Volume 14, Número 3, Jul/Set - 2010
EDITORIAL
A memória e o "por em cena" da história da enfermagem
Tânia Cristina Franco Santos
Pós-Doutora em História da Enfermagem. Escuela de Enfermería - Universidad de Valladolid. Professora Associada do Departamento de Enfermagem Fundamental da Escola Anna Nery/UFRJ. Membro Fundador do Núcleo de História da Enfermagem Brasileira. Pesquisadora CNPQ-São João de Meriti-RJ- Brasil - Email: taniacristinafsc@terra.com.br
A memória, como um fenômeno que atualiza as lembranças, está sujeita às questões de subjetividade e seletividade e às instâncias de poderes. Sendo assim, o processo de reconstrução do passado está sujeito ao clivo de sucessivas reinterpretações conformes às representações do presente e às disputas de poder que determinam o que será lembrado ou esquecido, mediante as manipulações e o controle da memória.
Nesse sentido, o trabalho historiográfico demanda a necessidade de conhecer os interesses do presente que norteiam a dialética lembrar e esquecer, pois as formas de concepção do passado resultam de um sistema de incorporação de disposições, um habitus, uma vez que a memória, em permanente evolução, é sacralizada pelos vestígios da história, os quais celebram a memória, e pelos porta-vozes autorizados que produzem os discursos em torno de acontecimentos, personagens, tempos e lugares.
Na Enfermagem brasileira, a institucionalização de emblemas e rituais da profissão foi uma das estratégias utilizadas pelas escolas de enfermagem, para proceder a seleção e atualização de lembranças dignas de serem apreendidas e transmitidas às futuras enfermeiras. Nesse processo de tradição inventada, nas palavras de Hobsbawn, a memória é perpetuada e convertida em um bem simbólico do grupo que, transmitido como herança através de celebrações, do erguimento de estatutária comemorativa ou da identificação de monumentos nos espaços públicos, confere unidade ao grupo de enfermeiras e, por conseguinte, um sentimento de filiação estatutária. Portanto, a memória, individual ou coletiva, é socialmente construída e representa um capital simbólico do indivíduo ou do grupo ao proceder a perpetuação e o controle das lembranças.
Portanto, a simbiose entre memória e identidade profissional remete a formação de uma consciência da necessidade de preservação da memória, pois ela é o fio condutor que liga as gerações umas com as outras, dando um caráter de antiguidade, ubiquidade e continuidade. Nesse processo, o grupo tende a se dotar de meios que lhes permitam perpetuar-se para além da finitude dos agentes individuais ou até mesmo das instituições, através do efeito de simbolização e eternização conferido por: retratos ou estátuas que imortalizam a pessoa representada; edificações; escritos, e também o dito e o silenciado, os quais transmitem para a posteridade a história digna de ser contada.
Assim, os estudos históricos que contam com as relíquias do passado são imprescindíveis para a sobrevivência dos diferentes grupos sociais, uma vez que a experiência histórica de um grupo ou sociedade é a sua referência positiva, sua advertência tangível que lhe fornece os subsídios perante os projetos do presente, evitando uma operação às cegas ou através de tentativas. Nesse contexto, os documentos históricos, lugares de memória, devem ser interpretados conformes as conjunturas que determinam sua produção, veiculação e preservação, de modo a possibilitar a construção de uma versão histórica consistente e convincente.