional e a gestante durante o pré-natal podemos conhecer e nos inteirar das reais necessidades destas mulheres, ao vivenciarem uma gestação de alto risco. Assim, reafirma-se a importância de uma assistência humanizada, livre de intervenções desnecessárias, coerente com os preceitos normatizados pelos programas atuais direcionados à saúde da mulher, onde a integralidade é apontada como a grande aliada na qualidade da assistência prestada, tanto em nível hospitalar quanto na atenção básica.

Considerando os achados do trabalho, podemos perceber que sentimentos como medo e ansiedade podem ser amenizados quando a gestante é bem informada sobre o diagnóstico de risco e sobre os motivos do encaminhamento para o pré-natal de risco. E em linhas gerais, o que podemos observar nos fragmentos dos discursos das gestantes entrevistadas é que o fato de a mulher experienciar preocupações, ansiedades e expectativas durante o período gestacional, o apoio de uma equipe multiprofissional, pode ajudá-la a aceitar melhor a gravidez e obter mudanças nas suas atitudes e hábitos pouco saudáveis.

Além disso, o estudo nos permitiu compreender o enovelado de sentimentos que afloram nos discursos das gestantes e a especificidade de cada sujeito desta pesquisa, no encontro com a equipe multiprofissional do pré-natal de alto risco. Revelou que há preocupação por parte das gestantes em se cuidarem, não obstante a dificuldade de seguir o tratamento e que, passado o impacto do diagnóstico, se sentem seguras de serem acompanhadas por uma equipe multiprofissional durante o pré-natal.

Convencemo-nos de que o tema, ao qual nos propusemos desenvolver neste trabalho, extrapola os limites do que aqui foi exposto, e parece-nos inconclusivo. Imbuídas deste sentimento de inacabamento, percebemos que a busca da compreensão dos significados vividos pelos sujeitos da pesquisa não extenua por agora. Ao contrário, o fenômeno estudado está repleto de possibilidades, sendo um convite a outros olhares, conforme a intencionalidade de cada um que o inquira.

 

NOTA

ªDissertação defendida em fev.2008, Curso de Mestrado em Enfermagem, Escola de Enfermagem da UFMG

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 05/03/2010
Reapresentado em 19/07/2010
Aprovado em 16/09/2010

 

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