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CAPES

Volume 14, Número 1, Jan/Mar - 2010

PESQUISA

 

Enfermagem psiquiátrica: discursando o ideal e praticando o real

 

Psychiatric nursing: speech the ideal and practice the real

 

Enfermería psiquiátrica: el discurso ideal y la práctica real

 

 

Manoela Alves I; Rosane Mara Pontes de Oliveira II

I Enfermeira. Aluna do Curso de Pós-Graduação e Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery - nível mestrado. Brasil. E-mail: alves.manoela@gmail.com,
II Doutora. Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem Médico-cirúrgica da EEAN/UFRJ. Membro do Laboratório de pesquisa em Enfermagem psiquiátrica - LAPEPS. Brasil. E-mail: rosane.mara@terra.com.br

 


RESUMO

Estudo sobre a análise do cuidado da enfermeira no espaço da internação hospitalar, com ênfase na compreensão dos pressupostos teóricos contidos no ato de cuidar. Neste trabalho apresentamos às enfermeiras pressupostos teóricos que poderão auxiliar o ato de cuidar de pacientes mentalmente doentes. O estudo é de natureza qualitativa. Foi adotado o modelo teórico "O intuir empático" de Oliveira para nortear as discussões e a análise dos dados. Os temas oriundos das discussões guiaram o processo analítico e reflexivo. As enfermeiras concordam e aceitam os pressupostos teóricos do modelo de cuidar "O intuir empático" de Oliveira e acham que estes pressupostos são muito valiosos na ação de cuidado que elas exercem. No entanto, os dados demonstram uma lacuna na capacidade de agir eficientemente em uma situação real apoiando-se em conhecimentos teóricos e práticos. Há uma contradição entre o que as enfermeiras adotam como discurso e o que fazem realmente na prática hospitalar.

Palavras-chave: Assistência de Enfermagem. Enfermagem Psiquiátrica. Teoria de Enfermagem


ABSTRACT

Study on analysis of the nurse's care within the hospital, emphasizing the understanding of theoretical assumptions inserted in the act of caring. Under this work, we present the nurses theoretical assumptions that may assist the act of taking care of mentally ill patients. This is a qualitative study. It was adopted the theoretic model "suggests the empathy" by Oliveira, to guide the discussions and the analysis of data. The themes that came from the discussions, guided the process analytical and reflective. The nurses agree and accept the assumptions of theoretical model of care "suggests empathy" by Oliveira and they believe these will help them with the care action of the nurses' psychiatrists. However the data show a gap between the capacity of acting efficiently in a real situation supported in theoretical and practical knowledge. There is a contradiction between what the nurses take as speech and what it really uses in practice in a hospital.

Keywords: Nursing care. Psychiatric nursing. Nursing theory.


RESUMEN

El presente estudio analiza el cuidado de la enfermería en el espacio de la interacción hospitalaria, con énfasis en la comprensión de los presupuestos teóricos incluidos en el proceso del cuidado. En este trabajo presentamos a las enfermeras los presupuestos teóricos que podrían auxiliarlas durante el proceso del cuidado de pacientes con enfermedades mentales. El estudio es de naturaleza cualitativa. El modelo teórico adoptado para guiar las discusiones y el análisis de los datos fue "la intuición empática" de Oliveira. Los temas que surgieron de las discusiones  guiaron el proceso analítico y reflexivo. Las enfermeras estuvieron de acuerdo y aceptaron los presupuestos teóricos del modelo "la intuición empática" de Oliveira y consideraron que los mismos son muy valiosos en el proceso del cuidado que ejercen las enfermeras psiquiátricas. Sin embargo, los datos evidenciaron que existe una laguna en la capacidad de actuar efectivamente en una situación real basándose en estos conocimientos teóricos y prácticos. Existe una contradicción entre lo que las enfermeras adoptan como discurso y lo que realmente realizan en la práctica hospitalaria

Palabras clave: Cuidados de enfermería. Enfermería psiquiátrica. Teoría de enfermería.


 

 

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como objeto a testagem de um modelo teórico inovador que oriente o cuidado da enfermeira psiquiatra, em uma instituição psiquiátrica de internação hospitalar, no município de Paracambi/Rio de Janeiro.

O estudo da prática das enfermeiras psiquiatras deve-se à importância que elas tiveram no processo de consolidação do modelo assistencial asilar, iniciado pelos médicos psiquiatras brasileiros no início do século XX. Esse modelo, ainda vigente no Brasil, com base na legislação de 1934, propõe, fundamentalmente, a hospitalização do doente mental, visando, sobretudo, à ordem pública, embora, predominantemente, esse modelo esteja falido em sua base ideológica.

A psiquiatria e a enfermagem psiquiátrica surgiram no hospício. O hospício era a instituição disciplinar para reeducação do louco/alienado, que tinha no médico/alienista a figura de autoridade a ser respeitada e imitada nesse projeto pedagógico e, nos trabalhadores de enfermagem, os atores coadjuvantes desse processo, executores da ordem disciplinar emanada dos médicos.1

Nesse período, a enfermagem tinha por objetivo a implementação de técnica disciplinar que possibilitasse a transformação do espaço hospitalar em local de cura, de disciplinamento dos trabalhadores e das tarefas, sob direção médica. Desse modo, as intervenções da enfermagem referiam-se, essencialmente, ao espaço geográfico imediato limpeza, luz, calor e outros.1

Consideramos que o momento atual do trabalho de enfermagem em saúde mental caracteriza-se pela transição de uma prática de cuidado hospitalar que visava à contenção do comportamento dos "doentes mentais" para a superação deste modelo, por meio da incorporação de princípios novos e desconhecidos, que buscam adequar-se a uma prática interdisciplinar aberta às contingências dos sujeitos envolvidos em cada momento e em cada contexto, superando a perspectiva disciplinar de suas ações. É, portanto, um período crítico para a profissão e favorável para o conhecimento e a análise do processo de trabalho nesta área.

No município do Rio de Janeiro, a política de saúde mental tem favorecido a implantação de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). A estratégia utilizada tem sido a criação destes novos serviços, com a consequente desativação de leitos em serviço bastante precário, chegando ao fechamento de algumas clínicas consideradas sem condições de funcionamento. Mas não podemos negar a existência de serviços hospitalares na rede que são utilizados como recurso de internação psiquiátrica, atendendo a uma necessidade transitória.

Assim, caminhamos para a constatação de que, talvez, de fato, os dias dos grandes hospitais psiquiátricos estejam contados, cabendo ao hospital especializado, integrado a uma rede de assistência à saúde mental, uma pequena parcela de intervenções em situações bastante específicas e circunscritas, nas quais procedimentos médicos diagnósticos e/ou terapêuticos exijam uma internação hospitalar.

No ano de 2002 havia 240 hospitais psiquiátricos, com 50.805 leitos espalhados em todas as regiões brasileiras, principalmente no Sudeste. Dados de dezembro de 2005 mostram que houve redução de leitos para 42.076, principalmente nos hospitais de maior porte. Hoje, a maioria dos leitos está situada em hospitais de médio e pequeno porte, nos quais a assistência ao paciente é mais adequada e humanizada. Atualmente, há no Rio de Janeiro 8.134 leitos e 41 hospitais psiquiátricos.2

Dentro desse panorama, ainda temos muitos profissionais de enfermagem nos hospitais psiquiátricos trabalhando por uma prática terapêutica, tentando interromper a formação de pacientes ditos de "longa permanência" e encarando o desafio, que é a transferência destes internados por longos anos em hospitais psiquiátricos para serviços substitutivos existentes na comunidade.

As enfermeiras do estudo desenvolvem suas atividades profissionais em um hospital psiquiátrico com 357 pacientes internados, com o objetivo de favorecer a reintegração social e familiar de pacientes que apresentavam uma média de tempo de internação psiquiátrica em torno de trinta anos.

Durante a nossa permanência neste hospital, presenciamos atitudes/ações de algumas enfermeiras que nos fizeram questionar o cuidado da enfermeira psiquiatra. As ações das enfermeiras eram regidas pelas práticas manicomiais, tendo como paradigma predominante de suas ações o modelo organicista. E as ações das enfermeiras que rompiam essa disciplina eram criticadas porque, no entendimento geral, na instituição psiquiátrica é que o cuidado precisa ser normatizado e disciplinador.

Essas ações nos pareceram estar centradas muito mais em cumprir uma obrigação de trabalho e desenvolver tarefas do que em uma ação que demonstra envolvimento com o paciente.

Para Waldow,3 o cuidado, pelas suas múltiplas características, e principalmente por ser interativo e não desenvolvido por máquinas, apresenta variedades nas suas expressões do cuidar. Ela afirma que, muitas vezes, cuidadores falharão no cuidado, mesmo havendo boas intenções. Parece que o cuidado, no seu sentido ideal, não se processa, mas não deixa de ocorrer. Ou melhor, o cuidado não ocorre, mas as intervenções de enfermagem são realizadas.

Consideramos que o momento atual do trabalho da enfermeira psiquiatra caracteriza-se pela transição entre uma prática de cuidado hospitalar, que visava à contenção do comportamento dos "doentes mentais", e a incorporação de princípios novos e desconhecidos, que buscam adequar-se a uma prática interdisciplinar, aberta às contingências dos sujeitos envolvidos em cada momento e em cada contexto, superando a perspectiva disciplinar de suas ações. É, portanto, período crítico para a profissão e favorável para o conhecimento e a análise do processo de trabalho nessa área.4

No entanto, o que temos vivenciado na prática assistencial é o cumprimento de regras e realizações de tarefas sem reflexão crítica sobre as ações, sem o movimento dinâmico entre o fazer e o pensar sobre esse fazer.

A questão é pertinente ao estudo, considerando as situações vivenciadas e outras que poderiam ser reconhecidas como cuidado de enfermagem e, no entanto, não foram e ainda possibilitaram reflexões. Partimos da suposição de que é preciso um modelo teórico para orientar a prática assistencial da enfermeira psiquiatra e fazer com que a mesma seja reconhecida pelas enfermeiras e pela equipe multiprofissional.

Diante dessa realidade é que neste momento pensamos em propor como objeto de estudo o seguinte: O modelo teórico-orientador do cuidado da enfermeira psiquiatra em sua prática assistencial.

Para orientar a elaboração do estudo, estabelecemos alguns objetivos a serem alcançados: aplicar a proposta do modelo teórico à rotina de cuidado da enfermeira psiquiatra; descrever o cuidado da enfermeira psiquiatra à luz da proposta do modelo teórico; identificar elementos apreendidos do novo modelo de cuidado presentes na prática da enfermeira; e analisar a proposta de modelo teórico como ferramenta orientadora para o cuidado da enfermeira psiquiatra.

Sobre a Clínica de Enfermagem Psiquiátrica

A ideia central do estudo é pensar sobre a prática de cuidado da enfermeira psiquiatra dentro da instituição psiquiátrica de internação e discutir uma nova proposta de cuidar, orientando-se pelo paradigma do conhecimento e dos saberes que é a proposta "O intuir empático como modelo teórico de cuidado da enfermeira psiquiatra."4

A prática da enfermagem psiquiátrica em internação tem sido objeto de muitas pesquisas, o que tem mostrado que a enfermeira na internação psiquiátrica ainda permanece no cuidado administrativo-institucional, pautando suas ações no modelo biológico, o que vai na contramão do que nos é proposto pela Reforma Psiquiátrica, que, de um certo modo, nos exige um cuidado de enfermagem de qualidade, em consonância ética com uma prática social libertadora.5

Entendemos como clínica de enfermagem psiquiátrica o processo de busca que implica uma capacidade de observação disciplinada e o desenvolvimento de aptidões para aplicar conhecimentos teóricos à prática da relação interpessoal, em prol da ajuda ao cliente psiquiátrico.6

Segundo Oliveira7, a clínica de enfermagem psiquiátrica opta por uma certa indisciplinalidade, sendo fiel à abertura, à tolerância, à diferença e à diversidade, características da psiquiatria. Nessa clínica, a doença mental, o tratável, ou seja, o que é possível tratar, não está marcado na especificidade da doença, e sim na pessoa que está doente.

A clínica de enfermagem psiquiátrica, que traduz o cuidado da enfermeira psiquiatra, se estrutura por elementos constitutivos, a saber: empatia, intuição tempo, cuidado pós-demanda, escuta qualificada, prontidão para cuidar e esperançar. Essa clínica é a essência da proposta do modelo teórico do "intuir empático".4

Para Oliveira,4 "o intuir empático" constitui-se em um processo dinâmico e pessoal, uma vez que é a partir dele que a enfermeira constitui sua ação de cuidar de pessoas com transtornos mentais. O modelo foi construído por meio de movimentos profundamente dialéticos dos pensamentos e interações das enfermeiras, o que permitiu que o cuidado e suas dimensões fossem sua tônica. O ponto inicial para compreender "a proposta teórica de intuir o intuir empaticamente" está em considerar o que é empatia e o que é intuição.

A empatia envolve mais do que saber o que o paciente quer dizer. Ela também envolve a sensibilidade para os sentimentos atuais do paciente e a capacidade de verbalizar essa compreensão em uma linguagem afinada com o paciente. Ela significa, com frequência, confirmar com a correção das percepções pessoais e deixar-se guiar pelas respostas do paciente.4

A empatia é a chave de todo o relacionamento terapêutico. Jaspers7 diz que a empatia é a mola mestre do método psicopatológico, e assim a define como "sentir o outro dentro de mim" e como "a possibilidade de perceber o outro como se fosse o próprio".

Consideramos oportuno dizer que empatia está diretamente ligada ao ofício da enfermeira psiquiatra e nos é reveladora; portanto, não deveria escapar à compreensão das enfermeiras.

Intuição origina-se do latim intuito: ato de contemplar. Forma de contato direto ou imediato da mente com o real, capaz de captar sua essência de modo evidente, mas necessitando de demonstração.8

A intuição tem sido considerada componente importante no julgamento clínico e na tomada de decisões, sendo, portanto, imprescindível para uma maior qualidade do cuidado de enfermagem.9

A intuição é um conjunto de conhecimentos próprios, adquiridos ao longo de múltiplas experiências do ser, que afloram na mente espontaneamente, sem necessidade de ninguém transmitir nada, pois que tais conhecimentos pertencem ao universo peculiar e subjetivo de conhecimentos do sujeito.9

Podemos então considerar que a intuição é um tipo de conhecimento para a enfermeira psiquiatra que a ajuda no momento de decisões do cuidado.

Tempo

Na enfermagem psiquiátrica, tempo é sinônimo de resultado. Tempo interno, tempo de disponibilidade para que o sujeito possa querer.4 O tempo não é da enfermeira, mas sim do doente. Tal conceito se aplica ao estudo, pois temos identificado que no cenário de pesquisa o "tempo" é da enfermeira, da equipe de enfermagem, e não do doente. Percebemos que as enfermeiras não deixam os pacientes esperarem por esse tempo, não esperam a resposta que depende do tempo interno de cada sujeito. Assim, decidem por ele, pensam por ele e chegam a tomar atitudes por eles. O "tempo" é da enfermeira, pois é visto como as horas do plantão, justificando assim a preocupação com o apressamento da hora e o cumprimento de rotinas.

Cuidado pós-demanda4

A prescrição é inversa em relação à enfermagem generalista. O cuidado na clínica de enfermagem psiquiátrica é pós-demanda, respeitando as vontades e as necessidades do paciente, estimulando-o para a autonomia do cuidado. Esse conceito adequa-se ao estudo, pois partimos do princípio que cuidamos do sujeito com toda sua singularidade e vontades próprias, que deverão acima de tudo ser respeitadas.

Escuta qualificada

É quando a enfermeira tem um encantamento pela narrativa do paciente, que nada tem a ver com ter nexo ou deixar de ter, verdades ou mentiras. Antes de pensar em qualquer tipo de intervenção é preciso ouvir o sujeito e compartilhar com ele a situação de sofrimento, para depois estruturar qualquer tipo de intervenção, que pode ser, inclusive, fazer nada.4

Ao falarmos de escuta qualificada, não podemos deixar de discutir transferência e contratransferência na prática da enfermeira psiquiatra.

Freud10 ressaltava já em 1912 o fato de que a transferência não deveria ser atribuída à psicanálise, mas sim aos sujeitos. Podendo se manifestar em toda prática que lide com o sujeito, que tenha como objeto de seus cuidados o sujeito.

A transferência é uma manifestação do universo subjetivo do paciente, que encontrou na figura de determinado cuidador a possibilidade de manifestação, pois é compatível com as condições de relação previamente estabelecidas pelo sujeito. É a transferência de sentimentos de amor, raiva e ódio que muitas das vezes os pacientes nos remetem.

Já a contratransferência é dita por Freud10 como a reação do profissional à transferência. Assim, não há contratransferência sem transferência. Esta reação contratransferencial está vinculada à subjetividade do próprio profissional, seus valores, crenças, afetos e, principalmente, seu inconsciente.

Prontidão para cuidar

A enfermeira precisa ter prontidão para cuidar, que é estar do lado do paciente, fazer o caminho com ele, conhecê-lo e criar com ele um espaço de vida. Essa é uma característica da enfermagem psiquiátrica porque é a única profissão de saúde que percorre os mesmos espaços que o paciente. Exige que a enfermeira esteja muito disponível.11

Esperançar

A clínica da enfermagem psiquiátrica induz o esperançar, que é aguardar com esperança que um pequeno nada ocorra, aguardar com o paciente.4 Tal conceito se aplica ao estudo quando aguardamos com esperança que o paciente queira fazer planos para o futuro.

É a partir desses princípios teóricos que discutiremos a clínica de enfermagem psiquiátrica

 

CAMINHO METODOLÓGICO

O presente trabalho terá uma abordagem qualitativa. A metodologia qualitativa incorpora a questão do significado e da intencionalidade, como inerente aos atos, às relações e às estruturas sociais, sendo tomadas como construções humanas significativas.12 A abordagem qualitativa justifica-se na medida em que trabalha o universo dos significados, valores, atitudes, relações que não podem ser operacionalizadas, aprofundando-se no significado de ações e relações humanas.12

A escolha dessa abordagem metodológica partiu da necessidade de se obter elementos que proporcionassem uma melhor compreensão da prática assistencial da enfermeira psiquiatra e, assim, fundamentar o objeto de estudo.

Os estudos qualitativos atendem a situações nas quais simples observações indicam funcionamento complexo de estruturas e organizações.

A escolha por um estudo descritivo foi própria para o objeto em foco, pois a essência do trabalho consiste em testar uma proposta de modelo teórico. As pesquisas descritivas têm como objeto primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno ou o estabelecimento de relações entre variáveis.

O estudo tem como sujeitos de pesquisa oito enfermeiras que exercem suas atividades em instituição psiquiátrica de internação com ações de cuidados diretos ao paciente.

A pesquisa foi realizada durante dois anos em um hospital psiquiátrico credenciado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), com 357 leitos, localizado no município de Paracambi/RJ. Foi enviado um pedido de autorização institucional para a realização de pesquisa, que foi autorizado. A pesquisa atendeu ao preconizado conforme os termos da Resolução nº 196, de 10 de outubro de1996, do Conselho Nacional de Saúde. Os participantes assinaram o consentimento, de maneira livre e esclarecida. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa da EEAN/UFRJ, tendo parecer aprovado em 28 de maio de 2008, e recebeu o nº de protocolo do parecer de ética 26/08.

A produção de dados foi realizada em quatro etapas, a saber: na 1ª etapa, utilizamos como estratégia de coleta de dados a observação livre. A observação livre é aquela em que o pesquisador permanece alheio ao grupo ou situação que pretende estudar, observando de maneira espontânea os fatos que aí ocorrem.12

Com a observação livre, temos como objetivo conhecer o cuidado/ação de enfermagem desenvolvido pelas enfermeiras em sua prática de cuidado diária. Somente conhecendo como as mesmas cuidam é que poderemos lhe apresentar uma nova proposta de cuidados. O registro da observação livre foi realizado por meio de um formulário pré-formulado.

Na 2ª etapa foi realizada a apresentação da proposta de modelo teórico "O intuir empático"4 para os sujeitos da pesquisa, com o intuito de suscitar uma reflexão da prática assistencial. Durante a apresentação, discutimos com as enfermeiras cada conceito teórico que estrutura a proposta de modelo teórico " O intuir empático", que são respectivamente: tempo, cuidado pós-demanda, escuta qualificada, prontidão para cuidar, empatia e esperançar.

Decidimos utilizar essa proposta de modelo teórico, pois seu fenômeno central tem relação com nossas inquietações em relação à prática assistencial na enfermagem psiquiátrica.

A apresentação foi gravada em fitas magnéticas e se transformou em dados para a pesquisa. As transcrições das fitas foram realizadas pelas pesquisadoras.

Na 3ª etapa, utilizamos novamente a técnica de coleta de dados com observação livre.

A prática assistencial das enfermeiras foi observada novamente, com objetivo de perceber como as enfermeiras, após a apresentação e o conhecimento da proposta de modelo teórico "O intuir empático", desenvolveram suas ações de cuidado. Queríamos avaliar se houve mudanças neste cotidiano de cuidado.

Na 4ª etapa, utilizamos entrevista aberta. Na entrevista, estabelecemos uma atmosfera recíproca entre quem pergunta e quem responde. Durante a realização, o entrevistador falou sobre o tema proposto com base nas informações que ele detinha e que, no fundo, foram a verdadeira razão da entrevista. Na medida em que surgiu um clima de estímulo e de aceitação entre ambas as partes envolvidas, as informações fluíram.

Abordamos na entrevista algumas questões como: entendimento e possibilidade de reprodução da proposta de modelo teórico "O intuir empático"; a experiência da enfermeira na aplicação do modelo teórico; e as possibilidades de uso do modelo.

Os dados coletados na pesquisa foram analisados pelo método de análise de conteúdo. Segundo Bardin13, análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise de comunicação que visam a obter, por procedimentos sistemáticos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) das mensagens.

Esta categoria está formada por duas subcategorias, a saber: a prática do discurso e a prática do cuidado possível. Marcamos a verdadeira prática das enfermeiras o discurso sobre essa prática e o posicionamento das enfermeiras diante da apresentação da proposta de modelo teórico "O intuir empático".

A prática do discurso

Definimos como "a prática do discurso" o ato de a enfermeira praticar apenas a fala, o discurso, sendo que o mesmo não têm aderência com a sua prática assistencial. Nesta discussão queremos demostrar que as enfermeiras envolvidas no estudo, após a apresentação da proposta de modelo teórico, tiveram um discurso segundo o qual concordam e acham importante os conceitos teóricos.

Eu concordo com todos os conceitos, na verdade é isso que a gente vivencia mesmo. A nossa vivência, o nosso cuidado, nada mais é do que respeitar o tempo, oferecer escuta, porque trabalhar com psiquiatria nada mais é como o conceito que você colocou. (Enfª E., 19/06/2008 A)

A proposta de modelo teórico é importante e possível. Eu concordo com todos, eu acho que seria o ideal praticar todos os conceitos que estão aqui. (Enfª D., 02/07/2008 E)

Nos primeiros momentos da apresentação, surgiram depoimentos que demonstram uma certa inquietação das enfermeiras por não ter o conhecimento teórico dos conceitos. Elas relatam que, se tivessem aprendido esses conceitos teóricos, a prática assistencial seria melhor nos hospitais:

Eu acho que se as enfermeiras tivessem noção dessas teorias, dos conceitos, como você diz, o cuidado seria muito melhor do que é hoje em algumas instituições. (Enfª D., 23/06/2008 A)

Rocha14 correlaciona a dificuldade de uma atuação terapêutica das enfermeiras no campo da psiquiatria à tendência de uma formação pautada em regras de ação técnica, claras e definidas. Desse modo, quando elas se deparam com uma abertura prática, não têm iniciativa para a reinvenção de novas formas de cuidar e se posicionar.

A Clínica de Enfermagem Psiquiátrica exige que a enfermeira tenha conhecimentos teóricos e saberes para descobrir possibilidades de ações de cuidado que possam ajudar na recuperação da pessoa.4

Portanto, analisamos que essa justificativa das enfermeiras de "falta de conhecimento" é um tanto frágil para se manter, pois constatamos que após uma pequena aproximação, que foi a apresentação da proposta de modelo teórico, as enfermeiras mantiveram as mesmas atitudes e as mesmas práticas pautadas no distanciamento do paciente, deixando as ações de gerência e liderança se sobreporem ao cuidado direto. Isso pôde ser constatado na entrevista.

Eu já sou implicada em colocar em prática, eu só não faço porque não é possível hoje porque tenho muito serviço. (Enfª E., 05/07/2008 E)

Percebemos que as enfermeiras utilizam o fator "tempo" como justificativa para não colocar em prática os conceitos. Observamos que, embora as enfermeiras percebam as deficiências de sua formação, elas mantêm uma postura passiva diante da necessidade diagnosticada.

Necessário se faz, portanto, refletirmos sobre os instrumentos não materiais dessa organização do trabalho, seus métodos, suas bases teóricas, especificamente utilizadas no trabalho dos enfermeiros, que, por sua vez, inserem-se em um contexto histórico de trabalho em saúde, e, nesse processo, indagarmos também a finalidade com que esses instrumentos estão relacionados.

Portanto, ao observar a prática de cuidado dessas enfermeiras, constatamos que nessas "falas", o "discurso", de fato, não ocorre, não é colocado em prática. Há uma certa incongruência entre a fala e a prática, que é percebida durante a observação da prática assistencial e também nos depoimentos, quando as enfermeiras relatam exemplos de sua prática de cuidado.

Tenho prontidão para cuidar, mas é o que eu não faço muito, eu estou lá o tempo todo, mas eu acho que poderia estar lá mais diretamente com eles. (Enfª D., 23/06/2008)

Segundo Oliveira4, a prontidão para cuidar exige que a enfermeira esteja disponível e junto ao paciente, para suscitar nele demandas de cuidado. Isso só é possível estando ao seu lado.

Esses discursos não correspondem a estratégias de intervenção que visem à assistência/recuperação desse sujeito. Ou seja, os instrumentos do trabalho de enfermagem, nessa área, alinham-se mais na direção da reafirmação da concepção organicista de objeto, característica da medicina psiquiátrica, do que na da Clínica de Enfermagem, que pressupõe uma ampliação/superação do objeto, incorporando, também, características psicossociais.

Constatamos que as enfermeiras tinham um discurso filosófico, baseado em teorias, mas que no cotidiano assistencial este não é colocado em prática, ficando somente na esfera do "discurso".

A prática do cuidado possível

Nesta subcategoria, queremos discutir a prática de cuidado das enfermeiras do estudo. O que elas relatam o que é "possível fazer" dentro de uma instituição psiquiátrica.

As enfermeiras nos depoimentos fazem críticas severas à instituição psiquiátrica, em relação à interferência negativa desta na sua prática assistencial.

Tem muitas coisas no hospital que dificultam nosso cuidado. (Enfª E., 19/06/2008 A)

Nos exemplos, as enfermeiras reconhecem a limitação do modelo hospitalar na abordagem do sujeito com transtornos mentais, ocupando-se, rotineiramente, de sua "doença mental" ao controlar o comportamento dos usuários, e, apesar de criticar o tratamento ofertado pela instituição - pautado pelo modelo organicista -, não se percebem como agentes de transformação dessa realidade.

As críticas são voltadas para a falta de tempo para se dedicarem ao cuidado direto ao paciente. Alegam ter muitas ocupações relacionadas com atividades de gerência e liderança que as afastam do cuidado direto ao paciente, como no exemplo:

A gente não consegue produzir isso no nosso cuidado como gostaria; não consegue oferecer escuta como gostaria; o tempo que a gente tem é curto. (Enfª E., 19/06/2008 A)

Escuta é um constitutivo que qualifica o cuidado da enfermeira; é o cuidado que inclui o sujeito na ação; é o momento que ele participa da sua recuperação expondo as suas dores.7

Embora a literatura especializada na área aponte uma convergência teórica em torno da compreensão de que o papel do enfermeiro em serviços de saúde mental é o de "agente terapêutico", cujo objetivo fundamental é auxiliar o paciente a aceitar a si próprio e a melhorar as suas relações pessoais, o trabalho efetivo dos enfermeiros centrou-se, principalmente, no desenvolvimento de atividades burocrático-administrativas.

Para Tavares,15 o despreparo profissional, aliado ao desconhecimento, gera muita insegurança na lida da enfermeira com o paciente doente mental, fazendo com que ele se afaste do seu cuidado, limitando sua ação às atividades administrativas, das quais supõe possuir maior domínio técnico.

As críticas relacionadas à falta de tempo na instituição psiquiátrica apareceram várias vezes. As enfermeiras referem-se à escala de trabalho como um outro fator interveniente que contribui para a falta tempo e, consequentemente, para o distanciamento do paciente e para a impossibilidade de colocar em prática os conceitos teóricos.

... duas vezes por semana não dá tempo de oferecer uma escuta qualificada, como deveria ser, que é você sentar, é você oferecer uma escuta, parar com a pessoa para que ela possa expor as suas angústias, como deveria ser feito. (Enfª E., 19/06/2008 A)

Tempo é um constitutivo importante da clínica de Enfermagem Psiquiátrica. Para a enfermeira, o tempo é dela; é o tempo cronológico que é o tempo obedecido, e, nesse sentido, não há tempo para o paciente e nem o tempo do paciente.7 Os dados apontam uma característica do trabalho das enfermeiras - que se repete em alguma medida em outras áreas de assistência - relacionada ao fato de que grande parte do tempo é destinada ao desempenho de atividades administrativo-burocráticas, e não de administração da assistência, que é uma atividade de enfermagem.

 

CONCLUSÃO

Os dados demonstram que, apesar de o discurso dos enfermeiros estar orientado para a desconstrução do saber psiquiátrico e para a superação das práticas manicomiais, o paradigma predominante em suas ações é o modelo organicista. Os enfermeiros mantêm as práticas tradicionais triagem e controle principalmente medicamentoso dos pacientes em crise embora o discurso aponte para atividades de relacionamento interpessoal e trabalho interdisciplinar.

A instituição psiquiátrica e as práticas duras não podem se sobrepor ao relacionamento terapêutico, que deve ser estabelecido entre a enfermeira e o paciente, pois este é o principal instrumento de cuidado de enfermagem psiquiátrica. É uma experiência de aprendizagem mútua.

Assim, na enfermagem psiquiátrica, nenhuma rotina, tecnologia ou psicofármacos substitui a relação terapêutica entre a enfermeira e o paciente.

A enfermeira possui uma ferramenta singular que pode ter mais influência sobre os clientes do que qualquer medicamento ou terapia: ela mesma. Ela precisa ter empatia e sensibilidade com a história de vida do paciente.7

Constatamos uma lacuna entre a capacidade de agir eficientemente em uma situação real apoiada em conhecimentos teóricos e práticos. Há uma contradição entre o que as enfermeiras adotam como discurso e o que fazem realmente na prática hospitalar. Constatamos uma fragilidade na capacidade de agir eficientemente em uma situação real apoiada em conhecimentos teóricos e práticos.

Vale ressaltar que é difícil manter-se terapêutico; vários autores discutem a complexidade do relacionamento terapêutico e seus desdobramentos. Entendemos o quanto a instituição psiquiátrica influencia no cuidado e é por isso que a enfermeira precisa ter uma postura mais exigente de si mesma, para poder, a cada dia, renovar sua prática de cuidado, com base em conhecimentos teóricos que possam sustentar essa prática, que hoje é solicitada e esperada da enfermeira psiquiatra: de uma agente terapêutica. jamais permitindo que as duras rotinas da instituição psiquiátrica impeçam a sua proximidade com os pacientes.

 

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13.Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa (PO): Ed 70; 2004.

14.Rocha RM. Enfermagem em saúde mental. 2ª ed. Rio de Janeiro (RJ): SENAC; 2008.

15 Tavares CMM. Prática criativa da enfermagem psiquiátrica: fatores intervenientes no seu desenvolvimento. Esc Anna Nery Rev Enferm 2002 jan;6(1):107-17.

 

 

Recebido em 13/11/2008
Reapresentado em 09/03/2009
Aprovado em 06/05/2009

 

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