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Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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CAPES

Volume 14, Número 4, Out/Dez - 2010

PESQUISA

 

Memórias de idosos aposentados de um hospital psiquiátrico catarinense (1951-1971)*

 

Memoirs of work retirees elderly from a psychiatric hospital (1951-1971)

 

Memorias del trabajo de ancianos jubilados de un hospital psiquiátrico (1951-1971)

 

 

Ana Maria Espíndola KoerichI; Miriam Susskind BorensteinII; Eliani CostaIII; Maria Itayra PadilhaIV

IEnfermeira do Instituto de Psiquiatria do Estado de Santa Catarina (IPq-SC). Mestre em Enfermagem pelo PEN-UFSC. Membro do Grupo de Estudos de História do Conhecimento da Enfermagem e Saúde (GEHCES). Florianópolis-SC. Brasil. E-mail: koerich.Ana@gmail.com
IIEnfermeira. Doutora em Filosofia da Enfermagem (PEN -UFSC). Professora Associada do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Vice-Coordenadora do GEHCES. Pesquisadora do CNPq. Florianópolis-SC. Brasil. E-mail: miriam@nfr.ufsc.br
IIIEnfermeira do IPq - SC, Florianópolis, SC. Mestre em Enfermagem e Doutoranda do PEN -UFSC. Membro do GEHCES. Florianópolis-SC. Brasil. E-mail: elianicostabernardes@hotmail.com
IVEnfermeira. Doutora em Filosofia da Enfermagem (PEN -UFSC). Professora Associada do Departamento de Enfermagem da UFSC. Coordenadora do GEHCES. Pesquisadora do CNPq. Florianópolis-SC. Brasil. E-mail: padilha@ccs.ufsc.br

 

 


RESUMO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa com abordagem sócio-histórica cujo objetivo foi historicizar o cotidiano dos trabalhadores de enfermagem, hoje idosos, de um hospital psiquiátrico catarinense no período entre 1951 e 1971. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas com seis trabalhadores de enfermagem utilizando-se do método de história oral. A memória foi utilizada como referencial teórico, e os dados foram categorizados com base na análise de conteúdo. Os resultados evidenciaram os saberes e fazeres dos trabalhadores de enfermagem, as condições de trabalho e as relações entre os profissionais da equipe de saúde. Estes resultados permitem concluir que a situação vivenciada pelos trabalhadores nessa instituição era congruente com a situação da enfermagem brasileira, mormente nos hospitais psiquiátricos asilares. Além disso, estes trabalhadores de enfermagem, hoje idosos, tiveram um papel fundamental na assistência de enfermagem prestada à clientela internada.

Palavras-chave: Enfermagem Psiquiátrica. História da Enfermagem. Enfermagem. Idoso.


ABSTRACT

This is a qualitative study of socio-historical approach that aimed to historicize the daily lives of nursing workers, elderly nowadays, in a psychiatric hospital in Santa Catarina state in the period between 1951 and 1971. Data were collected through semistructured interviews with six nursing staff using the method of oral history. The memory was used as the theoretical framework and the data were categorized on content analysis. The results showed the knowledge and practices of nursing staff, working conditions and relationships between professionals in the health care team. The results showed that the situation experienced by workers in this institution was congruent with the situation of Brazilian nursing, especially in psychiatric hospitals asylums. Moreover, these nursing workers, elderly people today, had a key role in nursing care to patients admitted.

Keywords: Psychiatric Nursing. Nursing History. Nursing. Elderly


RESUMEN

Se trata de una investigación cualitativa con abordaje socio-histórica cuyo objetivo fue historiar el cotidiano de los trabajadores de enfermería, hoy ancianos, de un hospital psiquiátrico catarinense, en el período entre 1951-1971. Los datos fueron recolectados por medio de entrevistas semiestructurada con seis trabajadores de enfermería, utilizando el método de historia oral. La memoria fue utilizada como referencial teórico y los datos se categorizaron según el análisis de contenido. Los resultados evidenciaron los saberes y prácticas de los trabajadores de enfermería, las condiciones de trabajo y las relaciones entre los profesionales del equipo de salud. Los resultados permiten concluir que la situación vivenciada por los trabajadores en esa institución era congruente con la situación de la enfermería brasileña, principalmente en los hospitales psiquiátricos asilares. Además de eso, estos trabajadores de enfermería, hoy ancianos, tuvieron un papel fundamental en la asistencia de enfermería prestada a la clientela internada.

Palabras clave: Enfermería Psiquiátrica. Historia de la Enfermería. Enfermeria. Anciano.


 

 

INTRODUÇÃO

O envelhecimento na maioria das vezes não é visto como uma fase natural da vida em que ocorrem significativas alterações físicas, psicológicas e sociais como consequência do tempo vivido, e sim como doença e incapacidade para a vida. O idoso, mesmo aposentado, não se configura obrigatoriamente em alguém que não possa ser um membro ativo na comunidade onde vive. Ele possui a experiência dos tempos vividos, e uma de suas grandes contribuições para a sociedade é a narrativa de seus caminhos trilhados, de sua história de vida e o modo como sua experiência passada pode contribuir com perspectivas contemporâneas. A memória do idoso é um patrimônio histórico e social, e suas experiências podem cooperar com os mais jovens para novas construções na família, sociedade e trabalho.1

Várias profissões têm buscado a construção de sua história na perspectiva de conhecer o passado, como uma maneira de entender seu presente e visualizar seu futuro. Os profissionais de enfermagem também vêm desenvolvendo um gradual interesse pelos aspectos históricos da profissão, fatos que têm incentivado as escolas de enfermagem e os grupos de pesquisas a se aperfeiçoarem para responder à demanda.2

A memória tem sido utilizada como recurso para a construção da história. Memória é tudo aquilo que é lembrado por uma pessoa ou sua capacidade de lembrança. Memória não é história; tampouco representa um depósito de tudo que nos aconteceu, e sim tudo que registramos em nossa mente. História é a narrativa que montamos a partir da memória, a construção do que lembramos.1

O processo de envelhecimento sob o ponto de vista da memória é um acontecimento natural, assim como a adolescência e a fase adulta. No entanto, a velhice é uma fase cheia de preconceitos, e o "velho sente-se as vezes um indivíduo diminuído, que luta para continuar sendo um homem". Se a tenacidade do ser humano pode diminuir com a velhice, sua capacidade de associação e meditação aumenta. O idoso também necessita de atenção e precisa ser ouvido, pois isso o estimula a reter os fatos. O mundo social possui riqueza e diversidade que podem chegar a nós pela memória do velho. De um lado, busca a confirmação do que se passou com seus coetâneos, em testemunhos escritos e orais, investiga pesquisa, confronta esse tesouro de que é guardião. De outro lado, recupera o tempo que correu e aquelas coisas que, quando as perdemos, nos fazem sentir diminuir e morrer.1

Nesse sentido, este artigo é resultado de uma pesquisa que objetivou trabalhar com a memória de um grupo de trabalhadores de enfermagem, hoje idosos e aposentados, através da oralidade para resgatar as características e condições de trabalho exercidas no antigo Hospital Colônia Sant'Ana (HCS), no período de 1951 a 1971.

O HCS iniciou suas atividades em 1941 com o objetivo de prestar assistência psiquiátrica à população de Santa Catarina, no Governo Federal de Getúlio Vargas. Acompanhando a política eugenista instaurada na década de 1940, tornou-se uma instituição psiquiátrica superlotada, com características asilares, cujos trabalhadores de enfermagem não possuíam escolaridade ou formação condizente com o ofício a exercer. Esses eram administrados e supervisionados pelas religiosas, que além de serem as responsáveis por todas as atividades realizadas na instituição, também desenvolviam vários cuidados de enfermagem.3

Essa instituição ao longo de sua história sofreu inúmeras transformações. Em 1995, o antigo Hospital Colônia Sant'Ana foi descredenciado após parecer de técnicos do Ministério da Saúde. A partir de 1996, no mesmo espaço físico, foram constituídas duas novas unidades assistenciais: o Instituto de Psiquiatria do Estado de Santa Catarina (IPq-SC) com 160 leitos para internação de pacientes em surto psiquiátrico grave, com proposta de curta permanência, e o Centro de Convivência Santana (CCS) com os leitos dos pacientes remanescentes da antiga instituição, os quais passaram a ser alvo de políticas de desinstitucionalização. Dos 600 pacientes que havia na instituição em 1995, atualmente ainda se encontram no CCS 251 pacientes que aguardam retorno para seus domicílios e/ou serviços extra-hospitalares.4

O trabalho de enfermagem nos hospitais psiquiátricos brasileiros tem se configurado em estudo de diversos pesquisadores,3,5-7 dentre outros, cujos relatos evidenciam muitas particularidades, como o motivo da escolha profissional, as formas de inserção desses trabalhadores no mercado de trabalho, sua atuação, condições de trabalho, entre outros aspectos.

Analisando esses e outros estudos e relacionando-os com a prática profissional vivenciada nesse hospital psiquiátrico estatal catarinense, é possível encontrar várias similaridades, as quais nos levou a questionar sobre como foi realizado o trabalho pelos antigos trabalhadores de enfermagem do HCS? Como estariam esses idosos? O que pensavam acerca do trabalho desenvolvido? Em que condições trabalharam? Estas são algumas das questões que o presente estudo pretende responder.

O marco inicial (1951) da pesquisa teve por base os dez anos da criação do HCS, época em que diversos fatores políticos, econômicos e sociais no estado catarinense contribuíram para o aumento da demanda de pacientes psiquiátricos à instituição. O marco final (1971) foi delimitado pela mudança administrativa do HCS que passou a ser administrado pela Fundação Hospitalar de Santa Catarina (FHSC). Essa nova realidade resultou em mudanças expressivas no HCS das quais destacamos o ingresso do primeiro enfermeiro nesse espaço hospitalar.

Acreditamos que, por meio do estudo da história da enfermagem no HCS, tendo como foco o relato dos trabalhadores aposentados de enfermagem, poderemos obter algumas das respostas para as questões levantadas. Porém consideramos que, ao narrar esta história, poderemos perceber os campos de forças que constituíram os sujeitos e os saberes, dando voz aos idosos, que, quando jovens, desempenharam por um longo tempo um trabalho que se manteve silencioso e invisível. Além disso, o estudo pretende contribuir com a historiografia da enfermagem psiquiátrica catarinense e brasileira

 

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa qualitativa com abordagem sócio-histórica. Os estudos dessa natureza permitem abarcar os grupos humanos no seu espaço temporal e se preocupam em discutir os diversos aspectos do dia-a-dia das diferentes classes e grupos sociais.8

A história oral foi utilizada como método de coleta de dados, por meio da realização de entrevistas semiestruturadas gravadas com seis trabalhadores (sendo duas vigilantes, dois guardas e dois "enfermeiros práticos") que atuaram no antigo HCS no período de 1951 a 1971. Esses trabalhadores foram selecionados por preencherem os seguintes critérios de inclusão: terem sido funcionários do HCS no período do estudo, possuir boa memória, disponibilidade de tempo e interesse em participar do estudo.

Para selecionar os participantes desse estudo, foi realizada uma busca ativa no cadastro do Setor de Recursos Humanos do IPq-SC, e posteriormente realizado contato por telefone para agendar as respectivas entrevistas as quais aconteceram nas residências dos próprios sujeitos. Suas falas foram registradas em gravador digital, gravadas em CD-ROM, resultando em nove horas de gravação que se constituíram nas fontes primárias. Além dessas, foram utilizadas fontes primárias documentais coletadas no IPq-SC, na Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina (SES-SC), no Arquivo Público e Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina. O conceito de memória foi utilizada como referencial teórico.1

Os dados foram analisados empregando-se a análise de conteúdo,9 do qual surgiram três categorias: 1) Os saberes e fazeres dos trabalhadores de enfermagem; 2) As condições de trabalho no HCS; 3) As relações entre os profissionais da equipe de saúde.

O estudo atendeu aos critérios preconizados pela Resolução número 196/96 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde,10 que dispõe sobre as diretrizes e normas que regulamentam a pesquisa envolvendo seres humanos. Os entrevistados foram orientados quanto ao tipo de pesquisa, o direito de par ticipar ou não e de poder desistir em qualquer momento, bem como da garantia do anonimato. Em decorrência deste último item, os entrevistados foram identificados com as abreviaturas de acordo com as atividades que desenvolviam: Vigilante "VG"; Guarda "GR" e "Enfermeiro Prático" "EP". Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com protocolo número 182/08.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os saberes e fazeres dos trabalhadores de enfermagem

Na década de 1950, o HCS possuía aproximadamente 24 vigilantes e 8 "enfermeiros práticos", denominados "enfermeiros", que, juntamente com as 10 religiosas da Congregação Divina Providência, formavam o quadro de trabalhadores da enfermagem. Essas eram as principais responsáveis pela supervisão dos demais membros da equipe, assim como pela realização dos procedimentos de enfermagem mais complexos.3

Conforme relatos dos depoentes do estudo, os trabalhadores, para serem admitidos no HCS, inicialmente atuavam como voluntários por um período de tempo, nos diferentes setores da instituição. No entanto, quando possuíam um apadrinhamento político, eram imediatamente contratados. Passar a trabalhar no serviço de enfermagem era considerado pelos depoentes um prêmio, e geralmente acontecia quando se destacavam no setor em que atuavam, ou eram tidos como exemplo de bom funcionário, ou ainda quando eram apadrinhados. O ápice desta escalada era ocupar o cargo de "enfermeiro prático", o que correspondia a uma pessoa semialfabetizada, que possuía conhecimentos razoáveis de enfermagem. A fala a seguir evidencia a importância atribuída pelo entrevistado ao dito "enfermeiro prático":

Ser enfermeiro era melhor, porque ganhava mais, tinha menos serviço e tinha sala separada pra descansar. Eu fazia tudo igual a eles, muitas vezes nós fazíamos sozinhos, porque eles não estavam o dia todo, então eu podia ser enfermeiro também (GR2).

O depoimento do idoso GR2 encerra uma certa ingenuidade ou desconhecimento das atribuições reais do enfermeiro, especialmente depois da instituição da Lei do Exercício profissional11 no país, na década de 80, que torna privativo do profissional a função de supervisão e liderança. Na época, "ser enfermeiro" caracterizava-se como aquele funcionário que geralmente recebia mais informações das religiosas e dos médicos e que assumia maior responsabilidade, realizando, junto com as irmãs, os procedimentos mais complexos. Outro depoimento curioso pode ser visualizado na fala a seguir:

Eu comecei serrando lenha, na roça com os pacientes. Depois fui trabalhar na cocheira. Aí mudou a direção, eu fui nomeado como vigilante e fui trabalhar dentro no hospital numa enfermaria masculina, junto com as irmãs. Depois me botaram como auxiliar de serviço médico (GR1).

Não foi identificada na fala dos entrevistados a existência de critérios técnicos que fossem seguidos para a contratação de pessoal para trabalhar na enfermagem. Porém, na época, uma questão era essencialmente levada em conta, a de gênero: os homens eram contratados para cuidar dos pacientes masculinos e as mulheres, das pacientes femininas. Isto se aplicava somente aos guardas e vigilantes, pois o mesmo não acontecia com o "enfermeiro prático", cargo para o qual eram escolhidos somente os homens, e estes atendiam pacientes de ambos os sexos e não se envolviam em atividades rotineiras como o banho e troca de roupa das pacientes.

Alguns depoentes referiram que aprenderam suas tarefas com os médicos e com as religiosas, outros, com colegas mais antigos, e alguns, até mesmo, com os pacientes. De fato, em Santa Catarina, até 1959, não havia escola de Enfermagem de nível médio ou superior.3 Portanto, os trabalhadores do estado e, por conseguinte, do HCS, aprendiam no cotidiano da assistência, uns com os outros; o mais antigo funcionário ensinava o mais novo. Assim, a construção do saber-fazer da enfermagem ocorria a partir do acerto e do erro, e era transmitida aos seus pares como uma herança.

O resultado empírico da prática de enfermagem no HCS no período historicizado foi sendo sedimentado com a transmissão e repetição das informações, formando novas dimensões do conhecimento. O conhecimento coexiste em duas dimensões na prática diária da enfermagem: a primeira é o "conhecimento/saber", e a segunda é a "práxis". Essa é percebida no cotidiano da assistência de enfermagem e guiada pelo saber que permite o fazer na "perspectiva da ação por meio da competência, habilidade, persistência, paciência e disponibilidade para agir consciente e intuitivamente"12:175.

Essas características certamente estão ligadas à formação científica e aos valores morais dos indivíduos. Neste sentido, a práxis dos sujeitos deste estudo foi derivada de um saber empírico que possibilitou um fazer, guiado por escassos conhecimentos científicos e ausência de crítica, mas fortemente ligado às suas concepções culturais e morais.

Na entrevista, os depoentes referiam ter aprendido seus afazeres com diferentes personagens, como pode ser evidenciado nas falas a seguir:

O enfermeiro chefe me ensinou a fazer injeção, choque elétrico, insulina (EP2).

Quando eu cheguei, fiquei lá uma semana observando e depois aprendi a fazer curativo com um paciente. Também teve um médico que me ensinou a fazer choque. Ele fez diversas vezes num boneco. Depois ele fez num paciente na nossa frente, pra nós vermos, e assim a gente pegava prática (EP1).

As freiras nos ensinaram a conhecer os remédios, elas deixavam os remédios tudo marcadinho e a gente decorava a cor deles e dava pros paciente (GR1).

Quanto ao desenvolvimento das atividades de enfermagem, já havia uma divisão entre os que comandavam e os que obedeciam, ou seja, entre o trabalho intelectual e o manual. As irmãs decidiam sobre tudo, e todos costumavam determinar as necessidades e estabelecer as prioridades e soluções, assumindo funções que às vezes extrapolavam até mesmo as da direção geral do hospital, que permanecia quase todo o tempo presente, uma vez que residia na própria instituição.3

Segundo os depoentes, os guardas e vigilantes encontravam-se na posição dos que obedeciam ao "enfermeiro prático". Este último costumava assumir as atividades de maior complexidade, realizando a escalas de serviço, autorizando as trocas de plantão, passando visitas com os médicos, auxiliando nos partos, laqueaduras e pequenas cirurgias, realizando suturas (quando não havia médico presente na instituição), administrando/realizando eletrochoque, insulinoterapia, medicação parenteral e fluidoterapia. Os vigilantes eram responsáveis pelos cuidados de higiene e conforto, alimentação, medicação oral, observação permanente dos pacientes e, ainda, costumavam fazer a limpeza da enfermaria. No entanto, nas falas dos depoentes, evidencia-se uma mistura dessas atribuições, pois os vigilantes também executavam atividades que deveriam ser realizadas pelos "enfermeiros práticos", como por exemplo, administração de medicação parenteral.

Eu fazia faxina, injeção, ajudava no eletrochoque, amarrava as pacientes pra fazer insulina, cuidava das pacientes na cela, no pátio. Tinha que dar conta de oitenta pacientes. (VG1).

Esta mistura de atribuições, ou ausência de uma delimitação precisa do que compete à cada categoria profissional de enfermagem, ainda persiste nos dias atuais, apesar da Promulgação da Lei 7.498/86 que regulamenta o Exercício da Enfermagem em todo o território nacional.11 Ainda se observa frequentemente nos Serviços de Saúde que vários procedimentos de enfermagem, que são privativos dos enfermeiros, são executados por técnicos ou auxiliares de enfermagem.

Relembrando aquele período, algumas informações foram expressas pelos depoentes com visível orgulho, quando estes relataram a quantidade de afazeres que costumavam realizar. Foi possível perceber que estes se esmeravam em listar as atividades, assumindo uma postura altiva e poderosa, apresentando intensos movimentos faciais na tentativa de extrair de suas memórias, tudo o que faziam no passado. A cada atividade rememorada, os depoentes manifestavam-se sorridentes e orgulhosos. Pois "quanto mais a memória revive o trabalho que se fez com paixão, tanto mais se empenha o memorialista em transmitir ao confidente os segredos do ofício" 1:480.

Nos depoimentos ficou evidenciado que, na história da prática de enfermagem, perpetuava a "nomeação de atendentes pela simples troca do instrumento de trabalho,"13:71 ou seja, da vassoura para a seringa. Esses tanto poderiam estar em um determinado momento limpando a enfermaria, como, em outro, poderiam a administrar os cuidados terapêuticos aos pacientes internados. Os depoentes narraram que participaram diretamente dos diversos tipos de tratamentos utilizados no hospital e convencionalmente utilizados nas instituições psiquiátricas brasileiras na época. Enfocaram múltiplas vezes a utilização do eletrochoque e da insulina e outros cuidados realizados. Lembraram ainda que costumavam administrar alguns medicamentos, como haldol, neozine e amplictil, mas, no entanto, referiram que não sabiam exatamente o que estavam administrando, pois, como não sabiam ler, aprenderam a decorar apenas as cores dos remédios, e era essa a forma de identificá-los: o azulzinho, o rosinha.

Percebe-se pelas falas acima que as atividades exercidas pelos depoentes extrapolavam a sua competência profissional. Não tinham formação específica ou capacitação adequada para desenvolver grande parte dessas atividades, mas, mesmo assim, realizavam os procedimentos por falta de pessoal mais capacitado. Além disso, na maior parte do tempo, os depoentes desenvolviam seus fazeres sem supervisão: uma vez que não havia enfermeiro na instituição, os médicos permaneciam pouco tempo no hospital e as poucas irmãs existentes estavam mais ligadas às atividades administrativas.

Condições de trabalho

Desde o início da criação do HCS em 1941, os trabalhadores cumpriram uma jornada intensa de trabalho, considerada por eles estafante, tanto pelo tipo de pacientes que cuidavam como pelas atividades que desenvolviam. Os depoentes relataram que cumpriam uma jornada de trabalho de 48 horas semanais, distribuídas em escala de 24 horas consecutivas de serviço, por 48 horas de folga. Havia diferenciação na distribuição de horários para os trabalhadores de enfermagem, conforme pode ser visto a seguir. O "enfermeiro prático" cumpria uma escala de 6 horas diárias (das 7 às 13 horas) com a realização de plantão nos finais de semana. Os guardas e vigilantes não tinham escolha, tendo que cumprir a escala de 24/48 horas. Todos os trabalhadores recebiam do Estado uniforme ou tecido para sua confecção, além de calçados, quepe e jaleco, duas vezes ao ano.

Os depoentes referiram que tinham todos os direitos trabalhistas concedidos pelo regime estatutário, como plano de saúde, férias, licenças, décimo terceiro salário, quinquênio e aposentadoria. Quanto ao salário, os depoentes evidenciaram certo descontentamento no valor recebido:

o salário, dava pra manter a casa mais ou menos, por que éramos em dois à trabalhar, eu e o meu marido, se fosse um só, não dava (VG1).

Os trabalhadores de enfermagem eram submetidos a um controle rigoroso de cumprimento de tarefas e horários, e mantidos sob uma vigilância de olhares, constituindo uma verdadeira pirâmide em que uns controlavam os outros, numa escala hierárquica.14 Neste caso em particular, os médicos delegavam às religiosas o controle dos "enfermeiros práticos", que controlavam os guardas e vigilantes, que controlavam os pacientes, que, por sua vez, quando se apresentavam em melhores condições psíquicas, controlavam os vigilantes e os denunciavam às religiosas. Estas, ao serem notificadas de alguma irregularidade, agiam com rigor e gratificavam os pacientes pelas informações recebidas.

Este controle também foi evidenciado no plantão noturno para evitar que os trabalhadores de enfermagem não dormissem durante o horário de serviço. Exceção feita apenas ao "enfermeiro prático", que tinha sua própria sala, onde permanecia após realizar suas atividades, e tinha a permissão de dormir. O controle era realizado por um sistema muito curioso, em que os vigilantes e guardas tinham que permanecer com um relógio pendurado no pescoço, este continha uma tira de papel, que deveria ser picotada a cada quinze minutos, momento em que o relógio registrava o horário. Pela manhã, o chefe dos guardas e dos vigilantes abria o relógio para fazer o controle de horário:

o relógio era pra não dormir, porque eles, os chefes do hospital, achavam que os vigilantes e os guardas de plantão da noite dormiam. Eles colocaram esse relógio para dar corda de quinze em quinze minutos, aí a gente botava ele dependurado no pescoço, e dava corda com uma chavezinha, a noite inteira (GR2).

As precárias condições de trabalho a que os trabalhadores de enfermagem foram submetidos foi notoriamente destacada pelos depoentes. Estes relataram que era comum encontrar pacientes graves e até mortos nas enfermarias ou nos pátios, principalmente nos meses de inverno. Os depoentes, sem exceção, reiteraram falas que refletiam as péssimas condições de trabalho e de atendimento aos doentes, bem como sujeira dos alojamentos e o grande número de pacientes internados, sempre acima da capacidade máxima da instituição. No entanto, não foi percebido em suas falas expressão de sofrimento ou ressentimento em relação ao esse passado, mas certa compreensão da situação, como parte do contexto da assistência psiquiátrica da época vivenciada.

A depoente VG2 verbalizou: "hoje em dia, os funcionários estão no céu. Nós trabalhamos no inferno", se referindo a situação atual do hospital, relacionadas às condições de trabalho, número de pacientes e trabalhadores existentes. Estes depoimentos são corroborados por outros pesquisadores3,5-7 que realizaram estudos evidenciando as condições dos hospitais psiquiátricos estatais construídos nas principais capitais brasileiras, como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Santa Catarina, entre outras.

Nos anos que se seguiram ao período investigado (1951 a 1971), as condições de trabalho, a qualificação e capacitação dos profissionais que passaram a atuar nos hospitais psiquiátricos melhoraram significativamente em relação ao passado, porém ainda continuam muito aquém do ideal desejado de acordo com a nova política de saúde mental baseada na Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Relações entre os profissionais

Ao recordarem as relações estabelecidas entre os diversos segmentos dos trabalhadores, os depoentes revelaram que, com alguns, as relações se estenderam ao longo de suas vidas, formando inclusive laços familiares, através de matrimônios. Com outros, os depoentes revelaram que as relações foram estritamente profissionais, relembradas com pesar e ressentimentos, como por exemplo, com algumas religiosas.

Os depoentes deixaram claro em suas falas que o relacionamento com estas era por vezes muito conturbado. As irmãs agiam de forma coercitiva, fazendo com que os trabalhadores e pacientes estabelecessem com elas uma relação baseada no medo e num sistema de gratificação sansão.14 A qualquer possibilidade de falha ou desagravo, as religiosas encaminhavam os funcionários ao diretor para serem sumariamente demitidos. O idoso GR1, no entanto, assinala: "a gente tinha que se dar bem com elas. Nós trabalhávamos sob ameaças delas". Esta fala demonstra clara alusão às ameaças feitas pelas religiosas, caso fizessem qualquer comentário a respeito de suas atitudes.

Em relação aos médicos, a maioria dos depoentes manifestou que havia uma relação pautada no distanciamento, respeito e cordialidade, caracterizados por eles como "um bom relacionamento". No entanto, alguns fatos descritos demonstram que este suposto "bom relacionamento" estava na realidade assentado numa relação de subalternidade e docilidade, tanto em relação aos médicos como em relação às religiosas. A relação de subalternidade fica visível na fala abaixo, quando o idoso GR1 descreve a existência de uma escada e uma rampa, que dava acesso ao segundo piso do prédio, onde internavam os pacientes particulares.

Aquela rampa era toda cimentada e nós tínhamos que encerar e colocar os tapetes. Lá só podiam passar os médicos e as freiras. Nós só podíamos passar pela escada. Nem "os enfermeiros" e nem o chefe passavam pela rampa. (GR1)

Como se pode observar, os sujeitos entrevistados não foram unânimes quanto às relações estabelecidas entre os diversos trabalhadores, o que justificamos com a ressalva de que "as recordações têm em comum ou em paralelo,"1:413 formas diferentes de observar o mesmo fato, o que explica a diferença na forma como os entrevistados relataram o mesmo acontecimento. Em suas lembranças, os depoentes nostalgicamente demonstraram que as relações sociais estabelecidas entre os que pertenciam ao mesmo segmento profissional e social eram marcadas por solidariedade e companheirismo, e enfatizaram a ajuda mútua.

O relacionamento cotidiano dos vigilantes e guardas com os "enfermeiros práticos" ocorria de maneira harmoniosa; no entanto, havia entre eles um relacionamento construído culturalmente com base na relação de poder e subordinação estabelecida pela posição hierárquica que assumiram na instituição, e não somente pelo saber. Havia também um relacionamento entre os trabalhadores que ultrapassava os muros do hospital e adentrava em suas casas e comunidade, além de suas participações nas festas que fizeram história na instituição, como as celebrações juninas e a comemoração do "Jubileu de Prata do Hospital Colônia Sant'Ana" em 1966, retratada com muito esmero pelos sujeitos entrevistados, como EF1:

No dia em que a Colônia fez 25 anos, nossa, foi uma grande festa, veio o governador, um monte de políticos, teve churrasco, muita comida e bastante bebidas

Finalmente com a incorporação do HCS pela FHSC, os trabalhadores, que até então eram regidos por regime trabalhista estatutário, tiveram de optar entre permanecer com este vínculo ou passar a ser regidos pela CLT, principal norma legislativa brasileira referente ao direito do trabalho.

A entrada do enfermeiro e as mudanças no regime de trabalho caracterizaram-se em adversidades para alguns dos entrevistados, que relataram dificuldades em se adaptar às novas atribuições e ao novo regime, culminando, como no caso do idoso EP1, com sua saída do hospital:

Quando meus amigos saíram, eu também quis sair. Ficaram todos loucos, e eu fiquei deprimido. Fui embora e me aposentei por invalidez. (EP2)

O idoso GR2 parece compreender esta nova concepção de trabalho que se iniciava no HCS, valorizando o conhecimento qualificado como desencadeador do processo de mudanças que começaram a se estabelecer na instituição:

Quando o hospital passou pra Fundação, a direção fez que todo mundo passasse a ser da enfermagem; os vigilantes, os guardas e o enfermeiro e aí, tudo passou a ser atendente. Foi nessa época que o Hospital começou a melhorar, depois que chegou o enfermeiro padronizado, que até então não tinha, e organizou o hospital. Aí, muitos dos meus colegas saíram, não gostavam mais do trabalho, porque deixaram de ser enfermeiros.Eles não queriam ser atendentes, mas eu continuei (GR2).

Percebe-se nas falas dos depoentes que de fato houve um impacto na assistência de enfermagem no HCS com a entrada dos enfermeiros. A partir daí iniciou-se uma articulação progressiva entre o saber científico e prático com o saber leigo. O fim da enfermagem laica tem sido uma luta de várias entidades representativas e de vários agentes da categoria. Nesta luta, está inscrita a concepção do ser humano e as tecnologias, que foram ou são desenvolvidas para alcançar os objetivos de cuidar e ampliar o entendimento do processo saúdedoença, na enfermagem em saúde mental, primando pela melhoria da qualidade de vida do portador de transtorno mental.15

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante registrar que o objetivo estabelecido para esse estudo, que foi historicizar o cotidiano dos trabalhadores de enfermagem, hoje idosos, no HCS, no período de 1951 a 1971, foi atingido.

Os depoentes demonstravam felicidade pela oportunidade de narrar suas reminiscências sobre o trabalho desenvolvido na enfermagem do HCS. Cada encontro parecia um momento de festa, quando se apresentavam bem vestidos, com a casa arrumada, ansiosos pelo depoimento, e, no fim de cada entrevista, disponibilizavam um delicioso lanche, em que a conversa informalmente fluía, com a participação de outros familiares. Todos iniciaram seu trabalho ainda jovens, motivados pela pobreza familiar, e foram contratados da mesma maneira, ou seja, beneficiados pela política clientelista predominante em Santa Catarina, especialmente nas décadas de 50 a 70 do século XX, período em que não havia concurso para ingresso ao funcionalismo público. Esta política de favorecimento não se manifestava somente na contratação de pessoas para trabalhar no hospital, mas também, no caso particular do HCS, nos ganhos secundários, como oferta de moradia, alimentação, transporte, pagamento de água e luz, além de atendimento médico e medicamentos para os trabalhadores que se submetiam a trabalhar nas instituições de exclusão, construídas na década de 40 daquele século.

Parece evidente que se os trabalhadores do HCS, inclusive os entrevistados, não recebessem alguns privilégios, não permaneceriam tanto tempo naquela ocupação. O trabalho era duro, a carga horária era pesada, as condições de trabalho eram precárias, havia um rígido controle das atividades e das pessoas, além de atenderem uma clientela excluída socialmente e de difícil abordagem. Esses aposentados prestaram um "grande serviço à sociedade, cuidando e trancafiando os indesejáveis", e, no entanto, foram submetidos às condições desumanas de trabalho e recebiam baixos salários. Esta condição repercutiu claramente em suas vidas, de forma que, dos seis entrevistados, três se aposentaram por invalidez decorrente de doença mental.

Os depoentes desta pesquisa falaram com orgulho de seu trabalho, se esmeraram na descrição de suas atividades, seus olhos brilhavam ao falarem de seus descendentes que também seguiram seus caminhos. A forma como os pacientes foram asilados e submetidos ao trabalho sob o falsa noção de reabilitação foi ingenuamente absorvida pelos entrevistados como algo benéfico. Reconhecer o relato dos velhos como fonte privilegiada na construção da história significa colocar no centro da cena homens e mulheres comuns, anônimos, quase sempre invisíveis que, de forma singela, mas que sem sombra de dúvida tiveram um importante papel na história da enfermagem catarinense.

 

REFERÊNCIAS

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NOTA

* Recorte da Dissertação de Mestrado da 1a. autora: "Hospital Colônia Sant'Ana: reminiscências dos trabalhadores de enfermagem (19511971)" defendida no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (PEN -UFSC) em 2008.

 

 

Recebido em 30/04/2010
Reapresentado em 06/08/2010
Aprovado em 05/09/2010

 

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