ISSN (on-line): 2177-9465
ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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Ministério da Educação
CAPES

Volume 15, Número 1, Jan/Mar - 2011

PESQUISA

 

Mundo da vida da mulher que tem HIV/AIDS no cotidiano da (im)possibilidade de amamentar

 

Life-world of woman with HIV/AIDS in the daily life of the (im)possibility of breastfeeding

 

Mundo de la vida de la mujer que tiene VIH/SIDA en el cotidiano de la (im)posibilidad de amamantar

 

 

Stela Maris de Mello PadoinI; Marlene Gomes TerraII; Ívis Emília de Oliveira SouzaIII

IDoutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Professora Adjunta do Curso de Graduação e de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Santa Maria-RS. Brasil. E-mail: padoinst@smail.ufsm.br
IIDoutora em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Professora Adjunta do Curso de Graduação e de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Santa Maria-RS. Brasil. E-mail: martesm@terra.com.br
IIIDoutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Professora Adjunta do Curso de Graduação e de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Rio de Janeiro-RJ. Brasil. E-mail: ivis@superig.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar a compreensão do mundo da vida da mulher que tem o vírus da imunodeficiência humana no cotidiano da (im)possibilidade de amamentar. Trata-se de pesquisa qualitativa com abordagem fenomenológica, desenvolvida no Hospital Universitário de Santa Maria - Brasil. A partir da entrevista fenomenológica, a análise se deu conforme o método heideggeriano. Nos resultados tem-se que a mulher se mostra como ser-no-mundo-com-o-outro em um mundo que descreve com familiaridade no modo de ser da convivência, do estar só, da impessoalidade. Conclui-se que, no mundo do cuidado, é a partir dessa compreensão que dar-se-á a possibilidade de ajudar a mulher nessa situação vivida, a enfrentar as implicações a partir do diagnóstico, buscando desenvolver um cuidado solícito.

Palavras-chave: Enfermagem. Saúde da Mulher. Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Aleitamento Materno.


ABSTRACT

This paper aimed to present the understanding of the life-world of woman with acquired immunodeficiency virus in the daily life of the (im)possibility of breastfeeding. It is a qualitative research in the phenomenological approach which was developed in a teaching hospital in the southern Brazil. The phenomenological interview and the Heidegger's analysis method were carried out. Founds pointed out that the women showed themselves as a being thrown in the world-with-the-other. This world is described by them with familiarity in the way-of-being of life experience, of to be alone, of impersonality. In conclusion, in the care-world, the possibility to help them in this lived-situation will occur from these understandings. It is to help them to face the diagnosis implications in order to develop a helpful care.

Keywords: Nursing. Women's health. Acquired immunodeficiency syndrome. Breast feeding;


RESUMEN

Este artículo pretende presentar la comprensión del mundo de la vida de la mujer que tiene el virus de la inmunodeficiencia humana en el cotidiano de la (im)posibilidad de amamantar. Se trata de una investigación cualitativa con abordaje fenomenológico, desarrollado en el Hospital Universitario de Santa Maria - Brasil. A partir de la entrevista fenomenológica, el análisis se dio conforme el método Heideggeriano. En los resultados se verifica que la mujer se muestra como ser en el mundo con el otro, en un mundo que describe con familiaridad en el modo de ser de la convivencia, de estar sola, de la impersonalidad. Se concluye que es a partir de esa comprensión - en el mundo del cuidado - que se dará la posibilidad de ayudar la mujer en esa situación vivida, a enfrentar las implicaciones a partir del diagnóstico, visando desarrollar un cuidado solícito.

Palabras clave: Enfermería. Salud de la mujer. Síndrome de la inmunodeficiencia adquirida. Lactancia materna.


 

 

INTRODUÇÃO

Nas experiências assistenciais de enfermagem percebemos que o contexto que envolve a temática da transmissão do Human Infection Virus (HIV), agente causador da Adquired Immunity Deficiency Syndrome (AIDS), é mais amplo do que se poderia imaginar na fase inicial de estudos dessa doença. Essa síndrome, depois de ter sido percebida como um problema de saúde, passa a mostrar-se também como um problema social, nas dimensões individual e coletiva.

Nesse sentido, das notificações dos casos de AIDS e do perfil epidemiológico, emergem as situações imersas nos contextos sociais e nas vivências das pessoas infectadas pelo HIV ou doentes de AIDS. Em decorrência destas situações, a epidemia evolui no Brasil, com implicações determinantes e interpedendentes de um contexto socioeconômico-cultural e de uma política pública.1

Na procura de respostas aos inúmeros questionamentos no cotidiano do mundo do trabalho, pesquisadores buscam conhecer o perfil das pessoas infectadas, em especial das mulheres que têm o HIV ou que estão com AIDS. Alguns desses trabalhos estão focalizados nas maternidades e nos serviços de pré-natal, provavelmente porque o momento da gestação é aquele em que, muitas vezes, a mulher procura o serviço de saúde pela primeira vez.2 Isso aponta a fragilidade do modelo assistencial vigente e da política pública de saúde da mulher, especialmente no que se refere ao desenvolvimento de ações preventivas voltadas às mulheres, as quais possibilitem minimizar a vulnerbilidade ao HIV.

Ao considerarmos que foram os profissionais dos serviços de saúde que receberam as mulheres infectadas ou doentes, observa-se que por eles a feminização da epidemia foi de imediato percebida, o que trouxe implicações para o cotidiano de trabalho destes profissionais. Entre estas situa-se o aumento de consultas no pré-natal de alto risco e na ginecologia, pressionando a criação de novas agendas de atendimento.3

Nesse cenário, os profissionais de saúde buscam a percepção das mulheres com HIV. Como resultado, eles observam que a mulher reconhece o comportamento de risco nas outras mulheres, porém não se consideram em risco de contrair uma doença sexualmente transmissível ou o HIV. E, quando sentem a necessidade de negociação do uso do preservativo com o parceiro, isso é sempre difícil. O que denota sua vulnerabilidade.4-5

Quando estão gestando, realizam o teste anti-HIV pela possibilidade de proteger a saúde do filho, pois é parte da construção do papel materno. Apresentam déficit no cuidado de si, convivendo com dificuldades relacionadas ao isolamento social e ao preconceito. Nessa vivência, ela oculta de seus familiares e, por vezes, de seu companheiro sexual sua condição sorológica positiva, por medo de consequências nas relações do cotidiano familiar, do trabalho e do convívio social, pois vivenciam a discriminação.6-8

E, ainda, na gestação uma de suas maiores preocupações, quando não a principal, é a possibilidade de transmissão do HIV para seu filho. Nesse mundo emergem os sentimentos mesclados de esperança, incerteza e fé. Elas buscam o significado da qualidade de vida, da gestação e da vida.9-11

No mundo da sua vida, essa mulher convive no puerpério com a possibilidade de não amamentar, conduta identificada pelo enfaixamento dos seios, que é considerado doloroso e punitivo. No entanto, a (im)possibilidade de amamentar envolve a chance de manter o bebê sadio, o que implica não só em aspectos biológicos, mas também em questões sociais, culturais e emocionais.12-13

Diante do exposto, este artigo objetiva compreender o mundo da vida da mulher com sorologia positiva ao HIV diante da (im)possibilidade de amamentar.

 

TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

A opção pela pesquisa qualitativa possibilitou alcançar a essência do fenômeno desvelando facetas da dimensão existencial, conforme a abordagem metódica fenomenológica proposta por Martin Heidegger.14

O cenário da etapa de campo foi o Hospital Universitário de Santa Maria, Brasil, Rio Grande do Sul (RS). Este é público, federal e de referência para assistência de pessoas, crianças e adultos, com sorologia positiva para o HIV, no acompanhamento ambulatorial e tratamento daquelas que têm AIDS, o que inclui as mulheres no pré-natal, parto e puerpério.

Por se constituir em uma pesquisa envolvendo seres humanos, buscamos atender a dimensão ética. Assim, o protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Parecer Nº089/2004 do Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Maria. Após a obtenção do parecer de aprovação, as atividades de aproximação ao campo e de ambientação foram iniciadas.

Na aproximação foi necessário criar um ambiente favorável com as pessoas que ali se encontravam (os profissionais do serviço e as mulheres participantes), pois a entrevista fenomenológica ocorre sob a forma de encontro existencial. Na ambientação há a necessidade de um movimento, mediado pela subjetividade. Assim, foi possível perceber a singularidade, os significados do silêncio, da fala, do dito e do não dito, e respeitá-las, exercitando a escuta, para mergulhar no difícil exercício de redução dos pressupostos.15

Com essa reflexão, a atitude fenomenológica foi alcançada.16 A conversa iniciava com diferentes questões, oportunas ao momento do convite, tendo como direcionamento a questão: como aconteceu a alimentação de seu filho? A partir da escuta, surgia a possibilidade de perguntar: qual foi o significado de não poder amamentar?

Foram utilizadas para análise 12 entrevistas. As mulheres que participaram da produção dos dados tiveram sua inclusão voluntária mediante convite durante as atividades no grupo de apoio desenvolvido em ambulatório de Pediatria, Infectologia e Pré-natal. O número de mulheres entrevistadas não foi predeterminado. Os depoimentos cessaram quando, por meio da leitura e interpretação dos discursos obtidos, observamos a essência do fenômeno. A garantia da confidencialidade da identidade dos depoentes deu-se pelo anonimato, que foi assegurado com o uso da letra M (M1, M2, M3...) por ser a inicial da palavra mulher.

Nessa metodologia, a condução da análise se dá no desenvolvimento de dois momentos. No primeiro, se dá a aproximação ao fenômeno estudado, constroem-se as unidades de significação, que são apresentadas por um cabeçalho e pelos trechos significativos. É um movimento compreensivo, que busca, pela redução fenomenológica, apreender e destacar o fenomenal de modo a constituir, a partir daquilo que é expresso, a compreensão vaga e mediana.14

No segundo, denominado hermenêutica, a análise interpretativa é dada pelo movimento que desvela o(s) sentido(s) do ser que se mostra a partir da compreensão vaga e mediana. Assim, a hermenêutica heideggeriana chega à compreensão e interpretação do sentido que funda o modo de ser do humano.14

 

APROXIMAÇÃO COM FENÔMENO ESTUDADO

As unidades de significação denotam os significados atribuídos, referentes às vivências e experiências que acontecem no dia-a-dia das mulheres que têm sorologia positiva para o HIV, ou doente de AIDS, diante da situação de (im)possibilidade de amamentar sua criança. Essas correspondem à dimensão ôntica do fenômeno. Aqui apresentaremos cinco unidades que anunciam a compreensão do mundo da vida das mulheres que tem HIV/AIDS diante da situação de (im)possibilidade de amamentar. Após as unidades estão os depoimentos das mulheres, seguidos pelo discurso da pesquisadora, o qual compõe a compreensão vaga e mediana.14

Desesperadas, em pânico não aceitam o diagnóstico no momento da descoberta, porém, após, aceitam a condição de sorologia positiva para o HIV.

[...] e aí foi difícil [...], a descoberta disso aí [...] eu estava desesperada eu queria me atirar na "garganta do diabo" (ponte em curva), eu queria me matar. Consultei com psicóloga para eu poder aceitar isso, que hoje em dia eu aceito [...] (M 1)

[...] já tava grávida quando fiz o teste HIV, só que eu não sabia ainda [...] entrei em pânico, [...] só que o difícil é aceitar [...] (M 2)

[...] um tormento isso [...] às vez eu digo porque que Deus não me leva de uma vez, tanta gente vai [...] agora já aceitei mais, mas no começo foi difícil, no começo eu queria morrer, só eu que sei o que tenho que aguentar, mas fazer o quê! [...] (M 8)

Com necessidade de entender como chegaram à condição de serem portadoras do HIV, por vezes têm dúvidas ou não entendem como pegaram.

[...] eu apenas tive um namorado e tive um relacionamento com ele e não me cuidei [...] eu não usei camisinha com ele [...] (M 4)

[...] eu nunca fiz nada de errado né, e pensei que meu marido também não [...] ele já não era mais o mesmo né, assim meio malandro sabe [...] não sei da onde, do ar que vem isso, não entendo, não sei, não sei [...] (M 6)

[...] (suspirando) de repente, sem sabe como pego, que não sei como eu peguei, não sei se foi porque [...] eu nunca fui uma mulher de me cuidar, nas minhas relações, meus parceiros diziam que não queriam botar camisinha, eu nunca insisti, não sei como eu peguei, [...] (M 8)

Com vivências e experiências em amamentação, mas com estranheza, dificuldade, dor e tristeza pela (im)possibilidade de amamentar, escondem a sorologia positiva para o HIV pelo medo do que os outros vão dizer.

[...] assim que eu soube, eu parei de dar, a dotora mandou eu parar, ela tinha uns três meses [...] a minha guria de seis anos não, não amamentei, o guri de quatro, eu amamentei, mas ele não pegou [...] Também não dizia o porque, eu dizia que tinha anemia coisa assim, com essa desculpa, que eu era anêmica demais e então secou o leite do peito [...] (M 3)

[...] eu dei mamá até uns meses, porque eu não sabia né, depois eles me chamaram aqui e me disseram que eu não podia dá mais mama [...]. Foi horrível, saber que tinha e ela não podia tomar, eu chorava cada vez que ia dar mamá [...] e ela porque sentia o cheiro da teta e queria [...] (M 8)

[...] dói muito (enquanto falava estava chorando e passando a mão no peito) eu não ter podido amamentar [...] cada vez que enchia meu peito dói, dói muito [...] quando ia pra o banho assim escorria o leite [...] saber que aquele leite é sujo. Porque o meu outro gurizinho de seis anos [...] ele mamou até os quatros anos né, [...] (M 4)

Sozinhas, não falam com os outros sobre sua condição sorológica, por vezes nem mesmo para o companheiro ou para os filhos ou filhas, porém refletem que um dia terão que contar.

[...] só em casa eu não falo [...] por que o pai dela também não tem, não sabe [...] um dia de certo eu vou ter que contar, não sei, e cadê a coragem, eu sei que se eu contar vou perder a metade da família, amigo, não perdendo as filhas é a conta [...] (fica em silêncio, olhando e acariciando a criança) [...] (M 2)

[...] na rua da minha casa, ninguém sabe [...] porque é uma coisa que eu guardo só pra mim, para minha família [...] nem pro meu marido (M 4)

[...] não tive coragem de contar pra minha mãe, coitada [...] daqui a alguns dia dá pra conversar com ele mais ou menos [...] (M 6)

Estão conformadas com sua condição de ser esposa, de ser portadora do HIV e de sua (im)possibilidade de amamentar.

[...] é coisa da vida, a gente tem que aceitar [...] olha, fácil não é né, mas agente vai indo [...] vai levando. (M 1)

[...] mas dá para ir levando [...] vai fazer um ano [...] acho a maioria das mulheres, acho que são assim também, acreditam que o casamento é seguro e não é. Ainda mais no interior, nunca ia pensar [...] mas foi, fazer o que [...] agora tem que aguentar [...] (M 2)

[...] tu não usa camisinha, tu não usa nada. Aí ele saía, chegava bêbado, mas ele não batia em mim nada, só chegava bêbado [...] (M 3)

As mulheres mostram-se desesperadas e não aceitam o diagnóstico no momento em que descobrem que são portadoras do HIV. Elas não esperavam por isso. Referem sua lealdade ao esposo ou companheiro, pensam na possibilidade de se matar devido ao pânico da doença. Depois elas aceitam, pensam nos filhos/as em como eles vão ficar se elas morrerem e decidem que é necessário seguir em frente, se conformar e aceitar.

Revelaram sua vida conjugal, seus relacionamentos, mostrando a necessidade de entender como chegaram à condição de ser portadora do HIV. Por vezes, desconfiam do companheiro, que a transmissão se deu na relação sexual, ou uso de drogas injetáveis, ou porque é da exploração sexual que sobrevivem.

As mulheres mostram-se com vivência e experiência em amamentação, na possibilidade do sim e do não, ou seja, do poder e não poder amamentar. Nos depoimentos, para pontuarem a (im)possibilidade de amamentar, reportavam-se inicialmente à vivência com os outros filhos que puderam amamentar, anteriores à situação de infecção pelo HIV. Relatam que, por vezes, tinham dificuldades, apresentaram fissuras ou pouco leite e paravam de amamentar, ou optavam por não amamentar devido à necessidade de trabalhar ou porque não gostavam.

No entanto, após a infecção pelo HIV, surgem a estranheza, a dor e a tristeza em não poder amamentar, ao mesmo tempo pensavam que não era possível amamentar, porque prejudicaria a criança. A vivência da (im)possibilidade de amamentar despertou a possibilidade da amamentação. As depoentes revelam que quando podiam não davam, e agora que não podem gostariam de amamentar. Referem que foi muito difícil porque não foi opção. A tristeza vem porque sabem que nunca mais vivenciarão a amamentação e que os filhos que virão não saberão o que é mamar no peito. Ao vivenciarem a (im)possiblidade de amamentar seus filhos, mostram-se com medo de revelar o diagnóstico, com medo do que os outros vão dizer.

As mulheres não comentam e não falam nada sobre HIV com as pessoas de seu convívio. Na família ninguém sabe ou poucas pessoas sabem e não pretendem falar sobre o assunto. Algumas referem que só em casa não falam, em casa fogem da conversa, escondem o rótulo e justificam o uso da medicação ou das consultas periódicas ao pediatra com outras patologias que não representam um estigma.

Algumas depoentes revelam que o casal é sorodiscordante e que, por vezes, nem mesmo o companheiro conhece a sorologia da mulher. Na situação de ter necessidade de uso de preservativo nas relações sexuais, o cônjuge quer explicações, porque isso lhe causa estranheza, mas ele aceita as justificativas associadas à necessidade desse método de anticoncepção. Preferem não contar para as pessoas sobre sua situação, no entanto, refletem que um dia terão que contar.

Mostram-se aceitando ou conformadas com os papéis que lhes são reservados pelos outros: cuidar dos filhos/as e o serviço da casa. Em suas vivências conjugais, apontam o comportamento esperado do homem referindo-se a relacionamentos extraconjugais. Porém, reconhecem que não são vítimas e acreditavam que o casamento era seguro. Relacionam essas questões à sua formação na família. Demonstram a conformidade com as situações, tanto em relação aos modos de ser mulher e de ser homem, quanto ao diagnóstico de infecção pelo HIV, pois relatam que fácil não é, mas tem que se conformar, é coisa da vida. Apontam a aceitação quanto ao que os profissionais da saúde dizem ou fazem, pois têm que acreditar neles, pois eles sabem mais que elas.

 

ANÁLISE INTERPRETATIVA

Heidegger procura orientar a investigação com a pergunta - quem é a presença na cotidianidade? Comenta que "sendo a cotidianidade tema constante, a presença não apenas é e está num mundo, mas também se relaciona com o mundo segundo um modo de ser predominante"14:164. Considerando importante resgatar o significado de mundo que o autor adota, percebemos que ele trata de explicar a noção de mundo vivenciado pelos seres humanos analisando o mundo de todos os dias.17

De início, chama atenção a possibilidade de compreendermos o ser em um mundo, dentro de um espaço, como a água dentro do copo ou a roupa dentro do armário. No entanto, ele adverte que tais caracteres pertencem ao ente não dotado do modo de ser da presença. Ele reconhece e distingue o mundo público, o lugar do nós e de ninguém, o lugar do "a gente", que possibilita a vida comunitária, é o modo de ser com-os-outros, onde encontra-se a uniformidade do ser.18 Esse é o mundo circundante como aquele mais próximo e familiar - é deste mundo que a mulher fala e a partir dele tem a possibilidade de se compreender.

Neste estudo, de imediato a mulher se mostra como ser-no-mundo que não significa apenas estar ao lado de; como ser-no-mundo-com-os-outros ela fala de si relacionando o seu estar-com-o-outro no dia-a-dia, abrange uma história, desenvolve-se em um mundo de realizações, de lutas e fracassos. O ser não apenas está no mundo, mas também relaciona-se com o mundo, um mundo que é integrante do ser-no-mundo da presença.14

Nesse sentido, o ser da mulher só pode ser a partir desse mundo com que se relaciona, o qual compartilha com os outros que são entes envolventes e/ou entes dotados do ser da presença. Por isso, revela sua vida conjugal, seus relacionamentos (sejam eles passageiros, namoros ou casamentos), o uso de drogas, apontando a necessidade de entender como chegou à condição de ser portadora do HIV. Fala de seu mundo, um mundo que é familiar, que envolve e perpassa seu dia-a-dia, seu cotidiano, no modo de ser da convivência. Em um mundo sempre compartilhado com os outros, a co-presença se deu como um modo de ser.14

Ainda, desenvolvem socialmente um modo-de-ser e estar-no-mundo-com-o-outro, com a possibilidade de ter escolhas condicionadas pelo dia-a-dia, em suas e por suas relações com o outro, na família, na escola, no trabalho e na sociedade. Tudo isso é marcado pela tradição patriarcal, pela situação econômica, pelo capitalismo e pelas políticas públicas, mediados pela cultura, desenvolvendo a historicidade de cada ser1. Essa diz respeito às condições individuais da pessoa, como ser biologicamente homem ou mulher, e principalmente às circunstâncias individuais e sociais referentes à formação da masculinidade e feminilidade, de seu estar lançado no mundo, em um mundo circundante e familiar.

Então, o mundo da vida da mulher que tem HIV emergiu associado a um depoimento rico em detalhes acerca de suas vivências e experiências com o outro, até chegar ao momento em que se descobriu ser portadora do vírus, quando desesperada, em pânico não aceita o diagnóstico. Fechada para as possibilidades, uma vez que não esperava por isso, presa ao cotidiano, movida pela curiosidade buscava pela descrição das vivências compreender como chegou à condição de ser portadora do HIV.

Ela discorre acerca de fatos e acontecimentos que, no pensamento de Heidegger, fazem mostrar a mulher na "condição de possibilidade da historicidade, enquanto um modo de ser temporal próprio da presença".Isso é mais que a soma de fatos históricos dispostos cronologicamente, considerando que "em seu ser de fato, a presença é sempre como e 'o que' ela já foi".Entretanto, o filósofo chama atenção que a presença "é sempre seu passado" não simplesmente como experiências que, às vezes, agem e influem sobre a presença, mas que "a presença 'é' o seu passado no modo de seu ser", considerando "que ela sempre 'acontece' a partir de seu futuro".14:47-8

Contudo, a presença não é simplesmente o seu "próprio" passado, mas o passado de sua comunidade, sua historicidade, seu acontecimento, que se entremeiam de seu passado. Por isso, cresce dentro de uma interpretação herdada, em função da qual entende a si mesma e as suas possibilidades. Nesse movimento de compreender-se na situação de sorologia positiva para o HIV, a mulher desvela as circunstâncias individuais e sociais que a aproximaram da possibilidade de infecção pelo HIV e que a levaram à condição de ser portadora do HIV.

Acerca da amamentação, os depoimentos revelam que as mulheres falam sobre aquilo que conversam com suas cunhadas, mãe e sogra, bem como nos serviços de saúde. Assim, a mulher mostra-se como ser-no-mundo-com-o-outro, neste mundo em que todos nós vivemos e conhecemos, em que os entes compartilham momentos no dia-a-dia, envolvidos uns com os outros em uma relação, uma co-presença. Com esse depoimento, ela se mostra como as outras mulheres, iguais às outras que amamentam ou que amamentaram um dia. Mostra a sua ocupação com a amamentação em experiências e vivências anteriores e criando significados e nexos referenciais para a formação de sua circunvisão acerca do tema.13

É dessa maneira que conhecemos as coisas e aprendemos e, muitas vezes, não conseguimos ultrapassar tal compreensão mediana, da qual nunca a presença consegue subtrair-se.14 A mulher, em seu mundo da vida, mostra sua familiaridade e sua circunvisão acerca da amamentação, fala de suas experiências com os outros e de suas vivências em amamentar. Por outro lado, mostra estranheza e dificuldade na situação de (im)possibilidade de amamentar, mostra a amamentação no modo da surpresa, pois aquilo que está à mão não pode ser usado e está simplesmente presente. Nesse momento, quebram-se os nexos referenciais em relação à amamentação, e ela mostra que não tem familiaridade com a (im)possibilidade de amamentar.

Também o depoimento preserva uma compreensão do mundo que se abriu, e uma compreensão da co-presença dos outros. Nesse sentido, a co-presença aconteceu como um estar-só. Isto ocorre quando a mulher revela sentir-se só em meio aos outros, que não conversa com ninguém, que vai à maternidade sozinha para o momento do parto. A co-presença dos outros vem ao encontro nas mais variadas formas, a partir do que está à mão dentro do mundo. Entre as formas o ser-com em um modo deficiente poderá estar-só, mesmo quando esse e ainda outros tantos são simplesmente dados; no estar-só "entre" muitos, sua co-presença vem ao encontro do modo da indiferença e da estranheza.

Mesmo o estar-só da presença é ser-com no mundo, pois "somente um ser-com e para um ser-com é que o outro pode faltar. O estar-só é um modo deficiente de ser-com e sua possibilidade é a prova disso".14:172 São modos possíveis de preocupação e caracterizam a convivência cotidiana e mediana de um com o outro. Na convivência cotidiana, no mundo-da-vida, sem que a presença se dê conta, os outros lhe tomam o ser e dispõem sobre as suas possibilidades. Assim, co-pre-sente nessa convivência, caracteriza-se o impessoal, a inautenticidade.

Como ser-com não apenas é e está no mundo, relaciona-se com o mundo e na maioria das vezes é absorvido pelo mundo, um mundo compartilhado com os outros, que não significa todo o resto, o encontro com os outros se orienta segundo o modo de ser deste, empenhado em ocupações guiadas por uma circunvisão. Por isso, poderá sentir-se só ou não em meio aos outros.

Ainda, como ser-no-mundo que envolve ser-junto-ao-mundo e ser-com, na cotidianidade, a mulher desvela que se encontra no modo de ser da ocupação. Esta mulher, em seu cotidiano, empenha-se nas lidas domésticas, nos afazeres no mundo do trabalho, em um mundo que lhe é familiar, onde ocupa seu lugar no espaço, a que está acostumada. Ela evidencia a facticidade que abriga em si o ser-no-mundo e assume suas relações sendo-no-mundo.

A facticidade emerge nas suas ocupações e preocupações do dia-a-dia, na maneira como se organiza para cuidar dos filhos/as, o que envolve a lida e o manuseio com a alimentação, como pesar e medir para levar à consulta médica e também envolve o não amamentar. Ela aponta essas preocupações e o modo de cuidar da criança exposta ao HIV quando se refere às atitudes da criança como ser espoleta, linda e saudável e que ela pensava, pelo que ouviu dizer, que tinha diferença em cuidar, mas reconhece que não tem.

Com esse depoimento, percebe-se que presença já nasce e cresce dentro de uma interpretação de si mesma, herdada da tradição, que lhe abre e regula as possibilidades de seu ser. Compreendemos que, assim, a mulher mostra-se conformada com a condição de ser esposa, de ser portadora do HIV/AIDS, aceitando, com medo do preconceito e da discriminação, a (im)possibilidade de amamentar seu/sua filho/a. Move-se no cotidiano dominada pela impessoalidade do conviver humano.

 

REFLEXÕES A PARTIR DO ESTUDOS

Da análise interpretativa, partindo da cotidianidade, a mulher se mostra como ser de presença, ser-com-os-outros em um mundo que descreve com familiaridade. Descreve um mundo de lutas e ocupações com os/as filhos/as, entre as lidas domésticas e o trabalho, com a síndrome, com o esposo ou companheiro. Mostra-se no modo de ser da convivência, do ser-com em um mundo circundante.

No modo de ser do cotidiano no falatório e na curiosidade, ela mostra suas incertezas e busca compreendê-las, mas, na maioria das vezes, não as compreende. Ela não compreende a síndrome, as formas de transmissão, o tratamento e a (im)possibilidade de amamentar. Fica em pânico no momento da descoberta de sua condição sorológica, devido ao medo da doença e, também, porque não esperava por isso.

Aqui vale um destaque: a compreensão da mulher de que a possibilidade de infectar-se não é sua, mas poderá ser de outra, aproxima a mulher da possibilidade de se infectar. Na medida em que a possibilidade da infecção não é sua, também não será sua a necessidade de adotar medidas de prevenção, por isso ela também relata que não se cuida nas relações.

Essa consideração envolve um desafio da prevenção da transmissão do HIV desenvolver com a mulher a compreensão de que a infecção pelo HIV poderá ser uma de suas possibilidades, pautada em sua existencialidade, em seu mundo da vida. Para isso, deve-se considerar a contrução de sua feminilidade, suas circunstâncias de vida individuais, sociais e o acesso que ela tem às políticas públicas de prevenção.

No entanto, em um cenário assistencial, ancorado em estatísticas relacionadas ao número de consultas e procedimentos, temos as ações assistenciais dirigidas ao binômio mãe-criança, centradas na queixa, na função reprodutiva, na função mulher-trabalho, implicadas com a formação tradicional dos profissionais da área da saúde conforme modelo biomédico. Com isso, tornam-se, tanto as políticas públicas de promoção, prevenção e assistência, quando a prática assistencial descontextualizadas das circunstâncias de vida e de vivência da mulher e das suas necessidades.

A despeito da política de promoção, proteção, prevenção e assistência para o controle da epidemia calcada nos princípios do SUS, considerando que estejam disponíveis na rede pública para a população o diagnóstico e o tratamento e também outras ações, condutas e procedimentos para a prevenção da transmissão desse vírus, há a necessidade de ponderar declarando que existem estratégias assistenciais que precisam ser melhoradas.

O desafio está posto: para afastar homens e mulheres da possibilidade de infectar-se será necessário, não só um movimento conjunto no sentido de se contemplar os princípios do SUS, mas também um movimento de convergência entre as políticas que estão postas na área de saúde da mulher, da criança, do adolescente, do aleitamento materno, do controle de AIDS, da educação, do trabalhador, do idoso, entre outras.

Pautadas na dimensão existencial, assinalamos que os profissionais de saúde têm as suas características próprias e estão absorvidos no mundo, penetrados nos entes envolventes, coisas, utensílios, ideias, crenças e valores. Assim também está o ser-profissional no mundo da Enfermagem, o qual mostra suas várias maneiras específicas de viver, sua mundaneidade. O mundo-do-trabalho é o mais próximo circundante. Temos com ele familiaridade, um mundo compreendido existencialmente, sempre algo que compartilhamos com os outros.

Nesse mundo-do-trabalho encontramos a possibilidade de repensar as atitudes e o modo-de-ser profissional, mediados por uma concepção pedagógica que contemple os conhecimentos, as experiências e vivências, a historicidade e as circunstâncias individuais e sociais dos participantes do processo de aprendizado, considerando este como significativo para sua vida. No processo pedagógico problematizador o que se busca é a possibilidade de escolhas e a autonomia. Para tanto, será necessária a intencionalidade de transformar a realidade, tendo como ponto de partida a análise da realidade vivida, acreditando em uma educação mediada pelo mundo.

Sendo assim, no mundo do cuidado, na dinâmica de cuidar, para desenvolver um cuidado solícito, é necessário: um encontro vivido e dialogado, o qual é parte da compreensão do mundo da vida da mulher, quando dar-se-á a possibilidade de ajudá-la nessa situação vivida, ajudá-la no enfrentamento não só do diagnóstico de sorologia positiva para o HIV diante da (im)possibilidade de amamentar, como também das diversas implicações no seu mundo da vida.

Essas discussões apontam uma percepção para além do biológico, relacionando a complexidade da situação e a necessidade de ampliação da visão do pesquisador e dos profissionais da área da saúde. Aqui ressaltamos a necessidade da compreensão do ser do humano, em especial no cotidiano do ser da mulher como um ser-no-mundo-com-os-outros, para estar-com-ela, para que se contemple o ser na sua existencialidade e um cuidar em enfermagem individualizado e humanizado, pautado na subjetividade do ser cuidado.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 26/08/2009
Reapresentado em 25/03/2010
Aprovado em 12/07/2010

 

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